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O processo constituinte de 1987 e a passagem do tempo: Uma análise sobre um conflito

The constituent process of 1987 and the passage of time: An analysis about a conflict

Resumo

A forma congressual da constituinte de 1987 não foi consenso entre os entre oposicionistas e situacionistas do regime que se depunha. Com o presente artigo, pretende-se analisar se nessa disputa de forma de construção constitucional havia também um enfrentamento sobre a passagem do tempo e seu controle. Será realizada uma investigação teórica sobre o processo histórico da construção constitucional de 1987 e do uso das formulações críticas sobre a relação entre direito e política na categoria do poder constituinte.

Palavras-chave:
Poder constituinte; Processo Constituinte de 1987; Poder constituinte e Temporalidade

Abstract

The congressional form of the constituent of 1987 was not a consensus among the oppositionists of the dying regime and the pro-regime. This paper tries to analyze if in this dispute of form of constitutional construction there was also a confrontation on the passage of time and its control. A theoretical research will be carried out on the historical process of the constitutional construction of 1987 and the use of critical formulations on a relation between law and politics in the category of constituent power.

Keyword:
Constituent power; Constituent Process of 1987; Constituent power and temporality

Introdução

A transição 1 1 A questão da transição emergiu como problema teórico após as mudanças políticas ocorridas em meio ao século XX − ao norte global, com a ascensão dos governos autoritários em solo europeu e os seus posteriores declínios, e ao sul, com o fim do apartheid na África do Sul e dos regimes autoritários pela América Latina responsáveis por inúmeras violações a Direitos Humanos. Sendo assim, a transição de que trata a ciência política contemporânea, a historiografia e até o Direito, com a disciplina da “Justiça de Transição”, tem intrínseca relação com a democratização e com a categoria da democracia, principalmente na sua dimensão político-institucional – principal objeto investigativo para os adeptos da transitologia (MONCLAIRE, 2001) –, uma vez que o movimento teórico e político que forjou enquanto categoria a transição se posiciona em um contexto de superação de grandes traumas nacionais e globais, e, sobretudo, na constituição de regimes que se contrapõem ao passado autoritário. do regime autoritário para o de enunciado democrático no Brasil se iniciou ainda na década de 70 com a abertura política realizada pelo próprio regime baseada no lema “distensão política lenta, gradual e segura” sob o comando de Geisel. Por sua vez, a data de término desse processo não é consenso entre os analistas do período ( ARTURI, 2001 ARTURI, Carlos S. “O debate teórico sobre a mudança do regime político: o caso brasileiro”. Revista de sociologia e política, n. 17, 2001, pp 11-31. ). No entanto, não há discordâncias quanto ao reconhecimento da realização da constituinte e da elaboração da Carta Constitucional de 1988, a chamada “Constituição Cidadã”, como um evento importante na transição brasileira 2 2 Não há consenso na literatura quanto ao significado da categoria da Democracia. Mas é inegável que, ao se falar em transição de regime político, se parte de um ponto a outro, de um regime para outro com conformações distintas. Nesse sentido, a noção de regime de enunciado democrático enquanto fim da transição em oposição ao passado autoritário possui grande capacidade explicativa no que tange à passagem de um regime para outro. Permitindo que não sejamos aproximados a uma compreensão minimalista da democracia em sua face normativa, que reduziria a democracia a um modelo pronto a ser adotado ou não por determinado ente. O enunciado democrático, destarte, representa a democracia como regime político em sua dimensão político-institucional, − englobando um ambiente livre para criação de Direitos, como caracterizado por Marilena Chauí (2006); e de Carlos Arturi (2001) , que enfatiza a dimensão político-institucional e identifica a democracia com mecanismos de autorização e legitimação de governos, de escolha de indivíduos que tomam decisão em um Regime Democrático . Sendo assim, o estudo desse processo que permitiu a convocação da constituinte em muito se confunde com a transição política e, por isso, nos auxilia a dimensiona-la. Ademais, o papel que hoje damos às Constituições permite transformar o processo de construção de uma ordem constitucional em um instrumento que joga luzes ao cenário político.

O processo constituinte brasileiro se insere em uma onda constitucional notadamente ocorrida na América Latina entre os países que saíram dos regimes autoritários que tomaram conta desse continente ( PAIXÃO, 2014 PAIXÃO, Cristiano. “Autonomia, democracia e poder constituinte: disputas conceituais na experiência constitucional brasileira”. Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, n. 1, 2014, pp. 415-458. ). No Brasil, apesar do controle militar da transição, se incluiu nesse processo a modificação do texto constitucional através de uma constituinte, sendo, portanto, todo o ordenamento constitucional antigo substituído por outro.

Já quando se debatia a convocação da constituinte de 1987, os argumentos acerca da desnecessidade de uma Assembleia Constituinte eram levantados e se materializaram na dicotomia entre a reforma constitucional através de um congresso constituinte e a substituição da constituição mediante assembleia ( FAORO, 1981 FAORO, Raymundo. Assembléia constituinte: a legitimidade recuperada. São Paulo: Brasiliense, 1981. ) sobretudo nas questões formais que se relacionavam ao tema. As teses perpassaram pela impossibilidade de se convocar uma assembleia por ato do poder legislativo ou executivo e pela argumentação de que uma assembleia só se justifica em um momento de ruptura ( FAORO, 1981 FAORO, Raymundo. Assembléia constituinte: a legitimidade recuperada. São Paulo: Brasiliense, 1981. ).

Desse modo, a tese da convocação da constituinte para possibilitar a transição brasileira não representou unanimidade nos setores que compunham a sociedade brasileira à época. Por sua vez, sua realização se deu exatamente em um período em que as políticas de abertura se aceleraram, representando um ponto dissonante no plano militar de controle do ritmo da transição. Todo o seu processo de convocação e instauração foi marcado por disputas, entre elas, a da sua forma: se através da concessão de poderes constituintes originários ou reformadores ao congresso, ou se por meio da convocação de uma Assembleia Constituinte Exclusiva.

Assim, o presente artigo pretende, por meio de uma investigação teórica sobre o processo histórico da construção constitucional de 1987 e do uso das formulações críticas sobre a relação entre direito e política na categoria do poder constituinte, identificar a operação no tempo através dessa última categoria, com o recorte da disputa pela forma de construção constitucional no processo constituinte de 1987. Mais precisamente: por meio de uma investigação sobre quais frações defendiam a Assembleia Constituinte e quais advogavam pelo Congresso Constituinte, bem como sobre a relação de cada um com a passagem do tempo, desenvolveremos um estudo sobre a operação do poder constituinte no tempo. Para esse objetivo, portanto, o estudo sobre a correlação de forças no processo constituinte de 1987 do Brasil e como a manifestação concreta do poder constituinte na referida construção constitucional, especialmente no que se refere à disputa pela forma de sua realização, imprimiu a passagem do tempo da transição brasileira será instrumental para compreender como o poder constituinte é capaz de operar o tempo e sua passagem. O texto se dividirá em dois momentos principais: primeiro, o da abordagem teórica sobre a categoria do poder constituinte que permitirá que seja delineadas as formas de operação no tempo do poder constituinte e justificará a opção metodológica de investigação do processo constituinte brasileiro para compreender a transição política; e em um segundo, o da investigação dos movimentos ocorridos no processo constituinte.

1. O poder constituinte entre política e direito

A noção de poder constituinte entrou no léxico político como chave para a compreensão do real guiada pelos passos inovadores da modernidade. Sua inserção enquanto categoria explicadora da realidade, além de representar “a expressão jurídica do ímpeto democrático” ( LOUGHLIN, 2003 LOUGHLIN, Martin. The idea of public law. Oxford: Oxford University Press, 2003. : 100, tradução nossa), cumpre um papel importante na formação da visão de mundo inaugurada pela modernidade. Isso sobretudo em decorrência da sua capacidade de trazer para a realidade concreta e para a sociedade o fundamento próprio do político e de articular a política e o direito. Este último fato estrutura o poder constituinte, portanto, como categoria limítrofe entre esses campos.

A partir da modernidade e do seu confronto com um passado mítico, a sociedade ocidental passou a problematizar as suas próprias origens encontrando apenas em si própria as suas razões e determinantes. Com ela, para o ocidente, se inaugurou a sociedade propriamente histórica que não é só no tempo, mas está sendo ( CHAUÍ, 2007 CHAUÍ, Marilena. “Crítica e ideologia”. In: _____. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 12. ed. São Paulo: Cortez, 2007, pp. 26-48. ). Pôs-se fim, destarte, a aceitação de referências externas ao próprio humano para fundamentar a história dos homens e mulheres, bem como os produtos de suas ações. Para as sociedades propriamente históricas há algumas questões abertas perpetuamente: a possibilidade de sua extinção, a data de sua origem, a possibilidade de sua transformação. Por isso são temporais inclusive para si ( CHAUÍ, 2007 CHAUÍ, Marilena. “Crítica e ideologia”. In: _____. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 12. ed. São Paulo: Cortez, 2007, pp. 26-48. ). Esse ser no tempo provocado pelo giro epistemológico da modernidade está de certo modo expresso na caracterização do contemporâneo por Carvalho Netto (2011 CARVALHO NETTO, Menelick. Temporalidade, constitucionalismo e democracia. Humanidades, n. 58, 2011, pp. 32-43. : 33).

