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O dilema do pensamento constitucional brasileiro: tupi or not tupi

The dilemma of the Brazilian constitutional thinking: tupi or not tupi

Resumo

O artigo analisa o pensamento constitucional da intelectualidade jurídica brasileira e busca compreender se este imaginário é autêntico ou apenas uma imitação de ideias importadas de países usualmente considerados mais avançados, localizados no Atlântico Norte. Por meio do método dialético e de análise de conteúdo das obras de direito constitucional mais utilizadas pelos principais cursos jurídicos do país, a pesquisa busca entender, a partir destas fontes primárias, a situação do pensamento constitucional dominante na intelectualidade jurídica brasileira. Com o marco teórico das ciências sociais e da ciência política quanto ao estudo do pensamento nacional, o trabalho aponta, em conclusão, para a sintonia entre o imaginário constitucional brasileiro e o pensamento colonial que predomina no país.

Palavras-chaves:
Imaginário constitucional; Pensamento colonial; Ciências sociais e política

Abstract

The article analyzes the constitutional thinking of Brazilian intellectuals, and seeks to understand whether this juridical imaginary realm is authentic or just an imitation of ideas imported from countries usually considered more advanced, located in the North Atlantic. By means of the dialectical method and the content analysis of the constitutional law books more used by the main legal courses of the country, the research seeks to understand, from these primary sources, the situation of the dominant thought in the Brazilian constitutional intellectuality. With the theoretical framework of social and political sciences concerning the study of the national thinking, the paper points, in conclusion, to the harmony between the Brazilian constitutional imaginary and the colonial thought that predominates in the country.

Keywords:
Constitutional imaginary; Colonial thinking; Social an political sciences

Introdução

Nas últimas décadas, o estudo do pensamento político-social brasileiro apresentou uma expansão significativa nas ciências sociais e na ciência política. A literatura específica indica que essa ampliação pode ser medida tanto pelo aumento expressivo do número de dissertações e teses defendidas nos programas de pós-graduação quanto pelo crescimento do número de artigos destinados ao tema, bem como pelos trabalhos apresentados nos congressos da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Associação Brasileira de Ciência Política e da Sociedade Brasileira de Sociologia ( LYNCH, 2013 LYNCH, Christian Edward Cyril. Por que pensamento e não teoria? A imaginação político-social brasileira e o fantasma da condição periférica (1880-1970). DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 56, n. 4, p. 727-767, 2013. : 727).

Em um apanhado histórico, são diversos os estudos, produzidos em várias épocas, que tiveram o objetivo de entender as ideias que orientaram, e ainda orientam o imaginário dos intelectuais brasileiros. Desde a Primeira República (1889-1930), pelo menos, o estudo do pensamento brasileiro foi, e ainda é, objeto de análise de notáveis estudiosos, como, por exemplo, Oliveira Vianna (1922 VIANNA, Francisco José de Oliveira. O Idealismo na evolução política do Império e da República. São Paulo: Biblioteca do Estado de São Paulo, 1922. ; 1927 ______. O Idealismo da Constituição. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1927. ; 1999 ______. Instituições Políticas Brasileiras . Brasília: Senado Federal, 1999. ), Alberto Guerreiro Ramos (1957 RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Andes Limitada, 1957. ; 1960 _____. O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Saga, 1960. ; 1996 _____. A redução sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. ), Roberto Mangabeira Unger (2004 _____. O Direito e o futuro da democracia. São Paulo: Boitempo, 2004. ; 2011 _____. A constituição do experimentalismo democrático. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 257, p. 57-72, 2011. ; 2015 _____. Crítica ao pensamento jurídico brasileiro, segundo Mangabeira Unger, Brasília, 13 jul.2015. Entrevistador: Felipe Seligman. Disponível em: <http://jota.info/critica-ao-pensamento-juridico-brasileiro-segundo-mangabeira-unger>. Acesso em: 17 ago. 2016.
http://jota.info/critica-ao-pensamento-...
) e Jessé Souza (2015) _____. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015. . Em artigo que discute, entre outras coisas, a “consolidação do mito da brasilidade nas ciências sociais”, Jessé Souza aponta (2006 SOUZA, Jessé. A invisibilidade da desigualdade brasileira. Belo Horizonte: UFMG, 2006. , p. 105) a nota pragmática deste tipo de análise, tendo em vista que:

As concepções dos intelectuais [...], quer tenhamos consciência disso ou não, são centrais para a forma como uma sociedade escolhe e leva a cabo seus projetos coletivos. Essas concepções são apenas “idéias”, mas são elas que explicam por que o mundo material e econômico visível e palpável se construiu dessa forma e não de outra forma qualquer.

No estudo do imaginário político e social brasileiro há a linha específica relacionada à análise do pensamento do intelectual periférico. Esta vertente busca estudar a consciência que estes pensadores fazem da sua própria realidade, dos seus problemas, em diálogo com o que é pensado nos países “desenvolvidos”. A questão central deste tipo de estudo consiste em discernir se o intelectual da periferia busca soluções para os problemas de seu país a partir de sua própria história, de sua sociedade de passado colonial, ou se suas ideias são aqui transplantadas do mundo “civilizado” sem um confronto com as circunstâncias particulares de seu meio.

Este trabalho busca trazer esta problemática para o campo do direito, mais especificamente por meio do diagnóstico do pensamento constitucional brasileiro contemporâneo. Assim, haja vista o problema delimitado quanto ao modo de pensar no mundo periférico, o marco teórico da pesquisa é centrado (i) na ideia do imaginário colonial dominante no pensamento político e social brasileiro, como sugerem os estudos do sociólogo e político Alberto Guerreiro Ramos (1957 RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Andes Limitada, 1957. ; 1960 _____. O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Saga, 1960. ; 1983 _____. A inteligência brasileira na década de 1930, à luz da perspectiva de 1980. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL, set. 1980, Rio de Janeiro. Anais do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Brasília: Universidade de Brasília, 1983, p. 529-547. ; 1995 _____. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira . Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. ; 1996 _____. A redução sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. ), e (ii) nas pesquisas mais recentes sobre este mesmo assunto realizadas pelo jurista e cientista político Christian Lynch (2013 LYNCH, Christian Edward Cyril. Por que pensamento e não teoria? A imaginação político-social brasileira e o fantasma da condição periférica (1880-1970). DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 56, n. 4, p. 727-767, 2013. ; 2015 _____. Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o pensamento sociológico (1953-1955). Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 73, p. 1-18, jan./abr. 2015. ).

Assim, o objetivo geral do trabalho consiste em compreender qual é o imaginário constitucional brasileiro dominante na atualidade, e mais especificamente se este imaginário é autêntico ou apenas uma imitação de ideias importadas de países usualmente considerados mais avançados e modernos, localizados no Atlântico Norte. O trabalho almeja, portanto, entender a situação do pensamento constitucional dominante na intelectualidade jurídica do país. Nesse passo, o trabalho busca responder a seguinte questão: o pensamento constitucional da intelectualidade brasileira é orientado por uma concepção alienada da sua própria realidade? Nessa parte, pretende-se avaliar se esse ideal de constitucionalismo é pautado por uma lógica colonial, de acordo com o marco teórico adotado, inclusive no que diz respeito ao conceito de “alienação”.

