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A democracia impedida. O Brasil no Século XXI. Wanderley Guilherme dos Santos.

Wanderley Guilherme é cientista político e pesquisador do IESP-UERJ. Em 1962, publicou “Quem vai dar o golpe no Brasil?” 1 1 Ver: WANDERLEY, Guilherme. Quem dará o golpe no Brasil? Cadernos do Povo Brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962. , obra inaugural pela qual ganhou notoriedade por ter prenunciado a prefiguração do golpe de Estado em marcha, ao então presidente João Goulart, instaurado em 1 de abril de 1964.

O livro “A Democracia Impedida. O Brasil no Século XXI”, publicado pela editora FGV, se divide em 6 capítulos: 1. Democracia representativa e golpe constitucional; 2. 1964 e 2016: dois golpes, dois roteiros; 3. De eleições, temores e processos distributivos; 4. A sucessão da oligarquia pela competição eleitoral; 5. Da democracia e seu bastardo: o golpe parlamentar; e, 6. A expropriação constitucional do voto.

No capítulo 1, “Democracia representativa e golpe constitucional”, o autor adverte que investigar as interferências golpistas como se essas se originassem em um universo paralelo ao democrático é um equívoco. Além disso, acrescenta que esse perfil de golpismo pertence ao período em que as regras democráticas não haviam naturalizado o “fenômeno da substituição do poder votado por algum tipo de poder arbitrado, fora da arena eleitoral (Santos, 2017 WANDERLEY, Guilherme. A Democracia Impedida. O Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2017. , p. 12)”. Assim, não são exclusivamente de intervenções golpistas as ameaças à democracia. As fraudes na competição democrática, algumas ricas em criatividades, se valem das regras democráticas de modo que o sistema fique comprometido e não se encaixem nas “clássicas definições de golpe de Estado (Ibid, p. 12)”. Assaltos ao poder podem acontecer em qualquer regime, no entanto, como sublinha o autor, golpes parlamentares só existem em sistemas de democracias representativas.

No novo cenário dos golpes parlamentares, fenômeno inédito, são poucos os episódios disponíveis para análise, lançando mão da ciência política, sociologia e direito esses ensaiam “elucidar” as condições antecedentes e sua descrição fenomenológica do tipo de violência, mas para o autor isenta-se na análise das transgressões constitucionais que permitem esse tipo de golpe. Dando como exemplo o Paraguai, quando em tempo recorde fora aprovado o impedimento do presidente Fernando Lugo, e da República da finlandesa, com a destituição dos poderes do presidente e substituindo o sistema presidencialista pelo parlamentarismo. E, assim, o caso do Brasil, portanto, não é um paradigma, mas um exemplo do atual fenômeno que o autor investiga: a ruptura institucional parlamentar inscrita em democracias representativas de massa.

O pesquisador identifica uma fratura epistemológica nas análises das “técnicas” de interrupção da democracia e a novidade dos golpes parlamentares em que as condições que possibilitam o êxito deste último acabam se dissolvendo em sua execução. Ao contrário dos golpes militares, que uma vez bem sucedido desalojam o antigo poder e, se necessário usando a força, na nova modalidade de golpe parlamentar a violência escandalosa armada ou mesmo judicial é dispensada. A “cerimônia” do golpe parlamentar exige um “verniz” à ocupação “fraudulenta” do poder, mantendo-se intocado os ritos costumeiros. Guilherme esclarece que a coalização “golpista” é muito raramente homogênea e abriga interesses conflitantes, acarretando assim uma inerente instabilidade que não desaparece com a mera substituição dos golpeados (Ibid, p. 17). No interior dos golpistas há um acordo prévio de quem deve deixar o governo, mas não há unanimidade de quem deve herdá-lo e por sua vez exercê-lo

O golpe parlamentar nesse estágio se aproxima no que o autor chama de “paradigma-limite da aceleração dos eventos uns sobre os outros (Ibid, p. 17)”, as condições antecedentes que permitiram as mobilizações são esgotadas e se esvaziam as bandeiras mobilizadoras e se espera as primeiras iniciativas dos “usurpadores”.

No caso específico brasileiro, uma vez no governo, o grupo que tomou de assalto o poder buscou implementar um programa de austeridade fiscal que fora rechaçado nas urnas e o modo de chegada ao poder desses atores foi encenar sua empreitada política na conjuntura de 2016, preservando as aparências da constitucionalidade democrática

Por fim, o autor frisa que o novo fenômeno do golpe parlamentar independe da natureza do regime de governo, pois indicam uma modalidade de ruptura de governo sem explícitas alterações legais e estão expostos todos os governos eleitos.