[...] o contemporâneo não é apenas aquele que, ao perceber a sombra do presente, torna-se capaz de apreender sua luz inocultável; é também aquele que, ao dividir e interpolar o tempo, torna-se apto a transformá-lo e colocá-lo em relação com outros tempos, e nele ler a história de maneira inédita e a “encontra-se” com ela, não por uma decisão arbitrária, mas por uma exigência que não pode deixar de atender.

Uma das categorias construídas pela modernidade que permite a construção da auto-referência da sociedade, especificamente no campo do Direito e da Política, é a do poder constituinte, que, de acordo com Loughlin (2003 LOUGHLIN, Martin. The idea of public law. Oxford: Oxford University Press, 2003. : 100, tradução nossa), “[...] emerge como tema no pensamento político ao lado da convicção de que a autoridade do governo repousa no consenso das pessoas”. Essa categoria representa uma tentativa de enraizar as explicações sobre o fenômeno da política e do governo no próprio campo social. Seu aparecimento enquanto constructo teórico de explicação do real inicia a materialização no pensamento ocidental do princípio do auto-governo principalmente pelo seu atrelamento à noção de povo, da comunidade enquanto sujeito desse poder capaz de estruturar a identidade política e, ao mesmo tempo, pelo fundamento popular do ordenamento jurídico.

De forma breve, a ciência jurídica entende que o poder constituinte é a fonte das normas constitucionais. É aquela potência que, em última instância, inaugura um ordenamento jurídico. Mas, a noção de constituição, construída pelo poder constituinte, não serve para assegurar a autonomia do campo do Direito. Ela é forjada em meio ao pensamento moderno também para responder a uma necessidade da política de fazer com que os dissensos dela sejam produtivos e jamais suprimidos. Isso por meio do estabelecimento de um corpo de instituições e de um sistema de legitimação das decisões tomadas no campo da política. Ela significa, na teoria política formada com o advento da modernidade, uma lei não como uma “expressão da soberana autonomia do Estado, mas como um meio pelo qual a autoridade soberana do Estado pode ser reconhecida” ( LOUGHLIN, 2003 LOUGHLIN, Martin. The idea of public law. Oxford: Oxford University Press, 2003. : 43, tradução nossa).

A constituição, evidentemente, representa um ponto de encontro entre o campo do Direito e da Política ao passo em que a sua dimensão normativa é capaz de nortear a prática política, especialmente as ações institucionais e governamentais. Isso através da noção de que ela significa a delegação de alguns poderes pelo povo por meio do poder constituinte ( LOUGHLIN, 2003 LOUGHLIN, Martin. The idea of public law. Oxford: Oxford University Press, 2003. ). Porém, não é apenas a capacidade de regular a política que enraíza a constituição nesse campo, mas também a determinação do significado das regras que emanam do sistema normativo constitucional pelas práticas políticas ( LOUGHLIN, 2003 LOUGHLIN, Martin. The idea of public law. Oxford: Oxford University Press, 2003. : 43).

É mediante a Constituição que a política, ao se deixar regular pelo direito, pode receber a legitimidade que o direito é capaz de lhe fornecer, e que, por outro lado, as normas gerais e abstratas do direito moderno podem ganhar a densificação social que somente o aparato político da organização estatal pode lhe emprestar. (COSTA, 2006: 33 ______. “Poder constituinte no estado democrático de direito”. Veredas do direito, Belo Horizonte, v.3, n.5, 2006, pp. 31-45. ).

É fato que esse papel da constituição de regular a política traz para a ciência do Direito uma dificuldade em compreender a relação entre aquela e essa para além da dimensão normativa da primeira. A reciprocidade de determinações dos dois campos, que poderia trazer reflexos para o entendimento da sua categoria fundadora, o poder constituinte, é um fato de difícil percepção para o constitucionalismo moderno. Isso é demonstrado por Antonio Negri na conclusão de que em todas as soluções da ciência jurídica para compreender o fenômeno do poder constituinte há um mecanismo de tentativa de seu aprisionamento ( NEGRI 2002 NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. ). Para ele, as soluções teóricas dessa ciência são agrupadas em três perspectivas: a) a transcendência; b) a imanência; e c) a coexistência.

Na concepção da transcendência do poder constituinte, essa categoria se encontra no mundo dos fatos e em uma posição anterior ao ordenamento constituído ( NEGRI, 2002 NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. ). A função do poder constituinte, para os adeptos dessa perspectiva, é apenas o de fundar o ordenamento constitucional em uma espécie de mito fundacional de que nos falam Ana Lia Almeida e Roberto Efrem Filho ALMEIDA, Ana Lia; EFREM FILHO, Roberto. “A (in)disponibilidade democrática”. In: RIBAS, Luiz Otávio (org.). Constituinte exclusiva: um outro sistema político é possível. São Paulo: Expressão Popular, 2014, pp. 43-51. , ou seja, que relega ao poder constituinte um papel anterior ao tempo constituído. É a essa corrente teórica que também se refere Loughlin (2003) LOUGHLIN, Martin. The idea of public law. Oxford: Oxford University Press, 2003. ao afirmar que o poder constituinte aparece no pensamento jurídico apenas como princípio formal, portanto, não incluído no rol de categorias que devem ser desenvolvidas pela ciência do Direito. Para esse último autor, essa posição teórica, em última instância, nega a ideia de Direito Público ao retirar a potência transformadora do poder constituinte de cena ( LOUGHLIN, 2003 LOUGHLIN, Martin. The idea of public law. Oxford: Oxford University Press, 2003. ).

Na imanência, o mecanismo de aprisionamento ganha dimensões mais sutis. Para essa concepção teórica, o poder constituinte se insere no ordenamento, porém, através de um emaranhado de abstrações ou concentração temporal ( NEGRI, 2002 NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. ). Nesse sentido, em alguma medida, o poder constituinte atua dando dinamicidade à ordem estabelecida, mas seguindo procedimentos específicos ou em momentos predeterminados, seja em texto legal, no caso das previsões de revisão por assembleia ad hoc, ou pelo momento transcendental de ruptura 3 3 A teoria constitucional moderna elaborou sua noção clássica de poder constituinte tendo como ponto de partida as revoluções burguesas. Por isso, para ela, há uma vinculação insuperável entre revolução e poder constituinte, o que desenhou uma identificação da ativação do poder constituinte com momentos de ruptura total com a ordem (CABALLERO, 2008) . Essa busca pelo momento de ruptura gera uma perspectiva normativista para o estudo do fenômeno do poder constituinte e se justifica pela associação entre o poder constituinte e o paradigma moderno de revolução como superação violenta de toda a ordem anterior (ARATO, 2000) . A concepção de poder constituinte como ruptura radical encontra esse fenômeno apenas em grandes revoluções de paradigma moderno. definidos por alguns intérpretes da história. Para essa concepção, o poder constituinte “posto num segundo estágio, após um primeiro estágio no qual se realiza um acordo contratual sobre os princípios de justiça” ( NEGRI, 2002 NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. : 14-15), por isso, a investigação sobre sua manifestação foge da sua realização no processo histórico.

Para o último grupo identificado por Negri, o poder constituinte é integrado ou coexistente ao ordenamento jurídico, no entanto, encontra na constituição material, uma base social anterior à ordem ( NEGRI, 2002 NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. ). Sua limitação está em permitir que o poder constituinte sirva apenas para adequar a ordem instituída à intrínseca normatividade de uma formação social material, ou seja, sua potência se limita a alterar o constituído enquanto norma, e não em alterar as bases da “constituição material” ( NEGRI, 2002 NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. ).

Negri (2002) NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. , por fim, traz como diagnóstico que o constitucionalismo promove uma captura do poder constituinte pela constituição. Isso nos revela, uma imagem sobre o mecanismo engendrado pelo constitucionalismo moderno sobre o poder constituinte. De fato, há uma relação tensa entre o constituído e o constituinte que o autor enxerga e traduz na noção de tensão entre constitucionalismo e democracia, do governo limitado e da potência voltada sempre ao futuro. Mas, a solução teórica negriniana de encontrar no poder constituinte verdadeira impossibilidade de conviver com a ordem estabelecida porque o primeiro tem caráter absoluto, longe de desvendar o processo de síntese dessa contradição e tensão, termina por insistir em uma solução extrema e oposta ao realizado pelo constitucionalismo moderno: negar o constituído em face do constituinte – essa construção teórica finda por deslocar o poder constituinte do campo do direito uma vez que reconhece nessa categoria um impulso contrário à estabilização de qualquer ordem ( CHUERI, 2013 CHUERI, Vera Karam de. Constituição radical: uma ideia e uma prática. Revista da faculdade de direito da UFPR, Curitiba, n. 58, 2013, pp. 25-36. ). A contribuição central de Negri para a nossa investigação é a descrição dessa passagem de um poder absoluto, que constitui o real e a existência humana, para um poder que serve apenas de fundamento para um governo de uma comunidade política, aquela realizada pelas formulações do constitucionalismo moderno.