Dada a amplitude desse imaginário, o objetivo específico do trabalho consiste em analisar o pensamento constitucional no ensino da graduação em direito. A escolha do ensino jurídico para a análise do imaginário constitucional brasileiro decorre, em primeiro lugar, dos estudos que apontam a relação existente entre esse ensino e as elites intelectuais do país, como afirmam Alberto Venancio Filho (1977) VENANCIO FILHO, Alberto. Das Arcadas ao Bacharelismo: 150 anos de ensino jurídico no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1977. , Sergio Miceli (1979) MICELI, Sergio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil: 1920-1945. São Paulo: Difel, 1979. , Sérgio Adorno (1988) ADORNO, Sérgio. Os Aprendizes do Poder. Rio de Janerio: Paz e Terra, 1988. e Aurelio Wander Bastos (2000) BASTOS, Aurélio Wander. O Ensino Jurídico no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. , por exemplo. Em segundo lugar, porque a gênese do pensamento da intelectualidade jurídica remonta ao conhecimento adquirido na graduação. E por fim, em razão da necessidade de iniciativas modernizadoras nessa área, pois até o momento elas têm se restringido à pós-graduação, especialização ou aperfeiçoamento ( BASTOS, 2000 BASTOS, Aurélio Wander. O Ensino Jurídico no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. : 346). Não é novidade que o ensino jurídico vindica reformas desde longa data, tendo em vista ser marcado, ainda nos dias atuais, pelo dogmatismo e pela falta de interdisciplinaridade com as áreas afins ao direito ( SANTOS, 2002 SANTOS, André Luiz Lopes dos. Ensino jurídico: uma abordagem político-educacional. Campinas: Edicamp, 2002. : 277).

Do universo do ensino jurídico da graduação, a pesquisa considera especificamente a matéria do direito constitucional que tem a capacidade de ao mesmo tempo vislumbrar ideologias e imaginar instituições políticas e jurídicas: a teoria constitucional, tomada como o estudo dos paradigmas que definem o conceito de constituição, isto é, a explicação da essência do seu ser. Além disso, a teoria da constituição é um dos pontos do direito constitucional mais ligados às ciências afins ao direito, e que permite, portanto, testar a hipótese da pesquisa de que a imaginação dominante no constitucionalismo brasileiro é pautada por uma lógica colonial. A lógica de “paradigma”, por sua vez, é vista nesta pesquisa pelo pressuposto teórico relacionado à necessidade das revoluções científicas, com a substituição e quebra de paradigmas anteriores por novos ( KUHN, 2011 KUHN, Thomas Samuel. A Estrutura das Revoluções Científicas . Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2011. : 125-130).

Ainda quanto ao seu objetivo específico, a pesquisa busca investigar (i) quais são os constitucionalistas que figuram como paradigmáticos da teoria constitucional nos livros mais utilizados pelos cursos de direito, (ii) se eles são brasileiros ou são estrangeiros, (iii) se fazem parte da história e da política brasileira ou da história e da política de outros países, (iv) se a produção teórica nacional é adotada como teoria da constituição, (v) se há privilégio de teorias alienígenas, e (vi) qual a relação entre a teoria constitucional brasileira e estrangeira.

No aspecto metodológico, para a análise do pensamento constitucional brasileiro, e mais especificamente para a investigação do imaginário da teoria constitucional presente no ensino jurídico, o trabalho utiliza fontes primárias, de abordagem direta deste pesquisador, em um procedimento de coleta de dados e de análise de conteúdo das obras de direito constitucional utilizadas nos principais cursos de direito do país. Haja vista o espaço disponível para seu desenvolvimento, o trabalho adota métodos não apenas quantitativos, mas também qualitativos para a seleção dos objetos de estudo.

Neste quesito, a pesquisa desenvolve uma investigação metodológica de tipo jurídico-diagnóstico ( GUSTIN; DIAS, 2010 GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)Pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. : 37), pois compreende o levantamento das obras de direito constitucional mais utilizadas pelos cursos jurídicos mais conceituados do país, segundo a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com o propósito de desenvolver o objetivo específico do trabalho, consistente, como antes visto, em analisar o pensamento constitucional no ensino da graduação em direito. Dada a extensão das características metodológicas da pesquisa, todos os detalhes sobre a bibliografia analisada estão descritos na segunda parte deste artigo, logo após a exposição do referencial teórico adotado.

Além disso, e como decorrência do marco teórico abraçado, a pesquisa adota a vertente metodológica jurídico-sociológica, pois se propõe a compreender o fenômeno constitucional em um ambiente social mais amplo, e por analisar o direito como variável dependente da sociedade ( GUSTIN; DIAS, 2010 GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)Pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. : 22). O trabalho desenvolve, assim, por meio do método dialético, uma pesquisa interdisciplinar do tema, orientanda por um raciocínio não só jurídico, mas também político e social, considerados essenciais para uma abordagem constitucional não dogmática.

O artigo está divido em três partes. Em primeiro plano, o trabalho apresenta o marco teórico adotado sobre o imaginário colonial dominante no pensamento político e social brasileiro, sobretudo com base nos estudos de Alberto Guerreiro Ramos (1957 RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Andes Limitada, 1957. ; 1960 _____. O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Saga, 1960. ; 1983 _____. A inteligência brasileira na década de 1930, à luz da perspectiva de 1980. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL, set. 1980, Rio de Janeiro. Anais do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Brasília: Universidade de Brasília, 1983, p. 529-547. ; 1995 _____. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira . Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. ; 1996 _____. A redução sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. ) e Christian Lynch (2013 LYNCH, Christian Edward Cyril. Por que pensamento e não teoria? A imaginação político-social brasileira e o fantasma da condição periférica (1880-1970). DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 56, n. 4, p. 727-767, 2013. ; 2015 _____. Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o pensamento sociológico (1953-1955). Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 73, p. 1-18, jan./abr. 2015. ). A partir deste marco teórico, e a fim de trazer essa problemática para o campo do pensamento constitucional brasileiro, na segunda parte do trabalho são detalhados os métodos para a coleta das obras de direito constitucional mais utilizadas pelos cursos de direito selecionados pela pesquisa. A análise de conteúdo destas obras é descrita na parte subsequente, e última, do artigo. Assim, em seu terceiro e derradeiro momento, o artigo analisa os referenciais teóricos de cada obra selecionada quanto à teoria constitucional, com o intuito de compreender quais são os paradigmas dominantes nessa área. Ainda nesta parte, o trabalho aponta as relações entre o imaginário constitucional brasileiro e as ideias que permeiam o pensamento político e social no país, com o fito de verificar se o paradigma dominante no constitucionalismo brasileiro é pautado por uma lógica colonial, como sugere a hipótese desta pesquisa.

