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Disciplina, biopolítica e “sidadanização”: considerações a partir do aplicativo A Hora é Agora – Testar nos deixa mais fortes.

Discipline, biopolitics and “sidadanization”: considerations from the application A Hora é Agora – Testar nos deixa mais fortes

Resumo

Apoiado no instrumental teórico de Michel Foucault, o presente artigo busca compreender e explicitar quais as estratégias de poder-saber emaranhadas no aplicativo A Hora é Agora – Testar nos deixa mais fortes, na medida em que se trata de uma prática que se dá em torno do dispositivo da sexualidade, e que este, por sua vez, funciona como ponto de intersecção entre os mecanimos disciplinares e as tecnologias biopolíticas. O argumento é que que tal política pública de saúde se apresenta, desse modo, como objeto e instrumento de normalização de corpos individuais e da população, bem como atuando na fabricação da subjetividade de homossexuais e homens que fazem sexo com outros homens marcada pelo estigma da aids.

Palavras-chave:
Homossexualidade; Foucault; Biopolítica; Aids

Abstract

From the Michel Foucault’s theorical work, this article aims to investigate and explicit which power-knowledge strategies are entangled at the application A Hora é Agora – Testar nos deixa mais fortes, in that it is a practice that occur around the sexuality device, which works as an intersection point between disciplinary mechanisms and biopolitics technologies. It is argued that this public healthy polici works such as an object and also an instrument of standardization of individual bodies and the population, as well as acting in the production of subjectivity of homosexuals and men who have sex with other men marked by the aids stigma.

Keywords:
Homosexuality; Foucault; Biopolitics; Aids

Introdução

“[A aids] foi estudada inicialmente em homossexuais, começou a ser procurada insistentemente em homossexuais e, naturalmente, foi encontrada em homossexuais” (Dr. Jean Claude Nahoum apudPerlongher, 1987PERLONGHER, Néstor. O que é a Aids. São Paulo: Brasiliense, 1987.).

O diagnóstico a respeito dos estudos sobre a aids feito pelo Dr. Jean Claude Nahoum representa de forma significativa o que aqui se propõe nas próximas páginas: compreender a homossexualidade enquanto elemento forjado no real através de técnicas, práticas e mecanismos dirigidos sobre os corpos, que os constituíram a partir de critérios colacionados e arregimentados em torno do que se chamou no mundo ocidental de scientia sexualis. Além disso, busca-se apontar para uma reativação da noção de “doença reinante” com a deflagração da epidemia de aids na década de 1980, relacionando-a ao modo de vida considerado gay, marcada, todavia, a partir de então, pelos mecanismos e regulações próprios da tecnologia biopolítica.

Tratar a sexualidade sob o prisma de uma ciência, ao mesmo tempo em que lhe confere ares de um fenômeno epistemológico sobre o qual são emitidos discursos com valores de verdade, encobre, por outro lado, as inflamações de ordem moral que percorrem os terrenos discursivos nos quais ela é elaborada como uma ideia, posta em funcionamento enquanto práticas intersubjetivas e controlada a partir do estabelecimento de políticas públicas.

Nesse sentido, emerge o dispositivo da sexualidade como noção fundamental que percorre todo o trabalho. Segundo Michel Foucault, é nele que se entrecruzam práticas disciplinares dirigidas aos corpos individuais e técnicas de regulação e controle que operam sobre a população, lançando tais corpos – individuais e populacional – a um terreno disciplinado e regulado pelos efeitos do poder normalizador.

Apoiados nessa noção, busca-se vislumbrar os efeitos de normalização disciplinar e biopolítica irradiados a partir do aplicativo digital chamado A hora é agora – testar nos deixa mais fortes, lançado pela prefeitura de Curitiba. Trata-se de política pública de saúde de controle e prevenção de HIV-aids direcionada especificamente a homossexuais e homens que fazem sexo com outros homens. Se, por um lado, efetiva direitos relacionados à saúde de tais sujeitos, por outro, carrega consigo, de modo mais sutil e talvez por isso mais ardiloso, consequências de ordem moralizante, reforçando o estigma de tais subjetividades como portadoras de uma sexualidade perversa e que se apresentam, elas mesmas, como um risco biológico para a própria população. Figura, portanto, de modo eloquente, como exemplo de medidas relacionadas ao processo de construção da cidadania de pessoas LGBTI, da “sidadanização”.

Assim, o primeiro capítulo se dedicará a uma genealogia do olhar médico a respeito da noção de doença, demarcando a diferenciação existente entre a concepção corrente no século XVII de doença reinante e sua posterior transformação a partir da emergência do aparato biopolítico no final do século XVIII. Sustentamos, porém, que com o surgimento da epidemia de HIV-aids no Brasil na década de 1980 houve uma reativação de tais discursos relacionando a síndrome a um modo de vida específico, que se convencionou chamar de homossexual. Foi nesse mesmo contexto que a homossexualidade ganhou maior visibilidade no âmbito das práticas sociais, o que possibilitou a construção da “sidadania” desse grupo de sujeitos a partir de direitos relacionados ao combate e prevenção da doença.

Feita essa análise genealógica, os capítulos posteriores se dedicam à uma analítica do poder no que se refere aos efeitos de normalização efetivados a partir da política pública de saúde em questão, dedicando-se, no segundo capítulo, a uma explicitação de seu caráter disciplinar, para, no seguinte, lançar luz sobre sua dimensão biopolítica.

1. Uma genealogia da noção de doença e o processo de “sidadanização”.

Em 25 de janeiro de 1978, no curso Segurança, Território, População, Michel Foucault declara um deslocamento importante instaurado no pensamento médico ocidental no século XVII. A partir da variolização, a doença deixa de ser compreendida em uma categoria muito sólida e consistente do domínio do saber médico, o que se entendia na época por “doença reinante”. Havia nesse período uma noção maciça de doença, uma designação substancial. “Uma doença que está ligada a um país, a uma cidade, um clima, um grupo de pessoas, uma região, um modo de vida. Era nessa relação maciça e global entre um mal e um lugar, um mal e pessoas, que se definia, se caracterizava a doença reinante” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 79). Com o advento dos processos de vacinação e inoculação, a doença passa a ser enxergada como exemplos de casos e perigo de riscos e não mais naqueles termos gerais conglobantes capazes de abarcar um grupo que traria qualquer traço de homogeneidade.

Mais de dois séculos depois, em 24 de abril de 2015, a prefeitura de Curitiba oferece à sua população uma alternativa inovadora para a realização do teste de HIV/aids1 1 Muito embora seja empregada em muitas partes do texto a expressão em conjunto “HIV-aids”, é importante frisar que não há confusão entre as noções de HIV e aids na escrita do presente trabalho, isto é, não se compreende o vírus e a doença como equivalentes, como de fato não são. Entretato, dissociar tais termos e empregá-los como elementos autônomos em todas as vezes em que são suscitados no decorrer da análise seria tarefa praticamente impossível, sobretudo quando se tem em consideração estar lidando com política pública de saúde e, por conseguinte, com imaginários sociais, para os quais o soropositivo ocupa um espaço e goza de um estatuto ambíguo e contraditório. Sobre o assunto, ver PERLONGHER, N. O que é a Aids. São Paulo: Brasiliense, 1987 (--- PERLONGHER, 1987); GRMEK, M. História da Sida. Lisboa: Relógio D’água, 1994; SONTAG, S. A doença como metáfora e a sida e as suas metáforas. Lisboa: Quetzal, 2009.; CARVALHO, M. M. Actualizações em Foucault: aplicações da noção de dispositivo ao VIH/SIDA. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010. , parte do projeto “A hora é agora – Testar nos deixa mais fortes”. Por meio de um aplicativo baixado em seus celulares, os cidadãos podem solicitar o kit de autoteste de detecção do vírus, com a única restrição de que sejam maiores de 18 anos e do sexo masculino. Trata-se, conforme consta no site oficial da prefeitura2 2 Disponível em: http://www.curitiba.pr.gov.br/noticias/curitiba-lanca-aplicativo-inedito-de-testagem-para-o-hiv/36202. Acesso em 25/01/2016. , de um projeto que visa à “expansão da testagem rápida e gratuita anti-HIV entre as populações mais vulneráveis à infecção, ou seja, os jovens gays e outros HSH3 3 HSH – sigla utilizada para designar homens que fazem sexo com outros homens, mas que não se enquadram como homossexuais. Ainda que se utilize tal terminologia no decorrer do texto em função de serem assim categorizados e descritos pela política pública de saúde em comento, a invenção de mais um tipo sexual demonstra a complexa rede que se forma no e a partir do dispositivo da sexualidade, capaz de especificar corpos e estabelecê-los em uma hierarquia através da qual eles podem ser lidos, bem como se lerem, segundo parâmetros morais, sociais e científicos, como nos casos de HSH que, em sua maioria, reivindicam para si tal posição por não desejarem ver-se e serem vistos lado a lado com corpos sobre os quais pesa a marca da homossexualidade. ”.

