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A judicialização indireta da saúde: um estudo de caso sobre a experiência de Cachoeiro de Itapemirim/ES

Resumo

O presente trabalho tem por escopo analisar e compreender um tema aparentemente incipiente e ainda não investigado: a judicialização indireta da saúde. O fenômeno cristaliza-se quando questões inerentes ao direito à saúde são levadas ao crivo do Poder Judiciário de forma superveniente ou incidental e não como objeto principal de uma ação ajuizada. Analisou-se, por intermédio da metodologia de estudo de caso, 263 ações cíveis, ajuizadas no decorrer do ano de 2013, na 1ª Vara da Infância e da Juventude de Cachoeiro de Itapemirim/ES. A pesquisa identificou importantes elementos que caracterizam o tema, merecendo destaque o protagonismo do Ministério Público, o qual fora responsável pela ampla maioria dos requerimentos que postulavam a aplicação de “medidas protetivas incidentais” (92,1%) e a alta concentração de pedidos demandados que versavam sobre tratamento contra a drogadição infanto-juvenil (52,2%). Ao final, apontou-se a necessidade de se estabelecer diálogo institucional e interdisciplinar entre o Poder Público constituído, os atores que compõem o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) e a sociedade civil organizada, objetivando elaborar e implementar as políticas públicas de saúde inexistentes, bem como aprimorar aquelas que já estão em pleno funcionamento.

Direito à Saúde Infanto-juvenil; Políticas Públicas de Saúde; Medidas de Proteção Incidentais; Judicialização Indireta da Saúde

Abstract

This work's scope is to analyze and understand a theme apparently incipient and not yet investigated: the indirect judicialization of health. The phenomenon crystallizes when questions inherent to the right to health are examined by the judiciary branch as a superficial matter or incidental form and not as the main object of a filed action. 263 civil actions, filed during the year of 2013 in the 1st Court of Childhood and Youth of Cachoeiro de Itapemirim/ES, were analyzed through case study methodology. The research identified important elements that characterize the theme, with prominence the role of the Public Prosecutor, which was responsible for the vast majority of requirements that they postulated the application of Protective Measures Incidental (92,1%) and the high concentration of requests defendants that focused on treatment against child and adolescent drug addiction (52,2%). In the end, the need to establish institutional and interdisciplinary dialogue between the constituted government, the actors that make up the system of guarantee of rights of the Children and Adolescents (SGDCA) and civil society organizations was pointed out, with the objective of developing and implementing nonexistent public health policies and improving those already in operation.

Children and Adolescents Right to Health; Public Health Policies; Incidental Protection Measures; Indirect Judicialization of Health

1. Introdução

A Constituição Federal de 1988 conferiu à saúde o status de “direito de cidadania” e dever do Estado, atribuindo-lhe os vetores da universalidade, equidade e integralidade. A saúde passou, então, a ser responsabilidade do Poder Público, cuja efetivação se consubstancia por intermédio de uma prestação positiva (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988: promulgada em 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 05 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 15 de jul. 2015.
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).

Elencada como um direito social constitucionalmente consagrado, a saúde constitui um dos três sistemas que integram a Seguridade Social, juntamente com a previdência e assistência social. Entretanto, a materialização desse direito fundamental depende da implementação de políticas públicas e de serviços eficazes pela Administração Pública (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988: promulgada em 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 05 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 15 de jul. 2015.
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).

Nesse viés de perspectiva de direitos e garantias constitucionais, a saúde também se configura como um direito fundamental inerente às crianças e adolescentes, sendo, nos exatos termos do artigo 4º da Lei nº 8.069/1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente (ECRIAD) – “dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade,” a efetivação desse direito, dentre outros (BRASIL, 1990BRASIL. Lei nº 8.069/1990, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 13 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 15 jul. 2015.
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).

Crianças e adolescentes são pessoas que se encontram em plena fase de desenvolvimento físico e mental, motivo pelo qual carecem de uma proteção integral e primazia absoluta na garantia de seus direitos fundamentais. Em face dessa inata peculiaridade, que certamente os coloca numa posição de inferioridade em relação aos demais grupos sociais, justifica-se o tratamento diferenciado que lhes foi concedido, eis que há flagrante desigualdade material.

Sabe-se que a elaboração e a execução de políticas públicas voltadas para o universo infanto-juvenil são de responsabilidade governamental. Contudo, o subfinanciamento crônico do sistema público de saúde e a falta de mobilização política e social constituem importantes desafios que precisam ser superados. Decerto, algumas dessas políticas públicas, como é o caso do tratamento especializado contra a dependência química de crianças e adolescentes, sequer foram implementadas pela maioria dos municípios brasileiros.

É nesse cenário de ausência de efetivação de direitos fundamentais que a atuação do chamado “Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente” (SGDCA) reveste-se de crucial importância. Este revolucionário mecanismo de proteção em rede foi concebido pelo ECRIAD e disciplinado pela Resolução 113/2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA). Estabelece um modelo de ampla articulação e integração entre todas as instâncias públicas governamentais e a sociedade civil, objetivando elaborar e executar políticas públicas que tutelem todos os direitos humanos já consagrados ao público infanto-juvenil (BRASIL, 2006BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA. Resolução nº 113, de 19 de abril de 2006. Dispõe sobre os parâmetros para a institucionalização e fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente. Brasília, DF, 2006. Disponível em: < http://dh.sdh.gov.br/download/resolucoes-conanda/res-113.pdf>. Acesso em: 11 set. 2015.
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).

O SGDCA é formado pelos eixos promoção, controle e defesa dos direitos. No âmbito do eixo de defesa, é composto pelo Poder Judiciário (especialmente Varas da Infância e da Juventude), Ministério Público, Defensoria Pública, Centros de Defesa, Segurança Pública e Conselhos Tutelares.

Nesse sentido, o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública emergem como importantes atores desse eixo estratégico, na medida em que a adoção de mecanismos jurídicos de proteção legal constitui forma de exigibilidade dos direitos que foram violados.

A judicialização indireta da saúde, objeto do presente trabalho, surge por meio da aplicação das denominadas “medidas protetivas incidentais”. O emprego desse recurso processual, como instrumento garantidor de acesso às políticas públicas de saúde às crianças e adolescentes, vem se desenvolvendo de forma constante e reiterada no juizado estudado, sobretudo a pedido do Ministério Público. O resultado da utilização recorrente desse dispositivo cristalizou-se como uma nova forma de se judicializar a saúde.

A pesquisa, realizada sob a égide da metodologia de estudo de caso com abordagem quali-quantitativa, discutirá temas como a judicialização direta e indireta da saúde e as medidas protetivas incidentais. Através de gráficos e tabelas, serão apresentados e analisados os resultados obtidos com a aplicação de questionário padrão para coleta de dados.

O objetivo central deste trabalho foi o de lançar holofotes sobre um novel tema, mas que ainda não foi devidamente pesquisado, fomentando e norteando estudos empíricos e doutrinários. Ao se investigar o fenômeno da judicialização indireta da saúde espera-se contribuir para o fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente e o aprimoramento da prestação da tutela jurisdicional administrativa exercida pelas Varas Especializadas da Infância e da Juventude.

