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Heteronormatividade jurídica e as identidades LGBTI sob suspeita

Legal heteronormativity and the LGBTI identities under suspicion

Resumo

Busca-se explicitar a lógica jurídica heteronormativa que opera como filtro de inteligilidade dos corpos LGBTI, bem como vislumbrar possíveis rearticulações a respeito do dispositivo da sexualidade, das questões de gênero e dos direitos humanos. Tal pesquisa situa-se em um ambiente filosófico que não toma mais como ápice de sua formulação teórica a racionalidade, a liberdade e a autonomia do sujeito, mas que o concebe como fruto de complexas redes de saber-poder que atravessam a realidade, produzindo-a, no quadro desenhado pela biopolítica.

Palavras-chave:
Sexualidade; LGBTI; Biopolítica; Heteronormatividade; Poder

Abstract

This article intends to promote a change of perspective with regard to LGBTI demands, able to explicit the heteronormative order in which those subjects are involved. These reflections relating sexuality, gender and human rights occur in a philosophical ground that does not take the rationality, the freedom and the autonomy of the subject as an origin and culmination of the theoretical reflection, but conceives the subject as a result of biopolitical relations which construct the reality.

Keywords:
Sexuality; LGBTI; Biopolitics; Heteronormativity; Power

Introdução

Tratar a respeito da sexualidade no interior do campo jurídico e tensionar as questões relativas aos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, (trans) 1 1 A utilização da palavra “trans” no decorrer do texto, sempre entre parênteses, se dá devido à compreensão e concordância com Flávia Teixeira (2013 , p. 37), segundo a qual nenhum termo parece dar conta de exprimir a totalidade de experiências de pessoas (trans). Sua utilização nesses moldes busca “questiona[r] a própria estabilidade da categoria” ( TEIXEIRA, 2013 , p. 36). e intersexuais (LGBTI) 2 2 Ao utilizarmos a sigla LGBTI nos referimos às identidades lésbicas, gays, bissexuais, às experiências das transsexualidades, transgeneridades, travestilidades, cross-dressing, entre outros, bem como aos intersexuais. Optamos por não incluir na “dança das letras” ( FACHINNI, 2005 ), a “identidade” queer, que se apresentaria lado a lado a tais grupos, bem como em oposição a eles. Entendemos que esse artifício descaracterizaria a potencialidade de contestação e subversão própria da atitude queer, uma vez que “se queer é visto primariamente como a base para uma nova política de identidade, então também ele necessariamente irá excluir e restringir” ( SPARGO, 2006 , p. 36). é sempre um desafio por inúmeras razões. Primeiro, porque esse conjunto de sujeitos não se organiza como um grupo homogêneo de reivindicações, a despeito de na maioria das vezes ser apresentado como tal. Ao contrário, suas pautas possuem contornos e contextos que lhe são próprios e, portanto, falar em diversidade sexual implica em levar para o interior do direito toda essa diversidade de demandas que possuem, de maneira peculiar, um significado muito pontual dependendo do grupo ao qual se está reportando.

Por outro lado, falar sobre sexualidade e direito evoca um arsenal teórico que pretende a desconstrução dessas redes de controle e normalização dos indivíduos pelos marcadores de sexo/gênero, ao mesmo tempo em que nos confronta com uma realidade de violência sistematizada contra pessoas LGBTI. Situações de discriminação e preconceito, de marginalização, de ódio social e de repúdio institucionalizado convivem com o paradoxo jurídico consistente na proteção pela especificação e esteriotipação dos sujeitos.

Assim, a apreensão do grupo LGBTI como uma minoria a ser protegida pelo direito deve levar em conta essas questões que se pode ilustrar com os seguintes questionamentos: superada a questão da união estável composta por pessoas do mesmo sexo, podem os não-heterossexuais celebrarem casamento? Poderão eles e elas adotarem filhos? Realizar procedimentos de reprodução assistida? Se aceitarmos tais condições, ao tratarmos do direito ao casamento e à adoção, a quem estamos nos dirigindo? Casal de dois homens-cis; duas mulheres-cis; dois homens (trans); uma mulher (trans) e um homem-cis; duas travestis; uma travesti solteira; etc?

Além do conjunto de direitos que gravitam em torno do ambiente das relações de afeto, importante se faz denunciar as práticas sistematizadas de violência levadas a cabo tanto pelos indivíduos como pelo próprio Estado. Assim, no primeiro capítulo, Não ao sexo rei: as realidades LGBTI numa ordem heteronormativa, abordaremos algumas questões a respeito do enquadramento jurídico das demandas da população LGBTI na atualidade. Busca-se com isso problematizar a compreensão das relações de força que estão em jogo quando se discute a efetividade e (in)eficácia dos direitos ora discutidos, a fim de que se possa promover um deslocamento do olhar no tocante ao debate envolvendo gênero e diversidade sexual, sobretudo no campo do direito.

Posteriormente, partindo da compreensão de que a ordem jurídica vigente se pauta por uma lógica heteronormativa, bem como do arcabouço teórico de Michel Foucault, perseguiremos uma arqueogenealogia do sexo a fim de verificar o solo de emergência da sexualidade enquanto modelo regulatório de condutas e ações na contemporaneidade, concebendo-a como dispositivo de normalização dos corpos e das populações (FOUCAULT, 2011 ______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011. ).

Desse modo, pretende-se a seguir traçar um panorama a respeito do tema a partir de algumas perspectivas dos direitos humanos, cuja racionalidade se organiza por princípios de resistência capazes de abrir espaços de luta pela dignidade humana, estabelecendo, na sequência, um diálogo com outros autores, tais como Michel Foucault, cujas idéias, em um primeiro momento, parecem conflitar com aquelas conflitar. Alerta-se, de antemão, que não se busca apontar para uma solução de tal controvérsia, senão apresentar o atual cenário no que diz respeito ao arcabouço teórico-filosófico, às demandas jurídicas, bem como à realidade social da população LGBTI.

1. NÃO AO SEXO REI: as realidades LGBTI numa ordem heteronormativa

Característica da nossa contemporaneidade, a luta pelo reconhecimento de direitos LGBTI representa hoje um dos maiores desafios à ordem jurídica. Tais indivíduos estão atravessados por uma simbologia expressada em suas identidades tidas como pecadoras, criminosas, abjetas, sujas, monstruosas, as quais, por sua simples manifestação, atentam contra uma certa regularidade no jogo das identidades, de modo que os seus direitos estão desde sempre implicados nessa relação de transgressão da ordem, seja ela ética, política, moral e, também, jurídica.