A despeito das considerações feitas por Foucault, o surgimento da epidemia de HIV-aids4 4 Utiliza-se a sigla “aids” em letra minúscula de acordo com as orientações sugeridas por Castilho (1997 apudSilva 1999). Segundo o autor, os nomes de doenças são substantivos comuns e, por esse motivo, grafados com letras minúsculas. Além disso, o uso em letras minúsculas se articula a uma perspectiva crítica em relação ao pânico sexual criado em torno da aids, conforme explicitado por Pelúcio e Miskolci (2009). em 1980 demonstra que junto às noções de casos individuais de sucessos e fracassos de determinada prática de segurança, a exemplo dos processos de incubação, a noção de doença reinante, em 2015, ainda não perdeu o seu lugar de referência quando nos debruçamos sobre as injunções biopolíticas dirigidas às práticas sexuais, sobretudo àquelas consideradas perigosas. Persiste, com efeito, uma noção de doença global e maciça relacionando-a a um modo de vida.

Com o seu surgimento nos anos 1980, a epidemia fez com que se implementassem medidas biopolíticas dirigidas à proteção da vida, relacionadas nesse contexto a técnicas de poder-saber sobre o sexo e a sexualidade. Objetivando conhecer as causas e os efeitos da síndrome, engendrou-se um aparato técnico cujo esforço consistia em esgarçar os corpos, seus usos, seus prazeres, até o ponto em que se encontraria no profundo da sexualidade algum tipo de verdade que poderia, de certa forma, se institucionalizar no modelo de um saber médico científico, uma clara atuação do biopoder a partir do dispositivo da sexualidade (MISKOLCI, 2011; SIERRA, 2013SIERRA, Jamil Cabral. Marcos da vida viável, marcas da vida vivível: o governamento da diversidade sexual e o desafio d uma ética/estética pós-identitária para teorização político-educacional LGBT. 2013. 228f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013.). Nesse cenário, criaram-se medidas preventivas de higiene sexual e disseminaram-se campanhas pelo Brasil sobre prevenção de doenças relacionadas ao sexo.

É nesse contexto de higienização sexual que a homossexualidade ganha maior visibilidade no conjunto das práticas sociais, e o movimento LGBT, a partir de alianças e diálogos travados com o Estado e a academia, se reúne em torno do combate à epidemia de aids, elegendo-o como uma de suas bandeiras nessa nova década que se abre, juntamente às pautas identitárias dos anos 70 (MISKOLCI, 2011).

Por estar associada ao comportamento sexual, facilmente a aids foi assimilada como uma das facetas da falha moral dos sujeitos homossexuais, resultado desse tipo de comportamento tido como prevaricação e desvios no exercício da sexualidade, reforçando, ao mesmo tempo, a necessidade do casamento heterossexual/monogâmico como medida de contenção da epidemia.

A visibilidade atingida pela homossexualidade nesse contexto de luta contra a aids se desenrola nos meandros das relações estabelecidas entre três atores sociais: o movimento identitário LGBT, cuja nova bandeira estampava os interesses biopolíticos do Estado e que tinha na academia uma aliança circunstancial capaz de trazer uma sofisticação científica das ciências sociais aos objetivos de controle epidemiológico e de saúde (MISKOLCI, 2011, p. 50). Assim, o preço a se pagar para se tornarem visíveis foi a sua fabricação enquanto sujeitos que, além de possuírem uma sexualidade perversa, encarnavam uma prática sexual perigosa para o organismo social porque acometidos, no seu próprio modo de existir, por uma doença de tipo reinante, a Aids.

Segundo Miskolci (2011, p. 49), é tributária das reflexões feitas por Foucault a respeito do biopoder a compreensão desse movimento de repatologização da homossexualidade, a qual há pouco havia sido retirada do rol de doenças mentais e sobre a qual se impingiam, a partir de então, os efeitos de um poder que a constituiu, novamente, como doença. A “epidemia inicial de HIV/aids teve o efeito de repatologizar a homossexualidade em novos termos contribuindo para que certas identidades, vistas como perigo para a saúde pública, passassem por um processo de politização controlada” (MISKOLCI, 2011, p. 49). Esse fenômeno foi denominado por Larissa Pelúcio (2009)PELÚCIO, Larissa. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o mundo preventivo de aids. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2009. de “sidadanização”, vez que o processo de construção da cidadania desses sujeitos se deu a partir de interesses estatais biopolíticos de caráter epidemiológicos que culminou na criação de identidades estigmatizadas.

Mais de três décadas se passaram depois da explosão e contenção da epidemia, depois mesmo de sua proliferação a outros indivíduos independentemente de suas práticas sexuais5 5 Muito embora cientes dos limites adstritos às análises estatísticas, os dados aqui veiculados carregam mais a pretensão de problematizar a questão que ora se coloca, do que instaurar um parâmetro de verdade absoluta a respeito de qual categoria social se encontra mais exposta ao vírus HIV ou acometida pela doença. São dados levantados entre 1984 e 2013 e colhidos no Boletim Epidemiológico HIV/Aids elaborado pela Secretaria Municipal de Curitiba. Conforme o material por eles analisado, atualmente, ainda há mais casos de doença entre os homens do que entre mulheres, contudo essa diferença vem diminuindo ao longo dos anos, sendo, inclusive, revertida, na faixa etária de jovens entre 13 e 19 anos. Fato que, em alguma medida, já desmistifica o senso comum criado em torno da homossexualidade masculina como uma prática sexual mais perversa. Não obstante, quanto à forma de transmissão, nas mulheres, 80,4% dos casos registrados decorreram de relações heterossexuais; entre os homens, 28,8% dos casos se deram por relações heterossexuais; 26,3% por relações homossexuais e 10,8% por bissexuais. O restante ocorreu por transmissão sanguínea e vertical. (CURITIBA, 2014, p. 9). Longe de querer exaurir a questão, os dados aqui expostos apenas se dedicam a problematizar e relativizar as bases a partir das quais se constroi um aparato biopolítico de regulação e controle da população, que tem como norte de realização uma política pública de saúde, mas que irridia seus efeitos em torno de pânicos morais criados sobre sexualidades consideradas desviantes, perversas ou anormais. , e no entanto essa correlação existente entre a síndrome e a homossexualidade persiste sob a marca de uma doença reinante. Para constatar esse fato, basta atentar-se para as formas como até hoje a política preventiva de DSTs dirige-se, sobretudo, aos não-heterossexuais, como é o caso da política pública de saúde de Curitiba aqui analisada.

Essa atuação estatal suscita algumas questões: seu lançamento é motivo de comemoração, na medida em que se mostra como mais uma ferramenta disponível à população como forma de combate ao HIV, figurando, desse modo, naquele rol de conquistas dos direitos dos homossexuais, assegurando-lhes meios de efetivação do direito fundamental à saúde. Trata-se, portanto, de uma ação estatal com vistas à garantia de melhores condições de vida a uma população específica, cuja trajetória é marcada mais pela negação de direitos do que por sua promoção.

Se por um lado é inegável que tal medida encontra-se relacionada a um ambiente de conquistas de espaços e de ações por sujeitos homossexuais, de outro, ela esfumaça as estratégias e as artimanhas do poder que estão em jogo nesse contexto. Ao criar um aplicativo com um fim determinado – detecção e prevenção de HIV/aids – e para um público específico, por eles denominado população-alvo – homossexuais e HSH – cria e reforça uma rede de associações tão repetida e hipertrofiada entre homossexualidade e aids. Tal é o caráter ambíguo da “sidadanização”.

Essas sutilezas das estratégias do poder nos saltam aos olhos quando, diante de tais fatos, lançamos mão de um olhar capaz de lhes agudizar a ponto de fazê-los atravessar a superfície: tratam-se das lentes de Michel Foucault que, em A vontade de saber sobre isso alertou: “É somente mascarando uma parte importante de si mesmo que o poder é tolerável. Seu sucesso está na proporção daquilo que consegue ocultar dentre seus mecanismos” (2011, p. 96).