2. Metodologia

Essencialmente holístico, multidisciplinar e empírico desde sua fase embrionária, o presente trabalho estruturou-se e desenvolveu-se tendo como base a estratégia de estudo de caso com abordagem quali-quantitativa.

A escolha dessa técnica de pesquisa firmou-se no entendimento de que, embora a judicialização indireta da saúde seja um fenômeno manifesto e com profundas consequências em âmbito jurídico, político e social, aparentemente não existem pesquisas nem trabalhos científicos publicados, razão pela qual necessita ser adequadamente estudada e compreendida.

Realizou-se pesquisa de campo documental, exploratória e retrospectiva em todas as 263 ações cíveis - excetuadas as de alimentos, guarda, adoção, suspensão/destituição do poder familiar, mandado de segurança e procedimento ordinário - que foram ajuizadas na 1ª Vara Especializada da Infância e da Juventude da Comarca de Cachoeiro de Itapemirim/ES, no ano de 2013.

As ações analisadas pertencem às classes processuais de “Providência”, “Expedientes Especiais” ou “Medidas Protetivas”. A escolha desses processos operou-se em virtude do dispositivo judicial proferido nos autos, uma vez que, apenas nessas variedades específicas de ações, evidenciou-se a aplicação do instrumento jurídico processual responsável pela judicialização indireta da saúde: as “medidas protetivas incidentais”.

Já nos autos que foram suprimidos do estudo, o comando decisório consubstancia-se no deferimento ou indeferimento do pedido inicial, concessão do pedido ou da liminar ou na condenação de uma das partes. Assim, constata-se que, nessas classes de ações, não há aplicação de medidas protetivas, tanto ordinárias quanto incidentais, o que justifica a exclusão desses processos pela investigação.

Optou-se pela utilização de questionário de pesquisa como técnica mais adequada à coleta de dados. Assim, quando pedidos supervenientes ou incidentais em saúde, que são os gatilhos de iniciação do fenômeno, eram constatados nos autos, aplicava-se questionário padrão especialmente elaborado com o objetivo de se extrair as principais características que permeiam o tema.

A identificação e a classificação dos processos escolhidos para análise foram realizadas pelo Sistema de Automação do Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo (e-Jud), mediante consultas efetivadas por servidores que detinham login e senha de acesso à intranet.

A permissão para se manusear os autos e extrair os dados neles contidos efetivou-se através de autorização judicial, haja vista que todos os processos que tramitam nas Varas da Infância e da Juventude encontram-se sobre o pálio do “segredo de justiça”. Não há nos resultados apurados quaisquer elementos que possam identificar crianças ou adolescentes que foram beneficiários das ações. Portanto, inexiste qualquer ofensa à privacidade, intimidade ou imagem.

3. A judicialização da saúde

Com o advento da Constituição Cidadã, a universalização da saúde recém-criada dependia de um amplo e rígido processo legislativo que lhe assegurasse plena implementação e efetivação. Ao conferir “relevância pública” às ações e serviços de saúde, o artigo 197 da CF/88 impôs ao Estado a responsabilidade de se formular um marco regulatório para todo o sistema de saúde (ASENSI, 2012ASENSI, Felipe Dutra. O direito à saúde no Brasil. In: ASENSI, Felipe Dutra; PINHEIRO, Roseni (Org.). Direito sanitário. 1a ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. Cap. 1, p. 2-26.).

Ao regulamentar as disposições constitucionais que tratam o assunto, a Lei 8.080/90, assegurou em seu art. 2º que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”. Para tutelar e materializar esse direito fundamental, o art. 4º dessa normativa, devidamente inspirado pelo art. 198 da CF/88, instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), consistente no “conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público” (BRASIL, 1990BRASIL. Lei nº 8.069/1990, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 13 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 15 jul. 2015.
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).

O SUS constitui-se num complexo e dinâmico sistema de saúde, tendo por escopo “a promoção de uma atenção abrangente e universal, preventiva e curativa, por meio da gestão e prestação descentralizadas de serviços de saúde, promovendo a participação da comunidade em todos os níveis de governo" (PAIM et al, 2011PAIM, Jairnilson; TRAVASSOS, Claudia; ALMEIDA, Celia; BAHIA, Ligia; MACINKO, James. O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios. The Lancet. Londres, 2011. Disponível em < http://www.trf2.gov.br/cursos/PAIM,%20Jairnilson.pdf >. Acesso em: 20 jun. 2015.
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, p. 11).

Nesse mesmo sentido, o art. 7º do ECRIAD dispôs que a responsabilidade de se elaborar e executar políticas sociais de proteção à vida e à saúde para crianças e adolescentes pertence ao Estado, cuja operacionalização está a cargo do SUS (BRASIL, 1990BRASIL. Lei nº 8.069/1990, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 13 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 15 jul. 2015.
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).

Todavia, asseverou Franco (2010FRANCO, Túlio Batista. Judicialização das Políticas de Saúde no Brasil: uma revisão sobre o caso do acesso a medicamentos. XXI Congresso – Cidade do México, 2 a 4 de setembro de 2010. Disponível em: <http://www.professores.uff.br/tuliofranco/textos/calass-2010-judicializacao-politicas-saude-no-Brasil.pdf. > Acesso em: 04 jul. 2015.
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, p. 4), “mesmo sem lançar um olhar aprofundado sobre a questão”, é correta a ilação de que existe um grande e derradeiro hiato entre o que está regulamentado nas leis que versam sobre políticas públicas de saúde e o que a população realmente tem vivenciado nos hospitais e postos públicos de saúde.

Em face das imensas dificuldades enfrentadas pelo Estado, sobretudo no que concerne ao subfinanciamento crônico de um sistema de saúde eminentemente universal, a Administração Pública não tem logrado êxito em atender às diretrizes constitucionais e legais, permanecendo em mora perante os cidadãos.

Essa realidade que assola grande parte da população é a principal responsável pela crescente demanda judicial de ações que visam a assegurar esse direito constitucional fundamental. E na seara da infância e da juventude esse cenário não é diferente.

Com fulcro no princípio constitucional da Inafastabilidade do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, CF/88), cada vez mais a Justiça tem sido provocada e instada a atuar, compelindo ao Estado a adimplir suas obrigações constitucionais e infraconstitucionais (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988: promulgada em 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 05 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 15 de jul. 2015.
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).

A crescente utilização do Poder Judiciário como instrumento garantidor de acesso a direitos fundamentais fez surgir o fenômeno denominado “Judicialização da Política”. A primeira obra contundente que tratou da judicialização foi a coletânea “The Global Expansion of Judicial Power”, organizada por Tate e Vallinder (1995)TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjorn. The Global Expansion of Judicial Power: The Judicialization of Politics. New York: New York University, 1995.. Segundo esses autores, a "judicialização da política" ocorre quando o Poder Judiciário, tendo como base a própria constituição, é instado, por um terceiro, a manifestar-se sobre um determinado conflito que envolve decisões de um poder político, dirimindo o litígio de forma resolutiva. Ao se permitir essa ingerência sobre outros poderes, sobretudo no executivo, há notória expansão do Poder Judiciário frente aos demais.