Prosseguindo no capítulo 2, “1964 e 2016: dois golpes, dois roteiros”, o pesquisador agora busca demonstrar a peculiaridade do golpe militar de 1964 e do golpe parlamentar de 2016. Para tal diferenciação apresenta a “ecologia política”, na qual destaca três indicadores: “o grau de urbanização do país, o tamanho do eleitorado e a extensão da mobilização social (Ibid, p. 48)”. Dessa forma, os dois golpes são apresentados como distintos, dado o aumento da população e o caráter mais complexo da sociedade brasileira atual.

A constituição de 1988 e o processo eleitoral que emergiu com esta trouxe uma maior competição “democrática” e mobilizações populares. Como exemplo desses componentes, Guilherme dos Santos apresenta as jornadas de julho de 2013 e as eleições de 2014, dessa forma, através desse quadro complexo a ruptura governamental demanda uma técnica mais sofisticada para dá um verniz de legalidade. Traço comum entre a quartelada desencadeada pelo General Olympio Mourão que cominou no golpe civil-militar de 1964 e o golpe parlamentar de 2016, no entender do autor tem como “o denominador comum entre os golpistas dos anos 1950 e 1960 e os de 2016 é a rejeição ao progresso econômico e social das classes vulneráveis (Ibid, p. 42)”.

Discurso marcando nos períodos de instabilidade política quando o golpismo se manifestou como em 1954, 1955, 1961 1964 e 2016 a retórica conservadora contra a corrupção é manejada contra os desafetos. Os casos de denúncias sistêmicas de corrupção acompanha a política conservadora nacional desde a vitória de Getúlio Vargas em 1951 e “voltaria à cena em outra derrota eleitoral dos conservadores, na eleição de Juscelino Kubitschek, em 1955 (Ibid, p. 35)”. Em 1964 não seria diferente quando a denúncia de comprometimento do Estado com práticas de corrupção cumpriu um “papel coadjuvante da paranoia anticomunista que derrubou João Goulart (Ibid, p. 37)”.

Em continuidade ao receituário, após as eleições de 2014, desde o dia seguinte as apurações dos votos, pelo candidato derrotado Aécio Neves, o trajeto fora de acusar os vitoriosos de fraude eleitoral, logo após, corrupção. Para o autor o golpe parlamentar de agora difere da “ocupação ilegal do governo tentada em 1954, tanto quanto da vulgar, embora vitoriosa, quartelada de 1964 (Ibid, p. 46)”. Em 1964 era modesta a aparição de organizações populares na cena política, o que contribuiu para a identificação de políticos como João Goulart como radical. Já em 2016, o que cominou no golpe parlamentar fora um repudio visceral as políticas de redução da desigualdade. “Sucessivas derrotas levaram a elite econômica do país, embora altamente compensada durante os governos trabalhistas, a associar-se aos setores preconceituosos da classe média no desespero de eleições como recurso para interromper a supremacia eleitoral trabalhista (Ibid, p. 47)”.

Ainda, para o autor o peculiar no Brasil é a expansão das responsabilidades do Estado na criação das condições favoráveis ao desenvolvimento econômico. O Estado se antecipa como produtor e comprador, em uma expansão do mercado e da sociedade privada, nas palavras de Wanderley, o que possibilitou ainda, pelo ângulo da proteção social a participação das iniciativas públicas a níveis inéditos. Dessa forma, em tese, sociedades amadurecidas como a brasileira tornam difícil reeditar quarteladas como a de 1964.

No capítulo 3, “De eleições, temores e processos distributivos”, a democracia é pensada por Guilherme dos Santos como aquilo que “assegura a continuada inovação institucional e produtiva das sociedades capitalistas complexas” e acrescenta que “restrições à ação legítima dos grupos de interesses, punição de iniciativas políticas fora do período eleitoral, privilégios concedidos a formatos corporativos de ação coletiva, ademais dos históricos impedimentos à participação eleitoral, contribuíram ora para o ambiente mofino, ora para as insubordinações desorganizadas das sociedades oligárquicas antes da Revolução Industrial (Ibid, p. 67)”. No entanto salienta o professor do IESP/UERJ que a democracia representativa não é uma arbitrariedade histórica capaz de ser implementada exitosamente em qualquer circunstância.

Prossegue Wanderley que, as concepções “democratizantes” se desenvolvem paralelamente a modernização das estruturas sociais, quando há uma maior divisão do trabalho, industrialização e, por conseguinte, a crescente urbanização cria uma enorme diversidade de valores e interesses em cada sociedade. Tudo acarreta uma maior disputa pelo escasso recurso ao poder, pois o eleitorado é mais pulverizado o que determina uma organização institucional suficientemente aberta e coesa capaz de acomodar os numerosos valores e interesses de maneira duradoura, e torna arriscado e eleva o custo político nas decisões. Assim, o autor depreende que, em análises concretas do poder, essas sociedades estão cada vez mais sujeitas a divergências e acirramentos que não encontram, geralmente, nas vias institucionais, soluções, superação e conciliação.