Não que atualmente vigore um sistema de silenciamento, supressão e interdição dessas identidades de forma total e maciça, mecanismos típicos de um tipo de poder que Michel Foucault denominou por jurídico-soberano (FOUCAULT, 2011 ______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011. ). Esse modo de exercício do poder que predominou até meados do século XVIII deu lugar a novas técnicas e táticas de sujeição, cujos efeitos não se expressam mais em termos de um estabelecimento de contornos negativos da liberdade, ou mesmo na sua supressão total, mas que atuam pela constante e intensa fabricação de corpos e comportamentos desejados ( FOUCAULT, 2008 FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008. ; 2010 ______. Michel. Em defesa da sociedade. curso no Collège de France (1975-1976). (Tradução de Maria Emantina Galvão). – 2ª. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. ). Por meio da perspectiva foucaultiana, o que vemos funcionar a partir do final do século XVIII até os dias atuais é totalmente diverso, o que será explorado com mais precisão posteriormente.

No plano nacional, inúmeras foram as conquistas alcançadas pela população LGBTI nos últimos anos, mas tal trajetória mostra-se marcada por avanços cujo perigo de retrocesso está sempre iminente.

A despeito do atraso, em 1993 a Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou de classificar a homossexualidade como “Desvios e Transtorno Sexuais” no Código Internacional de Doenças (CID), removendo-a de tal lista, mas realocando-a no capítulo de “Sintomas Decorrentes de Circunstâncias Psicossociais”. Sua eliminação definitiva do código de doenças só aconteceu, no entanto, em 1995, sobre o que, inclusive, há atualmente inúmeros influxos por parte de bancadas fundamentalistas na Câmara dos Deputados para que se implemente em nível nacional um projeto de coordenadas para a “Cura Gay”.

Em maio de 2011, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4277-DF conjugada com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 132-RJ, o Supremo Tribunal Federal se posicionou pela proibição de discriminação, alargando a interpretação do dispositivo legal que apenas possibilitava a união estável entre “homens e mulheres”, ao reconhecer que a manifestação da sexualidade é integrante da autonomia individual de cada pessoa, fator este tutelado constitucionalmente no plano da intimidade e da vida privada. Foi do entendimento da Corte brasileira que a norma elencada na Constituição Federal, ao ser interpretada sistematicamente, não pode ser aplicada de forma tão reducionista tendo em vista a proibição do preconceito como capítulo do constitucionalismo fraternal (PIOVESAN; SILVA, 2015 PIOVENSAN, Flávia; SILVA, Sandro Gorski. Diversidade sexual e o contexto global: desafios à plena implementação dos direitos humanos LGBTI. Quaestio Iuris. Rio de Janeiro, vol. 08, n. 4, Número Especial, p. 2213-2650, 2015. , p. 2637).

Como se tratava apenas de reconhecimento de união estável, vários casais não puderam celebrar casamento diante das negativas a tal direito, vindas inclusive do Judiciário. Posteriormente, em julgamento cujos efeitos restringiam-se apenas às partes do processo, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu o direito à conversão da união estável em casamento. Com fundamento nessa decisão, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução n. 175, garantindo a vedação da recusa de habilitação para o casamento de casais formados por pessoas do mesmo sexo.

Importa destacar o Partido Social Cristão se insurgiu contra a resolução do CNJ por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade, autuada sob o número 4.966 e ajuizada em 7 de junho de 2013, de modo que o Supremo Tribunal Federal terá oportunidade de manifestar-se sobre a incidência do art. 226, § 3º da Constituição sobre qualquer união estável, independendo para tanto do sexo biológico, da identidade de gênero ou da orientação sexual dos indivíduos que compõem tal arranjo familiar.

Em recente decisão (Recurso Especial n. 1.540.814-PR), o Superior Tribunal de Justiça reiterou o entendimento da Corte sobre a adoção por casais formados por pessoas do mesmo sexo, todavia, tal decisão não possui efeitos vinculantes, de modo que não obriga os demais órgãos jurisdicionais do país ao reconhecimento do direito de adoção por parte desses indivíduos.

Mais recentemente, em 1º de março de 2018, o Supremo Tribunal Federal na ADIN 4275/DF decidiu, por unanimidade, o direito de pessoas (trans) alterarem o nome e o designativo de sexo no registro civil, sem a necessidade de se submeterem à cirurgia, bem como dispensando decisão judicial.

Há, ainda, atualmente, intensa discussão a respeito do direito de crianças intersexuais não terem o seu “sexo biológico” determinado por uma comissão médica, sendo obrigada a passar por procedimento cirúrgico poucos dias depois do seu nascimento, ou de sofrer processo quirúrgico até idade determinada pelos critérios da medicina. A contrariedade à obrigatoriedade de intervenção cirúrgica/quirúrgica nos corpos intersexos busca enfatizar que, para tais procedimentos, existe um único modo “correto” de se relacionar com o gênero bem como com o desejo, e esse modelo é “determinado” pela coerência exigida pelo órgão genital, ou seja, se pênis, comportamento dito masculino e desejo por mulheres; se vagina, condutas consideradas como femininas e desejo dirigido aos homens – movimento elucidado por Butler, em Problemas de Gênero, de construção do sexo biológico pelo gênero em sua atuação performativa ( BUTLER, 2016 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. ), e não o contrário.

O espectro jurídico acima revela um cenário de uma ampla tendência de judicialização das agendas LGBTI, reflexo de um bloqueio institucional perpetrado por outras esferas do Estado que se mostram, quando não indiferentes, hostis com as reivindicações dos movimentos sociais. Situação atualmente ilustrada a partir das inúmeras ofensivas executadas por setores mais conservadores e fundamentalistas existentes na cena política nacional, os quais, não satisfeitos com a situação anterior, caracterizada pela omissão sistemática de discussão de questões de gênero e sexualidade nas escolas, passaram a aprovar projetos de lei municipais que proíbem professoras e professores de utilizarem qualquer material didático ou paradidático cujo conteúdo possa suscitar manifestação da “ideologia de gênero” 3 3 Termo utilizado de modo pejorativo com vistas a deslegitimar todos os avanços e conquistas obtidos no campo das discussões a respeito de gênero, sexualidade e diversidade, bem como na busca de uma sociedade mais justa e igualitária, pautada no respeito pela pluralidade de expressão e manifestação dos afetos. .

Por outro lado, há que se considerar que a litigância junto ao judiciário na busca pela concretização desses direitos tem seus riscos. Não obstante a legitimidade das decisões judiciais e o desafio inarredável do papel contramajoritário do judiciário em um Estado Democrático de Direito, não existe qualquer garantia de que seu posicionamento se perpetuará no tempo de maneira condizente com o respeito à diversidade, às pautas progressistas e à proteção de indivíduos marginalizados, sobretudo quando lhe são apresentadas em juízo demandas LGBTI, as quais têm o condão de carregar para o interior do campo jurídico o peso da carga moral que recai sobre esses sujeitos.