Por judicialização da saúde, compreende-se a análise e decisão, em sede judicial, de questões que envolvam variadas prestações de saúde tais como, fornecimento de órteses e próteses, assistência médica ambulatorial e cirúrgica, medicamentos, suplementos alimentares, custeio de tratamentos, entre outras.

Diante de sua inquestionável relevância, diversos juristas, sociólogos e sanitaristas expuseram suas considerações acerca do tema.

Machado (2010)MACHADO, Felipe Rangel de Souza. A judicialização da saúde no Brasil: cidadanias e assimetrias. 185 f. Tese (doutorado), Universidade do estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: <http://unisc.br/portal/upload/com_arquivo/1349808773.pdf>. Acesso em: 08 jul. 2015.
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, após minuciosa análise dos principais trabalhos que já abordaram a temática, vislumbrou “dois eixos de interpretação”: o primeiro, denominado “procedimentalista”, sustenta que a judicialização torna a sociedade desinstitucionalizada, vez que marginaliza as instituições de mediação, como as associações e partidos políticos, privilegiando uma parte da população em detrimento da coletividade. Em sentido diametralmente oposto, o outro eixo, de natureza “substancialista”, entende que a judicialização é um importante passo rumo ao aprimoramento do exercício da cidadania, na medida em que garante a grupos segregados a expectativa de terem seus direitos fundamentais materializados. Decerto, concluiu, existem elementos suficientes para que acatemos um ou outro posicionamento.

Corroborando com a tese do chamado “efeito dual da judicialização”1 1 Nessa teoria, a judicialização da saúde possui duas consequências – uma positiva e outra negativa. Portanto, essencialmente antagônicas entre si. , Marques (2008MARQUES, Silvia Badim. Judicialização do direito à saúde. Revista de Direito Sanitário. São Paulo, v. 9, n. 2, p. 65-72, 2008. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/13117/14920 >. Acesso em 19 mai. 2015.
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, p. 65-70) deduz que o embate sobre a judicialização da saúde é bastante polêmico e envolve a eterna dicotomia entre o direito individual e o coletivo. Por um lado, a participação do Judiciário pode ser considerada uma atividade positiva, visto que pode reduzir as violações de direitos cometidas pelo próprio Estado contra seus cidadãos. Dentro dessa perspectiva, significa “um avanço em relação ao exercício efetivo da cidadania por parte da população brasileira”. Por outro lado, representa “um ponto de tensão perante os elaboradores e executores da política no Brasil, que passam a atender um número cada vez maior de ordens judiciais, garantindo as mais diversas prestações do Estado”, explica a pesquisadora.

Com efeito, a judicialização da saúde produz sérias consequências em âmbito jurídico, político e social, haja vista que os recursos inicialmente destinados ao financiamento de programas e serviços públicos de saúde são realocados para atenderem a demandas particulares e isoladas.

Esse desvio de dinheiro público tem causado enormes prejuízos ao SUS, motivo pelo qual, torna-se imperioso realizar uma profunda reflexão crítica sobre o papel que vem sendo desempenhado pelos operadores do direito, sobretudo os magistrados. As decisões judiciais emanadas devem, portanto, ser proferidas de forma racional e em estrita observância às leis e políticas públicas de saúde vigentes e não de forma individualizada a todos aqueles que buscam o Poder Judiciário para satisfazer seus interesses pessoais (SILVA, 2008SILVA, Virgílio Afonso da. O Judiciário e as políticas públicas: entre transformação social e obstáculo à realização dos direitos sociais. In: Cláudio Pereira de Souza Neto & Daniel Sarmento, Direitos sociais: fundamentação, judicialização e direitos sociais em espécies, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. P. 587-599.).

Destarte, ao entregar a prestação da tutela jurisdicional no campo da saúde pública, o Judiciário influencia diretamente na atividade estatal, considerando que, inequivocamente, haverá uma inversão dos recursos destinados à coletividade sendo redirecionados em prol de parte específica da população. Todavia, em sentido inverso, assegurará à parte que teve seu direito fundamental à saúde violado pela Administração Pública a oportunidade de vê-lo materializado.

4. A judicialização indireta da saúde

Inicialmente, para melhor compreensão e alcance do estudo, torna-se imprescindível realizar algumas diferenciações entre as terminologias “judicialização direta” e “judicialização indireta” da saúde.

Usualmente, a judicialização da saúde ocorre de forma direta, ordinária em seu nascedouro, posto que a materialização do direito à saúde é o objeto principal da ação ajuizada. Nela, o fluxograma de ações evidencia que essa forma de judicialização da saúde pode operar-se de duas maneiras: a) quando o usuário percorre a via administrativa previamente estabelecida e não consegue obter seu tratamento; b) no momento em que o usuário decide procurar diretamente a Justiça, sem passar pela via administrativa.

No caso da opção "a", o fluxograma de ações parte do usuário que necessita de cuidado em saúde e segue a via administrativa pré-determinada. Ao procurar a Unidade Básica de Saúde (UBS) de seu território e ser devidamente encaminhado para a Central de Regulação Municipal (CRM) para agendamentos, o usuário não logra êxito em receber o tratamento de que necessita, geralmente em razão da negativa de oferta ou demora no atendimento. Irresignado, procura o Poder Judiciário como alternativa viável para a resolução de seu problema. Devidamente patrocinado pelo Ministério Público, Defensoria Pública ou advogado particular, o usuário ajuíza uma ação na qual o pleito requerido é o fornecimento de insumo médico ou tratamento que precisa. Ato contínuo, o juiz defere ou indefere os termos da inicial e a ação segue a regular tramitação de um contencioso judicial.

Na hipótese "b", o fluxograma de ações também se inicia a partir do usuário que carece de assistência à saúde. Porém, ele decide acionar o Poder Judiciário diretamente, sem passar pelas vias ordinárias administrativas. Essa conduta normalmente ocorre em razão do prévio conhecimento da letargia ou da negativa de atendimento por parte da Administração Pública.

Na judicialização indireta da saúde, a petição que propõe a aplicação de medidas protetivas na área da saúde é interposta de forma superveniente ou incidental, levantada no bojo de um processo que, a priori, não fora iniciado por questões relativas à saúde.

Seu fluxograma de ações demonstra que a violação do direito à saúde de crianças e adolescentes não fazia parte da narrativa constante da peça inicial. Essa lesão foi identificada após os autos se encontrarem em pleno andamento, o que ensejou, de forma transversa, uma atuação específica do Poder Judiciário e do Ministério Público para restabelecerem o pleno exercício do direito negado.