1. Uma explicação da tendência à cópia

A ideia de um imaginário colonial no pensamento político-social brasileiro remonta de longa data. A inclinação à cópia é apontada como uma característica da intelectualidade brasileira desde pelo menos o século XIX, como já afirmava Joaquim Nabuco (1900 NABUCO, Joaquim. Minha formação. Rio de Janeiro, Paris: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1900. : 42), ao dizer que “o sentimento em nós é brasileiro, a imaginação européa”. O mesmo cenário foi pintado por Sérgio Buarque de Holanda (2014 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. : 31) em Raízes do Brasil, ao sublinhar que:

A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução própria de outro clima e de outra paisagem.

Segundo a teoria social de Alberto Guerreiro Ramos, adotada como marco teórico neste trabalho, a transplantação no Brasil não se explicaria porque o povo brasileiro não tenha imaginação criadora, nem porque seja predisposto à imitação. Para ele, a tendência à cópia decorreu de um processo inerente e inevitável, dada a condição de país colonizado. Isso porque (RAMOS, 1960 _____. O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Saga, 1960. : 91):

Os países formados por colonização exibem um caráter mimético resultante da situação global em que estão. O prestígio das metrópoles se lhes impõe inexoravelmente. Diante do imperialismo dêsse prestígio, não é dado ao país colonizado fazer opções, nem lhe pode ocorrer mesmo a idéia de opção, senão a partir pela possibilidade real de liquidar sua dependência. O caráter nacional de um povo não é um dado independente dos fatôres que o constituem.

Embora a realidade contemporânea permita uma avaliação de nossas instituições pelo viés nacional, a teoria social de Guerreiro Ramos (1957 RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Andes Limitada, 1957. : 18) percebia que “a cultura brasileira não poderia furtar-se à lógica da situação colonial”. Isso porque a importação de instituições foi um desdobramento inevitável ao processo colonizador, um acidente natural e não necessariamente patológico. Afinal, durante o período em que o Brasil foi colônia de Portugal, as transplantações obedeciam e serviam a um propósito pragmático, no sentido de estabelecer uma continuidade da vida portuguesa em solo brasileiro.

Ainda de acordo com a teoria social de Guerreiro Ramos (1995 _____. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira . Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. : 273-274), por mais que o processo de colonização tivesse sido conduzido pelos espanhóis, franceses ou holandeses, não se teria realizado fora da pauta da imitação, pois ao fim e ao cabo, a transplantação das instituições decorreu da própria necessidade da construção nacional, para que se tornasse possível, a seu tempo, a nação brasileira.

Segundo a lógica colonizadora, e de acordo com a teoria positivista, a cultura nativa era atrasada em relação à sua própria história e cultura, consideradas mais avançadas. Era necessário, portanto, acelerar a história na colônia para que se alcançassem minimamente os níveis civilizatórios da Europa. O meio mais eficaz e rápido consistia, justamente, em levar para a colônia as instituições que garantissem o processo colonizador expropriatório.

Essa explicação da tendência à cópia pode naturalmente ser estendida ao pensamento da intelectualidade periférica, como indicam os estudos de Guerreiro Ramos. Se é admissível dizer, segundo sua teoria social, de que no início do processo colonizador esse imaginário transplantado tinha uma natureza pragmática, o mesmo; contudo, aparenta ser duvidoso em relação ao atual estágio do pensamento brasileiro.

1.1 Por uma teoria brasileira pós-colonial

Apontando o que chama de “as ideias fora do lugar”, Roberto Schwarz (2009 SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. : 110) explica que, para a literatura nacional, há um “sentimento de contradição entre a realidade nacional e o prestígio ideológico dos países que nos servem de modelo”. Ou, nas palavras do historiador José Murilo de Carvalho (2014 CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. : 18), que o Brasil é o exemplo de “país exportador de matérias-primas e importador de ideias e instituições”. O que não significa uma exclusividade tupiniquim, pois como adverte Roberto Mangabeira Unger (1994 UNGER, Roberto Mangabeira. Diálogo: Roberto Mangabeira Unger. Entrevistador: Leonardo Avritzer. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 33-57, jan./jun. 1994. : 38), “todos os países de economia periférica tendem a ser governados por elites que começam com projetos de imitar e importar as instituições econômicas e políticas dos países centrais”.

Nesse mesmo sentido, alerta a teoria social de Guerreiro Ramos (1960 _____. O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Saga, 1960. : 91) que “ os critérios aqui vigentes não são induzidos, grosso modo, da realidade nacional. São induzidos da realidade de outros países”. Ou, mais categoricamente, que “somos até agora consumidores por excelência de cultura e ciência importadas” (RAMOS, 1983 _____. A inteligência brasileira na década de 1930, à luz da perspectiva de 1980. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL, set. 1980, Rio de Janeiro. Anais do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Brasília: Universidade de Brasília, 1983, p. 529-547. : 547).

Na década de 1950, Guerreiro Ramos já apontava cinco características da produção do conhecimento no Brasil que revelariam a imaginação colonial de seus intelectuais. A primeira característica apontada por sua teoria é a “simetria” ou “sincretismo ”, que seria decorrente da inclinação em seguir literalmente as ideias consideradas mais avançadas na Europa e Estados Unidos, de modo que chegaria a ser “comovente” o esforço do intelectual brasileiro a fim de colocar-se “up to date” com a produção dos países do centro. A segunda, o “dogmatismo”, seria relativa ao prestígio de argumentos de autoridade. A terceira, o “ dedutivismo”, consistiria em emprestar às ideias estrangeiras o caráter de verdade absoluta, passando, dessa forma, a serem tomadas como ponto de partida para a explicação dos fatos da realidade brasileira. A quarta, a “ alienação”, materializar-se-ia quando o intelectual brasileiro assume a atitude equivalente a do estrangeiro, que nos olha a partir do seu próprio contexto e em função deste nos interpreta. A última característica, a “inautenticidade”, consistiria em receber as teorias estrangeiras em detrimento de experiências cognitivas genuínas ( RAMOS, 1957 RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Andes Limitada, 1957. : 19-23). Todas resumiriam, de acordo com a teoria de Guerreiro Ramos (1983 _____. A inteligência brasileira na década de 1930, à luz da perspectiva de 1980. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL, set. 1980, Rio de Janeiro. Anais do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Brasília: Universidade de Brasília, 1983, p. 529-547. : 540), a “ hipercorreção” desses intelectuais.