Se empreendêssemos em uma análise de cunho jurídico sobre as demandas LGBTI, isto é, se partíssemos em busca dos fundamentos e dos princípios que subjazem em tais pretensões, verificaríamos que se tratam, sem qualquer ressalva, de direitos cuja garantia se dá prima facie quando se trata de indivíduos heterossexuais (sem aqui mencionar os recortes de classe e etnia). Ora, na base de todas as demandas encontra-se o princípio da dignidade da pessoa humana, capaz de lançar luz e orientar todos os desdobramentos que se verificam nos diversos pedidos levados ao judiciário. Ademais, todas as pretensões estão amarradas por um fio de caráter principiológico que, não fosse a categoria de sujeitos considerados partes no processo, seria desde já determinada a sua aplicabilidade. Fala-se aqui dos direitos fundamentais à igualdade, à liberdade, à privacidade e ao princípio de não-discriminação.

O quadro acima nos mostra que a efetividade dos direitos e garantias considerados fundamentais pelo ordenamento jurídico brasileiro, cuja fundamentação se radica na dignidade da pessoa humana, está condicionada ao tipo de pessoa que se apresenta diante de tal direito. Se essa categoria de direitos fundamentais possui aplicabilidade imediata conforme comando constitucional, se a sua proteção e garantia estão previstas em âmbito internacional alçados à categoria de direitos humanos e, se, contudo, sua eficácia e efetividade se restringem apenas a um grupo muito estreito de indivíduos, cujo marcador comum, nesse caso específico, é a sexualidade, ou melhor, a heterossexualidade, infere-se que estamos diante de um ordenamento jurídico heteronormativo 4 4 Termo cunhado em 1991 por Michael Warner (2007) cuja análise buscava desestruturar a binariedade hetero/homossexualidade, explicando não se tratar de verdadeira oposição, senão de um sistema interdependente que procura reinserir e reinscrever incessantemente uma hierarquia que estabelece como privilégio a ordem heterossexual e despreza e subordina sujeitos homossexuais. .

2. NÃO À SEXUALIDADE: os corpos entre a norma e a negação de direitos

Se, como visto, sexualidade e direito se inter-relacionam a partir de categorias morais, e que essa moralidade tida como norteadora das identidades jurídicas pauta-se numa lógica heteronormativa, cumpre explorar que normatividade é esta capaz de separar no interior do fenômeno jurídico sujeitos portadores de direitos de outros, cujos lugares ocupados se situam nas margens. Para tanto, necessário neste momento recorrer ao arcabouço teórico sobre o qual se assenta a arqueogeneaologia do sexo realizada por Michel Foucault.

No primeiro volume de sua História da Sexualidade, o pensador francês afasta a corrente ideia de que sobre o sexo fora imposto um aparato de interdição e mutismos, mostrando que a partir do século XVIII houve, ao revés, uma solicitação persistente e contínua de que se pusesse o sexo em discurso. O filósofo demarca que “o discurso sobre o sexo, já há três séculos, tem-se multiplicado em vez de rarefeito; e que, se trouxe consigo interditos e proibições, ele garantiu mais fundamentalmente a solidificação e a implantação de todo um despropósito sexual” (FOUCAULT, 2011 ______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011. , p. 61).

Historicamente, Foucault nos aponta que esse movimento de “colocação do sexo em discurso” iniciara-se já numa tradição ascética e monástica, e que, posteriormente, no século XVII a pastoral cristã a inscreveu como um dever fundamental a todos. “Coloca-se um imperativo: não somente confessar os atos contrários à lei, mas procurar fazer de seu desejo, de todo o seu desejo, um discurso” (FOUCAULT, 2011 ______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011. , ps. 26-27). Por meio da confissão, perscrutaram-se os desejos mais íntimos dos corpos e se incutiu naquele que confessa a atenção contumaz a seu sexo.

Por volta do século XVIII, há uma exigência de que tais discursividades se desloquem para o campo da política, da economia e da técnica. O sexo passa então à condição de administração pública, instaurando-se o que o genealogista denominou por “polícia do sexo”. Por tal termo Foucault quer apontar a “necessidade de regular o sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição” (FOUCAULT, 2011 ______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011. , p. 31). Com efeito, a partir do século XVIII e XIX outros focos passam a suscitá-lo, e o sexo é inscrito como interesse da demografia, da biologia, da medicina, da psiquiatria, da psicologia, da moral e da crítica política (FOUCAULT, 2011 ______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011. , p. 40).

É justamente nesse movimento de incitação e materialização dos discursos sobre o sexo sob as grelhas interpretativas daqueles campos de saber que Foucault sinaliza para a emergência de uma scientia sexualis que passou a atuar por meio de uma “incorporação das perversões” e da “especificação dos indivíduos” (FOUCAULT, 2011 ______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011. , p. 50). O século XIX marca o nascimento do personagem do homossexual que deixa de ser enxergado na prática da sodomia e passa a constituir uma “espécie de androgenia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie” (FOUCAULT, 2011 ______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011. , P. 51). E Foucault continua,

Como são espécies todos esses pequenos perversos que os psiquiatras do século XIX entomologizam atribuindo-lhes estranhos nomes de batismo: há os exibicionistas de Laségue, os fetichistas de Binet, os zoófilos e zooerastas de Krafft-Ebbing, os automonossexualistas de Rohleder; haverá os mixoscopófilos, os ginecomastos, os presbiófilos, os invertidos sexoestéticos e as mulheres disperêunicas (FOUCAULT, 2011 ______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011. , p. 51).

Com isso Foucault pretende demonstrar o solo arqueológico bem como as técnicas de produção investidas sobre o sexo que possibilitaram a emergência da sexualidade enquanto fenômeno a ser regulado por uma ciência sexual, cujas práticas de normalização se situam em todos esses campos de saber entrelaçados, isto é, nas configurações discursivas. Verifica-se a emergência de uma taxionomia sexual consistente na fabricação de subjetividades forjadas a partir desse complexo de poder-saber, que se organizou sobre o sexo e que possibilitou o surgimento das perversões sexuais, apenas consideradas como tais se colocadas em relação a uma norma muito precisa.

Muito embora o termo heteronormatividade não tenha sido cunhado por Foucault, à compreensão do seu modo de operação como filtro de separação e classificação dos indivíduos nos espaços sociais e, por consequência, no âmbito dos direitos, é imprescindível a analítica do poder realizada pelo autor na medida em que, intrinsecamente a tal empreendimento teórico, vê-se articular os conceitos de poder e norma.