Assim, em dada fase processual, após procederem-se averiguações in loco para se aquilatar situações de risco ou de vulnerabilidade em face de crianças e adolescentes, vislumbrou-se pela equipe técnica interprofissional a necessidade de intervenção do Poder Judiciário, cujas considerações são devidamente relatadas ao juízo.

Em seguida, o representante do Ministério Público analisa o parecer, sugestão ou laudo que foi acostado aos autos. Se o parquet entender pertinente e apropriado ao caso, apresenta petição superveniente à peça vestibular na qual propõe a aplicação de “medidas protetivas incidentais”. A utilização deste instrumento processual visa a garantir o acesso de crianças e adolescentes aos serviços públicos de saúde que lhes foram negados ou cerceados pelo Estado.

Nesse ínterim, com base no art. 98 c/c art. 101 do ECRIAD, o juiz, em decisão interlocutória com efeitos de antecipação da tutela, aplica as medidas de proteção sugeridas, compelindo à Administração Pública a fornecer o medicamento ou tratamento à criança ou adolescente.

Após a intimação da parte demandada (Poder Público), acaso haja resistência, o processo seguirá a tramitação normal de um contencioso judicial, com estrita observância a todas as garantias legais e processuais vigentes, em especial, ampla defesa, contraditório e devido processo legal. Se não houver contestação e o tratamento for efetivamente disponibilizado, os autos são extintos por resolução do mérito.

As ações em que se evidenciou o fenômeno pertencem às classes processuais de “Providência”, “Expedientes Especiais” ou “Medidas Protetivas”. Estes processos são ajuizados com o objetivo de se apurar denúncias, proceder sindicâncias, realizar acompanhamentos temporários ou aplicar as adequadas medidas protetivas a crianças e adolescentes que estejam em situação de risco ou vulnerabilidade social.

Dessa forma, a pesquisa realizada apontou que o fenômeno da judicialização indireta da saúde beneficiou importante parcela da população infanto-juvenil que se encontrava inserida em contexto de extrema marginalidade e fragilidade social, sobretudo da periferia. O princípio da equidade, corolário do Estado Democrático de Direito e fator preponderante na redução da desigualdade social, foi exaustivamente observado pelo Poder Judiciário, Ministério Público e equipe interprofissional.

Restou provada que a aplicação das medidas protetivas incidentais realmente atingiu aqueles que mais necessitavam de intervenção: crianças e adolescentes que se encontravam em estado de abandono, desvantagem socioeconômica, desestrutura familiar ou em contato com o submundo das drogas.

Ainda nessa mesma seara, mas sob o condão comparativo, Marques e Dallari (2007)MARQUES, Silvia Badim; DALLARI, Sueli Guandolfi. Garantia do direito à assistência farmacêutica no Estado de São Paulo. Revista Saúde Pública. São Paulo, v. 41, n. 1, p. 101-107, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsp/v41n1/15.pdf>. Acesso em 08 jul. 2015.
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, em pesquisas realizadas quanto ao fornecimento de medicamentos, via ações ajuizadas em face do Estado de São Paulo, identificaram que 67,7% dos autores que chegaram à via judicial estavam representados por advogados particulares. Assim, chegaram à conclusão de que a ampla maioria das pessoas que se beneficiaram da judicialização direta da saúde são compostas de pessoas que não são consideradas hipossuficientes, já que as partes se mostraram mais esclarecidas e intelectualmente mais conscientes quanto ao direito à saúde.

Em estudo análogo, Vieira e Zucchi (2007)VIEIRA, Fabíola Sulpino; ZUCCHI, Paola. Distorções causadas pelas ações judiciais à política de medicamentos no Brasil. Revista Saúde Pública. São Paulo, v. 41, n. 2, p. 214-222, 2007. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/rsp/v41n2/5587.pdf>. Acesso em 08 jul. 2015.
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constataram que aproximadamente 63% dos autores de ações movidas contra a Secretaria Municipal de Saúde da cidade de São Paulo/SP residiam em localidades que não estavam inseridas nos mapas de exclusão social.

As duas pesquisas citadas apontam para uma constante judicialização da saúde em favor de pessoas que não se encontram em situação de desvantagem ou vulnerabilidade social, aumentando, sobremaneira, o abismo a ser preenchido pelo SUS, na medida em que o sistema deixará de utilizar os recursos destinados à coletividade para atender demandas específicas de algumas pessoas.

Portanto, infere-se que a judicialização indireta da saúde possui claro e inequívoco viés de inclusão e de justiça social, contrapondo-se ao que ocorre na maioria das vezes em que a judicialização da saúde opera-se de forma ordinária, ou seja, como objeto principal de uma ação ajuizada.

5. As medidas de proteção

As medidas específicas de proteção são os recursos ou instrumentos dispostos no Estatuto da Criança e do Adolescente que deverão ser utilizados sempre que os direitos reconhecidos ao público infanto-juvenil forem ameaçados ou violados: I - por ação ou omissão do Estado; II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; III - em razão de sua conduta (BRASIL, 1990BRASIL. Lei nº 8.069/1990, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 13 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 15 jul. 2015.
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).

Sobre as diversas modalidades de medidas específicas de proteção, aplicáveis ao caso em concreto, assim disciplinou o Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:

I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;

II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;

III - matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;

IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente;

V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial (grifo nosso);

VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;

VII - acolhimento institucional;

VIII - inclusão em programa de acolhimento familiar;

IX - colocação em família substituta (BRASIL, 1990BRASIL. Lei nº 8.069/1990, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 13 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 15 jul. 2015.
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).

Segundo Sêda (1996SÊDA, Edson. Das Medidas Específicas de Proteção. In: CURY, Munir; SILVA, Antônio Fernando do Amaral; MENDEZ, Emílio Garcia (Coords). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais 3ª ed. (rev. atual.), São Paulo: Malheiros Editores, 1996. Cap. 2, p. 305-306., p. 305), as medidas de proteção possuem uma finalidade específica, qual seja, restabelecer o pleno exercício dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes que foram ameaçados ou violados. Por tal razão, salienta o autor:

Não devem, portanto, estar cingidas de formalismos processualísticos que obstaculizem as necessidades pedagógicas, pois estas, necessariamente, devem respeitar a condição peculiar da pessoa em desenvolvimento, que caracteriza a infância e a adolescência, como está escrito no art. 227 da CF (SÊDA, 1996SÊDA, Edson. Das Medidas Específicas de Proteção. In: CURY, Munir; SILVA, Antônio Fernando do Amaral; MENDEZ, Emílio Garcia (Coords). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais 3ª ed. (rev. atual.), São Paulo: Malheiros Editores, 1996. Cap. 2, p. 305-306., p. 305).

No âmbito administrativo, as medidas de proteção devem ser aplicadas pelo Conselho Tutelar, órgão deliberativo e essencial ao SGDCA. Na seara judicial, pelo juiz competente em matéria de Infância e Juventude, podendo ser solicitadas nas formas de petição inicial ou através de pedidos supervenientes ou incidentais.