Neste primeiro volume de sua História da Sexualidade, Michel Foucault nos provoca: “O poder seria aceito se fosse inteiramente cínico?” (FOUCAULT, 2011b______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011b., p. 95). Isto é, aceitaríamos o poder se diante de nós este se apresentasse do modo como realmente funciona seu exercício? Nesse livro o filósofo nos defronta com as inúmeras práticas que incidiram sobre o sexo desde o século XVII, ditando que se expusesse, esquadrinhando seus prazeres, exigindo-lhe a sua verdade profunda, levando-o a desconfiar daquele discurso muito corrente e aceito de que haveria desde então uma certa repressão sexual. Após demonstrar toda a tecnologia empreendida em torno do sexo e da sexualidade, problematizando a hipótese repressiva, o filósofo lhe opõe elementos históricos que nos dizem mais a respeito de uma incitação aos discursos sobre a sexualidade e sua implantação perversa, do que propriamente de uma interdição.

Não se deve descrever a sexualidade como um ímpeto rebelde, estranha por natureza e indócil por necessidade, a um poder que, por sua vez, esgota-se na tentativa de sujeitá-la e muitas vezes fracassa em dominá-la inteiramente. Ela parece mais como um ponto de passagem particularmente denso pelas relações de poder; entre homens e mulheres, entre jovens e velhos, entre pais e filhos, entre educadores e alunos, entre padres e leigos, entre administração e população. Nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados da maior instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias (FOUCAULT, 2011b______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011b., p. 114).

Em sua analítica do poder, Foucault define a interdição como um tipo de poder negativo, isto é, que se valoriza enquanto uma forma de poder que nega a existência, suprime, faz calar, o que ele denomina concepção jurídico-soberana do poder. Em contrapartida, haveria um outro tipo de poder, que não se exprime como negatividade, e que, ao invés de atuar pela via da supressão do real, o engendra, o fabrica, o produz (FOUCAULT, 2010______. Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). (Tradução de Maria Emantina Galvão). – 2ª. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.; 2011a______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. (Tradução de Raquel Ramalhete. 39 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2011a.). Se ao enveredarmos por uma genealogia da sexualidade, verificamos que historicamente esta foi mais solicitada que silenciada, e que sobre ela atuaram poderes cuja riqueza estratégica e eficácia produtiva afastam a hipótese de uma concepção de poder marcada pela pobreza do “não” e pela economia dos seus recursos, por que aceitamos mais facilmente essa concepção jurídica do poder, e não o seu funcionamento efetivo?

Foucault mesmo responde tratar-se de uma “razão geral e tática que parece se impor por si mesma” (FOUCAULT, 2011, p. 96). Não se trata aqui, de um poder cujo transbordamento se inscreveria na ordem do abuso ou da tirania, seu segredo é de outra ordem que se apresenta como intrínseca e indispensável ao seu funcionamento. Nesse movimento relacional do poder, sua indispensabilidade, ou o seu segredo, não se restringe ao fato de que sujeita àqueles a quem se impõe, mas também, porque talvez lhes seja na mesma medida imprescindível. “Aceitá-lo-iam, se só vissem nele um simples limite oposto a seus desejos, deixando uma parte intacta – mesmo reduzida – de liberdade? O poder como puro limite traçado à liberdade, pelo menos em nossa sociedade, é a forma geral de sua aceitabilidade” (FOUCAULT, 2011b______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011b., p. 97).

Se em 1976, Foucault falava de uma melhor aceitabilidade do poder quando este enxergado em sua forma jurídica, isto é, de um poder mais palatável se entendido como pura negatividade sobre o sexo e a sexualidade, ainda é possível falar de uma concepção de relações de poder-saber sobre a sexualidade, consideradas a partir de uma noção geral de repressão atualmente no Brasil? Levando-se em consideração o aplicativo A Hora é Agora, poderíamos falar de um poder, no nível da aceitabilidade, cujo formato é o jurídico-soberano atuando por meio da imposição de limites à liberdade? Não haveria, de outro lado, neste início de século uma maior visibilidade das questões ligadas à sexualidade?

Não se trata aqui de celebrar um olhar permissivo em relação ao sexo e às distintas vivências da sexualidade que muitos canais discursivos tendem a expressar. A proposta é que, talvez o sexo e a sexualidade não estejam mais atrelados à percepção deste tipo de poder mais tragável na medida em que funciona como simples limite à sua manifestação. Parece-nos que no caso do aplicativo A Hora é Agora, as correlações que ali se entrecruzam na superfície não se apresentam unicamente sob a forma repressiva, buscando suprimir ou interditar aquele tipo de vivências sexuais, quais sejam, homossexuais e homens que fazem sexo com outros homens. A fachada agora parece, senão o seu oposto, talvez uma posição ortogonal sobre tais práticas que optam, não pelo silenciamento, mas por uma certa aceitabilidade.

Entretanto, assim como Foucault nos alertara para o fato de que o poder na modalidade jurídico-soberana esconde por entre os interditos que profere as efetivas estratégias e mecanismos que atravessam a sexualidade, esse novo modelo de poder, que embora não se restrinja a uma economia de recursos negativos, também tende a borrar a percepção de uma instrumentalidade inventiva e criativa que não atua tão somente pela aceitabilidade da existência de uma determinada conduta sexual, mas que opera segundo parâmetros, também, normalizadores.

No seu itinerário teórico, Foucault demonstra o surgimento no século XVIII dessa nova conformação do poder, que se realiza segundo táticas pontuais, e, todavia, espraiadas por todo o corpo social, e que tem no corpo material dos indivíduos seu liame de atuação; correlações de força que se desenvolvem sem cessar, em um movimento criativo de rituais numerosos que esquadrinham as instituições, os indivíduos, os espaços e o tempo. Positividade do poder fundada na fabricação de sujeitos politicamente dóceis e economicamente úteis: surge a sociedade disciplinar e a captura anatomo-política do corpo (FOUCAULT, 2011a______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. (Tradução de Raquel Ramalhete. 39 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2011a.).

Mais tarde, o filósofo constata a emergência no século XIX de uma outra modalidade de poder, a qual não supera a tecnologia disciplinar anterior, porém introduz novos vetores e meios de atuação. Não se trata mais dos corpos individuais, mas da população; não mais a anatomo-política do corpo, mas a biopolítica da espécie. Visa-se agora a população enquanto corpo político-biológico, e opera-se no interior desse conjunto técnicas atreladas à essa vida construída como natural: natalidade, mortalidade, epidemias, doenças, longevidade: tem-se o biopoder (FOUCAULT, 2010______. Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). (Tradução de Maria Emantina Galvão). – 2ª. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.; 2011b______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011b.).

Como mencionado outrora, não se têm aí duas modalidades de poder cuja história mostraria a superação de uma com relação a outra. O poder disciplinar e o biopoder possuem emergências distintas, mas não se trata do englobamento do anterior pelo posterior e a sua consequente supressão. Tecnologias de poder distintas, com objetivos distintos, podendo atuar, todavia, em coexistência, implicados em uma mesma estratégia.

Haveria, desse modo, pontos de convergências e regiões de apoio entre as tecnologias disciplinares e as práticas biopolíticas. Ganha relevo, nesse ponto, o dispositivo da sexualidade6 6 Foi em uma entrevista à época do recém-lançado livro História da Sexualidade, que Foucault demarcou o sentido e a função metodológica do termpo dispositivo, que aqui merece transcrição: “Por esse termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que pode existir entre esses elementos heterogêneos. Sendo assim, tal discurso pode aparecer como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação dessa prática, dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma, entre esses elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes. Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que, em determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispotivio tem, portanto, uma função estratégica dominante. Esse foi o caso, por exemplo, da absorção de uma massa de população flutuante que uma economia de tipo essencialmente mercantilista achava incômoda: existe aí um imperativo estratégico funcionante como matriz de um dispositivo, que pouco a pouco tornou-se o dispositivo de controle-dominação da loucura, da doença mental, da neurose”. (FOUCAULT, 2012, ps. 364-365). . Conforme Edgard Castro (2011CASTRO, Edgard. El gobierno de la vida. In: CASTRO, Edgard. Lecturas foucaulteanas: una historia conceptual de la biopolitica. 1ª ed. – Buenos Aires: Editoral Universitaria, 2011a, ps. 39-68., p. 52) “el sexo, o mejor, la sexualidade funciona como punto de articulación entre anátomo-política y bio-política”, vale dizer, o dispositivo da sexualidade possibilita que se atue em um determinado foco local de poder-saber, tanto por meio de uma fabricação detalhada e minuciosa de corpos, como na regulação dos processos biológicos da população na qual tais corpos se encontram. “O dispositivo da sexualidade tem, como razão de ser, não o reproduzir, mas o proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações de modo cada vez mais global”, explica Foucault (2011b______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011b., p. 118).