A formulação de constituição radical de Vera Karam de Chueri (2013) CHUERI, Vera Karam de. Constituição radical: uma ideia e uma prática. Revista da faculdade de direito da UFPR, Curitiba, n. 58, 2013, pp. 25-36. nos auxilia a dar um passo em solucionar o problema teórico identificado por Negri e inserir no constitucionalismo a tensão a ele inerente entre futuro e passado que se manifesta da política ao trazer esse último campo para o centro do objeto dessa ciência. Por meio da concepção de constituição radical e do reconhecimento do constitucionalismo como tensão entre constituição-promessa e passado, entre poder constituinte e poderes constituídos sintetizada na política – materializada na ideia de que os limites estabelecidos pela constituição por meio do exercício do poder constituinte são sempre provisórios ( CHUERI, 2013 CHUERI, Vera Karam de. Constituição radical: uma ideia e uma prática. Revista da faculdade de direito da UFPR, Curitiba, n. 58, 2013, pp. 25-36. ) – há a garantia de uma abertura ao futuro e uma passagem do constitucionalismo como uma ciência do passado para uma do presente aberto ao futuro que o poder constituinte, por meio de uma escolha, pode acelerar ( CHUERI, 2013 CHUERI, Vera Karam de. Constituição radical: uma ideia e uma prática. Revista da faculdade de direito da UFPR, Curitiba, n. 58, 2013, pp. 25-36. ). A abertura ao futuro é uma característica inerente ao presente em face da incerteza do porvir ( CHUERI, 2013 CHUERI, Vera Karam de. Constituição radical: uma ideia e uma prática. Revista da faculdade de direito da UFPR, Curitiba, n. 58, 2013, pp. 25-36. ), do reconhecimento de pontos não iluminados no contemporâneo (AGAMBEN, 2009 ______. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Unochapecó, 2009. ), por consequência disso, a constituição radical insere o constitucionalismo no tempo ao trazer para ele essa incerteza.

Reconhecer o poder constituinte como categoria limítrofe entre o Direito e a Política e o seu caráter dialético de determinante e determinado desses campos significa também que o processo constituinte, para ser compreendido em sua totalidade, deve ser visto em seu mecanismo histórico de fundação do político e do direito. Sendo assim, um processo de construção constitucional só pode ser entendido se partirmos das relações materiais que permitem a manifestação do poder constituinte em toda a sua potencialidade para identificar a disputa de temporalidades no momento de decisão de aceleração da passagem do tempo. Essa noção permite que sejam superadas as categorias de análise que apenas relacionam o poder constituinte ao constituído, como, por exemplo, a noção de poder constituinte derivado ou originário.

Atento à tensão existente entre Direito e Política, Giorgio Agamben dedicou-se a desnudar algumas categorias limites que permitem ir até à fronteira dos dois campos e compreender os seus mecanismos. Para o autor, a ciência jurídica promoveu uma redução da política à política estatal, por isso, Agamben tem a pretensão de encontrar um espaço que a política possa se manifestar sem se referenciar à ordem estabelecida.

Mostrar o direito em sua não relação com a vida e a vida em sua não relação com o direito significa abrir entre eles um espaço para a ação humana que, há algum tempo, reivindicava para si o nome “política”. A política sofreu um eclipse duradouro porque foi contaminada pelo direito, concebendo-se a si mesma, no melhor dos casos, como poder constituinte (isto é, violência que põe o direito), quando não se reduz simplesmente a poder negociar com o direito ( AGAMBEN, 2004 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. : 133).

De princípio, esse autor traz a conclusão de que a dimensão normativa do direito elabora mecanismos para incluir no seu campo de domínio fenômenos que, paradoxalmente, a nega. Por exemplo, na teoria jurídica, o soberano é aquele que decide sobre o Estado de Exceção, ou seja o responsável por trazer para a esfera do direito aquilo que está fora dele e representa a sua suspensão (AGAMBEN, 2010 ______. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. 2. Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. ). O intento dessa figura é o de preservar a integridade do ordenamento mesmo na sua negação assim como o faz a teoria constitucional ao prever mecanismos para a manifestação do poder constituinte.

A figura do Estado de Exceção em Agamben se refere à prática política dos Estados modernos de suspenderem a eficácia das normas e à concessão de plenos poderes a uma instituição ou pessoa sob a justificativa paradoxal de realização do próprio Direito. A existência dessa figura nunca esteve condicionada a sua previsão em textos legais, apesar da ocorrência de legislações na Europa 4 4 Mencionamos aqui o contexto europeu por se debruçar o autor em comento na experiência histórica do Estado Moderno em seu continente. No entanto, em solo brasileiro, essa realidade não se distingue. A ditadura que se instaurou com o golpe de 1964, por exemplo, utilizou dessa situação antagônica da suspensão da ordem em nome de sua manutenção e utilizou de legislações de caráter de exceção, os atos institucionais, para suspender ou limitar direitos. Todo esse contexto da ditadura militar também se deu com tentativas de institucionalizar o Estado de Exceção implantado. Isso finda confirmando a tese de Agamben de que o direito elabora mecanismos para incorporar para si o seu oposto com o objetivo de manter a ordem mesmo na sua ruptura. Cf. CHUERI, Vera Karam; CÂMARA, Heloísa Fernandes. (Des)ordem constitucional: Engrenagens da máquina ditatorial no brasil pós-64. Lua Nova, n. 95, p. 259-288, 2015. que estabeleciam a suspensão das normas em contextos específicos para salvaguardar a ordem ( AGAMBEN, 2004 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. ). A teoria jurídica moderna utilizou da categoria Estado de Necessidade para fazer do Estado de Exceção “‘uma medida ilegal’, mas perfeitamente ‘jurídico constitucional’, que se concretiza na criação de novas normas” ( AGAMBEN, 2004 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. : 44). Dessa forma, o Direito, do ponto de vista teórico, insere em seu campo a sua suspensão através de uma formulação que legitima a sua negação em situações de emergência.

Por fim, Agamben defende a existência de uma zona anômica que depõe pela ficção da criação de categorias jurídicas, como o estado de necessidade ou “força de lei” schmittiana, que tentam incluir na norma e na ordem a sua própria ausência ( AGAMBEN, 2004 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. ). Agamben advoga pela existência de uma zona de indistinção na qual esses conceitos limites − como o Estado de Exceção, poder constituinte, homo sacer e soberania − acabam por se materializar ( AGAMBEN, 2004 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. ; AGAMBEN 2010 ______. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. 2. Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. ).

Os argumentos são, aqui, exatamente simétricos aos que opõem os defensores da legalização do estado de exceção no texto constitucional ou numa lei específica aos juristas que consideram sua regulamentação normativa totalmente inoportuna. Em todo caso, é certo que, se a resistência se tornasse um direito ou terminantemente um dever (cujo não cumprimento pudesse ser punido), não só a constituição acabaria por se colocar como um valor absolutamente intangível e totalizante, mas também as escolhas políticas dos cidadãos acabariam sendo juridicamente normalizadas. De fato, tanto no direito de resistência quanto no estado de exceção, o que realmente está em jogo é o problema do significado jurídico de uma esfera de ação em si extrajurídica. Aqui se opõem duas teses: a que afirma que o direito deve coincidir com a norma e aquela que, ao contrário, defende que o âmbito do direito excede a norma. Mas, em última análise, as duas posições são solidárias no excluir a existência de uma esfera da ação humana que escape totalmente ao direito ( AGAMBEN, 2004 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. : 24).

Para esse autor, há um espaço da ação humana de indistinção para com as normas, ou seja, o sistema jurídico ocidental moderno tem uma estrutura dupla: 1) a potestas, onde o fenômeno jurídico encontra seus elementos jurídicos e normativos; e 2) a autorictas que congrega os elementos anômicos e metajurídicos desse fenômeno ( AGAMBEN 2004 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. ). Com essa diferenciação, nos é proposta a existência na ciência política ocidental, de uma zona de indiferença com relação à norma, ou seja, uma zona anômica, em que ele enquadra o Estado de Exceção ( AGAMBEN, 2004 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. ) e também o poder constituinte (AGAMBEN, 2010 ______. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. 2. Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. ). Agamben, por reconhecer no Direito uma submissão da política à política estatal, entende que essa tensão entre política e direito deve ser solucionada com o fim do direito: “um dia, a humanidade brincará com o direito, como as crianças brincam com os objetos fora de uso, não para devolvê-los a seu uso canônico e, sim, para libertá-los definitivamente dele [...]” ( AGAMBÉN, 2004 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. : 98).

No entanto, não precisamos concordar com a solução teórica do autor para reconhecer a validade do seu diagnóstico. No constitucionalismo moderno, parte da ciência jurídica trata de domar o poder constituinte submetendo a sua manifestação a determinados procedimentos, já outra parcela identifica o poder constituinte a um direito natural à resistência, alocando-o em uma dimensão diversa das relações materiais e não sendo capaz de responder como se justifica nos fatos a sua manifestação. Essa dificuldade da ciência jurídica só pode ser superada com a compreensão do poder constituinte como processo em que se materializa a tensão constitutiva do constitucionalismo, futuro e passado, constituinte e constituído, permanência e mudança; e com o reconhecimento de que da sua manifestação como exercício do poder de decisão da comunidade política de manter ou alterar a ordem provisória ( CHUERI, 2013 CHUERI, Vera Karam de. Constituição radical: uma ideia e uma prática. Revista da faculdade de direito da UFPR, Curitiba, n. 58, 2013, pp. 25-36. ).