Já é celebre o seu entendimento a respeito do poder, contrapondo-se a vertentes teóricas até então predominantes, ao afirmar que as relações com o poder não se dão de maneira potestativa e contratual, isto é, que o poder não se detém, tampouco seja algo do qual se possa dispor e que, nesse sentido, a proposição de um poder do tipo leviatânico não faria mais sentido. Também não se trata de uma relação cuja ideologia fosse capaz de embaralhar os seus verdadeiros contornos e que, ao nos livrarmos desse véu de ignorância, poderíamos tomar o poder pelas mãos e instaurar novos tipos de relações.

Quando Michel Foucault sinaliza para a emergência de um outro tipo de poder a partir do século XVIII, cuja atuação se distinguia do poder técnico-jurídico anterior, ele está justamente apontando para essa nova configuração estratégica que deixa de operar interditando e excluindo os corpos (como no caso dos mecanismos de atuação sobre a lepra), em oposição ao que ele veio denominar de poder normalizador, o qual se ramifica em práticas disciplinares e, posteriormente, na tecnologia biopolítica (como na estratégia disciplinar de combate à peste, diferente da atuação biopolítica de controle da varíola). Desse modo, ao tratar do fenômeno do poder, Foucault não está teorizando a respeito de um objeto natural e a-histórico, por isso não se falar em uma teoria do poder em seu pensamento, mas sim em termos de uma analítica. ( FOUCAULT, 2008 FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008. , ps. 13-16).

São nos chamados textos da analítica do poder que o tema da norma ganha maior densidade teórica, tendo em vista que Foucault passa a explorar com maior precisão os mecanismos de poder imbricados na constituição das positividades (VEYNE, 2014), isto é, dos objetos e dos sujeitos de determinados campos de saber. Segundo Fonseca (2014 FONSECA, Márcio Alves. Foucault e o Direito. São Paulo: Max Lemonad, 2002. , p. 62), não se trata, portanto, de uma norma que serviria de princípio de distribuição entre os campos do normal e do anormal, mas das próprias técnicas e estratégias de constituição e fabricação do que será considerado como normal e anormal. “A norma se desubstantiva e se torna verbo” (FONSECA, 2014 FONSECA, Márcio Alves. Foucault e o Direito. São Paulo: Max Lemonad, 2002. , p. 62).

Vê-se, então, que o sentido de norma no pensamento de Michel Foucault em nada se assemelha às concepções jurídicas de norma. Segundo Macherey (1989) MACHEREY, Pierre. Pour une histoire naturelle des normes. In: Rencontre international , Michel Foucault philosophe, 9-11, jan. 1988, Paris. Anais… Paris: Éd. Du Seuil, 1989, p. 203-221. , a norma não é vista como vetor de separação entre condutas tidas como lícitas e ilícitas, mas antes, diz respeito a este movimento de produção do que viria a ser considerado normal e, por conseguinte, o anormal. Aliás, é desse movimento de construção que a própria norma emerge. Eis o sentido da tese de imanência da norma: não se pode pensá-la como exterior ao seu domínio de aplicação, e isto não apenas devido ao seu caráter produtivo desse domínio, mas sobretudo porque ao produzir o seu campo de atuação, ela produz a si mesma.

Neste movimento, o surgimento de determinada norma implica na invenção de uma categoria de corpos, sujeitos, condutas e formas de vida anormais em referência a uma normalidade, residindo nisto a essência relacional da norma: o par normal-anormal que não se confrontam em termos de contradição nem de exterioridade mas de inversão e polaridade. Segundo Vera Portocarrero (2004 PORTOCARRERO, Vera. Normalização e invenção: um uso do pensamento de Michel Foucault. In: Michel Foucault: entre o murmúrio e a palavra. Tereza Cristina Barreto Calomeni (Org.) – Editora Faculdade de Direito de Campos: Rio de Janeiro, 2004, p. 133-187. , p. 144) “[...] a definição do anormal é posterior à da norma, pois é a negação lógica do normal. Contudo, é a anterioridade histórica do futuro anormal que suscita a intenção normativa”.

Com efeito, ao qualificar negativamente tudo aquilo a que proíbe, a existência da norma só faz sentido nessa pretensão de unificação do diverso, isto é, a norma não tem nenhum sentido se considerada isoladamente. Desse modo, a criação de corpos anormais requer, em concomitância, a invenção de uma norma que só poderá efetivar-se em seus mecanismos de normalização se e somente quando tiver um conjunto de anormalidades ao qual se reportar. Em síntese, a norma funciona como “expressão de uma preferência e instrumento de uma vontade de substituição de um estado preferível de coisas ao qual se tem aversão por um outro considerado preferível” ( PORTOCARRERO, 2004 PORTOCARRERO, Vera. Normalização e invenção: um uso do pensamento de Michel Foucault. In: Michel Foucault: entre o murmúrio e a palavra. Tereza Cristina Barreto Calomeni (Org.) – Editora Faculdade de Direito de Campos: Rio de Janeiro, 2004, p. 133-187. , p. 145).

Diante da multiplicidade de corpos distribuídos no tecido social cuja expressão são as mais diversas possíveis, as práticas sociais podem engendrar saberes que, juntos, são capazes de estabelecer uma norma e a partir dela suas derivações. No corte estabelecido pela sexualidade, a conjuntura sobre a qual se assenta nossa sociedade é caracterizada por uma norma que eleva a heterossexualidade à condição de superioridade, abaixo e distante da qual restam sob o manto de anormalidade todo tipo de conduta tida como infringente à regra. Trata-se dos efeitos da matriz heterossexual ( BUTLER, 2016 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. ).

O procedimento de construção dessa matriz heterossexual moderna deixa transparecer as técnicas e as práticas de produção e conformação dos próprios sujeitos enquanto frutos de uma íntima relação com o sexo. Isto é, a categoria sujeito está intimamente ligada à categoria sexo, tratando-se de uma espiral impulsionada pelo dispositivo da sexualidade, em que a criação contínua de sujeitos abjetos (BUTLER, 2011 ______. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. London and New York: Routledge, 2011. ) serve à reprodução e reafirmação da conduta considerada correta. Nesse sentido,

O modelo discursivo/epistemológico hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume que, para os corpos serem coerentes e fazerem sentido (masculino expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um sexo estável, expresso por um gênero estável, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade ( BUTLER, 2016 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. , p. 52).

Vislumbra-se, desse modo, que tanto a disciplina como a biopolítica operam segundo mecanismos e práticas de normalização, visando uma certa estabilidade sexual, seja através da vigilância, esquadrinhamento, análise e classificação dos corpos individuais, seja por meio dos cálculos e regulação de uma certa naturalidade dos conjuntos populacionais, respectivamente.