A prefeitura de Curitiba, ao lançar a política pública de saúde em questão, cujo objetivo é implementar mais uma forma de controle e prevenção sobre os casos de HIV/aids, mas sobre os casos de um grupo populacional muito específico – homossexuais e HSH – coloca em relevo esse nicho da população, lança tais indivíduos à superfície, já capturados e enredados por essas tramas de poder que aqui se vislumbra, concomitantemente, como disciplina e como biopoder, com vistas à normalização7 7 Na aula de 25 de janeiro de 1978, do curso Segurança, território, população, Foucault dirá que a normalização pode-se dar tanto pelas práticas disciplinares como pelos mecanismos de segurança. Entretanto, seus modos de atuação são diversos. A normalização disciplinar se mostra como resultado de uma série de medidas bastante precisas que atuam na análise e decomposição dos indivíduos, lugares, tempo, gestos, atos, operações, fixando procedimentos de adestramento e controle precisos cujo resultado será um “modelo ótimo”, isto é, a separação entre o nomal e o anormal. Verifica-se, na normalização disciplinar, um procedimento que parte da anterioridade de uma norma a partir da qual se produzirá o normal e o anormal, levando Foucault a afirmar que se trataria mais propriamente de uma “normação”. Por sua vez, na normalização biopolítica, que se dá pelos mecanismos de segurança, primeiro tem-se uma apreensão do “normal” e do “anormal”, a saber, uma apreensão das diferentes curvas de normalidade, para depois se distrubuior de maneira ótima tais curvas umas em relação às outras, atuando na condução das curvas menos favoráveis para um estado que seria mais favorável. Aqui o normal vem antes e a norma é deduzida dele, e então, se falaria em normalização (FOUCAULT, 2008, ps. 73-87). .

Seja pela “normação” disciplinar, seja através da “normalização” biopolítica, no contexto aqui analisado, a norma erigida como individualidade adequada ou “curva de normalidade” geral centra-se no conjunto de práticas e vivências heterossexuais; em uma heterormatividade8 8 Termo cunhado em 1991 por Michael Warner cuja análise buscava desestruturar a binariedade hetero/homossexualidade, explicando não se tratar de verdadeira oposição, senão de um sistema interdependente que procura reinserir e reinscrever incessantemente uma hierarquia que estabelece como privilégio a ordem heterossexual e despreza e subordina sujeitos homossexuais. , portanto. Com efeito, a ordem social

[...] expressa as expectativas, as demandas e as obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como natural e, portanto, fundamento da sociedade. Muito mais que o aperçu de que as relações com pessoas do mesmo sexo são compulsórias, a heterormatividade sublinha um conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle até mesmo daqueles que se relacionam com pessoas do mesmo sexo (MISKOLCI, 2009MILSKOLCI, Richard. A teoria queer e a sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Sociologias. Porto Alegre, Dossiê, ano 11, nº 21, p. 150-182, jan./jun. 2009., p. 232).

Sob a vigência de um padrão heteronormativo, táticas de normalização com duas frentes distintas se fazem presentes, as quais, todavia, partem de um ponto comum: o dispositivo da sexualidade. Trata-se, mais adiante, de perscrutar por aquilo que, nas práticas em torno da sexualidade, em geral, e no caso do aplicativo “A hora é agora”, em específico, o poder conseguiu ocultar para que se tornasse mais tolerável. Desse modo, partindo da compreensão de que o dispositivo da sexualidade situa-se em um espaço de articulação entre mecanismos disciplinares e técnicas biopolíticas, explicitaremos, na primeira seção, os efeitos dessa política pública em questão no que toca à captura anatomo-política dos corpos individuais para, em seguida, analisarmos o seu modo de normalização biopolítica do corpo social tomado enquanto espécie.

2. A Hora é agora – o esquadrinhamento do espaço-tempo e a disciplinarização dos corpos

Historicamente, Michel Foucault sinaliza que o final do século XVIII e início do século XIX testemunham a invenção de uma nova tecnologia do poder que atuaria com vistas à normalização dos indivíduos. Até então as relações de poder seguiam a lógica da exclusão, veiculadas pelos comandos da lei e inscritas sob o manto da soberania. Tal lógica se vê redefinida nas sociedades ocidentais modernas a partir da formação de inúmeras instituições que se dispersam por todo o corpo social, alterando o esquema do poder, que não mais se dará pela exclusão e desaparecimento, mas antes, pela fabricação de indivíduos normalizados.

Essa nova conformação social, por ele chamada de sociedade disciplinar, encontra nas instituições de sequestro – a escola, a fábrica, o hospital psiquiátrico, a prisão – o anzol necessário à captura dos corpos para o exercício de suas funções que tem no controle o modus operandi do poder, “o controle como forma de exercício do poder, o controle sobre as virtualidades dos homens” que não se restringe ao espaço fechado das instituições, mas que tende a se desinstitucionalizar na medida em que os estabelecimentos da disciplina se multiplicam (FONSECA, 2012FONSECA, Márcio Alves. Foucault e o Direito. São Paulo: Max Lemonad, 2012., p. 164). Trata-se, assim, de um investimento político sobre a existência física dos indivíduos. Nesse contexto, a noção de disciplina sofre uma significativa inversão funcional de sentido, ao passo que deixa de apontar para uma ideia de inibição de comportamentos, para configurar-se como tecnologia de produção de práticas e posturas esperadas (FONSECA, 2012FONSECA, Márcio Alves. Foucault e o Direito. São Paulo: Max Lemonad, 2012., ps. 170-171).

Con esto Foucault no quería decir que la “sociedad disciplinaria” fuera una sociedad de encierro generalizado. Quería decir sin duda lo inverso. En efecto, la difusión de las disciplinas manifesta que sus técnicas son ajenas al principio de encierro o, más exactamente, que con las disciplinas el encierro ya no es segregativo. Lo que hace que la sociedad sea disciplinariaes precisamente el hecho de que las disciplinas no forman compartimientos estancos. Todo lo contrario, su difusión, lejos de escindir y poner tabiques, hace homogéneo el espacio social. Lo importante en la idea de sociedad disciplinaria es la idea de sociedad: las disciplinas crean sociedad, crean um tipo de lenguaje común entre todas las clases de instituiciones, hacen posible que uma pueda traducirse a la otra (EWALD, 1999EWALD, François. Un poder sin um afuera. In: Michel Foucault filosofo. (Traducción Alberto Luis Bixio). Barcelona: Editorial Gedisa, 1999., p. 165).

Disciplina, destarte, não como um investimento político sobre o corpo de modo inibidor, conjunto de interdições. Trata-se antes de práticas disciplinares operando entrelaçadas a certos discursos que se dirigem aos corpos para, ao mesmo tempo em que os constituem como sujeitos, também os sujeitam; “o sujeito é sujeitado ao mesmo tempo em que é fabricado pelos processos de individuação. Essa é a ‘marca da sociedade disciplinar’ em que se transformou nossa sociedade” (FONSECA, 2004FONSECA, Ricardo Marcelo. O poder entre o direito e a 'norma': Foucault e Deleuze na Teoria do Estado. In FONSECA, Ricardo Marcelo (org.). Repensando a teoria do Estado. Belo Horizonte: 2004, ps. 259-281., p. 264). No curso Em defesa da Sociedade, Foucault explica o modo de funcionamento do poder no que diz respeito a esse processo de individuação:

Não se deve, acho eu, conceber o indivíduo como uma espécie de núcleo elementar, átomo primitivo, matéria múltipla e muda na qual viria aplicar-se, contra a qual viria bater o poder, que submeteria os indivíduos ou os quebrantaria. Na realidade, o que faz que um corpo, gestos, discursos, desejos sejam identificados e constituídos como indivíduos, é precisamente isso um dos efeitos primeiros do poder. Quer dizer, o indivíduo não é o vis-à-vis do poder; é, acho eu, um de seus efeitos primeiros. O indivíduo é um efeito do poder e é, ao mesmo tempo, na mesma medida em que é um efeito seu, seu intermediário: o poder transita pelo indivíduo que ele constitui (FOUCAULT, 2010______. Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). (Tradução de Maria Emantina Galvão). – 2ª. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010., p. 26).

Uma tecnologia positiva do exercício do poder que opera seus efeitos sobre os corpos individuais, controlando as minúcias de suas ações, estabelecendo o melhor movimento corporal com o menor desgaste possível, esquadrinhando a materialidade dos corpos para torná-los politicamente dóceis e economicamente úteis. Foucault define a disciplina como “uma anatomia política do detalhe”, isto é, essa nova tecnologia do poder que atua na direção do corpo em sua materialidade, dos corpos em sua existência concreta e individualizada, que passam a constituir-se como alvos de injunção política por uma série de mecanismos que atuam capilarmente, no nível da minúcia (FOUCAULT, 2011a______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. (Tradução de Raquel Ramalhete. 39 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2011a.).