Assim, quando a peça vestibular propõe a aplicação de medidas de proteção no âmbito da saúde, opera-se o fenômeno da judicialização direta da saúde, eis que o pedido principal versa diretamente sobre essa matéria (direito à saúde). Noutro sentido, se a propositura de aplicação dessas medidas ocorre no decurso de uma ação já em andamento, estaremos diante da judicialização indireta da saúde, haja vista que a demanda relativa à saúde ocorreu de forma superveniente ou incidental, ou seja, de forma indireta.

Certamente, as medidas específicas de proteção configuram-se em verdadeiros instrumentos jurídicos processuais de garantia, atuando de forma célere e eficaz em favor daquelas crianças e adolescentes que precisam ter o seu direito fundamental à saúde plenamente materializado ou restabelecido.

6. Resultados e análise dos dados

6.1 A incidência do fenômeno nos processos investigados

Dos 263 processos pesquisados, verificou-se a presença de pedidos supervenientes sobre o direito à saúde em 37 ações, o que corresponde a 14,06% do total (GRÁFICO 1). A análise desse percentual apurado permite inferir que houve relativa massificação de processos judiciais em demandas repetitivas, ou seja, que versavam sobre o mesmo assunto. Por apresentar elementos e características singulares, uma vez que emerge no decorrer da tramitação processual e não como objeto principal de uma ação ajuizada, o fenômeno observado cristaliza-se como uma nova forma de judicialização da saúde.

Gráfico 1
– Incidência de judicialização indireta nos processos analisados

Atualmente, o sistema e-Jud não dispõe de instrumentos de pesquisa que sejam capazes de identificar a judicialização indireta da saúde em seu banco de dados. Dessa forma, o fenômeno opera-se no “limbo”, sob as sombras de uma tramitação processual “invisível”. Seu reconhecimento somente é possível a partir de análises científicas de pesquisas empíricas, como esta que fora realizada.

Em sentido oposto, a judicialização direta da saúde evidencia-se em classe processual autônoma e distinta, podendo ser facilmente pesquisada no e-Jud através do seguinte percurso: Consultas de Processos de 1º Grau ► Assunto do Processo ► Direito Administrativo e Outras Matérias de Direito Público ► Serviços ► Saúde (todas dentro das quatro classes processuais possíveis: ação civil pública, mandado de segurança, procedimento ordinário e medidas de proteção).

Ao se realizar o cruzamento de dados entre as duas formas de judicialização da saúde identificadas no juizado sob análise, observa-se que, no ano de 2013, foram ajuizadas 72 ações originárias e interpostos 37 pedidos supervenientes, o que corresponde a um cômputo final de 109 processos que, de forma direta ou indireta, abordaram o direito à saúde (GRÁFICO 2).

Gráfico 2
: Cruzamento de dados entre o quantitativo de processos nos quais se operou os fenômenos da judicialização direta e indireta da saúde

A análise do gráfico 2 demonstra que a judicialização direta foi responsável por 66% do total de demandas sobre a saúde enquanto que a judicialização indireta respondeu por 34% dos casos.

6.2 O perfil das ações

Neste subitem, serão analisadas as principais características que foram identificadas por intermédio do questionário padrão utilizado. Serão evidenciados os resultados apurados em relação ao quantitativo mensal de pedidos supervenientes apresentados em juízo; polo passivo demandado; patrocínio dos pedidos supervenientes; apresentação de requerimento administrativo prévio nos autos; índice de deferimento dos pedidos supervenientes e; interposição de recurso.

Ressalta-se que, numa mesma ação, ajuizaram-se duas petições autônomas, em períodos distintos, razão pela qual os dados relativos a cada uma dessas peças foram computados individualmente em todos os itens relacionados ao perfil das ações.

O gráfico 3 indica o quantitativo mensal de petições apresentadas em juízo. Verificou-se que, no decorrer do ano de 2013, foram interpostos 38 pedidos supervenientes sobre o direito à saúde, o que perfaz uma média de 3,2 ao mês. Em todos os requerimentos, identificou-se a necessidade de aplicação de medidas protetivas incidentais.

Gráfico 3
– Quantitativo mensal de pedidos supervenientes apresentados em juízo

De uma análise preliminar, aduz-se que houve um pico de pedidos nos meses de setembro e novembro, cada mês com 5. Em princípio, não há justificativa plausível que possa explicar, empiricamente, a razão pela qual esses meses apresentassem maior quantidade de requerimentos, até por que os dados apurados estiveram muito próximos dos valores identificados nos meses de março, maio, julho e outubro, cada um com 4 pedidos.

Paradoxalmente, os meses de janeiro, fevereiro, abril, junho e dezembro foram aqueles em que houve uma menor apresentação de petições: 2, 1, 2, 2 e 2, respectivamente. Em relação ao baixo índice de pedidos identificado nos meses de janeiro (2 pedidos), fevereiro (1 pedido) e dezembro (2 pedidos), é cediço que, nesse período, há notório arrefecimento da atividade forense, posto que, tradicionalmente, esses meses são escolhidos pelos magistrados, promotores e servidores para gozarem suas férias, além de dezembro e janeiro serem os meses escolhidos para o que se convencionou chamar de recesso forense2 2 Antes da vigência do Novo Código de Processo Civil, o “recesso forense” do Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo foi estabelecido entre os dias 20 de dezembro a 06 de janeiro do ano subsequente. Durante este período, havia a suspensão temporária das atividades jurisdicionais, exceto para o atendimento de medidas consideradas urgentes. .

No que tange ao polo passivo demandado (GRÁFICO 4), verifica-se que o Estado do Espírito Santo, através da Superintendência Regional Sul de Cachoeiro de Itapemirim/ES (SRSCI), figurou como réu em 92,10% das ações, o que corresponde a um total de 35 pedidos supervenientes em saúde. Em sentido diametralmente oposto, o município de Cachoeiro de Itapemirim/ES foi demandado em apenas 2,63% das ações, com 1 pedido somente.

Gráfico 4
Polo passivo demandado

Em determinada ação judicial, tanto o Estado do Espírito Santo como o município de Cachoeiro de Itapemirim/ES figuraram no polo passivo da ação. Por tal razão, os dois entes demandados foram computados individualmente.

O elevado percentual de ações contra o estado capixaba apurado neste trabalho guarda verossimilhança com a pesquisa “Diagnóstico das Ações Judiciais Direcionadas à Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo” (ESPÍRITO SANTO, 2010ESPÍRITO SANTO. Secretaria de Estado da Saúde. Diagnóstico das ações judiciais direcionadas à Secretaria de Estado da Saúde do estado do Espírito Santo. Vitória, 2010. Disponível em: <http://www.escoladegoverno.pr.gov.br/arquivos/File/Material_%20CONSAD/paineis_III_congresso_consad/painel_9/diagnostico_das_acoes_judiciais_direcionadas_a_secretaria_de_estado_da_saude_do_espirito_santo.pdf>. Acesso em: 14 jul. 2015.
http://www.escoladegoverno.pr.gov.br/arq...
, p. 19), na qual se identificou que a Comarca de Cachoeiro de Itapemirim/ES, quando em análise comparativa populacional frente aos demais municípios, apresentava alto percentual de ações judiciais em face do estado. O citado documento revela a preocupação dos gestores frente à anomalia diagnosticada e pondera a “[...] urgente necessidade de se traçar uma estratégia de intervenção neste município”.