É, em verdade, nessa relação entre política e direito que o poder constituinte se manifesta, e também na dialética entre mudança e manutenção, passado e futuro. A identificação do caráter limítrofe ente Direito e Política da categoria do poder constituinte nos permite analisar, a partir da disputa produzida no processo constituinte brasileiro de 1987/1988 sobre a forma de construção constitucional, como se manifesta – concretamente – um processo constituinte que, por vezes, traduz o enfrentamento sobre a passagem do tempo.

2. O poder constituinte e sua capacidade de operar o tempo

Enquanto categoria, o poder constituinte foi formulado com o paradigma da modernidade e se constituiu enquanto potência nas revoluções e movimentações políticas que o inauguraram. Foram nesses eventos e nas formulações modernas, que o poder constituinte formou a sua temporalidade. Desse modo, há pontos de encontro entre a sua temporalidade e o da modernidade.

Negri (2002 NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. : 21), ao tratar sobre o poder constituinte e realizar a sua emersão nos eventos que fundaram a modernidade e esboçar a tensão existente entre o constitucionalismo, o poder constituinte e, em última análise, a democracia, afirma que:

Poder constituinte, ao contrário, é aquele de uma força que irrompe, quebra, interrompe, desfaz o equilíbrio preexistente e toda continuidade possível [...]. No conceito de poder constituinte está a idéia de que o passado não explica mais o presente, e que somente o futuro poderá fazê-lo [...].

O poder constituinte, portanto, representou uma chave interpretativa para as inovações no campo da política e no campo do Direito. Seu momento prático possibilitou que os dissensos do campo material da política transformassem a estrutura desses campos significando, em suma, uma categoria que permite a mobilidade. Essa caracterização possibilitou, inclusive, que a ciência jurídica formulasse para o poder constituinte, uma “teoria de cunho claramente iluminista, [que] afirma a possibilidade de se criar uma ordem jurídico-política ex novo, rompendo totalmente com o passado, inaugurando o futuro pelo próprio ato presente da ruptura política” (COSTA, 2006: 32 ______. “Poder constituinte no estado democrático de direito”. Veredas do direito, Belo Horizonte, v.3, n.5, 2006, pp. 31-45. ).

Ao passo que a modernidade insere a sociedade ocidental no tempo, abrindo a possibilidade para que ela se constitua em algo diferente do que é e do que foi e estabelecendo categorias ordenadoras do tempo − como as eras e idades −, o poder constituinte representou uma chave de identificação dos mecanismos de transformação dessas sociedades, principalmente no campo da política e do Direito, no tempo. Ele permitiu a materialização de um projeto moderno de organização da sociedade pela política.

O projeto político da modernidade e a ideia subjacente da organização democrática do mundo da vida e da nossa forma de vida coletiva repousa em dois pressupostos fundamentais acerca da estrutura social do tempo que foram raramente objetos de uma reflexão explícita. Em primeiro lugar, há a convicção de que a sociedade é um projeto que pode ser politicamente organizado no tempo. As democracias territoriais, representativas e de massa da modernidade se desenvolveram contra o pano de fundo de um dinâmico entendimento da história segundo o qual a legislação em particular, não era um ato para ser concluída uma vez por todas, não, por assim dizer, na inscrição no eterno, mas sim uma tarefa contínua de orientação progressiva do caminho do desenvolvimento da sociedade no processo histórico. ( ROSA, 2013 ROSA, Harmut. Social accelaration: a new theory of modernity. New York: Columbia University press, 2013. : 251, tradução nossa).

A ordem do tempo da modernidade ligada a ideia de progresso, relacionada com a noção de vetor apontado para o futuro ( HARTOG, 2013 HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiência do tempo. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2013. ) resta presente na formulação do poder constituinte ao passo que sua manifestação representa, para a formulação teórica sobre ele, uma ruptura com um ordenamento do passado, e institui uma nova configuração da realidade política e jurídica. Por isso, a caracterização negriniana para esse poder é de uma potência virada para o futuro, trabalho vivo, o que provoca, portanto, uma tensão com a temporalidade do constitucionalismo, do Direito enquanto norma sempre virada para a ordem já estabelecida, o passado, trabalho morto ( NEGRI, 2002 NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. ). Sendo essa temporalidade futurista, segundo este último autor, conquistada pelos eventos da Revolução Francesa.

Depois de Maquiavel, o conceito de poder constituinte desenvolveu-se no espaço: como contrapoder, na teoria harringtoniana e na prática dos revolucionários ingleses; como fronteira da liberdade no novo mundo americano. Na Revolução Francesa, ele reconquista o terreno da temporalidade[...]. O poder constituinte expande o caráter absoluto do seu princípio desenvolvendo-se temporalmente, exprimindo uma potência que se desenvolve na temporalidade [...]. ( NEGRI, 2002 NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. : 279).

O poder constituinte, nessa concepção que emerge de um dos eventos fundantes da Modernidade na sua disputa com o passado do Antigo Regime, é capaz de instituir o futuro no presente a partir da ação do sujeito desse poder, capaz de realizar transformações na realidade e coloca-la em movimento em contraste com o passado. A manifestação do poder constituinte, portanto, é capaz ainda de operar a passagem do tempo, como o fez nas revoluções modernas. Mas essa passagem de tempo não se dá de forma linear, ordenada e apartada da política. Em meio aos processos constituintes há temporalidades em disputa.

Nesse sentido, não existe nenhum dado prévio sobre o projeto que o poder constituinte materializa, o que é próprio da temporalidade que reveste essa categoria. O tempo do poder constituinte não se enquadra no sentido moderno de futuro que impõe ao tempo vindouro o progresso. Mas, por representar o elemento dinâmico de um ordenamento ou sociedade, aponta sim para o porvir. Dessa forma, os projetos entram em contradição na trincheira em que o processo constituinte se manifesta, é dizer, no processo histórico.

[...] o processo constituinte pode gerar arbítrio a supressão de direitos. Sousa Júnior fez essas reflexões durante o período de revisão da Constituição de 1988 no Brasil, quando forças conservadoras buscavam a extinção de direitos sociais sob os argumentos da modernização e da governabilidade. O processo de atualização da carta constitucional está sempre sujeito às tensões sociais e ao contexto histórico no qual se insere, seja ele reforma, revisão, jurisdição constitucional ou pela práxis social de (re)interpretação. Esses momentos revelam-se também como uma possibilidade de afirmação de direitos, reivindicação por novos direitos e por reorganização dinâmica da própria sociedade, na autolegislação de homens e mulheres [...] ( COSTA, 2005 COSTA, Alexandre Bernardino. Desafios da teoria do poder constituinte no estado democrático de direito. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2005. : 219).

O vir a ser que o poder constituinte contém, portanto, tem caráter aberto. E é nele que até o sentido da própria categoria em questão pode ser alterado, uma vez que o poder constituinte é uma chave de leitura sobre uma prática. Isso se refletiu ao longo dos eventos da revolução francesa, por exemplo − fato histórico paradigmático para a formulação do poder constituinte − quando se desenvolveu a disputa sobre a convocação da Assembleia Nacional para fixar a constituição francesa:

O verbo fixar não esclarece muito, pois o que estava por trás da expressão era um debate entre aqueles que, vinculados à nobreza, queriam que prevalecesse o entendimento de que a França já possuía uma Constituição, e que cabia à Assembléia simplesmente restabelecê-la, ou ingressar nela. Já os deputados do Terceiro Estado compreendiam a expressão como colocar as bases, dar ou fazer. O termo “fixar” era ambíguo o bastante para adiar a disputa política ( COSTA, 2005 COSTA, Alexandre Bernardino. Desafios da teoria do poder constituinte no estado democrático de direito. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2005. : 83).

Em torno do embate político sobre o significado do termo “fixar” e da amplitude da Assembleia Nacional, se delineou também os limites e elementos desse poder que surgia no seio da modernidade, o poder constituinte. Além disso, essa disputa sobre o papel da assembleia constituinte desvela ainda o caráter limítrofe entre política e direito do poder constituinte que pode ainda ser melhor revelado com o estudo sobre o processo constituinte que tomou o solo brasileiro na transição de regime político.

3. A oposição, a situação, a passagem do tempo e transição brasileira

No Brasil, um dos elementos diferenciadores e fundamentais da transição do regime político autoritário para um de enunciado democrático foi o seu tempo, sua longa duração. Fato esse reforçado com o lema do governo Geisel guiador da abertura política “lenta, gradual e segura” que se materializou na liberalização gradual. Essa lentidão da passagem do tempo da transição permitiu “o alargamento progressivo do setor moderado da oposição e daquele reformista do regime” ( ARTURI, 2001 ARTURI, Carlos S. “O debate teórico sobre a mudança do regime político: o caso brasileiro”. Revista de sociologia e política, n. 17, 2001, pp 11-31. : 12). Esse processo foi iniciado e controlado pelo próprio regime e com objetivo de apaziguar os conflitos ideológicos e políticos da instituição militar. Portanto, o próprio regime se tornou responsável por determinar os objetivos e natureza desse processo ( CODATO, 2005 CODATO, Adriano Nervo. “Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia”. Revista de sociologia e política, n. 23, 2005, pp. 83-106. ). Segundo Adriano Nervo Codato (2005) CODATO, Adriano Nervo. “Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia”. Revista de sociologia e política, n. 23, 2005, pp. 83-106. , as pressões realizadas pela sociedade civil foram responsáveis em suma pela intensificação do ritmo. O projeto de Geisel exigia o controle do tempo da transição pelos militares para assegurar certos resquícios de autoritarismo.