Contra a tendência “hipercorreta” de atribuir a ideais e teorias importadas eficácia direta na configuração nacional, Guerreiro Ramos sugeria um esforço no sentido de criar uma estrutura adequada às circunstâncias particularíssimas do país. Sua proposta, vista pelo “pragmatismo crítico”, culmina com a “ redução sociológica”, cujo principal traço consiste na preocupação em definir uma relação de continuidade com os intelectuais críticos existentes nas gerações passadas do país (RAMOS, 1983 _____. A inteligência brasileira na década de 1930, à luz da perspectiva de 1980. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL, set. 1980, Rio de Janeiro. Anais do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Brasília: Universidade de Brasília, 1983, p. 529-547. : 540). As regras da “redução sociológica” vislumbradas por ele eram quatro: o comprometimento do intelectual com seu contexto; o caráter subsidiário da produção estrangeira, libertando a ciência periférica “do automatismo mimético”; a universalidade somente dos enunciados gerais da ciência; e a das fases, segundo a qual cada problema ou aspecto de uma sociedade era parte de uma totalidade em função da qual era possível compreendê-la (RAMOS, 1996 _____. A redução sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. : 41).

Contudo, o método de Guerreiro Ramos não significa uma aversão ao estrangeiro, mas uma lógica que permita ao intelectual adaptar as teorias estrangeiras às necessidades da etapa de desenvolvimento experimentada pela sociedade em que vive (LYNCH, 2015 _____. Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o pensamento sociológico (1953-1955). Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 73, p. 1-18, jan./abr. 2015. : 7). Com razão, o próprio mecanismo de Guerreiro Ramos previa a adaptação de postulados universais à realidade do país, mas desde que houvesse um comprometimento com o contexto nacional. E parece haver uma razão para tanto, pois como adverte Mangabeira Unger (1994 UNGER, Roberto Mangabeira. Diálogo: Roberto Mangabeira Unger. Entrevistador: Leonardo Avritzer. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 33-57, jan./jun. 1994. : 44-45), “não devemos cair no nacionalismo cultural primitivo que nos leva à fantasia de que, subtraindo as influências estrangeiras, o que ficaria seria o nacional”. Da mesma forma, Roberto Schwarz (2009 SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. : 123) aponta que não é possível ser “nacional por subtração”, tendo em vista que “não basta renunciar ao empréstimo para pensar e viver de modo mais autêntico ”.

Para Christian Lynch (2015 _____. Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o pensamento sociológico (1953-1955). Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 73, p. 1-18, jan./abr. 2015. : 1), a obra de Guerreiro Ramos, na década de 1950, “ foi desenvolvida conforme um plano deliberado de elaborar uma teoria pós-colonial aplicada ao Brasil”. Assim como o resgate crítico do pensamento sociológico brasileiro possibilitara a Guerreiro Ramos teorizar sobre a sociedade colonial, seus estudos sobre o pensamento político-social brasileiro o ajudaram a delinear sua própria ideologia nacionalista, que levaria o Brasil a superar a sua condição periférica (LYNCH, 2015 _____. Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o pensamento sociológico (1953-1955). Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 73, p. 1-18, jan./abr. 2015. : 3).

1.2 Tábua rasa do histórico nacional

A característica de privilegiar as teorias estrangeiras, em detrimento da produção nacional, decorre, de acordo com a interpretação de Christian Lynch (2013 LYNCH, Christian Edward Cyril. Por que pensamento e não teoria? A imaginação político-social brasileira e o fantasma da condição periférica (1880-1970). DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 56, n. 4, p. 727-767, 2013. : 734), do “pouco caso demonstrado pelas elites dos países periféricos ao pensamento produzido por elas mesmas, comparado àquelas elaboradas nos países centrais”. Segundo esta ideia, é como se prevalecesse uma divisão internacional do trabalho intelectual na geografia do mundo, onde o “centro ” produz o “universal”, considerado como filosofia, teoria e ciência; ao passo que a tarefa da “periferia ” seria apenas a de aplicar esse conhecimento às suas circunstâncias particulares ( LYNCH, 2013 LYNCH, Christian Edward Cyril. Por que pensamento e não teoria? A imaginação político-social brasileira e o fantasma da condição periférica (1880-1970). DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 56, n. 4, p. 727-767, 2013. : 734-735).

A crítica de Christian Lynch é direcionada para um ponto específico: a ideia de que somente é teoria o que é produzido nos países “centrais” do Atlântico Norte. De acordo com esse diagnóstico, ele aponta que na ciência política, por exemplo, só recebe o nome de “teoria política ” o que vem com o selo da importação, de modo que a produção intelectual brasileira é denominada apenas de “pensamento ”. Assim, os países do “centro” produziriam “ teoria, filosofia e ciência na forma de tratados originais e universais; da periferia, só se poderiam esperar pensamentos ou histórias das ideias, plasmados em ensaios sem originalidade ou simplesmente de baixa densidade intelectual” ( LYNCH, 2013 LYNCH, Christian Edward Cyril. Por que pensamento e não teoria? A imaginação político-social brasileira e o fantasma da condição periférica (1880-1970). DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 56, n. 4, p. 727-767, 2013. : 759).

Essa interpretação do pensamento intelectual brasileiro deriva, sem margem para dúvidas, dos estudos de Guerreiro Ramos iniciados na década de 1950. Na mesma linha inicial de suas pesquisas, Guerreiro Ramos (1983 _____. A inteligência brasileira na década de 1930, à luz da perspectiva de 1980. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL, set. 1980, Rio de Janeiro. Anais do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Brasília: Universidade de Brasília, 1983, p. 529-547. : 546) apontava, na década de 1980, que:

A história cultural do Brasil é uma sucessão de ideias e teorias de validade provisória, invariavelmente importadas dos países cêntricos. Os membros [...] de cada geração tendem a fazer tábula rasa do passado, e declaram sua superioridade em relação às gerações anteriores que os precederam, pelo simples fato de que se admitem mais modernizados , isto é, mais bem informados a respeito dos epígonos eventuais da moda intelectual de seu tempo. Levy-Strauss, Habermas, Althusser, Gramsci, ressuscitados, e outras celebridades do dia no exterior são hoje as fontes em que se abeberaram os nossos intelectuais [...], que alimentam a ilusão de que o seu trabalho de propagação de ideias e teorias importadas corresponde a uma revolução cultural.

O mesmo retrato sobre a questão da tábua rasa é contado por Roberto Schwarz sobre a literatura brasileira. Lá, assim como no histórico das ciências sociais, a cada geração a vida intelectual no Brasil parecia começar do zero, pois “o apetite pela produção recente dos países avançados muitas vezes tem como avesso o desinteresse pelo trabalho da geração anterior, e a consequente descontinuidade da reflexão” ( SCHWARZ, 2009 SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. : 111).

A crítica sobre a tendência em adotar e perfilhar o caminho das ideias importadas, e ao mesmo tempo ignorar a produção nacional, não significa um apelo de continuidade pela continuidade, mas, como sugere Roberto Schwarz (2009 SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. : 112), “da constituição de um campo de problemas reais, particulares, com inserção e duração histórica próprias, que recolha as forças em presença e solicite o passo adiante ”. No mesmo sentido, Christian Lynch (2015 _____. Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o pensamento sociológico (1953-1955). Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 73, p. 1-18, jan./abr. 2015. : 6) observa que a tendência à cópia em nada contribuiria para incutir no país a “ consciência crítica de sua condição e de seus problemas ”. A solução, de acordo com as palavras enfáticas de Jessé Souza (2015: 166), passaria pelo rompimento desta lógica, pois:

Se nos libertamos do complexo de vira-lata que nos torna servis e colonizados até o osso, podemos inclusive começar a pensar e refletir com nossas próprias cabeças e compreender questões centrais que se veem muito melhor da periferia do sistema do que no centro.