O interessante a ressaltar, e aqui se localiza o ponto fulcral do nosso trabalho, é que, muito embora possam atuar de maneira separada, e na maioria das vezes assim o fazem, as técnicas disciplinares e as práticas biopolíticas possuem como ponto de articulação, isto é, se tocam precisamente na interconexão realizada pelo dispositivo da sexualidade 5 5 Foi em uma entrevista a respeito do recém-lançado livro História da Sexualidade, que Foucault demarca o sentido e a função metodológica do termo dispositivo, que aqui merece transcrição: “Por esse termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que pode existir entre esses elementos heterogêneos. Sendo assim, tal discurso pode aparecer como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação dessa prática, dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma, entre esses elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes. Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que, em determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante. Esse foi o caso, por exemplo, da absorção de uma massa de população flutuante que uma economia de tipo essencialmente mercantilista achava incômoda: existe aí um imperativo estratégico funcionando como matriz de um dispositivo, que pouco a pouco tornou-se o dispositivo de controle-dominação da loucura, da doença mental, da neurose”. (FOUCAULT, 2012, ps. 364-365) ( CASTRO, 2011 CASTRO, Edgard. El gobierno de la vida. In: CASTRO, Edgard. Lecturas foucaulteanas: una historia conceptual de la biopolitica. 1ª ed. – Buenos Aires: Editoral Universitaria, 2011, ps. 39-68. , p. 52). O dispositivo da sexualidade tem, como razão de ser, não o reproduzir, mas o proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada vez mais detalhada e controlar as populações de modo cada vez mais global”, explica Foucault (2011 ______. História da sexualidade – Vol. I: A vontade de saber. (Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque). Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011. , p. 118).

Segundo Louro (2009 LOURO, G. L. Foucault e os estudos queer. In: RAGO, M.; VEIGA-NETO, R. Para uma vida não fascista. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 135-142. , p. 136),

o dispositivo da sexualidade vinha sendo construído pelos discursos da igreja, da psiquiatria, da sexologia, do direito, desde finais do século XIX. Tais discursos produziram classificações, dividiram indivíduos e práticas, criaram “espécies” e “tipos” e, simultaneamente, modos de controlar a sexualidade. Produziram sujeitos e corpos ou, para usar a contundência de Judith Butler, se constituíram (e continuam se constituindo) em discursos que “habitam os corpos”.

A analítica do poder pressupõe, desse modo, que se lhe apreenda a partir de sua face externa, isto é, através do ponto exato no qual se pode verificar a sua relação direta e imediata com o que se pode denominar, sempre de forma provisória e precária, seu objeto (FOUCAULT, 2010 ______. Michel. Em defesa da sociedade. curso no Collège de France (1975-1976). (Tradução de Maria Emantina Galvão). – 2ª. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. , p. 25). Nas estratégias em jogo colocadas pelo dispositivo da sexualidade, a normação disciplinar atua mediante práticas em direção a “essa multiplicidade [que] pode e deve redundar em corpos individuais e [que] devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos” (FOUCAULT, 2010 ______. Michel. Em defesa da sociedade. curso no Collège de France (1975-1976). (Tradução de Maria Emantina Galvão). – 2ª. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. , p. 204).

Na sociedade de tipo disciplinar, a fabricação dos corpos se dá num contínuo controle empregado por entre e sobre os indivíduos, controle exercido no nível da anatomopolítica dos corpos, mas cujos efeitos se realizam no constrangimento de suas próprias virtualidades. Operacionalidade do poder que atua com vistas ao assujeitamento dos corpos a partir de uma normalidade sexual; normação, portanto, em que a norma se apresenta nos corpos cujos comportamentos, desejos, afetos, condutas, trejeitos e, portanto, cujo modo de vida é a heterossexualidade.

Sendo a ordem do direito pautada pela lógica da heteronormatividade, quanto menor a distância entre os corpos tido como perversos sexuais e a norma, mais normais eles serão considerados, e, nesse sentido, maiores condições de acesso aos direitos lhe serão apresentadas. Vale dizer, as chances de um casal cis-lésbico adotar uma criança são diferentes de um casal formado por homem cis e homem (trans), ou mesmo de uma travesti solteira. Isto é, a judicialização da pluralidade de formas de vida possíveis, compostas por sujeitos lidos a partir da ótica do dispositivo da sexualidade, os elevam à categoria de sujeitos portadores de direitos na mesma medida em que os normalizam. Com efeito, colocar em visibilidade, isto é, trazer os corpos à positividade do real e para o interior do campo jurídico, significa integrá-los e assimilá-los no círculo desse padrão de normalidade heterossexual.

Enquanto a disciplina cuida do poder que se realiza em direção ao corpo, a biopolítica é o cálculo do poder que se faz sobre um determinado conjunto de processos biológicos da vida humana considerados como “naturais”, ou seja, dos processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade, das taxas de reprodução e fecundidade, das questões previdenciárias, enfim, em virtude de todas essas questões relacionadas a um complexo de saber-poder que fez emergir esse fenômeno do século XVIII denominado por população: junto à individuação dos corpos, entra em cena a massificação do corpo-espécie (FOUCAULT, 2010 ______. Michel. Em defesa da sociedade. curso no Collège de France (1975-1976). (Tradução de Maria Emantina Galvão). – 2ª. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. , p. 204).

Nesse agrupamento populacional apreendido pelos seus significados biológicos e que, desse modo, representam um fortalecimento ou degradação da própria força do Estado, são traçadas curvas de normalidade em razão de determinados fenômenos, isolando casos, medindo riscos, prevendo perigos dessa multiplicidade dos processos tidos como naturais que devem ser submetidos a esse cálculo de regulação biopolítica ( FOUCAULT, 2008 FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008. , ps. 75-78). Torna-se proeminente a partir de então o funcionamento de mecanismos de segurança no entorno da população, isto é, sobre os fatores e os aspectos que tomam o homem enquanto ser vivo, enquanto homem-espécie (FOUCAULT, 2010 ______. Michel. Em defesa da sociedade. curso no Collège de France (1975-1976). (Tradução de Maria Emantina Galvão). – 2ª. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. , p. 204). Segundo Michel Foucault, “é uma tecnologia que visa portanto não o treinamento individual, mas, pelo equilíbrio global, tal como uma homeostase: a segurança do conjunto em relação aos perigos internos” (FOUCAULT, 2010 ______. Michel. Em defesa da sociedade. curso no Collège de France (1975-1976). (Tradução de Maria Emantina Galvão). – 2ª. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. , p. 209).

Por se tratarem de práticas de gestão e regulamentação sobre a vida, ou melhor, sobre os processos orgânicos que fazem a população ser tomada como corpo-espécie, a conjugação dos mecanismos de segurança ao dispositivo da sexualidade se dá exatamente no ponto em que se estabelece um conjunto de práticas que buscam a estabilização dessas curvas tendo como referencial ótimo, em sua grande maioria, um padrão heteressosexual.