Por fim, a sobredita pesquisa constatou que 43,5% das decisões judiciais que emanaram das varas de Cachoeiro de Itapemirim/ES compeliram o estado ao fornecimento de medicamentos da atenção básica, ou seja, que são da obrigatoriedade do município.

Dessa forma, restou provada que a repartição tripartite de competências, estabelecida e regulamentada pela Política Nacional de Medicamentos (PNM), não foi observada pelo Poder Judiciário.

Nesse mesmo sentido, constata-se que as reiteradas decisões que obrigaram o Estado do Espírito Santo a fornecer tratamento contra a drogadição (VIDE TABELA 3) não seguiram as diretrizes adotadas pela Política Nacional Sobre Drogas (PNAD), a qual se norteia pelo princípio da responsabilidade compartilhada entre todos os entes e níveis da federação (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional sobre Drogas - SENAD. Legislação e Políticas Públicas sobre Drogas no Brasil. Brasília, DF, 2011. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/politicas-sobre-drogas/cartilhas-politicas-sobre-drogas/2011legislacaopoliticaspublicas.pdf>. Acesso em: 02 mai. 2015.
http://www.justica.gov.br/central-de-con...
).

Tabela 3
Tratamentos e insumos pleiteados que foram deferidos

Decerto, as decisões emanadas em primeira instância carecem de maior rigor legislativo e de profundo conhecimento sobre políticas públicas de saúde, sobretudo por envolverem questões eminentemente técnicas, interdisciplinares e intersetoriais, evitando-se sobrecarregar um ente federativo em detrimento de outro.

Os resultados identificados pela tabela 1 evidenciam que a ampla maioria dos pedidos supervenientes em saúde foram patrocinados pelo Ministério Público (92,1%). Desse total, destaca-se a importante participação dos servidores que integram a equipe técnica multidisciplinar da 1ª Vara Especializada da Infância e da Juventude - comissários, assistentes sociais e psicólogos. Os laudos, pareceres e sugestões desses profissionais fundamentaram o pedido do parquet em diversas ocasiões e responderam por 42,1% do quantitativo de requerimentos apresentados.

Tabela 1
Patrocínio dos pedidos supervenientes

De forma contrária, observou-se uma ausência total de registros de requerimentos indiretos interpostos por advogado particular ou pela Defensoria Pública (0%).

Em 5,3% dos casos (2 processos), identificou-se decisão judicial aplicando medida protetiva incidental apenas com base em laudo de equipe técnica, ou seja, sem manifestação da Promotoria de Justiça, Defensoria Pública ou advocacia particular.

Os dados revelam que o nível de atividade de órgãos tradicionalmente responsáveis pelo patrocínio de vulneráveis apresenta diferenças substanciais e preocupantes, haja vista que demonstram uma postura eminentemente proativa do Ministério Público e uma aparente inércia da Defensoria Pública.

Nessa esteira de entendimento, corroborando com os dados apurados neste trabalho, Sauerbronn (2012)SAUERBRONN, Selma. O protagonismo do Ministério Público no Estado Democrático: construção de uma política pública de saúde, na perspectiva da proteção integral da criança e do adolescente. In: ASENSI, Felipe Dutra; PINHEIRO, Roseni (Org.). Direito sanitário. 1a ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. Cap. 31, p. 564-581. asseverou que o representante do parquet tem se apresentado como a instituição democrática que mais tem colaborado, mediante instrumentos jurídico- processuais interpostos, para a implementação dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

Assim sendo, a pesquisa apontou inequívoco protagonismo do Ministério Público na utilização das medidas de proteção incidentais, consolidando-se como ator crucial na garantia do direito à saúde de infantes e adolescentes.

A análise da tabela 2 permite concluir que, na ampla maioria dos casos em que houve apresentação de pedidos supervenientes em saúde (84,2%), não foi possível identificar, através dos elementos acostados aos autos, se o autor do requerimento procurou a Administração Pública antes de apresentar pedido judicial. Em sentido oposto, os pedidos administrativos prévios somente foram verificados em 13,2% dos casos, os quais foram declarados infrutíferos pela parte autora. Apenas em uma ação restou provada a ausência de pedido extrajudicial.

Tabela 2
– Apresentação de requerimento administrativo prévio nos autos

O gráfico 5 evidencia que, dos 38 pedidos supervenientes apresentados, 35 foram deferidos e apenas 3 indeferidos, o que demonstra um alto índice de deferimento (92,1%).

Gráfico 5
Índice de deferimento dos pedidos supervenientes

Em todos os processos nos quais se identificou a judicialização indireta da saúde, os requerimentos supervenientes foram analisados e deferidos pelo magistrado sob a conjuntura de concessão de medida liminar com antecipação de tutela, embora não houvesse, no pedido de aplicação de medida protetiva incidental, a utilização dessa terminologia. Na maior parte dos casos, os pleitos foram concedidos via instrumento de decisão interlocutória com aplicação de medidas de proteção incidentais.

Acredita-se que, por serem consideradas medidas urgentes e direcionadas a um público-alvo que se encontra em situação de vulnerabilidade social, há maior sensibilidade dos juízes em concederem o pedido.

O elevado percentual de deferimentos apurados neste trabalho coaduna e encontra-se em perfeita simetria com os dados apurados por Oliveira (2014)OLIVEIRA, Renan Guimarães de. Judicialização do direito à saúde pública do município de Leopoldina-MG: um estudo de caso. 156 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Medicina – Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva. Juiz de Fora, 2014. Disponível em: <http://unisc.br/portal/upload/com_arquivo/1349808773.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2015.
http://unisc.br/portal/upload/com_arquiv...
, em pesquisa de campo realizada na comarca de Leopoldina/MG, na qual se identificou que 95% das ações que versavam sobre o direito à saúde foram deferidas e apenas 5% indeferidas.

O gráfico 6 aponta que, das 38 decisões que anteciparam ou negaram os efeitos da tutela, somente em duas houve a interposição de recurso, materializados em pedido de reconsideração e embargos de declaração.

Gráfico 6
– Interposição de recurso

No que diz respeito aos embargos de declaração, o magistrado concedeu provimento parcial ao recurso, coadunando com o embargante (Estado do Espírito Santo) no sentido de que a decisão interlocutória que deferiu o pedido de internação compulsória para tratamento contra a drogadição realmente carecia de maior fundamentação e esclarecimentos sobre os motivos da concessão. Já no pedido de reconsideração, houve provimento integral.