A legenda do governo Geisel foi, como se sabe, distensão política “lenta, gradual e segura. Esse procedimento deveria ser suficientemente arrastado para que não pudesse ser interpretado como uma involução da “Revolução”, servindo de pretexto à contestação aberta da extrema-direita, militar e civil. Ele deveria ser também gradual, isto é, progressivo e limitado, pois não poderia abrir caminho a uma ofensiva oposicionista que conduzisse, por exemplo, à uma ruptura democrática. ( CODATO, 2005 CODATO, Adriano Nervo. “Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia”. Revista de sociologia e política, n. 23, 2005, pp. 83-106. : 94).

O tempo de transição com essa característica da lentidão permitiu que o processo, ao invés de marcado por mudanças, se desse por transformismos institucionais e mesmo políticos ( CODATO, 2005 CODATO, Adriano Nervo. “Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia”. Revista de sociologia e política, n. 23, 2005, pp. 83-106. ). Dessa forma, a transição pós ditadura militar de 1964 se deu sem qualquer elemento que destoasse da tradição política brasileira de transição por transação 5 5 Categoria desenvolvida por Codato para descrever as características elementares do processo de transição no Brasil que condicionaram a formação do sistema político atual. Cf. CODATO, Adriano Nervo. Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia. Revista de sociologia e política, n. 23, nov. 2005. , reforçando o arquétipo da “conciliação” entre desiguais ( DEBRUN, 1983 DEBRUN, Michel. A “conciliação” e outas estratégias. São Paulo: Brasiliense, 1983. ) graças à manutenção do capital político do regime em virtude dos êxitos no campo da economia. Destarte, a realização da transição brasileira se deu sob controle do próprio regime ( ARTURI, 2001 ARTURI, Carlos S. “O debate teórico sobre a mudança do regime político: o caso brasileiro”. Revista de sociologia e política, n. 17, 2001, pp 11-31. ) através de negociações e colaboração com a oposição “responsável” ( CODATO, 2005 CODATO, Adriano Nervo. “Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia”. Revista de sociologia e política, n. 23, 2005, pp. 83-106. ). O processo iniciado no governo Geisel foi acelerado no período do governo de Figueiredo em grande medida pelas mobilizações ocorridas no fim da década de 1970 e início de 1980, com o surgimento do “novo sindicalismo” e, consequentemente, com o aumento do número de greves realizadas ( CODATO, 2005 CODATO, Adriano Nervo. “Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia”. Revista de sociologia e política, n. 23, 2005, pp. 83-106. ). Fatos esses possibilitados pela onda de industrialização realizada pelo modelo econômico nacional-desenvolvimentista do regime militar.

Marcado pela ambiguidade institucional ( ARTURI, 2001 ARTURI, Carlos S. “O debate teórico sobre a mudança do regime político: o caso brasileiro”. Revista de sociologia e política, n. 17, 2001, pp 11-31. ), o regime ditatorial, e isso se perpetua no período de transição, manteve medidas autoritárias mesmo enquanto assegurava o funcionamento de instituições democráticas como o Congresso, o Judiciário, e a manutenção de eleições, limitadas por medidas do regime 6 6 Um exemplo dessas medidas limitadoras das instituições que caracterizam a ambiguidade institucional foi o pacote de abril realizado no período da transição, mais especificamente durante o governo Geisel, que consistia em uma série de alterações no sistema jurídico brasileiro. Todas elas, sob a justificativa da reforma no judiciário, minavam a influência da oposição institucional, que ganhara cadeiras no Congresso Nacional suficientes para barrar alterações constitucionais em virtude do quórum qualificado. Com isso, o regime tentava evitar que a situação tivesse de negociar com a oposição, e garantir a permanência do controle do processo de abertura sob suas mãos. Cf. BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil. Brasília: Câmara dos deputados, 2012. ( CODATO, 2005 CODATO, Adriano Nervo. “Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia”. Revista de sociologia e política, n. 23, 2005, pp. 83-106. ).

O processo constituinte e o da transição de regime político no Brasil se confundem. E muito das características deste são transpostos aquele, afinal, o que se constituiu no momento constitucional em questão foi exatamente um regime de enunciado democrático em contraposição ao passado autoritário, ou seja, a transição – o que pode, inclusive, explicar a dilação do tempo de trabalho dos constituintes. Enquanto bandeira política, a mudança do documento constitucional aparece já em 1967 em um documento produzido em um Congresso clandestino do Partido Comunista Brasileiro (PCB). No entanto, ganha relevância no cenário político quando o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), a oposição institucional, formalizou a reivindicação de uma Assembleia Constituinte em 1971 na Carta do Recife. Para o setor moderado do MDB, a constituinte representava uma proposta radical, mas, em 1977, por conta das medidas tomadas pela situação para minar a influência política da oposição legal, essa parcela passou a desacreditar na manutenção da ordem legal da ditadura ( BARBOSA, 2012 BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil. Brasília: Câmara dos deputados, 2012. ).

Em meio ao processo de transição, associações e entidades representativas dos setores médios se colocaram oficialmente na oposição ao regime, como a Ordem dos Advogados do Brasil. Em 1974, essa entidade deflagrou uma campanha contra algumas medidas do governo e, especialmente com a assunção de Raymundo Faoro da presidência da Ordem, passou a defender a realização de uma Assembleia Constituinte. No mesmo caminho seguiu a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que elaborou em 1986 documento em favor de uma Nova Ordem Constitucional ( BARBOSA, 2012 BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil. Brasília: Câmara dos deputados, 2012. ).

Também o “novo sindicalismo” entrou no bloco histórico em defesa da realização de uma nova constituinte, em que pese, em princípio, ter se posicionado de forma reticente em virtude da desconfiança com a Frente Nacional de Redemocratização que tinha como principal sustentáculo o MDB (BABORSA, 2012). Posição essa alterada em 1981 com a realização do Congresso Nacional da Classe Trabalhadora (BABORSA, 2012).

A mobilização pró-constituinte foi herdeira do processo de rearticulação da sociedade civil que resultou na aceleração do processo de transição e da relativa perda de seu controle por parte do regime empresarial-militar durante o governo Figueiredo. As intensas campanhas das Diretas-já e pela anistia permitiram um cenário superior de mobilização da sociedade civil que culminou na defesa de uma nova Constituição, ou seja, da criação da situação constituinte ( SILVA, 2007 SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular. São Paulo: Malheiros, 2007. ). Isso culminou no naufrágio do projeto dos militares de realizarem apenas uma gradual revisão na Constituição do regime autoritário ( BARBOSA, 2012 BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil. Brasília: Câmara dos deputados, 2012. ), intensificando a passagem do tempo do regime autoritário para o de enunciado democrático. Sendo assim, limitar a pressão popular à definição do ritmo da transição reduz contra factualmente o seu papel histórico principalmente se levarmos em conta a disputa acerca do significado da Constituição de 88 no período posterior à sua promulgação.

O desejo da passagem do tempo através de uma Assembleia Constituinte está expressa na defesa de Florestan Fernandes (2014 FERNANDES, Florestan. Florestan Fernandes na constituinte: leituras para a reforma política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; São Paulo: Expressão popular, 2014. : 26) da forma-assembleia em detrimento da forma-congresso: “a história, que parece estagnada, corre veloz em seus subterrâneos e põe-nos diante de esperanças políticas que transcendem as constituições burguesas e nos obriga a pensar o futuro como a antítese de um presente contraditório e enigmático”. Nesse processo, se delineou uma disputa em torno da forma 7 7 A disputa pela forma necessária para a realização da construção constitucional de 1987 não se limitou aos agentes políticos em sentido estrito. Nessa batalha, fortalecendo a tese que a produção teórica integra o enfrentamento social que põe em movimento a dialética entre permanência e mudança do poder constituinte, teóricos do direito constitucional, como Paulo Bonavides (2010) , realizaram verdadeira campanha contrária à forma congressual de produção do texto constitucional. Para esse autor, “[...] a constituinte, da maneira como foi convocada, é tão-somente um episódio da histórica constitucional em que as oligarquias, buscando sobreviver, evitaram o encontro do povo com sua própria soberania” (BONAVIDES, 2010: 31) . Suas críticas à forma congressual perpassaram pela contestação do seu jeito responsável por sua convocação − o poder executivo que imprimiu os desvios autoritários do regime que era deposto −; pela ausência de qualquer procedimento plebiscitário; pela impossibilidade do poder constituído − através do congresso eleito − exercer o poder constituinte; pela extraordinária concentração de poderes no legislativo constituído que se promoveria; e pela composição do congresso – especialmente em face da presença de senadores biônicos e da representação exclusiva de interesses partidário e oligárquicos ( BONAVIDES, 2010 ). O mesmo ponto de vista defendeu José Afonso da Silva (2007) para quem não haveria forma de dar legitimidade à outorga de poderes constituintes ao Congresso Nacional eleito. Em oposição ao defendido por Bonavides e Afonso da Silva, Manoel Gonçalves Ferreira Filho advogou que a via correta de reformulação da ordem constitucional só poderia ocorrer através da concessão de poderes revisionais ao Congresso Nacional. Para este último a constituinte deveria representar a institucionalização permanente dos princípios da “revolução de março”, ou seja, do golpe militar ( PAIXÃO, 2014 ). resumida dessa maneira por Fernandes (2014 FERNANDES, Florestan. Florestan Fernandes na constituinte: leituras para a reforma política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; São Paulo: Expressão popular, 2014. : 77):