Ora, se se trata de gerir a população, qualquer forma de vida tomada no seu sentido biológico, que atente à manutenção, salvaguarda e proliferação da vida nesses termos, cai nas malhas da anormalidade. Daí surgirem políticas públicas de saúde cujo mote é o combate a doenças sexualmente transmissíveis direcionadas especificamente a não-heterossexuais, a impossibilidade de não-heterossexuais poderem doar sangue, etc., resquícios do núcleo sobre o qual se desenvolveu a scientia sexualis no século XIX, qual seja, o conjunto perversão-hereditariedade-degenerescência.

O conjunto perversão-hereditariedade-degenerescência constituiu o núcleo sólido das novas tecnologias do sexo. E não se imagine que se tratava apenas, de uma teoria médica cientificamente insuficiente e abusivamente moralizadora. Sua superfície de dispersão foi ampla e profunda a sua implantação. A psiquiatria, mais a jurisprudência, a medicina legal, as instâncias do controle social, a vigilância das crianças perigosas, ou em perigo, funcionaram durante muito tempo “pela degenerescência”, pelo sistema hereditariedade-perversão. Toda uma prática social, cuja forma ao mesmo tempo exagerada e coerente foi o racismo de Estado, deu a essa tecnologia do sexo um poder temível e longínquos efeitos (FOUCAULT, 2011 CASTRO, Edgard. El gobierno de la vida. In: CASTRO, Edgard. Lecturas foucaulteanas: una historia conceptual de la biopolitica. 1ª ed. – Buenos Aires: Editoral Universitaria, 2011, ps. 39-68. , p. 130).

Posteriormente, no curso Segurança, Território, População ¸ Foucault alarga o conceito de população para compreendê-lo, ainda como corpo-espécie, regulado e regulamentado em seus processos orgânicos, mas que se integra a algo que extrapola os limites traçados pela especificidade orgânica e a coloca também no patamar do interesse, ou melhor, do interesse público. Do mesmo modo que se pode atuar no entorno dessa naturalidade populacional, é possível ao poder que se articule em um outro nível que se dá, também em termos de naturalidade, agora considerada a partir da universalidade do desejo ( FOUCAULT, 2008 FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008. , ps. 96-98). “Produção do interesse coletivo pelo jogo do desejo: é o que marca ao mesmo tempo a naturalidade da população e a artificialidade possível dos meios criados para geri-la” ( FOUCAULT, 2008 FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008. , p. 95).

A população é portanto, de um lado, a espécie humana e, de outro, o que se chama de público. Aqui também a palavra não é nova, mas seu uso sim. O público, noção capital no século XVIII, é a população considerada do ponto de vista das opiniões, das suas maneiras de fazer, dos seus comportamentos, dos seus hábitos, dos seus temores, dos seus preconceitos, das suas exigências, é aquilo sobre o que se age por meio da educação, das campanhas, dos convencimentos. A população é portanto tudo o que vai se estender do arraigamento biológico pela espécie à superfície de contato oferecida pelo público ( FOUCAULT, 2008 FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso no Collège de France (1976). (Tradução de Eduardo Brandão) – 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008. , ps. 98-99).

Ora, não é preciso muito esforço para adentrar na frequência operada pelos mecanismos de segurança que se dão na esfera pública a respeito da normalização populacional por meio do jogo dos interesses. Projetos de lei propondo a Cura Gay, a estigmatização de travestis, transgêneros e transexuais, a recente criação da expressão “Ideologia de Gênero” por meio da qual se pretende deslegitimar todos os avanços e conquistas que se deram no campo social a respeito de discussões envolvendo gênero, sexualidade e diversidade nas escolas, o modo como é retratada a população LGBTI em grande parte dos produtos culturais, etc. Tais arranjos se dão no interior de um jogo de táticas que se direcionam à formatação de uma noção de homossexualidade atrelada a manifestações perversas do desejo, bem como à construção fabulosa de uma heterossexualidade natural, segundo os comandos da qual serão conduzidas as condutas das pessoas dentro das práticas biopolíticas.

Com efeito, falar em sexualidade a partir do pensamento de Michel Foucault requer um abandono de uma idealidade abstrata, fixa e universal, cujas derivações (como por exemplo, heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade, transexualidade, pansexualidade, etc.) poderiam ser atingidas por intermédio da razão, tampouco traduz uma representação mais ou menos confundida pela ideologia, cuja repressão seria o seu aspecto primordial. A sexualidade, enquanto dispositivo localizado nessa rede de poder, pressupõe que se lhe encare como um correlato de uma prática discursiva maciça desenvolvida em torno do sexo a partir do século XIX. Sexualidade, nesse sentido, figuraria como um anteparo construído e que fosse capaz de corresponder “[à]s exigências funcionais do discurso que deve produzir sua verdade” (FOUCAULT, 2011 CASTRO, Edgard. El gobierno de la vida. In: CASTRO, Edgard. Lecturas foucaulteanas: una historia conceptual de la biopolitica. 1ª ed. – Buenos Aires: Editoral Universitaria, 2011, ps. 39-68. , p. 78).

Não sendo abstrata, a sexualidade como dispositivo só faz sentido se analisada a partir do seu jogo com o real que se estabelece num espaço e num tempo muito preciso, com corpos individuais delimitados e/ou grupos populacionais recortados, sob pena deixar escapar o que o conceito de dispositivo possibilita: a singularidade e a raridade do real. Por isso a advertência inicial de que tratar de direitos LGBTI implica em nunca perder de vista o caráter singular que envolve cada grupo envolvido, na medida em que o corte realizado pela sexualidade é sempre transversal a outros cortes, como os de raça e classe, por exemplo, mas que também se desdobra seccionando-se a si mesmo em diversos pontos (o que torna possível falar em pessoas bissexuais, homossexuais, heterossexuais etc.), o que uma análise superficial deixa passar por despercebido.

É precisamente nessa rede que se estabelece entre os documentos legais, os laudos médicos, os ritos religiosos, as proposições filosóficas, morais, antropológicas e científicas em torno do sexo que se pode vislumbrar o entrecruzamento demarcado pelo biopoder, isto é, a articulação entre as técnicas disciplinares e os mecanismos biopolíticos. Significa dizer que a construção da sexualidade e, portanto, dos corpos individuais e do corpo-espécie como corpos sexuados consiste numa fabricação de indivíduos e populações normalizados em razão de seus desejos, comportamentos, condutas e práticas sexuais. Essas reflexões, como se nota, mostram que, logo onde se pensava encontrar um espaço de liberdade, mínima que fosse, vislumbra-se um terreno também enredado e imbricado nas amarras do poder em relação ao qual nenhuma privacidade foi capaz de barrar seus efeitos.