Toda essa discussão aparenta ser mais adiantada na ciência política e nas ciências sociais, certamente em razão da existência de um extenso debate sobre as linhagens ou tradições do pensamento brasileiro. Lá, hoje a discussão caminha a passos largos no sentido de superar o cenário colonial da intelectualidade brasileira, tendo em vista os recentes e cada vez mais numerosos trabalhos científicos sobre as linhagens e as tradições do pensamento político e social brasileiro ( LYNCH, 2013 LYNCH, Christian Edward Cyril. Por que pensamento e não teoria? A imaginação político-social brasileira e o fantasma da condição periférica (1880-1970). DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 56, n. 4, p. 727-767, 2013. : 727).

As próximas partes do artigo são justamente o resultado da análise desta pesquisa quanto ao pensamento constitucional dominante no ensino jurídico no país, de acordo com o marco teórico exposto nesta primeira seção do artigo. A parte imediatamente subsequente, em específico, detalha os métodos para a coleta das obras de direito constitucional examinadas na terceira e última parte do trabalho.

2. Os métodos e objetos da análise de conteúdo

Como antes indicado, para a análise do pensamento constitucional brasileiro a partir do marco teórico adotado, e mais especificamente para a investigação do imaginário da teoria constitucional presente no ensino jurídico, o trabalho utiliza fontes primárias, em um procedimento de coleta de dados e de análise de conteúdo das obras de direito constitucional utilizadas nos cursos de direito. Neste ponto específico, a pesquisa desenvolve uma investigação metodológica jurídico-diagnóstico, que compreende o levantamento dos cursos de direito mais conceituados do país, e também das respectivas bibliografias das disciplinas de teoria da constituição ou de direito constitucional.

Neste quesito, o trabalho adota métodos não apenas quantitativos, mas também qualitativos para seleção dos objetos de estudo, sobretudo em razão do espaço disponível para a análise. Assim, dado o elevado número de cursos de direito no país, o método da pesquisa para a seleção é de natureza marcadamente qualitativa, e não apenas quantitativa. De fato, na última avaliação dos cursos de direito realizada no ano de 2012 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação (MEC), foram contabilizados mais de mil e trezentos cursos de direito existentes no Brasil ( INEP, 2014 INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Conceito Preliminar de Curso – CPC, Brasília, mar. 2014. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_superior/enade/planilhas/2012/cpc_2012_site_2014_03_14.xls>. Acesso em: 17 ago. 2016.
http://download.inep.gov.br/educacao_su...
).

Desse modo, os métodos utilizados pela pesquisa para a consideração da qualidade dos cursos de direito foram os divulgados pela OAB, principalmente por meio do Exame de Ordem, que é aplicado aos bacharéis de direito que almejam ingressar no quadro de advogados da instituição. O Exame de Ordem elaborado pela OAB, dentre todos os critérios disponíveis para avaliação, é o que tem tido mais destaque na indicação da qualidade do ensino jurídico, o que é reconhecido, ao menos de forma indireta, pelo próprio MEC. Embora utilize seus próprios instrumentos de avaliação dos cursos de ensino superior, como o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE) e o Conceito Preliminar de Curso (CPC), houve uma notória e pública aproximação entre a OAB e o MEC nos últimos anos, com o objetivo de melhorar e aperfeiçoar o ensino nos cursos de direito do país. Por essa razão, os principais e primeiros critérios desta pesquisa para avaliação da qualidade do ensino jurídico foram os disponibilizados pela OAB.

Assim, o primeiro critério da pesquisa para a seleção dos cursos jurídicos decorreu do último Indicador de Educação Jurídica de Qualidade divulgado em 2016 pelo Conselho Federal da OAB, nos quais os cursos de direito receberam o selo OAB Recomenda (OAB, 2016 _____. OAB entrega a 142 faculdades selo de qualidade em ensino de direito , Brasília, jan. 2016. Disponível em: <http://www.oab.org.br/noticia/29187/oab-entrega-a-142-faculdades-selo-de-qualidade-em-ensino-de-direito>. Acesso em 17 ago. 2016.
http://www.oab.org.br/noticia/29187/oab...
). No total, mais de cem cursos de direito foram homenageados por sua qualidade, sendo que mais da metade dos selos foram outorgados a Universidades Públicas. Por esse motivo, a pesquisa adota o método qualitativo para a análise do pensamento constitucional presente no ensino jurídico da graduação das Universidades Públicas brasileiras. Dentre as existentes no país, a pesquisa selecionou as quinze que vêm se destacando, a nível nacional, pela qualidade do ensino, conforme metodologia exposta a seguir.

Tendo em vista, ainda, o âmbito nacional da pesquisa, e para que fosse abrangida a maior extensão territorial possível, foram selecionados os cursos de direito de Universidades Públicas das cinco regiões do país, por meio de três Estados de cada Região, inclusive o Distrito Federal, de modo que cada Estado fosse representado por uma Universidade Pública. Nesta parte, em especial, a pesquisa adota o método qualitativo, e as Universidades foram selecionadas da seguinte forma, em ordem sequencial e preferencial: em primeiro lugar, pela maior taxa de aprovação no X ao XIII Exames de Ordem (OAB, 2014 _____. Exame de Ordem em números, vol. 2, Brasília, out. 2014. Disponível em: <http://www.oab.org.br/arquivos/exame-de-ordem-em-numeros-II.pdf>. Acesso em: 17 ago. 2016.
http://www.oab.org.br/arquivos/exame-de...
); em segundo lugar, pela maior taxa de aprovação no VIII ao X Exames de Ordem ( OAB, 2013 OAB Ordem dos Advogados do Brasil – Conselho Federal. Exame de Ordem em números , vol. 1, Brasília, ago. 2013. Disponível em: <http://www.oab.org.br/arquivos/exame-de-ordem-em-numeros-I.pdf>. Acesso em: 17 ago. 2016.
http://www.oab.org.br/arquivos/exame-de...
); em terceiro lugar, pelo maior Conceito Preliminar de Curso (CPC) atribuído pelo INEP em 2012 ( INEP, 2014 INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Conceito Preliminar de Curso – CPC, Brasília, mar. 2014. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_superior/enade/planilhas/2012/cpc_2012_site_2014_03_14.xls>. Acesso em: 17 ago. 2016.
http://download.inep.gov.br/educacao_su...
). A partir dessa seleção, os Estados foram automaticamente determinados a partir das Universidades mais qualificadas de cada região.