Em Vigiar e punirFoucault (2011a)______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. (Tradução de Raquel Ramalhete. 39 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2011a. nos descreve os modos pelos quais se dá a normalização disciplinar, falando-nos sobre “funções” disciplinares com vistas a corpos dóceis e de seus instrumentos como recursos para o bom adestramento. A disciplina se efetiva através da distribuição dos indivíduos no espaço, no interior do qual a realidade tempo-espaço se constitui por meio de um exaustivo controle, criando um ambiente institucional em que não há desperdício de tempo e as atividades são totalmente previstas e calculadas. Tais funções disciplinares dispõem de três tipos de recursos muito específicos que o autor denomina por vigilância hierárquica, sanção normalizadora e exame. De que modo é possível pensarmos tais instrumentos disciplinares atrelados à tecnologia de normalização a partir do dispositivo da sexualidade?

A vigilância hierárquica funciona idealmente como um “observatório” geral caracterizado pelo jogo do olhar capaz de induzir uma visibilidade ininterrupta a que todos e cada um pode estar submetido. Desse modo, o poder disciplinar, apoiado na vigilância hierárquica, apresenta-se mais como um mecanismo que desenha um diagrama de visibilidade geral do que como propriedade de alguém.

Nesse contexto, lança-se luz às práticas sexuais a partir das técnicas confessionais no interior da Igreja, num primeiro momento, que depois se dispersaram para o campo da psiquiatria, da psicologia, da pedagogia, bem como no interior da própria família. Assim, em torno do sexo construiu-se um projeto capaz de lhe colocar em visibilidade, e estabelecendo entre aquele que pratica o ato sexual e aquele que ouve os seus relatos uma relação de hierarquia, na qual este último ocupa uma posição superior, detentor, inclusive, da realização do processo de adequação da prática confessada a uma conduta considerada sexualmente normal (FOUCAULT, 2011b______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011b., ps. 39-42).

Ainda que não se estabeleça uma relação hierárquica marcada por uma imediatidade física – como a existente entre confessor-confidente; psiquiatra-paciente; pedagogo-criança – o aplicativo AHA deixa transpassar os mesmos traços característicos dessa vigilância hierárquica através da tela do celular. Na medida em que se trata de uma política de saúde, a emissão do discurso que a veicula parte de um local de autoridade do saber médico, implicando, daí, uma posição de superioridade daquele que a emite em relação aos indivíduos da população-alvo. Nesse cenário, homossexuais e HSH, em razão de suas condutas sexuais, são lançados num observatório de visibilidade no interior do qual se posicionam em um nível hierárquico inferior e, além disso, dispostos à normalização.

Com a sanção normalizadora, não se busca a punição de um ilícito penal, busca-se não a interdição do delito pela sua penalização, mas a criação de um hábito por meio de sanções direcionadas a condutas “menores”, com vistas a criar uma rede de hábitos por meio de práticas tidas como condutas esperadas. Assim, o objetivo da sanção normalizadora não é propriamente a penalização de comportamentos proibidos, mas a criação de comportamentos desejados (FONSECA, 2012FONSECA, Márcio Alves. Foucault e o Direito. São Paulo: Max Lemonad, 2012., p. 171). “A punição, na disciplina, não passa de um elemento de um sistema duplo: gratificação-sanção. E é esse sistema que se torna operante no processo de treinamento e correção” (FOUCAULT, 2011a______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. (Tradução de Raquel Ramalhete. 39 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2011a., p. 173).

Assim, por intermédio da sanção normalizadora não se trataria mais de apagar da Terra os sodomitas, não mais a condenação à inexistência de indivíduos tidos como anormais por conta de suas práticas sexuais inadequadas. Pelo contrário: o recurso disciplinar aqui analisado atua por meio da criação de uma rede de hábitos que, dentro daquele conjunto de práticas sexuais, alcançariam um maior grau de normalidade. “Trata-se da formação de um sujeito que se autocontrola, autovigia e autogoverna” (ORTEGA, 2003ORTEGA, Francisco. Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cadernos de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, ano 11, p. 59-77, 2003., p. 64).

No contexto do AHA, resquício daquele processo de “sidadanização”, é possível inferir uma certa estratégia de normalização por meio da implementação do aplicativo em questão, na medida em que, ao se direcionar especificamente à população-alvo uma política de combate ao HIV-aids, além de criar uma situação de vigilância hierárquica mencionada antes, pressupõe também uma dicotomia na qual se estabelece o normal – indivíduos não incluídos nessa população e que estariam de certa forma livres de contaminação pelo vírus hiv – e em relação a estes, os anormais, que por sua “condição” de homossexuais e HSH, deveriam ter suas práticas sexuais cada vez mais adequadas ao padrão de normalidade representado pelos normais.

Ao se estabelecer a norma e o anormal, cria-se um modelo de práticas sexuais às quais este último deveria se adequar e que estaria representado pelo casal monogâmico, heterossexual, com finalidade reprodutiva e, de preferência, no interior de um relacionamento duradouro. Esse seria o padrão de normalidade que estaria implícito nessa política pública de saúde anti-HIV-aids que preconiza como alvo homossexuais e HSH.

Por fim, o exame consiste na articulação das estratégias de poder com a formação de domínios de saber, fazendo com que, a partir desse recurso, a individualidade entre no campo do documentário, de modo que cada indivíduo se torne um caso que, por sua vez, viabiliza um sistema de comparações e de descrição do comportamento das populações. O exame “combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar, punir” (FOUCAULT, 2011a______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. (Tradução de Raquel Ramalhete. 39 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2011a., p. 177) A partir da observação de constantes e variáveis sobre o conjunto analisado, atribui-se a cada indivíduo um status em relação aos padrões e medidas de adequação ou desvio, atrela-se a um determinado indivíduo o seu estado de normalidade ao ser colocado diante de uma norma (FOUCAULT, 2011a______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. (Tradução de Raquel Ramalhete. 39 ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2011a., p. 183).

Ora, políticas públicas ao mesmo tempo que são feitas, produzem e reproduzem a respeito de sua incidência um conjunto de discursos organizados na forma de um domínio de saber. Nesse diapasão, o AHA permite a coleta de material suficiente de cada indivíduo que aceite realizar o teste anti-HIV a partir de um questionário cujo escopo é o escrutínio de sua vida sexual, que retroalimentará esse sistema, o qual, por sua vez, constituiu-se por um aparato de saber, isto é, por uma norma. Norma emergente de um contexto no qual a Aids se relaciona com a homossexualidade por meio de uma conotação substancial de doença, norma instaurada como efeito e instrumento da construção da “sidadania”, norma, por fim, que estabeleceu como público da medida de saúde em questão e, portanto, como anormais, homossexuais e homens que fazem sexo com outros homens, devendo sobre eles incidir mecanismos de normação disciplinar.

Feita a análise de como se opera o dispositivo da sexualidade a partir de práticas disciplinares, passa-se, no item a seguir, a seu outro feixe de análise que parte de um outro tipo de tecnologia, chamado biopolítica.

3. O corpo-espécie saudável – Normalizar nos deixa mais fortes.

A nova tecnologia do biopoder emergente no final do século XVIII, denominada biopolítica, diferente do poder disciplinar, mas que se soma a ele nas estratégias de normalização dos corpos, caracteriza-se por efetivar procedimentos e atuações no entorno de uma coletividade determinada e chamada por Foucault de “população” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 89). Segundo Castro (2011______. Edgard. Raíces conceptuales y surgimento de la categoria de Biopolítica. In: ______. Edgard. Lecturas foucaulteanas: uma historia conceptual de la biopolítica. 1ª ed. – Buenos Aires: Editorial Universitaria, 2011b, ps. 15-37., p. 33) “[...] el término biopolítica es utilizado para dar cuentas del modo en que el estado, la política y el gobierno se hacen cargo, en sus cálculos y mecanismos, de la vida biológica del hombre”.