Vê-se, assim, que as discussões a respeito da sexualidade sob o viés do biopoder nos levam necessariamente ao ambiente demarcado pela norma. Sendo o seu caráter de normalização do tecido social, é através da instituição de uma norma que ele – o biopoder - se institui a si mesmo, ao mesmo tempo em que constrói uma divisão entre um corpo cuja anatomia, forma, gestos, estética, processos biológicos, condutas e práticas será considerado como regra e, desse modo, norma, em relação todos os outros, os quais, ao se desviarem desses padrões normativos cairão nas malhas da anormalidade (FOUCAULT, 2010 ______. Michel. Em defesa da sociedade. curso no Collège de France (1975-1976). (Tradução de Maria Emantina Galvão). – 2ª. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. , ps. 203-205).

Nesse contexto, tanto pela “normação” disciplinar como através da “normalização” biopolítica, os direitos LGBTI irradiam-se em um contexto de vigilância, controle e regulação, cuja norma erigida como individualidade adequada ou “curva de normalidade” geral centram-se em um conjunto de práticas e vivências heterossexuais, ou seja, em uma heteronormatividade. Nesse sentido, Miskolci afirma que a ordem social

expressa as expectativas, as demandas e as obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como natural e, portanto, fundamento da sociedade. Muito mais que o aperçu de que as relações com pessoas do mesmo sexo são compulsórias, a heterormatividade sublinha um conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle até mesmo daqueles que se relacionam com pessoas do mesmo sexo (MISKOLCI, 2009 MILSKOLCI, Richard. A teoria queer e a sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Sociologias. Porto Alegre, Dossiê, ano 11, nº 21, p. 150-182, jan./jun. 2009. , ps. 156-157).

Diante da multiplicidade das formas de vida possíveis, da infinidade dos caminhos do desejo, das diversas possibilidades estéticas de se relacionar com o gênero, da pluralidade sexual no tecido social, todo um conjunto de técnicas de poder e enunciados de saber se emaranham ao ponto de estabelecerem no real uma norma cuja positividade encontraria concretude na figura da heterossexualidade. Assim, traça-se uma régua de normalização a partir da qual se pode estabelecer níveis de normalidade dos corpos e das populações. Quanto mais próximos aos padrões heterossexuais esperados, maior o grau de normalidade, ao passo que, quanto mais distante, maior o grau de anormalidade.

Dessas reflexões é possível inferir que no conjunto composto pelos anormais – gays, lésbicas, bissexuais, intersexuais, transexuais, transgêneros, travestis, queer, etc. – quanto mais colado aos ditames da regra de normalidade estabelecida, menos anormal se é no interior desse grupo tido como perversos da ordem sexual. Assim, criam-se outras rachaduras dentro do próprio grupo considerado como um “universal anormal” no campo da sexualidade, a partir das quais se pode precisar uma catalogação e estabelecer uma hierarquia entre esses corpos, constituindo, dessa forma, anormais mais próximos da normalidade e anormais mais distantes, e entre eles toda uma gama heterogênea de perversidades.

E aqui é interessante retomar os questionamentos feitos no início do trabalho que, partindo-se do pressuposto de que se reconheça o casamento e adoção por casais não-heterossexuais, em relação a quais arranjos de afeto estamos ampliando tais direitos? Dois homens-cis? Duas mulheres-cis? Homem (trans) com mulher (trans)? Duas mulheres (trans)? Travesti com homem-cis? Travesti solteira? Tais questionamentos, por sua vez, nos conduzem a outras indagações: se se aceita a hipótese de uma lógica heteronormativa no interior do direito e, ainda, que no interior do conjunto de anormais, verificam-se níveis de anormalidade maiores e menores de modo que, quanto mais próximo da normalidade, necessariamente, mais próximos se estaria de um padrão pautado pela heteronormatividade, tal constatação significa dizer que, quanto mais acesso aos direitos for possibilitado, maior o grau de normalização heterossexual das demandas LGBTI.

Se falar em identidades pautadas no dispositivo da sexualidade implica sempre em desenhar um modelo que se traduz num processo paradoxal de inclusão-exclusiva (AGANBEM, 2004 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2004. ), o direito se abre para o pensamento contemporâneo como um espaço de luta constante, no qual a cristalização de identidades por meio de resoluções judiciais se apresenta não como consensos definitivos cujo teor apontaria para um estado de coisas permanente, mas como uma solução que carrega um nó de possibilidades outras, as quais suscitarão novos processos de sujeições, mas também inúmeras práticas de resistência a esse assujeitamento dos corpos via dispositivo da sexualidade (GOLDER, 2016).

Diante desse cenário, como vislumbrar o direito, em especial os direitos humanos, como espaço de proteção desse grupo tão heterogêneo de demandas, sobretudo quando levamos em consideração a sexualidade como essa instância essencializadora e delimitadora da fixidez de identidades possíveis e que, no limite, tendem à normalização dos indivíduos segundo um modelo heteronormativo?

Se em Michel Foucault o sujeito deixa de ocupar o ápice do sistema teórico tal qual elaborado pelo Iluminismo, cuja aposta se dirigia a uma crença ilimitada na razão garantidora da emancipação humana por meio da realização de sua autonomia, por outro lado, as críticas do genealogista não visam minar de sentido todo o arcabouço teórico construído sobre essas bases, dentre os quais se situam aqueles desenvolvidos em torno da temática dos direitos humanos.

De fato, seu pensamento parece fazer ruir todo o edifício teórico construído em torno dos postulados de uma razão autônoma e universal, ou quando se acusa o modo como a individualidade foi se esvanecendo através das práticas disciplinares, bem como pelos mecanismos de regulação e controle. Entretanto, esse mesmo movimento de explicitação da crise do princípio iluminista da “autonomia” é que permite a apreensão dos limites e das possibilidades do direito no que se refere às demandas LGBTI.

Tais reflexões não buscam esvaziar de sentido as conquistas e os avanços no âmbito jurídico no que toca à garantia dos direitos aqui discutidos, mas antes, de marcar um deslocamento de olhar – e não uma troca definitiva de lentes – em relação às pautas e às demandas reivindicadas. Não se trata de propor um abandono do direito como um lugar de proteção, mas de compreendê-lo a partir do que ele possibilita em termos de normalização, para assim, entrevê-lo como um espaço protetivo, mas também de luta constante; não se trata, tampouco, de estabelecer uma ontologia do direito enquanto instância de normalização por excelência, mas de vislumbrar qual a tecnologia movimentada a partir e conjuntamente ao fenômeno jurídico, que atua normalizando indivíduos apoiada no dispositivo da sexualidade, de modo que se permita estabelecer outras linhas de atuação que possam desestabilizar inclusive o caráter normalizador dessas técnicas. Não se trata, por fim, de pôr em descrédito todas as conquistas atingidas no ambiente de disputa das demandas LGBTI, senão de ampliar o espaço de visão em que tais disputas ocorrem a fim de que se possa verificar seus instrumentos, mas sobretudo seus efeitos, em um nível mais sutil de atuação.