É aqui que se acha o cerne dos dilemas constitucionais do Brasil de hoje. Cortada no ápice do seu fluxo, a oscilação histórica apontada comporta duas visões opostas do que deve ser a Constituição em processo de elaboração: os que defendem o “compromisso sagrado de Tancredo Neves”, malgrado sua vocação democrática, afundam no pântano conservador. Para eles, não existe uma ordem ilegal, mas um “entulho autoritário”. Ele poderia ser removido como uma leve dor de cabeça, com uma vassourada. De fato, trata-se de uma colossal mistificação, pela qual a ordem ilegal não é expelida da cena histórica e condiciona, ao contrário, o processo de reconstrução da sociedade civil e do estado. Os juristas que defendem essa posição abominam a ideia de uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva e soberana e se fixam na consolidação da Nova República como e enquanto rebento da ditadura militar, descrita eufemisticamente como “Velha República”! O Congresso Constituinte reduz-se a um “poder derivado” e, se extravasar desse limite, está condenado à instância judiciária, que poderia anular suas decisões – e, o que não se diz, ao quarto poder da República, o poder militar, a instância suprema, que poderia eliminá-lo do mapa... o que se reitera é um afã ultraconservador e ultrarreacionário (que conta com o apoio da maioria parlamentar e com a tolerância das direções dos principais partidos da ordem – o PMDB e o PFL à frente), de conceber a elaboração da constituição como uma revisão constitucional. Nessa revisão constitucional, a ordem ilegal vigente seria reinstaurada “legitimamente”, como um sonho “liberal” dos antigos e novos donos do poder. Para isso foi concebido o Congresso Constituinte! ( FERNANDES, 2014 FERNANDES, Florestan. Florestan Fernandes na constituinte: leituras para a reforma política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; São Paulo: Expressão popular, 2014. : 77).

A forma de construção do texto constitucional não foi consenso no cenário político da transição. O regime tentou, a princípio, imprimir um processo de revisão constitucional ( FAORO, 1981 FAORO, Raymundo. Assembléia constituinte: a legitimidade recuperada. São Paulo: Brasiliense, 1981. ), enquanto a oposição, de forma genérica, defendia uma assembleia constituinte 8 8 De fato, não se pode afirmar que a realização de uma constituinte era uma unanimidade em toda a oposição ao regime que se depunha. A esquerda brasileira do período era composta por uma pluralidade de agrupamentos que adotaram ao longo da resistência à ditadura táticas diversas e defendiam também caminhos distintos para o fim do regime autoritário. Constatamos que os instrumentos que hegemonizaram o bloco histórico da oposição ao regime à esquerda, como o recém-criado Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Comunista do Brasil (PC do B) e o novo sindicalismo defendiam essa bandeira ( LIMA, 2003 ), assim como a oposição institucional, o MDB. Porém, parcela da esquerda enxergava com desconfiança a movimentação pela constituinte uma vez que vislumbrava a possibilidade de, por meio dela, haver uma consolidação de um projeto conservador aquém de uma estratégia revolucionária ( GARCIA, 1985 ). . Esse último setor, no entanto, divergia quanto à forma congressual (advogava por essa forma o setor moderado da oposição legal), ou seja, a investidura do Congresso em exercício com o poder de redigir uma nova constituição, ou da Assembleia Constituinte Exclusiva. Essa última proposta era defendida por parcela minoritária da oposição legal e por alguns setores da sociedade civil que objetivavam um processo de transição que findasse com um rompimento completo com o Regime dos Militares e viam a forma congressual como uma tentativa de frear a transição ( FERNANDES, 2014 FERNANDES, Florestan. Florestan Fernandes na constituinte: leituras para a reforma política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; São Paulo: Expressão popular, 2014. ). Esse cenário é evidenciado pelo diagnóstico de Florestan Fernandes (2014 FERNANDES, Florestan. Florestan Fernandes na constituinte: leituras para a reforma política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; São Paulo: Expressão popular, 2014. : 22).

[...] há uma demora cultural, um hiato histórico e político entre as transformações da sociedade e suas repercussões sobre a organização, funcionamento e rendimento das instituições-chave. E estas, movidas por enquanto pelos que se acham raptados na garupa do poder estatal (em todos os níveis da organização e da competição do poder), modificam-se muito devagar, resistindo a tidas as mudanças e reformas, mesmo aquelas que seriam do seu interesse de classe. Uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva teria a virtude de acelerar os ritmos da transformação, encolhendo as distâncias existentes entre o estado e a nação. Todavia, esse caminho foi cortado tortuosamente pelos donos do poder, movidos pela ideia de que “segurando as pontas” podem “controlar o processo histórico”

A forma congressual da constituinte representou a meta-síntese da “Nova República” articulada pela “Aliança Democrática” que pôs fim ao projeto de uma Assembleia Constituinte Exclusiva. Essa articulação permitiu a ocupação da presidência da república por um civil através do voto de um colégio eleitoral com membros simpáticos ao regime militar ( ARTURI, 2001 ARTURI, Carlos S. “O debate teórico sobre a mudança do regime político: o caso brasileiro”. Revista de sociologia e política, n. 17, 2001, pp 11-31. ). A campanha das “Diretas-Já” foi capaz de efervescer a cena política do país e de promover um cenário de mobilização que se prolongou ao longo da década de 1980. Porém, foi incapaz de realizar modificações nas regras do sistema político. Este produzido pelo regime autoritário pela afirmação da liberalização pelo alto que culminou com a formação da “Aliança Democrática” e com o paradigma da “Nova República” ( ARTURI, 2001 ARTURI, Carlos S. “O debate teórico sobre a mudança do regime político: o caso brasileiro”. Revista de sociologia e política, n. 17, 2001, pp 11-31. ). Por fim, a Nova República cumpriu a função representar projeto de liberalização lenta e gradual os setores moderados do regime e da oposição legal, impedindo um momento crítico de rompimento ao atingir o seu desfecho através de um acordo que levou à eleição da chapa da “Aliança Democrática” para a presidência 9 9 Também em torno do enfrentamento pela forma de construção constitucional se traduzia disputa pelo caráter das mudanças que se promoveria com a transição. A chave de leitura da revolução passiva gramsciana ( GRAMSCI, 2002 ) pode nos auxiliar a compreender as temporalidade em conflito. A revolução passiva nos indica uma tática de pôr o tempo em movimento através de movimentações dos detentores da hegemonia que combina restauração, ação pelo alto, com renovação, através de concessão a pautas populares. A revolução passiva trata de fazer o futuro continuidade do núcleo essencial do passado-presente. Essa passagem do tempo promovida pela revolução passiva pode fazer uso do transformismo, que consiste incorporação de intelectuais orgânicos da oposição no bloco histórico no poder para consolidar um consenso em torno das modificações promovidas por ela ( GRAMSCI, 2002 ). A consolidação de uma revolução passiva, portanto, se fez presente em um dos polos de enfrentamento quanto ao futuro que seria consolidado com a transição. .

Nesse contexto, o movimento das diretas-já, que poderia propiciar uma saída límpida e radical, submergiu numa composição conservadora, que decidiu, a partir de cima, atravessar o Rubicão através do Colégio eleitoral. Aliaram-se os chefes militares “civilizados”, o PMDB através de suas cúpulas dirigentes e os “democratas” recém-saídos do ventre do regime em decomposição. Isso significa que a oscilação foi detida por uma nova conspiração, que se crismou como um ato de conciliação política. Ela também endossou a fórmula político-militar de uma transição democrática lenta, gradual e segura! A ordem ilegal atrasou a crise letal, que se esboçara, e protegeu o nascimento da Nova República. Convertido em partido da ordem, o PMDB deu guarida à Aliança democrática, pela qual os chefes militares e os notáveis da ditadura iriam cobrar, em conúbio com a maioria conservadora da cúpula do PMDB e do Parlamento a continuidade da ordem ilegal forjada pela república institucional. ( FERNANDES, 2014 FERNANDES, Florestan. Florestan Fernandes na constituinte: leituras para a reforma política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; São Paulo: Expressão popular, 2014. : 77).

A mudança do sistema constitucional através de um Congresso Constituinte foi, finalmente, realizada graças à articulação do primeiro governo civil eleito pelo Colégio Eleitoral de 1985 após os anos em que o cargo da presidência havia sido ocupado por membros da ordem militar. A Constituinte, portanto, se desenhou com o objetivo de reduzir as transformações promovidas pela conjuntura crítica ( PILATTI, 2008 PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. ). A eleição indireta de Tancredo Neves, que havia assumido publicamente o compromisso de realizar um Congresso Constituinte (BABOSA, 2012), e de José Sarney, um civil que saíra ao fim do processo de transição dos quadros do Regime autoritário ( ARTURI, 2001 ARTURI, Carlos S. “O debate teórico sobre a mudança do regime político: o caso brasileiro”. Revista de sociologia e política, n. 17, 2001, pp 11-31. ), foi possível pelo acordo que se materializou na “Nova República” ( ARTURI, 2001 ARTURI, Carlos S. “O debate teórico sobre a mudança do regime político: o caso brasileiro”. Revista de sociologia e política, n. 17, 2001, pp 11-31. ) e trouxe consequências para a composição da constituinte, e, sobretudo, à forma de sua realização.