A partir da triagem das quinze Universidades Públicas que aparece na tabela 1 a seguir, a pesquisa levantou os livros mais citados em todos os conteúdos programáticos da disciplina de teoria da constituição, ou equivalente, de cada Universidade listada. Para evitar uma análise casuística, selecionaram-se as obras que apareceram pelo menos cinco vezes nas diferentes bibliografias, conforme aparece na tabela 2 . A pesquisa restringiu-se, ainda, à bibliografia básica e não contemplou eventual indicação de leituras complementares.

As ementas das disciplinas foram obtidas nos endereços eletrônicos oficiais das respectivas Universidades, e quando ausentes, solicitadas e encaminhadas para o e-mail do autor deste artigo. Adotou-se, sempre que possível, a versão mais recente dos livros indicados, de acordo com a disponibilidade do acervo virtual de bibliotecas públicas, como a do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo.

2.1 Seleção das Universidades Públicas

A relação das Universidades Públicas selecionadas de acordo com os métodos da pesquisa é a que aparece na tabela a seguir. A lista aponta a região; o Estado da federação; a Universidade selecionada; o critério utilizado; e o ano da ementa mais recente da disciplina de teoria da constituição, ou equivalente, usada por cada Universidade.

Tabela 1
Universidades Públicas selecionadas pela pesquisa.

2.2. Livros mais utilizados sobre teoria da constituição

De acordo com os métodos adotados pelo trabalho, a relação das obras de teoria constitucional está contemplada na tabela a seguir, em que são apontados o autor, ou autores; o nome do livro; e o número de vezes em que apareceram nas diferentes ementas das Universidades selecionadas.

Tabela 2
Livros de teoria da constituição, ou equivalente, mais utilizados pelas Universidades Públicas selecionadas.

A partir deste ponto, e com as lentes do marco teórico exposto na primeira seção deste artigo, o estudo volta-se para seu objetivo principal de investigar se o imaginário constitucional brasileiro dominante na atualidade é autêntico ou se é apenas uma imitação de ideias importadas de países usualmente considerados mais “avançados” e “modernos”. Como antes indicado, a seleção das Universidades listadas na tabela 1 e das obras de direito constitucional que aparece na tabela 2 serviu para o propósito específico de analisar o modo de pensar o constitucionalismo na graduação em direito.

3. Os paradigmas da teoria da constituição não são nacionais

De plano, pela análise de conteúdo das obras listadas na tabela 2 , o resultado da pesquisa revelou que os marcos paradigmáticos da teoria constitucional não se encontram no Brasil, mas sim nos Estados Unidos e na Europa. Esse foi um traço característico em todas as obras analisadas, sem exceção. Em linhas gerais, o constitucionalismo brasileiro aparece de três formas: ou não há qualquer capítulo ou parte específica para sua análise, como no manual de Alexandre de Moraes (2013) MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 29. ed. São Paulo: Atlas, 2013. e de José Joaquim Gomes Canotilho (2009) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição . 7. ed. Coimbra: Almedina, 2009. ; ou a análise é extremamente sucinta e descritiva, como no livro de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2013) e no de Luiz David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2011); ou aparece em um contexto histórico, e não é elevado ao nível de “teoria constitucional”, como nos livros de José Afonso da Silva (2014) SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo . 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. , Paulo Bonavides (2014) BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. e André Ramos Tavares (2015) TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. .

Como traço comum, há um inequívoco prestígio dos clássicos estrangeiros, de forma que os paradigmas relacionados à teoria da constituição são ditados pela Europa e pelos Estados Unidos. Aos brasileiros coube, quando muito, tão somente a tarefa de explicar a história do constitucionalismo, sem o destaque conferido aos estrangeiros, menos ainda quando se leva em consideração a definição dos paradigmas constitucionais.

A obra de José Afonso da Silva (2014) SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo . 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. , por exemplo, apresenta o processo histórico do constitucionalismo brasileiro, mas isto não tem o condão de elevá-lo à categoria de teoria constitucional, tanto que é tratado unicamente como história, em capítulo distinto do reservado à teoria da constituição. Da mesma forma, por mais que a obra de Paulo Bonavides (2014) BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. indique diversas produções teóricas nacionais sobre o constitucionalismo, e isto logo no início do livro, nenhuma delas é alçada à categoria de teoria constitucional.

Igualmente, José J. Gomes Canotilho (2009 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição . 7. ed. Coimbra: Almedina, 2009. : 51-60) aponta o constitucionalismo europeu e estadunidense como os paradigmas do mundo moderno. Certamente por ter nacionalidade portuguesa, sua obra é em grande medida destinada ao estudo da Constituição Portuguesa de 1976, sobretudo a partir de uma perspectiva teórica alemã. Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2013: 39) afirmam, por sua vez, que a noção que possuímos na atualidade sobre o fenômeno constitucional “tem origem mais próxima no tempo e é tributária de postulados liberais que inspiraram as Revoluções Francesa e Americana do século XVIII”. Indo mais longe, afirmam que essas seriam duas tendências básicas para entender “a concepção dos fundamentos do sistema jurídico em que o Brasil se insere” ( MENDES; BRANCO, 2013 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional . 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. : 40).

Na mesma toada, Alexandre de Moraes (2013 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 29. ed. São Paulo: Atlas, 2013. : 1) registra que a origem do constitucionalismo “está ligada às Constituições escritas e rígidas dos Estados Unidos da América, em 1787, após a Independência das 13 Colônias, e da França, em 1791, a partir da Revolução Francesa”. Neste último caso, em específico, sequer existe um capítulo ou uma parte especial para a análise do constitucionalismo brasileiro, nem mesmo a partir de uma ótica histórica, como antes indicado. De igual sorte, Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2011: 26) entendem que, historicamente, “o constitucionalismo está associado ao surgimento das duas primeiras Constituições escritas, a americana e a francesa”. Os autores apresentam o histórico das constituições brasileiras, e descrevem suas principais características, desde a Constituição de 1824 até a Constituição de 1988, mostrando o desenrolar do constitucionalismo brasileiro a partir de uma perspectiva predominantemente descritiva e segregada da parte destinada à teoria constitucional ditada pela Europa e pelos Estados Unidos ( ARAUJO; JÚNIOR, 2011 ARAUJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Verbatim, 2011. : 121-127).

Confirmando essa lógica, André Ramos Tavares (2015 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. : 32 e 34) destaca que o constitucionalismo moderno é fruto das experiências dos Estados Unidos e da Europa, “pela edição da Constituição norte-americana de 1787 e pela Revolução Francesa, em 1789”, ao sugerir que “os ideais constitucionalistas consagrados na América do Norte espraiaram-se por toda a América, na medida em que as colônias conseguiam destacar-se de Portugal e Espanha”. Identificam-se “as Constituições americana e francesa como a origem das Constituições na história jurídica do homem, tal qual compreendidas atualmente ” ( TAVARES, 2015 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. : 162). Para não fugir à regra, o autor conta a história do constitucionalismo por uma ótica eminentemente europeia e estadunidense, ao lembrar os acontecimentos do Atlântico Norte, como a Revolução Francesa; a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789; a Constituição francesa de 1791; a Constituição alemã de 1871; e o caso Marbury versus Madison, julgado em 1803 pela Suprema Corte americana ( TAVARES, 2015 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. : 39-69).