Tais métodos apresentam-se como processos regulatórios sobre a vida biológica do corpo-espécie, como os processos de natalidade, mortalidade, expectativas de vida, controle de epidemias, previdência etc., buscando aproximar esses conjuntos o mais possível das “curvas de normalidade”9 9 No curso Segurança, Território, População, Foucault explica o modo de funcionamento das “curvas de normalidade” ao analisar as práticas de variolização: “Vai-se ter a destruição ‘normal’ dos casos de afecção por varíola em cada idade, em cada região, em cada cidade, nos diferentes bairros da cidade, conforme as diferentes profissões das pessoas. Vai-se ter portanto a curva normal, global, as diferentes curvas consideradas normais, e a técnica vai consistir em quê? Em procurar reduzir as normalidades mais desfavoráveis, mais desviantes em relação à curva normal, geral, reduzi-las a essa curva normal, geral” (FOUCAULT, 2008, p. 82). Na política pública de saúde veiculada pelo aplicativo AHA, a curva normal é aquela representada pelo casal heterossexual que, em si mesmo, já é considerado monogâmico, sem troca de parceiros e mais saudáveis, tendo em vista que nem se aventa a possibilidade de se estender a eles tal política. . “Ela vai ser considerada um conjunto de processos que é preciso administrar no que têm de natural e a partir do que têm de natural” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 92). São todos eles procedimentos relacionados a capturas dos corpos, novamente, mas agora considerados no interior de uma população. Entende-se, nesse contexto, população como unidade portadora de sentido em função de seus processos biológicos, resultado de procedimentos que envolvem a constituição de saberes e a realização de atuações precisas sobre esse conjunto de indivíduos considerados como corpo-espécie. Mas, além, disso, a população também vai ser pensada pelo seu caráter público. Isto é,

[...] do ponto de vista de suas opiniões, das suas maneiras de fazer, dos seus comportamentos, dos seus hábitos, dos seus temores, dos seus preconceitos, das suas exigências, é aquilo sobre o que se age por meio da educação, das campanhas, dos convencimentos. A população é, portanto, tudo o que vai se estender do arraigamento biológico pela espécie à superfície de contato oferecida pelo público. Da espécie ao público: temos aí todo um campo de novas realidades, novas realidades no sentido de que são, para os mesmos mecanismos de poder, os elementos pertinentes, o espaço pertinente no interior do qual e a propósito do qual se deve agir (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008., ps. 98-99).

Foucault (2008)FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008. se utiliza do problema do controle de epidemias para ilustrar o que constituiria o campo de atuação da biopolítica. A partir da série “segurança-população-governo”, o filósofo analisa essas práticas por ele denominadas de “mecanismos de segurança”, que também se apresentam como mecanismos de normalização, mas atuam de forma diversa da disciplina. Para tanto, Foucault se apoia no exemplo da epidemia de varíola no século XVIII para ilustrar o seu pensamento.

Através da prática de inoculação da varíola, não se tratava mais tanto de impedi-la, mas, ao contrário, de provocá-la em níveis tais que sua anulação se daria no mesmo momento da vacinação. A partir dessa prática, surgem então quatro noções importantes: caso, risco, perigo e crise. A construção dessas quatro noções no interior dos discursos político-biológicos tornou possível medir os casos de sucessos e de fracassos dessa política de saúde, surgindo assim a noção de doença, não mais como algo a eliminar, mas como distribuição de casos dentro de determinada população, no interior da qual se poderá verificar os riscos e perigos a que cada subgrupo está afetado em razão da idade, clima, localidade, etc. Os riscos e perigos, por sua vez, podem entrar em um movimento de aceleração e multiplicação do contágio em um nível tão elevado cuja contenção ou controle se tornariam muito difíceis, o que deflagraria uma crise (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008., ps. 75-78).

O deslocamento realizado pela biopolítica consiste em não mais atuar com vistas a impedir a doença ou isolar os doentes, mas “fazer funcionar em relação a [eles] outros elementos do real, de modo que o fenômeno de certo modo se anulasse” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 78). Objetiva-se identificar o número de indivíduos acometidos pela doença em um determinado espaço do território, a sua faixa etária, o índice de mortalidade entre os doentes, quais regiões são mais afetadas, quais os efeitos da vacina, ou seja, a partir de então, levantou-se todo um conjunto de saber agrupado sob a insígnia da estatística a qual passou a incorporar os próprios jogos do biopoder.

Essas quatro novas noções se configuram como técnicas de intervenção que não terão como objetivo simplesmente aniquilar a doença ou impedir o contato entre sujeitos doentes e não-doentes, como na tecnologia disciplinar. Trata-se, agora, de um mecanismo de segurança que, a partir desse conjunto de informações – por exemplo, qual o risco de morbidade a que um indivíduo está exposto, considerando a sua idade, o lugar em que mora, sua profissão, faixa etária, etc. – opera seus efeitos não em termos de erradicação ou segregação, mas por meio de um cálculo que equacione esses riscos e perigos da maneira mais eficiente possível.

Para Foucault, com a variolização deixa-se de conceber a doença a partir de sua conotação global e maciça, para compreendê-la naquela noção de caso, “que não é o caso individual, mas que é uma maneira de individualizar o fenômeno coletivo da doença, ou de coletivizar, mas no modo da quantificação, do racional e do identificável, de coletivizar os fenômenos, de integrar no interior de um campo coletivo os fenômenos individuais” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 79). Desse modo, no caso do AHA, considerada a distribuição de casos de HIV-aids na cidade de Curitiba a que o município tem acesso, a prefeitura individualizou o fenômeno coletivo da doença e o atribuiu a essa população específica ao mesmo tempo em que coletivizou um fenômeno individual, mas o restringiu tão somente aos indivíduos homossexuais e aos HSH. Quando nos deparamos com essa política pública de saúde de Curitiba, fácil a constatação de que se trata de um projeto biopolítico direcionado a este público alvo, que aqui poderíamos indica-lo por população.

Não se trata, pois, de uma política de exclusão da homossexualidade ou de sua negação, tampouco da exclusão do vírus HIV. Trata-se, em verdade, de mecanismos de segurança que atuam no entorno com vistas à normalização. Não são práticas que visam a erradicação da doença, mas assimilam-na em seus riscos e perigos e, ao considerar o grupo total de indivíduos passíveis de contrair o vírus no município de Curitiba, estabelecem curvas de normalidade, direcionando sua atuação às condutas tidas como mais perigosas – os sidadãos –, com vistas a fazê-las chegar o mais próximo possível das curvas menos perigosas, e que, nesse contexto, teria como curva ideal aquela representada pela família heterossexual monogâmica, a família cidadã.

A campanha de prevenção do HIV-aids não atua por um imperativo de exclusão de indivíduos homossexuais do meio social; ao contrário, coloca-os em visibilidade. Traz à superfície essa população com vistas a melhor gerenciar os riscos de contágio do vírus entre os indivíduos homossexuais e HSH. Nesse cenário biopolítico, pode-se inferir que essa política pública de saúde de combate ao HIV-aids tem como pano de fundo um conjunto de informações que permitiu ao Estado concluir que, dentre todos os grupos populacionais, merecem destaque esse tipo de comportamento específico que, levando-se em consideração suas especificidades de gênero e práticas sexuais, colocam em risco a saúde e a vida da população globalmente considerada.

Assim sendo, claro fica também que para implementação do AHA, a prefeitura de Curitiba lançou mão das noções de risco e perigo. Ao direcionar o aplicativo aos homossexuais e aos HSH, identificou no nível do grupo e no nível do indivíduo a maior probabilidade que têm esses indivíduos de contrair o vírus, dado o seu comportamento de risco – o seu modo de vida. Com base no mesmo critério, estabeleceu ainda que, a partir do cálculo dos riscos, estes não são os mesmos para todos, de modo que há zonas de mais alto risco em contraposição a outras em que este é menor, “em outras palavras, pode-se identificar assim o que é perigoso” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 80). É mais perigoso em relação ao risco de contrair o vírus HIV ou desenvolver a aids ser homossexual ou ser homem e fazer sexo com outros homens. Tal é a conotação mais sutil que essa política de saúde engloba.

Diante do exposto, ainda que, como aponta Foucault, a medicina tenha substituído a ideia de doença reinante, adotando-se a partir de então um novo léxico em torno de uma lógica de integração entre fenômenos individuais e o campo coletivo da população, é possível dizer que a epidemia de HIV-aids reanimou esse conjunto discursivo consistente em associar uma doença, a aids, a um grupo específico, a um modo de vida, a um tipo de comportamento, à homossexualidade. A despeito daquela reconfiguração das relações de poder dada na ordem do saber médico, o surgimento da epidemia de HIV-aids no final do século XX reconstrói tal cenário, uma vez que passam a proliferar discursos atrelando a manifestação e contágio do vírus HIV à homossexualidade, sendo, inclusive, difundida, como a “peste gay”, uma doença ligada ao “instinto gay”, ou como diz Trevisan (2002)TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 5ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Record, 2002., ao “desejo gay”, uma “doença reinante”. No entorno da homossexualidade rondava a aids considerada como uma epidemia, que nesse tempo e em relação a um modo de vida considerado homossexual, reavivou essa forma de encarar as doenças datadas de dois séculos atrás.