A maioria liberal-conservadora no Congresso de 1985, que incluía os senadores “biônicos” designados pelo regime em 1978, a vontade da presidência da República e as pressões dos militares impuseram uma Assembléia Constituinte formada pelos membros da Câmara dos Deputados e do Senado que seriam eleitos em 1986, derrotando assim a proposta da esquerda que almejava uma Assembléia composta de representantes eleitos exclusivamente para redigir a nova carta ( ARTURI, 2001 ARTURI, Carlos S. “O debate teórico sobre a mudança do regime político: o caso brasileiro”. Revista de sociologia e política, n. 17, 2001, pp 11-31. : 22-23)

Dos 559 (quinhentos e cinquenta e nove) parlamentares constituintes, entre eles os senadores “biônicos” indicados pelo regime, 217 (duzentos e dezessete) tiveram passagem pela legenda sustentáculo do Regime militar, a ARENA ( FLEISCHER, 1988 FLEISCHER, David. “Perfil sócio-econômico e político da constituinte”. In: GURAN, Milton (Coord.). O processo constituinte 1987-1988. Brasília: AGIL, 1988. ), 72 (setenta e dois) desses findaram ingressando nos quadros do PMDB ( FLEISCHER, 1988 FLEISCHER, David. “Perfil sócio-econômico e político da constituinte”. In: GURAN, Milton (Coord.). O processo constituinte 1987-1988. Brasília: AGIL, 1988. ) − herdeiro da oposição legal no período do bipartidarismo. Esses fatos evidenciam o transformismo político que marcou o processo constituinte e transicional no Brasil e a consolidação da maioria conservadora no Congresso Constituinte ( PILATTI, 2008 PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. ). Isso projetou nele uma ideia de continuidade e não de ruptura, ao ponto de alguns afirmarem ter sido a constituinte de 87o triunfo do Golpe Militar de 1964 10 10 Apesar da presença e da força de blocos conservadores e, em sentido contrário, da pequenez dos setores progressistas, a constituinte produziu um texto constitucional predominantemente progressista graças às vitórias pontuais dessa parcela progressista no Congresso Constituinte. Isso se deu tanto por fatores endógenos ao processo − como a capacidade dos progressistas de explorarem brechas procedimentais e a regra do jogo para pautarem as suas agendas ( PILATTI, 2008 ) −, como por elementos externos ao congresso − como a pressão dos grupos organizados da sociedade civil; o mecanismo das emendas populares ( MICHILES; et al., 1989 ; SILVA, 2007 ); e as audiências públicas ( SILVA, 2007 ). Ao longo de redação do novo texto constitucional, o cenário foi marcado por disputas regimentais entre progressistas e conservadores, como bem demonstra a tentativa do bloco conservador de, após o êxito político dos progressistas na Comissão de Sistematização, alterar o Regimento Interno na fase posterior para minar a influência progressista na votação final ( PILATTI, 2008 ). Fato é que os progressistas souberam também manejar as diferenças políticas entre os integrantes do bloco conservador, como demonstra a articulação daqueles para a eleição de Mário Covas como líder da maioria ( PILATTI, 2008 ). Por sua vez, como reação ao avanço da agenda dos progressistas, os conservadores constituíram o “centrão”, sem número suficiente para aprovar suas próprias posições, mas capaz de exercer o poder de veto e barrar as proposições mais radicais daquele outro setor ( PILATTI, 2008 ). Todo esse enfrentamento teve seu desfecho favorável ao setor progressista com a aprovação de um texto constitucional com marcante presença das propostas defendidas por eles, o que levou, inclusive, o presidente Sarney, representante da Nova República no executivo, a combater o projeto de texto constitucional proposto ( PILATTI, 2008 ). ( BARBOSA, 2012 BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil. Brasília: Câmara dos deputados, 2012. ).

A realização desse congresso constituinte provocou decepção entre o movimento chamado do “novo sindicalismo” que via na forma da Assembleia Constituinte Exclusiva um meio de romper definitivamente com a cultura política autoritária do regime militar ( BARBOSA, 2012 BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil. Brasília: Câmara dos deputados, 2012. ), e entre os setores da oposição que desejavam uma ruptura, como é possível verificar no diagnóstico realizado por Florestan Fernandes (2014 FERNANDES, Florestan. Florestan Fernandes na constituinte: leituras para a reforma política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; São Paulo: Expressão popular, 2014. : 56):

[...] Ela [a constituinte] deveria levar até o fundo a ruptura com a “Nova República” e a ordem ilegal que ela preserva e fortalece, como herdeira e continuadora da República institucional, isto é, do regime ditatorial dos generais e de seus aliados políticos, nacionais e estrangeiros [...].

Através do momento constituinte que representou a transição brasileira podemos verificar que o poder constituinte, antes de obedecer a fórmulas predefinidas ou normas do próprio ordenamento, se define a partir do processo histórico que o legitima tanto em sua forma como em seu conteúdo. Aqui resta demonstrada a complexidade que representa essa categoria que não consegue ser domada pelos institutos bem formulados do constitucionalismo moderno em face do seu caráter limítrofe entre dois campos: o direito e a política. Ademais, ainda mais importante, verificamos que a comunidade política decide por meio do exercício do poder constituinte a intensidade da passagem do tempo que se desenvolve no processo constituinte, e que a tensão entre permanência e mudança, passado e futuro se manifesta nos elementos que determinam a construção constitucional.

4. Conclusão

O poder constituinte, como categoria limítrofe entre a Política e o Direito, só pode ser compreendido quando analisado através do processo em que ele se manifesta, destarte, sua legitimidade, seu sujeito, seu projeto, sua temporalidade e as demais questões que surgem da sua práxis se afirmam no processo político em que ele se realiza.

O processo constituinte que permitiu a superação do regime autoritário para o de enunciado democrático no Brasil realizou uma transição política marcada por uma passagem de tempo lenta e longa, tendo sido iniciado ainda na década de 70 e, em que pese o pouco acordo quanto ao evento que representou o seu término entre os analistas do período, findou, no mínimo, no início da década de 90 tendo a Constituinte de 87 e a Constituição de 1988 como produtos e, ao mesmo tempo, impulsionadoras desse processo. Como produto, a constituinte carrega consigo as características desse processo de transição, como propulsora, imprime a ele novos elementos e reafirma antigos, tudo isso é evidenciado na disputa da forma que se realizaria a construção do novo sistema constitucional.

A Forma-Congresso Constituinte, adotada finalmente com a edição da Emenda Constitucional nº 26 (vinte e seis) em 27 de novembro de 1985, que permitiu o seguimento de um tempo de transição gradual e participação no processo de senadores indicados pelo regime, foi defendida e guiada pela “Aliança Democrática”, incluindo um presidente civil com caminho trilhado nos quadros do Regime Militar, pelos setores moderados da oposição legal. Isso porque essa forma possibilitaria fortalecer o continuísmo e o caráter gradual do processo de transição iniciado pelo regime. Como fruto dessa opção tática do regime e do embate pelo controle da passagem do tempo entre os setores que tentavam dar o ritmo da transição, se manifestou o transformismo dos atores políticos evidenciado na migração de parlamentares do partido apoiador da ditadura às legendas da oposição. Já a Forma-Assembleia Constituinte foi advogada por parcela da sociedade civil que se interessava pela ruptura completa com o regime e com toda a sua estrutura constitucional.

A constituinte significou um descompasso nos projetos iniciais da transição dos militares possibilitado, em grande medida, pela aceleração do processo imprimida pelas pressões populares da sociedade civil em reorganização. Mas, a intensidade de sua operação no tempo restou em todo o seu processo em disputa, até mesmo nas discussões sobre o seu regimento e seu funcionamento ordinário ( COELHO, [1988 COELHO, João Gilberto Lucas. “O processo constituinte de 1987”. In: BASTOS, Vânia Lomônaco; COSTA, Tânia Moreira (orgs.). Constituinte: questões polêmicas. Brasília: Universidade de Brasília; Brasília: Centro de Estudos e Acompanhamento da Constituinte, [1988?], pp. 09-16. ?]). Portanto, mais que uma querela de simples forma, o embate entre a Forma-congresso Constituinte e a Forma-Assembleia Constituinte representou um enfrentamento sobre o controle do tempo e do futuro que seria consolidado com a transição brasileira, estando em questão a ruptura ou a continuidade com um projeto político que persistiu na disputa de sentido do processo constituinte e da Constituição de 1988.