Considerações finais

De acordo com Foucault, somente foi possível ao homem ocidental ler-se a si mesmo e aos outros por meio das lentes fornecidas pelo dispositivo da sexualidade a partir do século XVIII, momento em que o sexo se tornou enredado por uma complexa rede de práticas que o colocou em discurso, possibilitando o surgimento de uma scientia sexualis, juntamente a um aparato tecnológico de regulação, controle e normalização dos corpos e das populações. Desse modo, a discussão dos direitos da população LGBTI deve, necessariamente, passar pelo terreno de possibilidades do surgimento desse dispositivo, assim como à encruzilhada de problemas que ele mesmo suscita ao ser operado no interior do campo jurídico.

Nesse sentido, a sexualidade se configura como regulador normativo de condutas porque opera na posição de filtro de inteligibilidade dos corpos, ao mesmo tempo em que possibilita uma taxonomia sexual das subjetividades, todas forjadas segundo uma norma capaz de constranger os corpos em sua direção sob pena de se constituírem como perversos sexuais, como anormais. Tal norma, nesse caso em específico, é a heterossexualidade, e sua ordem, heteronormativa.

A heteronormatividade do direito implica no estabelecimento de um modelo de práticas que tendem a normalizar os corpos e as populações segundo os ditames desta regra, isto é, opera em um duplo grau de normalização. Exclui (incluindo), todo conjunto heterogêneo de corpos não conformados pelas determinações da regra fazendo com que direitos cuja marca é a universalidade não lhe sejam assim garantidos por sua condição de não-heterossexual. Mas, além disso, opera em um outro nível de conformações, na medida em que se esforça para capturar tais corpos visando assimilá-los nas prescrições da norma. Isto é, cria-se um gradiente de normalidade no qual os corpos passam a ser distribuídos segundo níveis de transgressão, e a partir de tal gradação garante direitos na medida em que são assimilados, ainda que fragmentariamente, pela heteronormatividade.

Nesse cenário, pensar na problemática dos direitos humanos não deve pressupor a liberdade e a racionalidade de um sujeito autônomo, senão de encará-lo como fruto de um complexo processo de saber-poder que o constituiu enquanto sujeito capaz de ser lido, inclusive, pelas lentes forjadas pelo dispositivo da sexualidade.

Se, por um lado, há negação sistemática de direitos à população LGBTI e uma realidade social discriminatória que se alastra do imaginário até práticas de aniquilamento dos indivíduos, por outro, a garantia de determinados direitos implica em algum tipo de captura e assimilação de tais subjetividades no interior das tramas heteronormativas. Nesse contexto, o direito emerge menos como espaço de um consenso cuja permanência garantiria a proteção desse grupo minoritário tão diverso e heterogêneo, do que como um espaço de luta e embate constante.

Com efeito, mais adequado falar em uma política dos direitos (GOLDER, 2016) materializada em uma dinâmica contínua, caracterizada pelo movimento constante de esteriotipação jurídica das identidades para sua proteção, a qual, por sua vez, garante a abertura necessária à continuidade que é própria desse jogo. A política dos direitos surge, assim, na tensão existente entre esses mecanismos de sujeição e assimilação heteronormativa, apenas existentes em função das práticas de resistência a eles opostas.

  • 1
    A utilização da palavra “trans” no decorrer do texto, sempre entre parênteses, se dá devido à compreensão e concordância com Flávia Teixeira (2013 TEIXEIRA, Flávia do Bonsucesso. Dispositivos de dor: poderes que conformam as transexualidades. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2013 , p. 37), segundo a qual nenhum termo parece dar conta de exprimir a totalidade de experiências de pessoas (trans). Sua utilização nesses moldes busca “questiona[r] a própria estabilidade da categoria” ( TEIXEIRA, 2013 TEIXEIRA, Flávia do Bonsucesso. Dispositivos de dor: poderes que conformam as transexualidades. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2013 , p. 36).
  • 2
    Ao utilizarmos a sigla LGBTI nos referimos às identidades lésbicas, gays, bissexuais, às experiências das transsexualidades, transgeneridades, travestilidades, cross-dressing, entre outros, bem como aos intersexuais. Optamos por não incluir na “dança das letras” ( FACHINNI, 2005 FACHINNI, Regina. Sopa de Letrinhas: movimento homosexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. ), a “identidade” queer, que se apresentaria lado a lado a tais grupos, bem como em oposição a eles. Entendemos que esse artifício descaracterizaria a potencialidade de contestação e subversão própria da atitude queer, uma vez que “se queer é visto primariamente como a base para uma nova política de identidade, então também ele necessariamente irá excluir e restringir” ( SPARGO, 2006 SPARGO, Tasmim. Foucault e a Teoria Queer. Rio de Janeiro: Pazulin; Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2006. , p. 36).
  • 3
    Termo utilizado de modo pejorativo com vistas a deslegitimar todos os avanços e conquistas obtidos no campo das discussões a respeito de gênero, sexualidade e diversidade, bem como na busca de uma sociedade mais justa e igualitária, pautada no respeito pela pluralidade de expressão e manifestação dos afetos.
  • 4
    Termo cunhado em 1991 por Michael Warner (2007) WARNER, Michael. Unsafe. In: HALPERIN, David M. What do gay men want? An essay on risk, subjectivity. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2007, ps. 155-167. cuja análise buscava desestruturar a binariedade hetero/homossexualidade, explicando não se tratar de verdadeira oposição, senão de um sistema interdependente que procura reinserir e reinscrever incessantemente uma hierarquia que estabelece como privilégio a ordem heterossexual e despreza e subordina sujeitos homossexuais.
  • 5
    Foi em uma entrevista a respeito do recém-lançado livro História da Sexualidade, que Foucault demarca o sentido e a função metodológica do termo dispositivo, que aqui merece transcrição: “Por esse termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relação que pode existir entre esses elementos heterogêneos. Sendo assim, tal discurso pode aparecer como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação dessa prática, dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma, entre esses elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes. Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que, em determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante. Esse foi o caso, por exemplo, da absorção de uma massa de população flutuante que uma economia de tipo essencialmente mercantilista achava incômoda: existe aí um imperativo estratégico funcionando como matriz de um dispositivo, que pouco a pouco tornou-se o dispositivo de controle-dominação da loucura, da doença mental, da neurose”. (FOUCAULT, 2012 ______. Sobre a história da sexualidade. (Tradução de Angela Loureiro de Sousa). In: Microfísica do Poder. 25ª ed. São Paulo: Editora Graal, 2012, ps. 363- 406. , ps. 364-365)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018
  • Data do Fascículo
    Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2016
  • Aceito
    03 Fev 2017
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