Segundo preceitua o art. 1.015 do Novo Código de Processo Civil - Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 - o agravo de instrumento é o recurso cabível contra as decisões interlocutórias concernentes às tutelas provisórias ou sobre o mérito do processo (BRASIL, 2015BRASIL. Lei nº 13.105/2015, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 17 mar. 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 30 mai. 2015.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

Entretanto, a análise dos dados apurados pelo gráfico 6 evidencia que em nenhuma das decisões interlocutórias nas quais se deferiu o pedido pleiteado houve interposição de agravo de instrumento, recurso necessário e adequado para se impugnar a decisão que antecipou ou denegou os efeitos da tutela.

6.3 Tratamentos e insumos pleiteados

Em relação aos itens 6.3 (tratamentos e insumos pleiteados) e 6.4 (perfil dos beneficiários) há de se restar consignado que, numa mesma petição, pode haver vários beneficiários e pedidos demandados, motivo pelo qual se justifica a diferença numérica identificada entre o total de pedidos supervenientes interpostos (38) e os quesitos concernentes aos tratamentos e insumos pleiteados (44) e de beneficiários (45).

Os dados apurados na tabela 3 demonstram que o cuidado em saúde mental, especificamente direcionado ao tratamento contra a dependência química, tem sido o mais importante gargalo da saúde infanto-juvenil que fora judicializado de forma superveniente no juizado sob análise. Constata-se, dessa forma, que a maior parte dos pedidos demandados e deferidos estiveram relacionados à toxicodependência, eis que somaram 52,2% (34% estiveram relacionados à consulta médica especializada objetivando indicar o melhor tratamento contra drogadição e 18,2% versavam sobre tratamento contra a drogadição em nível de internação).

Hodiernamente, como é cediço, as questões relacionadas ao uso e abuso de drogas constituem grave problema de saúde pública, especialmente se envolverem crianças e adolescentes, devendo ser tratadas com urgência e tecnicidade pelos órgãos de gestão sanitária e pelo Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA).

Os resultados obtidos apontam para uma problemática que é inerente à grande parte dos municípios brasileiros e não somente Cachoeiro de Itapemirim/ES: a ausência de políticas públicas específicas e direcionadas ao tratamento de crianças e adolescentes toxicômanos.

Em recente pesquisa realizada, Leal, Santos e Jesus (2014)LEAL, Fabíola Xavier; SANTOS, Caroline Christine Moreira dos; JESUS, Renata Santos de. Políticas de atenção às questões relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas no Espírito Santo. 78 f. Relatório de pesquisa – Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas – Departamento de Serviço Social - Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, 2014., identificaram que em todo o Estado do Espírito Santo existia somente um Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas - Infanto-juvenil (CAPS-i), estabelecido em Vitória, capital. Essa constatação vai de encontro à diretriz 2.2.5 da Política Nacional sobre Drogas (PNAD), formulada pela Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (SENAD), a qual estabelece que as diversas modalidades de tratamento devem atender às demandas específicas de alguns grupos, em especial, crianças e adolescentes (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional sobre Drogas - SENAD. Legislação e Políticas Públicas sobre Drogas no Brasil. Brasília, DF, 2011. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/politicas-sobre-drogas/cartilhas-politicas-sobre-drogas/2011legislacaopoliticaspublicas.pdf>. Acesso em: 02 mai. 2015.
http://www.justica.gov.br/central-de-con...
).

Corroborando com a assertiva acima descrita, Raupp e Sapiro (2009RAUPP, Luciane; SAPIRO, Clary Milnitsky. Adolescência, drogadição e políticas públicas: recortes no contemporâneo. Estudos de Psicologia. Campinas, 2009, outubro-dezembro, p. 445-454. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v26n4/05.pdf>. Acesso em 05 jul. 2015.
http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v26n4/05...
, p. 446) argumentam que o encaminhamento de crianças e adolescentes para realizarem tratamentos contra a dependência química em espaços destinados a adultos não é apropriada e encontra-se em assimetria frente às principais políticas públicas desenvolvidas pelo setor e pelo próprio ECRIAD. Nesse desiderato, asseguram que “[...] o tratamento da drogadição para crianças e adolescentes destaca-se como uma ‘questão problema’, devido à escassez de locais adequados e de profissionais capacitados para atender às demandas singulares desse público”.

Por fim, os dados apurados também demonstram relativa quantidade de pedidos supervenientes que tratam sobre consultas especializadas, tais como neuropediatria (15,9%), oftalmologia (2,3%) e psiquiatria/psicologia (25%). Estas últimas não relacionadas à a questões sobre drogas. A análise desses números revela carência desses profissionais nos quadros de funcionários da rede municipal e estadual de assistência à saúde, sobretudo no que tange à área de saúde mental.

6.4 Perfil dos beneficiários

As tabelas 4 e 5, assim como o gráfico 7, referem-se ao perfil dos beneficiários da judicialização indireta da saúde, caracterizados segundo o sexo, a faixa etária e o bairro de residência.

Tabela 4
– Sexo do beneficiário
Tabela 5
– Faixa etária do beneficiário à data do pedido superveniente

Gráfico 7
– Bairro de residência do beneficiário

Verificou-se que a ampla maioria dos beneficiários é do sexo masculino (71,4%) e encontram-se situados na faixa etária entre 10-14 anos (42,2%) e 15-17 anos (33,3%).

Considerando que a maior parte dos pedidos demandados (52,2%) se refere a tratamentos contra a drogadição (VIDE TABELA 3), conclui-se que o principal grupo de risco beneficiado pela judicialização indireta da saúde é formado por crianças e adolescentes usuários de drogas, do sexo masculino e dentro da faixa etária compreendida entre 10 e 17 anos de idade.

Os resultados apurados revelam harmonia frente aos dados coletados em recente pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde em parceria com a FIOCRUZ (BRASIL, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icit/Fiocruz). Pesquisa Nacional Sobre o Uso de Crack e Similares. Brasília, DF. 2014. Disponível em: <https://www.icict.fiocruz.br/sites/www.icict.fiocruz.br/files/livreto_domiciliar_17set.pdf>. Acesso em: 02 jul. 2015.
https://www.icict.fiocruz.br/sites/www.i...
, p. 7). O trabalho, intitulado “Pesquisa Nacional Sobre o Uso de Crack e Similares”, identificou que os usuários de crack são predominantemente do sexo masculino (78,68%) e que crianças e adolescentes já correspondem a 14% do total desses usuários.

Por derradeiro, apurou-se que, dentro da faixa daqueles que tem menos de dezoito anos (crianças e adolescentes), havia grupos em que o consumo era nulo (bebês < 01 ano) ou praticamente nulo (crianças até 08 anos), o que faz com que o consumo por parte de adolescentes seja considerado substancial e preocupante.

O gráfico 7 corresponde ao bairro de residência do beneficiário. Nesse quesito, observa-se que o bairro Zumbi/Eucalipto foi o que apresentou o maior quantitativo de pedidos supervenientes (4), seguido pelo distrito de Córrego dos Monos (3) e pelo bairro Novo Parque (3). Os demais bairros e distritos que compõem o município e que foram relatados na pesquisa apresentaram números mais irrelevantes, razão pela qual não foram elencados.