No que diz respeito às concepções das constituições, José Afonso da Silva (2014 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo . 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. : 40) indica, por exemplo, que o sentido sociológico é atribuído aos escritos do alemão Ferdinand Lassalle; que o sentido político é oriundo das ideias do alemão Carl Schmitt; e que o sentido jurídico é tributário dos estudos do austríaco Hans Kelsen. No mesmo sentido, ao tratar do sentido sociológico, Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2011: 31) fazem referência apenas à definição de Ferdinand Lassalle e de Niklas Luhmann, e ao abordar o sentido político, apontam apenas Carl Schmitt. Assim, o constitucionalismo teria surgido, de acordo com os autores, com o Estado de Direito, muito embora tenha existido, antes dele, outras instituições e movimentos caracterizados por um objetivo semelhante, como “as teorias contratualistas (Maquiavel, Locke e Rousseau, dentre outros), a teoria orgânica do poder (Montesquieu) e as declarações de direitos humanos (da França e de Virgínia/EUA)” ( ARAUJO; JÚNIOR, 2011 ARAUJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Verbatim, 2011. : 27). Em linha idêntica, André Ramos Tavares (2015 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. : 32 e 34) cita como paradigmas teóricos do constitucionalismo moderno as ideias de Thomas Hobbes (Leviatã), John Locke (Tratado do Governo Civil ), Montesquieu (O espírito das leis) e Jean-Jacques Rousseau (Contrato Social).

Numa vertente muito parecida, Paulo Bonavides (2014 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. : 173) sugere que os primeiros questionamentos constitucionais surgiram com os escritos do abade Sieyès e de Ferdinand Lassalle, sendo que a teoria do último tornou possível “o constitucionalismo da democracia liberal e representativa ”. Assim, registra também que o conceito material de constituição é decorrente da construção paradigmática de Ferdinand Lassalle e Hans Kelsen, e que os principais teóricos da constituição foram, além deles, os alemães Carl Schmitt, Hermann Heller, Georg Jellinek e Rudolf Smend. O autor indica, ainda, que a teoria material esboçou-se inicialmente com a jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos, até desembocar nas “reflexões teóricas dos constitucionalistas de Weimar e, de último, também com a contribuição dos juristas e publicistas da chamada Escola de Zurique ” ( BONAVIDES, 2014 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. : 100). Destaca, nesse sentido, que a teoria material da constituição, partindo de Ferdinand Lassalle, no século XIX, teve durante a Constituição de Weimar, na Alemanha, “os seus mais brilhantes teoristas” ( BONAVIDES, 2014 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. : 101).

Quanto à jurisprudência da Suprema Corte norte-americana, é exemplar a imagem transmitida por Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Branco (2013: 50-52) sobre a doutrina dos pais fundadores, resumida n’O Federalista, e o contexto fático do famoso caso Marbury versus Madison, e de sua importância para a afirmação da supremacia da constituição. Para isto, resgatam-se as ideias basilares que inspirariam os conceitos nucleares do constitucionalismo moderno, como as ideias de Jean Bodin, Montesquieu, Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, apontando suas principais obras: Seis Livros da República, O Espírito das Leis, Leviatã, Segundo Tratado do Governo Civil e Contrato Social, respectivamente ( MENDES; BRANCO, 2013 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional . 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. : 40-46). Ao introduzir o tópico sobre o conceito de constituição, há tão somente a referência a Ferdinand Lassalle, com seu enfoque sociológico. Ao adentrar o conceito da constituição em sentido substancial, destaca apenas as contribuições de Konrad Hesse para a formação desta teoria, com sua ideia sobre a força normativa da constituição ( MENDES; BRANCO, 2013 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional . 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. : 55).

Apesar de reconhecer a dificuldade em apontar uma situação clássica sobre a teoria da constituição, também é digna de nota a visão de José J. Gomes Canotilho (2009 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição . 7. ed. Coimbra: Almedina, 2009. : 1336) sobre a importância dos alemães na construção dos paradigmas da teoria constitucional, ao elevar os nomes de Hermann Heller, Richard Smend, Carl Schmitt e Heinrich Triepel. Além deles, a análise privilegia a história constitucional inglesa como paradigma da antiguidade, e a francesa e estadunidense como paradigmas do mundo moderno ( CANOTILHO, 2009 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição . 7. ed. Coimbra: Almedina, 2009. : 51-60). Nesse sentido, indica a Magna Carta de 1215; a Petition of Rights de 1628; o Habeas Corpus Act de 1679; o Bill of Rights de 1689; a Glorious Revolution de 1688; a Constituição americana de 1787; e a Revolução Francesa de 1789. José J. Gomes Canotilho (2009 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição . 7. ed. Coimbra: Almedina, 2009. : 1339) indica, ainda, que quem desejar fazer o estudo da chamada “situação clássica” da teoria da constituição terá de ler as obras de Carl Joachim Friedrich, Hans Kelsen, Herman Heller, Karl Loewenstein e Carl Schmitt.

A teoria alemã parece ligada, sobretudo, à importância conferida à Constituição de Weimar, como também apontado por André Ramos Tavares (2015 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. : 89) e José Afonso da Silva (2014 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo . 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. : 84), notadamente ao registrarem que a Constituição brasileira de 1934 seguiu aquele modelo. Segundo José Afonso da Silva (2014 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo . 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. : 84), a Constituição de 1934 fora “um documento de compromisso entre o liberalismo e o intervencionismo”, demonstrando influências tanto da ideologia fascista europeia quanto da Constituição de Weimar.

Como fica evidente, em todos os casos os espaços de construção teórica estão localizados nos Estados Unidos e na Europa, não no Brasil, nem mesmo nos marcos históricos de fundação do país. As ideias constitucionais brasileiras não são aproveitadas, nem resgatadas, e muito menos elevadas ao nível de teoria da constituição. A se julgar pelos resultados da pesquisa, parece que não houve, neste país, intelectuais que pensaram em termos constitucionais, ou se existiram, que não merecem figurar como paradigmas.

Todos esses exemplos servem para corroborar o fato de que, por mais que refletissem sobre os problemas nacionais em importantes momentos do país, não são consideradas teorias da constituição as ideias de inúmeros clássicos do constitucionalismo brasileiro. Em consequência, é feita tábua rasa do constitucionalismo nacional, que pode ser encontrado, por exemplo, durante o Império, com as ideias de Joaquim Nabuco ou José Joaquim Carneiro de Campos, o marquês de Caravelas; durante a Primeira República, com as propostas de Alberto Torres, Oliveira Vianna ou Rui Barbosa; ou de Francisco Campos, no Estado Novo. Isso quer dizer que os constitucionalistas contemporâneos não reivindicam a filiação a uma tradição constitucional do próprio país, em níveis teóricos. A linhagem, direta ou indiretamente, é estabelecida com os intelectuais do Atlântico Norte.