Nesse diapasão, a prefeitura de Curitiba, por meio do aplicativo AHA, opera sobre homossexuais e homens que fazem sexo com outros homens de forma muito sutil. Na mesma medida em que disponibiliza a esse grupo com especificações muito precisas exames de prevenção e combate ao HIV-aids e, ao fazer isso os trazem a uma condição de visibilidade, marcada pela presença desses mecanismos de segurança com vistas a melhores condições de saúde, no limite – ou mesmo superficialmente, ao nível dos olhares – os inscreve no delineamento de uma curva que não faz mais que designá-los como portadores de uma conduta perigosa, porque não condizentes com a conduta normal.

Como se tratam de condutas tidas como perigosas ao corpo-espécie, as práticas sexuais realizadas por homossexuais e homens que fazem sexo com outros homens constituem-se como alvo privilegiado dessa tecnologia de poder cuja pretensão é a condução das condutas a um tipo de prática considerada menos perigosa e menos propensa, portanto, ao vírus HIV. A normalização biopolítica se estrutura em torno desse nicho populacional, dessa curva de normalidade tida como perigosa, de modo a, progressivamente, aproximá-la de uma curva de normalidade ótima, padrão, mais saudável, aqui, heterossexual.

Conclusão

Levando em consideração o modo como determinadas sociedades lidaram com as doenças que lhes acometiam, Foucault demarca uma oposição entre elas correlacionando tais modos ao tipo de poder em questão. Na Idade Média o combate à lepra se dava por meio da exclusão, um mecanismo de poder calcado na interdição, na condenação à inexistência, um modalidade de operação que ele chamou de poder jurídico-soberano. Por sua vez, o sistema de quarentena da cidade atingida pela peste (final do século XVII e início do século XVIII), efetiva um novo instrumental que não atua pela exclusão pura e simples, mas que se configura como um mecanismo de controle contínuo e produtivo exercido sobre os indivíduos, nos moldes do poder disciplinar normalizador. Por fim, as práticas de inoculação e vacinação para o controle das epidemias de varíola no final do século XVIII ilustram um novo tipo de normalização, mas que se difere da disciplina, e que atua por mecanismos de segurança.

Foucault não nos diz em qual desses sistemas caberia a noção de “doença reinante”, indicando apenas que era um termo muito sólido e difundido no pensamento médico até o século XVIII. Entretanto, o autor também já alertara que tais sistemas de poder não se sucedem um ao outro de forma que o posterior sempre integre e exclua o precedente, mas que coexistem, guardadas as proporções. Da maneira em que é engendrada, a doença reinante estaria mais relacionada aos tipos de poder jurídico-soberano e ao poder disciplinar. Se se trata de uma doença substancial, condizente com uma cidade, um clima, um grupo de pessoas, um modo de vida, o seu tratamento se efetivaria mais em termos de separação binária entre aqueles acometidos e quem se deve manter no convívio social (poder jurídico-soberano) ou através de uma atuação mais precisa que se efetivaria pela inclusão de todas as individualidades dentro de um espaço completamente atravessado por técnicas de vigilância e controle constantes com vistas à normalização (poder disciplinar).

Ainda que Foucault tenha nos indicado o desuso da noção de doença reinante a partir da efetivação dos mecanismos de segurança no século XVIII, e o deslocamento ocorrido no pensamento médico para noções de caso, perigo, risco e crise, quando nos deparamos com o modo através do qual se tratou a epidemia de aids na década de 1980, tem-se uma reativação desse tipo de discurso atrelando a síndrome a um grupo de indivíduos que representava um modo de vida perigoso, os homossexuais. A epidemia de aids surge nesse cenário como a “peste gay”, uma doença relacionada ao desejo ou instinto homossexual, denotando claramente uma relação de contiguidade entre a síndrome e práticas sexuais tidas como devassas, perversas, desatinadas.

Por atingir de fato, mas não somente, os homossexuais, a explosão da epidemia de HIV foi um catalisador da visibilidade tão almejada pelo movimento LGBT que, nesse contexto de luta contra a aids, estabeleceu alianças junto ao Estado e à academia, o que resultou em um programa nacional de controle e prevenção da doença muito eficaz, elevado ao patamar de exemplo nesse campo de atuação da saúde a nível internacional.

A homossexualidade visível, destarte, surge nesse contexto em que a sua positividade se coloca no front de interesses biopolíticos do Estado de caráter epidemiológico, construindo uma identidade agora visível e, portanto, uma cidadania, mas uma identidade estigmatizada, uma sidadanização.

Nos trinta anos que se seguiram ao seu surgimento, outros casos de aids foram detectados em todo o corpo social, demonstrando não se tratar de uma pecha que só atingiria homossexuais. No entanto, a positividade da homossexualidade como fruto da sidadanização ainda faz perdurar seus efeitos nos dias atuais, bastando atentar para as campanhas de prevenção e tratamento de DSTs, como no caso no aplicativo A Hora é Agora – Testar nos deixa mais fortes lançado pela prefeitura de Curitiba e dirigido exclusivamente a homossexuais e homens que fazem sexo com outros homens. Doença reinante, portanto.

Contudo, doença reinante, atravessada por aqueles mecanismos de segurança detalhados por Foucault que torna possível, ao mesmo tempo, encará-lo como essa doença global e maciça ligando a aids e um grupo determinado, mas também, como conjunto de casos, como cálculo de riscos e perigos, como um objeto e como um instrumento privilegiado do biopoder.

Conforme visto, esse poder que se dirige sobre a vida – o biopoder – isto é, que a constitui enquanto seu objeto de atuação, mas também como seu instrumento de operação, se materializa tanto por meio de mecanismos disciplinares, como através da tecnologia biopolítica. Ou seja, o biopoder atua tanto em direção a anatomo-política dos corpos individuais, dilacerando-os em seus detalhes, como também através de mecanismos de regulação da população, constituída como um corpo biológico, como um corpo-espécie. Tais tecnologias, muito embora remontem a períodos históricos diversos não atuam de modo que a biopolítica exclua ou anule os efeitos do poder disciplinar. Aliás, ambas podem atuar em conjunto e de forma convergente com vistas à normalização dos corpos, tanto considerados na sua individualidade material – corpórea – como enquanto parte desse corpo-espécie – populacional. Tal atuação conjunta é possível porque tem em comum um ponto de interconexão que agrupa o poder disciplinar à biopolítica: o dispositivo da sexualidade.

O aplicativo A Hora é Agora instaura esse intento de captura e normalização dos corpos via dispositivo da sexualidade exatamente nesses termos. Ao mesmo tempo em que se dirige aos indivíduos homossexuais e HSH, por meio de técnicas disciplinares, atuando na anatomia do detalhe do corpo, fazendo com que haja uma constante vigilância e controle – pela sociedade e também pelo próprio indivíduo – sobre suas práticas sexuais, o faz partindo de uma norma pré-estabelecida, de uma situação considerada normal, e que nesse caso coincide com práticas sexuais consideradas adequadas, quais sejam, aquelas condizentes com a heterossexualidade. E sempre uma heterossexualidade idealizada e presumida como segura, higiênica, procriadora, monogâmica, vez que nem se discute as suas práticas, na medida em que não se dirige a eles tal política. É presumidamente assim: norma – heterormatividade.

Também é o dispositivo da sexualidade que possibilita a atuação sobre os corpos, mas agora considerados no interior de um grupo, cujo sentido é buscado em seus processos biológicos e que se designou como população. Pela via biopolítica, o aplicativo ora comentado não opera mais a partir de uma norma definida previamente – a heterossexualidade – mas por um jogo de cálculo de sucessos e fracassos dos mecanismos de segurança em disputa. Isto é, dentro do corpo populacional considerado, traçou-se curvas de normalidade, indicando que homossexuais e HSH, por seu estilo de vida, por suas práticas sexuais, por suas condutas, representam uma curva de normalidade mais perigosa ao corpo-espécie. Tal curva, por sua vez, deveria ser progressivamente trazida o mais próximo possível de uma curva de normalidade considerada padrão, mais saudável nesse caso, e que aqui se confunde com a heterossexualidade. A atuação aqui não se dá por meio de um processo de constante vigilância individual, mas no entorno da população, de forma a melhor governá-la, de melhor conduzir as suas condutas para curvas de normalidade tidas como ótimas, menos perigosas ao risco de HIV-aids, e novamente, heterossexuais.