A universalização do voto popular no pós-segunda guerra mundial fez o medo conservador retornar. No capítulo 4 “A sucessão da oligarquia pela competição eleitoral” é apresentado que, em democracias com elevado grau de “sucesso” existe um elevado grau de ignorância dos eleitores sobre questões complexas. Ainda assim, os cidadãos-eleitores são politicamente decisivos na construção desse regime ao terem uma elevada participação eleitoral. Neste tópico, acrescenta o pesquisador que “as fontes de formação da opinião dos eleitores, segundo declarações a pesquisas, incluem aspectos pouco recomendáveis do ponto de vista da respeitabilidade política: aparência física, sugestão de amigos e episódios sorrateiros (Ibid, p. 106)”. A aposta de Warderley é que as escolhas individuais do eleitorado são definidas, na maior parte das vezes, por premissas utilitárias. Neste ponto instaura-se um paradoxo: o ideal normativo é o resultado da eleição deveria corresponder ao que a maioria entende como desejável para a coletividade e não apenas para o eleitor individual.

Arremata ainda que “inúmeros estudiosos acrescentam quem em geral, as elites compartilham as deficiências intelectuais e de informação atribuídas à massa de eleitores” e que o Brasil não está à deriva “do fluxo normal das democracias, não obstante o ramerrão conservador a propósito de putativa ignorância exclusivamente nacional (Ibid, p. 107)”.

Ao fim, o autor não toma como postulado a hipótese conservadora do declínio da democracia pela incapacidade das instituições representativas satisfazerem a todos os valores e interesses em disputa criando espaço para frustações que gerariam flertes com o autoritarismo. O pesquisador do IESP acredita que essas “crises” podem ser corrigidas por intervenções criadoras que propiciem uma acomodação das lutas políticas.

Com o fim da União Soviética ruiu a tentativa de construir uma sociedade assentada sobre a solidariedade. Neste sentido, uma vez que os interesses de grandes grupos econômicos têm se tornado cada vez menos suscetíveis de se regulado de se alcançar um menor desequilíbrio entre o poder da riqueza de poucos e o bem-estar coletivo torna-se comum e inédita nas democracias representativas de massa o golpe parlamentar.

No capítulo 5, “Da democracia e seu bastardo: o golpe parlamentar”, a bastardia do segundo se mostra presente no primeiro quando a correlação de forças políticas se torna desalinhada ao resultado das urnas. Assim a usurpação do voto popular se joga na dinâmica do sistema representativo, uma jogada das elites econômicas para proteger seus interesses com a aparência da legalidade e da democracia representativa para satisfazer interesses próprios.

Em seu capítulo final, “A expropriação constitucional do voto”, o autor aduz que “A ação penal (AP) 470 inaugurou a atitude conservadora de interromper por via não eleitoral a liderança do Partido dos Trabalhadores, com a intervenção ancilar direta do Judiciário (Ibid, p. 159)”. Assim a AP 470 teria estreado o espetáculo da intervenção judicial na ordem política que culminou na criação do precedente que possibilitou o arcabouço ideológico sob o qual a Operação Lava-Jato, e grande parte da mídia e com a direita organizada, pôde atuar no sentido de destruir reputações sem provas e assim corroer a imagem do PT, pontua Wanderley. Tudo isso acelerou a posterior deposição do governo Dilma pelo congresso com o argumento de crime de responsabilidade.

O governo que emergiu dessa deposição implantou programa, em total discordância com a vontade popular nas últimas eleições, que demonstra a força do grande capital para se impor sobre o país. As instituições representativas mostram-se impotentes para sustentar a vontade da maioria perante a capacidade das elites econômicas de imporem seus interesses. O singular agora é que as elites não arcaram com o ônus do “rompimento democrático” para o resto do país, pois a ordem constitucional é mantida.

A questão central do livro trazida pelo cientista político é uma nova forma de “ruptura institucional” que se inscreve nos “sistemas democráticos”. Há aspectos da evolução política e eleitoral do país que precisamos conhecer e compreender. Wanderley Guilherme introduz uma indispensável explicação dos mecanismos essências dessa nova dinâmica, o seu funcionamento e sua prática na política brasileira.

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    Ver: WANDERLEY, Guilherme WANDERLEY, Guilherme. Quem dará o golpe no Brasil? Cadernos do Povo Brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962. . Quem dará o golpe no Brasil? Cadernos do Povo Brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.
  • Rio de Janeiro: FGV, 2017, 188p.

Referências:

  • WANDERLEY, Guilherme. Quem dará o golpe no Brasil? Cadernos do Povo Brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.
  • WANDERLEY, Guilherme. A Democracia Impedida. O Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018
  • Data do Fascículo
    Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2018
  • Aceito
    13 Abr 2018
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