Na verdade, nem mesmo há uma tentativa de se esboçar, nas obras analisadas, um confronto entre a produção teórica estrangeira e a nacional. Adotam-se, apenas, os paradigmas supostamente cosmopolitas ou universais. De fato, os resultados da pesquisa quanto à teoria constitucional apontam para um ponto de convergência até recentemente dominante nas ciências sociais e na ciência política, como visto na primeira parte deste artigo: a inclinação em copiar as ideias e instituições localizadas no Atlântico Norte. Considerando-se os resultados da pesquisa, isso quer dizer que a tendência dominante entre os juristas brasileiros, ainda na atualidade, consiste em imaginar instituições constitucionais por meio de uma ótica estrangeira, sem a preocupação em resgatar o que já existiu ou deixou de existir em nossa própria trajetória.

Assim, enquanto até a década de 1980 os intelectuais das ciências sociais faziam tábua rasa do conhecimento social brasileiro pretérito, e ao mesmo tempo tomavam como paradigmas teóricos os escritos de Habermas, Althusser e Gramsci, como indica a teoria social de Guerreiro Ramos; os constitucionalistas de hoje parecem seguir o mesmo caminho, ao desconsiderar os clássicos do constitucionalismo brasileiro, e adotar apenas as ideias de Sieyès, Ferdinand Lassalle, Carl Schmitt, etc.

Com efeito, se por um lado, e a partir de uma teoria pós-colonial, como a de Guerreiro Ramos, as pesquisas nas ciências sociais e na ciência política tentam trilhar um caminho de superação do discurso submisso que predomina no país, o mesmo parece não ocorrer quanto ao pensamento constitucional, que ainda aparenta ser orientado por uma lógica eminentemente colonizada quanto ao emprego dos paradigmas constitucionais construídos no mundo moderno, como apontam os resultados desta pesquisa.

Considerações finais

A partir do estudo do imaginário dominante no ensino do fenômeno constitucional, e com o marco teórico das ciências sociais e da ciência política quanto ao estudo do pensamento brasileiro, o trabalho buscou compreender se a lógica constitucional da intelectualidade pátria é pautada por uma lógica colonial. A pesquisa revelou, pela análise de conteúdo das obras mais utilizadas nas disciplinas de direito constitucional dos cursos de graduação selecionados, que: ou não há qualquer capítulo ou parte específica para o estudo do constitucionalismo brasileiro; ou sua análise é extremamente sucinta e descritiva; ou aparece em um contexto histórico, e não é elevado ao nível de teoria constitucional.

Como traço comum, as obras analisadas demonstraram que existe um inequívoco prestígio dos clássicos estrangeiros, de modo que todos os paradigmas relacionados à teoria da constituição são ditados pelos Estados Unidos e pela Europa, principalmente pela França e Alemanha. Aos brasileiros coube, quando muito, apenas a tarefa de comentar a história do constitucionalismo, mas não a de formular teorias da constituição.

Sequer são lembradas, por exemplo, as ideias de Joaquim Nabuco; do marquês de Caravelas; de Alberto Torres; Oliveira Vianna; Rui Barbosa; ou de Azevedo Amaral. Nenhum deles, e nenhum outro, dada a sua condição nacional, aparece como teórico da constituição. Este espaço ainda está reservado, no imaginário da intelectualidade jurídica brasileira, às ideias importadas dos Estados Unidos e da Europa. Nesse passo, a pesquisa mostrou que o pensamento constitucional brasileiro parece ser dominado por uma lógica desde longa data vislumbrada pelas ciências sociais e pela ciência política: a maneira colonial de pensar o país, a tendência ainda hoje irresistível de copiar ideias e instituições consideradas mais modernas, invariavelmente pensadas nos países do Atlântico Norte.

Como também mostraram os resultados da pesquisa, os paradigmas constitucionais pensados naqueles países são empregados de forma direta para explicar o atual estágio do constitucionalismo brasileiro. Não há resgate da história brasileira ou de seus clássicos para entender o fenômeno constitucional no país. Em regra, a explicação do constitucionalismo nacional parece sempre começar do zero. E quando se busca um fundamento histórico ou teórico, a primeira opção é voltar os olhos para os conceitos, teorias e ideias ditadas pelos países “centrais”, onde tudo é considerado mais avançado e moderno, como indica a teoria social de Alberto Guerreiro Ramos sobre o pensamento político e social brasileiro.

Corroborando os resultados da pesquisa, Roberto Mangabeira Unger (2015) destaca que “ o pensamento jurídico brasileiro, em seu conjunto, rendeu-se à onda da racionalização idealizante que prevalece nas culturas jurídicas mais influentes do Atlântico Norte”. A sua crítica ao pensamento constitucional brasileiro confunde-se com a ideia sobre o constitucionalismo que tomou feições no país a partir da promulgação da atual Constituição.

Na verdade, a análise revela um círculo vicioso, pois ao tomar os paradigmas constitucionais dos países centrais como referência para a construção da teoria constitucional, esses mesmos paradigmas são seguramente os adotados pelo pensamento jurídico nos cursos de direito. De fato, os resultados da pesquisa também podem ser lidos por este aspecto, porque os paradigmas abraçados pelos constitucionalistas parecem ser cotidianamente repassados aos estudantes de direito, que ficam presos dentro deste círculo de aprendizado, cujo lema consiste em privilegiar os referenciais teóricos importados. No entanto, é valido lembrar que o objeto da pesquisa consistiu em analisar o pensamento constitucional brasileiro hegemônico, e não eventuais vozes dissonantes, que logicamente ainda figurariam como exceção.

Isto não significa sugerir que se deixe de aceitar teorias estrangeiras, mas apenas mitigar a ideia de que elas sejam verdades absolutas e universais. Significa, nesse passo, apostar na ideia de que as teorias são produções circunstanciais, de forma que também é indispensável a análise dos clássicos constitucionais brasileiros.

Caso fosse estendido o objeto da pesquisa, certamente outras questões poderiam ser formuladas. Por exemplo, por qual razão o movimento de Independência dos Estados Unidos da América é considerado um marco para o constitucionalismo brasileiro, mas a própria Independência do Brasil não o é? E por qual motivo consideram-se paradigmáticas as relações entre democracia e constituição dos escritos do abade Sieyès e não são avaliadas da mesma forma as lições de Joaquim Nabuco ou Alberto Torres? É evidente, a essa altura, que estas são apenas perguntas retóricas que servem para confirmar o resultado da pesquisa quanto ao pensamento constitucional hegemônico no país: colonial e dependente de marcos teóricos estrangeiros, mesmo nos dias atuais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2016
  • Aceito
    09 Fev 2017
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