Essas são as sutilezas que o biopoder esfumaça, mas que as lentes de Michel Foucault ajudam a enxergar. Todavia, não se propõe com tal leitura deslegitimar esses processos de luta por visibilidade da população LGBT na esfera do Estado e portanto, da política e dos direitos, mas de trazer um arsenal teórico possível de enfrentamento que, ao mesmo tempo em que entenda a necessidade de tornar visível a homossexualidade, saber que essa visibilidade já está, desde o momento em que atinge a superfície, enredada nas tramas de um poder normalizador.

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    Muito embora seja empregada em muitas partes do texto a expressão em conjunto “HIV-aids”, é importante frisar que não há confusão entre as noções de HIV e aids na escrita do presente trabalho, isto é, não se compreende o vírus e a doença como equivalentes, como de fato não são. Entretato, dissociar tais termos e empregá-los como elementos autônomos em todas as vezes em que são suscitados no decorrer da análise seria tarefa praticamente impossível, sobretudo quando se tem em consideração estar lidando com política pública de saúde e, por conseguinte, com imaginários sociais, para os quais o soropositivo ocupa um espaço e goza de um estatuto ambíguo e contraditório. Sobre o assunto, ver PERLONGHER, N. O que é a Aids. São Paulo: Brasiliense, 1987 (--- PERLONGHER, 1987PERLONGHER, Néstor. O que é a Aids. São Paulo: Brasiliense, 1987.); GRMEK, M. História da Sida. Lisboa: Relógio D’água, 1994; SONTAG, S. A doença como metáfora e a sida e as suas metáforas. Lisboa: Quetzal, 2009.; CARVALHO, M. M. Actualizações em Foucault: aplicações da noção de dispositivo ao VIH/SIDA. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010.
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    HSH – sigla utilizada para designar homens que fazem sexo com outros homens, mas que não se enquadram como homossexuais. Ainda que se utilize tal terminologia no decorrer do texto em função de serem assim categorizados e descritos pela política pública de saúde em comento, a invenção de mais um tipo sexual demonstra a complexa rede que se forma no e a partir do dispositivo da sexualidade, capaz de especificar corpos e estabelecê-los em uma hierarquia através da qual eles podem ser lidos, bem como se lerem, segundo parâmetros morais, sociais e científicos, como nos casos de HSH que, em sua maioria, reivindicam para si tal posição por não desejarem ver-se e serem vistos lado a lado com corpos sobre os quais pesa a marca da homossexualidade.
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    Utiliza-se a sigla “aids” em letra minúscula de acordo com as orientações sugeridas por Castilho (1997 apudSilva 1999SILVA, Cristina Luci C. 1999. Ativismo, Ajuda-mútua e Assistência – A Atuação das Organizações Não-Governamentais na luta contra a Aids. Tese de Doutorado em Ciências Humanas – Sociologia, Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia/Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Segundo o autor, os nomes de doenças são substantivos comuns e, por esse motivo, grafados com letras minúsculas. Além disso, o uso em letras minúsculas se articula a uma perspectiva crítica em relação ao pânico sexual criado em torno da aids, conforme explicitado por Pelúcio e Miskolci (2009).PELÚCIO, L.; MISKOLCI, R. A prevenção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização das sexualidades dissidentes. Sexualidad, Salud y Sociedad: Revista Latinoamericana, n. 1, p. 125-157, 2009.
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    Muito embora cientes dos limites adstritos às análises estatísticas, os dados aqui veiculados carregam mais a pretensão de problematizar a questão que ora se coloca, do que instaurar um parâmetro de verdade absoluta a respeito de qual categoria social se encontra mais exposta ao vírus HIV ou acometida pela doença. São dados levantados entre 1984 e 2013 e colhidos no Boletim Epidemiológico HIV/Aids elaborado pela Secretaria Municipal de Curitiba. Conforme o material por eles analisado, atualmente, ainda há mais casos de doença entre os homens do que entre mulheres, contudo essa diferença vem diminuindo ao longo dos anos, sendo, inclusive, revertida, na faixa etária de jovens entre 13 e 19 anos. Fato que, em alguma medida, já desmistifica o senso comum criado em torno da homossexualidade masculina como uma prática sexual mais perversa. Não obstante, quanto à forma de transmissão, nas mulheres, 80,4% dos casos registrados decorreram de relações heterossexuais; entre os homens, 28,8% dos casos se deram por relações heterossexuais; 26,3% por relações homossexuais e 10,8% por bissexuais. O restante ocorreu por transmissão sanguínea e vertical. (CURITIBA, 2014CURITIBA. Secretaria Municipal de Saúde. Centro de Epidemiologia. Coordenação de Vigilância Epidemiológica. Coordenação Municipal de DST/HIV/AIDS/Hepatites Virais. Boletim epidemiológico. Curitiba: 2014, 32 p., p. 9). Longe de querer exaurir a questão, os dados aqui expostos apenas se dedicam a problematizar e relativizar as bases a partir das quais se constroi um aparato biopolítico de regulação e controle da população, que tem como norte de realização uma política pública de saúde, mas que irridia seus efeitos em torno de pânicos morais criados sobre sexualidades consideradas desviantes, perversas ou anormais.
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    Foi em uma entrevista à época do recém-lançado livro História da Sexualidade, que Foucault demarcou o sentido e a função metodológica do termpo dispositivo, que aqui merece transcrição: “Por esse termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que pode existir entre esses elementos heterogêneos. Sendo assim, tal discurso pode aparecer como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação dessa prática, dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma, entre esses elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes. Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que, em determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispotivio tem, portanto, uma função estratégica dominante. Esse foi o caso, por exemplo, da absorção de uma massa de população flutuante que uma economia de tipo essencialmente mercantilista achava incômoda: existe aí um imperativo estratégico funcionante como matriz de um dispositivo, que pouco a pouco tornou-se o dispositivo de controle-dominação da loucura, da doença mental, da neurose”. (FOUCAULT, 2012______. Sobre a história da sexualidade. (Tradução de Angela Loureiro de Sousa). In: Microfísica do Poder. 25ª ed. São Paulo: Editora Graal, 2012, ps. 363- 406., ps. 364-365).
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    Na aula de 25 de janeiro de 1978, do curso Segurança, território, população, Foucault dirá que a normalização pode-se dar tanto pelas práticas disciplinares como pelos mecanismos de segurança. Entretanto, seus modos de atuação são diversos. A normalização disciplinar se mostra como resultado de uma série de medidas bastante precisas que atuam na análise e decomposição dos indivíduos, lugares, tempo, gestos, atos, operações, fixando procedimentos de adestramento e controle precisos cujo resultado será um “modelo ótimo”, isto é, a separação entre o nomal e o anormal. Verifica-se, na normalização disciplinar, um procedimento que parte da anterioridade de uma norma a partir da qual se produzirá o normal e o anormal, levando Foucault a afirmar que se trataria mais propriamente de uma “normação”. Por sua vez, na normalização biopolítica, que se dá pelos mecanismos de segurança, primeiro tem-se uma apreensão do “normal” e do “anormal”, a saber, uma apreensão das diferentes curvas de normalidade, para depois se distrubuior de maneira ótima tais curvas umas em relação às outras, atuando na condução das curvas menos favoráveis para um estado que seria mais favorável. Aqui o normal vem antes e a norma é deduzida dele, e então, se falaria em normalização (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008., ps. 73-87).
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    Termo cunhado em 1991 por Michael Warner cuja análise buscava desestruturar a binariedade hetero/homossexualidade, explicando não se tratar de verdadeira oposição, senão de um sistema interdependente que procura reinserir e reinscrever incessantemente uma hierarquia que estabelece como privilégio a ordem heterossexual e despreza e subordina sujeitos homossexuais.
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    No curso Segurança, Território, População, Foucault explica o modo de funcionamento das “curvas de normalidade” ao analisar as práticas de variolização: “Vai-se ter a destruição ‘normal’ dos casos de afecção por varíola em cada idade, em cada região, em cada cidade, nos diferentes bairros da cidade, conforme as diferentes profissões das pessoas. Vai-se ter portanto a curva normal, global, as diferentes curvas consideradas normais, e a técnica vai consistir em quê? Em procurar reduzir as normalidades mais desfavoráveis, mais desviantes em relação à curva normal, geral, reduzi-las a essa curva normal, geral” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 82). Na política pública de saúde veiculada pelo aplicativo AHA, a curva normal é aquela representada pelo casal heterossexual que, em si mesmo, já é considerado monogâmico, sem troca de parceiros e mais saudáveis, tendo em vista que nem se aventa a possibilidade de se estender a eles tal política.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2017

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2016
  • Aceito
    25 Ago 2016
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