Segundo a historiadora cachoeirense Dias (2014DIAS, Silvia de Souza. O bairro Zumbi na perspectiva de Quilombos em Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo (1960-2012). 90 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas do Centro de Ciências Humanas e Naturais - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014. Disponível em: <http://portais4.ufes.br/posgrad/teses/tese_5868_SILVIA%20DE%20SOUZA%20DIAS.pdf>. Acesso em: 05 jul. 2015.
http://portais4.ufes.br/posgrad/teses/te...
, p. 43), o bairro Zumbi/Eucalipto é considerado pela mídia e população em geral como “um local de violência e tráfico de drogas”, o que certamente contribui para se perpetuar estigmas historicamente estabelecidos contra sua população.

Essa percepção social guarda verossimilhança em relação aos dados apurados pela pesquisa, na medida em que 3 dos 4 pedidos de judicialização indireta da saúde, realizados em processos cujos beneficiários residiam no bairro Zumbi/Eucalipto, abordaram questões relacionadas à drogadição. A análise dessas informações evidencia, portanto, que crianças e adolescentes que residem no bairro Zumbi/Eucalipto encontram-se em situação de extremo risco e vulnerabilidade social, sobretudo com relação ao uso e abuso de drogas e, via de consequência, com as mazelas impostas pelo tráfico.

De tudo exposto, infere-se que os dados identificados pela pesquisa revelaram importantes elementos que caracterizam a judicialização indireta da saúde, além de fornecerem subsídios cruciais que auxiliaram na adequada compreensão dos “gatilhos” de iniciação e dos mecanismos de funcionamento do fenômeno.

7. Conclusões

A doutrina da proteção integral, disposta no artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e reproduzida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, firma-se no reconhecimento de que crianças e adolescentes são sujeitos e detentores de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana. Dentre esses direitos, a saúde possui caráter de “relevância pública”, pois está intimamente relacionada ao nascimento e desenvolvimento pleno, benéfico e harmonioso da população infanto-juvenil.

Entretanto, em que pese os inequívocos avanços sociais alcançados a partir do advento dessas normas observam-se importantes desafios a serem suplantados, vez que ainda existe um longo caminho a ser percorrido para que se implemente políticas públicas de saúde eficazes para esse público-alvo.

Nesse cenário de efetivação de direitos, o Poder Judiciário e o Ministério Público possuem relevante papel no Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), tendo em vista que devem atuar de forma célere e eficaz em prol daqueles que, devido a sua condição singular de desenvolvimento, encontram-se em situação de vulnerabilidade social.

Os resultados apurados no presente estudo evidenciaram um fenômeno que, ao possuir características próprias e elementos distintos, emergiu-se como uma nova forma de judicialização da saúde. Conforme aquilatou-se na pesquisa, seu nascedouro ocorre de forma superveniente ou incidental, no bojo de um processo que, em princípio, não fora iniciado por questões relativas à saúde. Por tal razão, torna-se “invisível” e insuscetível de pesquisa eletrônica, haja vista que não há, nos atuais sistemas de banco de dados dos tribunais, instrumentos que possam ser utilizados para se quantificar e qualificar essas espécies de atos ou fatos jurídicos que surjam após a regular tramitação dos autos.

A judicialização indireta ou superveniente da saúde é o resultado de uma equação na qual o Poder Judiciário utiliza-se, de forma recorrente e em demandas repetitivas, do instrumento jurídico processual denominado “medidas protetivas incidentais”. A utilização desse recurso, cuja propositura geralmente é atribuída ao representante do Ministério Público, objetiva garantir acesso de crianças e adolescentes a tratamentos ou insumos médicos que lhes foram negados ou cerceados pelo Poder Público. Ao restabelecerem o pleno exercício do direito fundamental à saúde, as medidas de proteção configuram-se em verdadeiros instrumentos de inclusão social e de garantia de acesso.

O estudo apontou que 77,2% dos requerimentos supervenientes versavam sobre o cuidado em saúde mental, constituindo-se no principal gargalo da judicialização indireta da saúde no juizado estudado. Desse total, 52,2% estavam associados a questões de toxicodependência infanto-juvenil, o que configura grave problema de saúde pública a ser enfrentado com urgência pelos gestores, órgãos responsáveis e SGDCA. Este resultado encontra-se diretamente relacionado à comprovação fática de que, no município de Cachoeiro de Itapemirim/ES, inexistem políticas públicas especificamente direcionadas ao tratamento contra a drogadição de crianças e adolescentes. Os números apurados também revelaram uma alta incidência de pedidos de consultas com psiquiatra e psicólogo, cujas causas não estavam relacionadas ao uso ou abuso de drogas (25%).

A pesquisa evidenciou notório protagonismo do Ministério Público na consecução do direito fundamental à saúde, posto que a ampla maioria dos pedidos supervenientes (92,1%) foi patrocinada pelo representante do parquet. Dessa forma, a Promotoria de Justiça da Infância e Juventude consolidou-se como a principal instituição democrática atuante no campo da defesa e implementação dos direitos de crianças e adolescentes na seara da saúde.

A análise científica dos dados aquilatados demonstrou que o fenômeno da judicialização indireta da saúde operou-se tanto pela ausência de políticas públicas especificamente direcionadas ao tratamento contra a toxicodependência infanto-juvenil quanto pela ineficiência de outros programas que já se encontram em pleno andamento.

Diante dos elementos apurados e da identificação dos obstáculos a serem superados, merece destaque a importância de se estabelecer diálogo institucional e interdisciplinar entre o Poder Público constituído, os atores que compõem o SGDCA e a sociedade civil organizada. Essa ampla e salutar parceria deve enveredar esforços tencionando elaborar e implementar políticas públicas de saúde inexistentes, bem como aprimorar aquelas que já estão em pleno funcionamento.

Com a aplicação dessas medidas, evitar-se-iam a massificação de ações e de pedidos supervenientes em saúde, além de se garantir acesso a serviços públicos de qualidade e especificamente voltados ao universo de crianças e adolescentes.

Destarte, infere-se que a pesquisa certamente não exauriu o tema, mas trouxe importantes elementos científicos e empíricos para o início de aprofundadas discussões, cujos objetivos principais foram os de contribuir para o fortalecimento do SGDCA e o aperfeiçoamento da prestação da tutela jurisdicional administrativa exercida pelas Varas Especializadas da Infância e da Juventude.

Referências bibliográficas

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  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988: promulgada em 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 05 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 15 de jul. 2015.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
  • BRASIL. Lei nº 8.069/1990, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 13 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 15 jul. 2015.
    » http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L8069.htm
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  • 1
    Nessa teoria, a judicialização da saúde possui duas consequências – uma positiva e outra negativa. Portanto, essencialmente antagônicas entre si.
  • 2
    Antes da vigência do Novo Código de Processo Civil, o “recesso forense” do Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo foi estabelecido entre os dias 20 de dezembro a 06 de janeiro do ano subsequente. Durante este período, havia a suspensão temporária das atividades jurisdicionais, exceto para o atendimento de medidas consideradas urgentes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2015
  • Aceito
    21 Abr 2016
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