A experiência de construção constitucional brasileira de 1987 ajuda-nos a dimensionar como o poder constituinte tem intrínseca relação com o contexto político social de sua manifestação. Todos os elementos desse poder − legitimidade, projeto, significado e forma − se definem a partir do processo histórico que o legitima. O momento constituinte em questão ganhou sua legitimidade a partir da potência constituinte do povo, das manifestações de rua, das movimentações de diversos setores da sociedade brasileira quando estes resolveram que era hora de repensar as estruturas do país. O processo que produziu a Constituição Federal do Brasil de 1988 se deu por procedimento não previsto na ordem constitucional vigente. No entanto, construiu sua justificação em acordos institucionais e mobilizações políticas que se iniciaram na campanha das “Diretas Já”. Finalmente, a construção constitucional de 1987 encontrou sua via formal na edição da Emenda Constitucional nº 26 (vinte e seis) de 27 de novembro de 1985. Em todo o processo de produção da nova constituição do Brasil, os elementos fundamentais do poder constituinte estiveram em disputa, esta se projetou também no embate sobre a forma de realização da grande mudança constitucional.

O processo constituinte brasileiro de 1987 revela o caráter limítrofe entre Direito e Política do poder constituinte ao demonstrar que a sua titularidade, o seu significado e a sua forma estão sujeitos à disputa que se manifesta no processo histórico concreto. Nele se revelou embates entre elementos centrípetos e centrífugos que engendram uma dialética entre permanência e mudança presente de forma transversal em todo o processo constituinte. Ademais, a opção entre ruptura e continuidade e a passagem do tempo, se apresenta como um dos problemas a ser respondido por meio da decisão da política manifestada no exercício do poder constituinte, como bem demonstra o embate em torno do futuro a ser constituído pela transição instrumentalizada pela construção constitucional de 1987.

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    A questão da transição emergiu como problema teórico após as mudanças políticas ocorridas em meio ao século XX − ao norte global, com a ascensão dos governos autoritários em solo europeu e os seus posteriores declínios, e ao sul, com o fim do apartheid na África do Sul e dos regimes autoritários pela América Latina responsáveis por inúmeras violações a Direitos Humanos. Sendo assim, a transição de que trata a ciência política contemporânea, a historiografia e até o Direito, com a disciplina da “Justiça de Transição”, tem intrínseca relação com a democratização e com a categoria da democracia, principalmente na sua dimensão político-institucional – principal objeto investigativo para os adeptos da transitologia (MONCLAIRE, 2001) MONCLAIRE, Stéphane. “Democracia, transição e consolidação: precisões sobre conceitos bestializados”. Revista de sociologia e política, n. 17, 2001, pp. 61-74. –, uma vez que o movimento teórico e político que forjou enquanto categoria a transição se posiciona em um contexto de superação de grandes traumas nacionais e globais, e, sobretudo, na constituição de regimes que se contrapõem ao passado autoritário.
  • 2
    Não há consenso na literatura quanto ao significado da categoria da Democracia. Mas é inegável que, ao se falar em transição de regime político, se parte de um ponto a outro, de um regime para outro com conformações distintas. Nesse sentido, a noção de regime de enunciado democrático enquanto fim da transição em oposição ao passado autoritário possui grande capacidade explicativa no que tange à passagem de um regime para outro. Permitindo que não sejamos aproximados a uma compreensão minimalista da democracia em sua face normativa, que reduziria a democracia a um modelo pronto a ser adotado ou não por determinado ente. O enunciado democrático, destarte, representa a democracia como regime político em sua dimensão político-institucional, − englobando um ambiente livre para criação de Direitos, como caracterizado por Marilena Chauí (2006) ______. Simulacro e poder. São Paulo: Perseu Abramo, 2006 ; e de Carlos Arturi (2001) ARTURI, Carlos S. “O debate teórico sobre a mudança do regime político: o caso brasileiro”. Revista de sociologia e política, n. 17, 2001, pp 11-31. , que enfatiza a dimensão político-institucional e identifica a democracia com mecanismos de autorização e legitimação de governos, de escolha de indivíduos que tomam decisão em um Regime Democrático
  • 3
    A teoria constitucional moderna elaborou sua noção clássica de poder constituinte tendo como ponto de partida as revoluções burguesas. Por isso, para ela, há uma vinculação insuperável entre revolução e poder constituinte, o que desenhou uma identificação da ativação do poder constituinte com momentos de ruptura total com a ordem (CABALLERO, 2008) CABALLERO, Santiago Berríos. Poder constituyente en Bolivia. La paz: Producciones graficas AVC, 2008. . Essa busca pelo momento de ruptura gera uma perspectiva normativista para o estudo do fenômeno do poder constituinte e se justifica pela associação entre o poder constituinte e o paradigma moderno de revolução como superação violenta de toda a ordem anterior (ARATO, 2000) ARATO, Andrew. Civil society, constitution, and legitimacy. New York: Rowman & Littlefield, 2000. . A concepção de poder constituinte como ruptura radical encontra esse fenômeno apenas em grandes revoluções de paradigma moderno.
  • 4
    Mencionamos aqui o contexto europeu por se debruçar o autor em comento na experiência histórica do Estado Moderno em seu continente. No entanto, em solo brasileiro, essa realidade não se distingue. A ditadura que se instaurou com o golpe de 1964, por exemplo, utilizou dessa situação antagônica da suspensão da ordem em nome de sua manutenção e utilizou de legislações de caráter de exceção, os atos institucionais, para suspender ou limitar direitos. Todo esse contexto da ditadura militar também se deu com tentativas de institucionalizar o Estado de Exceção implantado. Isso finda confirmando a tese de Agamben de que o direito elabora mecanismos para incorporar para si o seu oposto com o objetivo de manter a ordem mesmo na sua ruptura. Cf. CHUERI, Vera Karam; CÂMARA, Heloísa Fernandes. (Des)ordem constitucional: Engrenagens da máquina ditatorial no brasil pós-64. Lua Nova, n. 95, p. 259-288, 2015.
  • 5
    Categoria desenvolvida por Codato para descrever as características elementares do processo de transição no Brasil que condicionaram a formação do sistema político atual. Cf. CODATO CODATO, Adriano Nervo. “Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia”. Revista de sociologia e política, n. 23, 2005, pp. 83-106. , Adriano Nervo. Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia. Revista de sociologia e política, n. 23, nov. 2005.
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    Um exemplo dessas medidas limitadoras das instituições que caracterizam a ambiguidade institucional foi o pacote de abril realizado no período da transição, mais especificamente durante o governo Geisel, que consistia em uma série de alterações no sistema jurídico brasileiro. Todas elas, sob a justificativa da reforma no judiciário, minavam a influência da oposição institucional, que ganhara cadeiras no Congresso Nacional suficientes para barrar alterações constitucionais em virtude do quórum qualificado. Com isso, o regime tentava evitar que a situação tivesse de negociar com a oposição, e garantir a permanência do controle do processo de abertura sob suas mãos. Cf. BARBOSA BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil. Brasília: Câmara dos deputados, 2012. , Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil. Brasília: Câmara dos deputados, 2012.
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    A disputa pela forma necessária para a realização da construção constitucional de 1987 não se limitou aos agentes políticos em sentido estrito. Nessa batalha, fortalecendo a tese que a produção teórica integra o enfrentamento social que põe em movimento a dialética entre permanência e mudança do poder constituinte, teóricos do direito constitucional, como Paulo Bonavides (2010) BONAVIDES, Paulo. Constituinte e constituição: a democracia, o federalismo, a crise contemporânea. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. , realizaram verdadeira campanha contrária à forma congressual de produção do texto constitucional. Para esse autor, “[...] a constituinte, da maneira como foi convocada, é tão-somente um episódio da histórica constitucional em que as oligarquias, buscando sobreviver, evitaram o encontro do povo com sua própria soberania” (BONAVIDES, 2010: 31) BONAVIDES, Paulo. Constituinte e constituição: a democracia, o federalismo, a crise contemporânea. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. . Suas críticas à forma congressual perpassaram pela contestação do seu jeito responsável por sua convocação − o poder executivo que imprimiu os desvios autoritários do regime que era deposto −; pela ausência de qualquer procedimento plebiscitário; pela impossibilidade do poder constituído − através do congresso eleito − exercer o poder constituinte; pela extraordinária concentração de poderes no legislativo constituído que se promoveria; e pela composição do congresso – especialmente em face da presença de senadores biônicos e da representação exclusiva de interesses partidário e oligárquicos ( BONAVIDES, 2010 BONAVIDES, Paulo. Constituinte e constituição: a democracia, o federalismo, a crise contemporânea. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. ). O mesmo ponto de vista defendeu José Afonso da Silva (2007) SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular. São Paulo: Malheiros, 2007. para quem não haveria forma de dar legitimidade à outorga de poderes constituintes ao Congresso Nacional eleito. Em oposição ao defendido por Bonavides e Afonso da Silva, Manoel Gonçalves Ferreira Filho advogou que a via correta de reformulação da ordem constitucional só poderia ocorrer através da concessão de poderes revisionais ao Congresso Nacional. Para este último a constituinte deveria representar a institucionalização permanente dos princípios da “revolução de março”, ou seja, do golpe militar ( PAIXÃO, 2014 PAIXÃO, Cristiano. “Autonomia, democracia e poder constituinte: disputas conceituais na experiência constitucional brasileira”. Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, n. 1, 2014, pp. 415-458. ).
  • 8
    De fato, não se pode afirmar que a realização de uma constituinte era uma unanimidade em toda a oposição ao regime que se depunha. A esquerda brasileira do período era composta por uma pluralidade de agrupamentos que adotaram ao longo da resistência à ditadura táticas diversas e defendiam também caminhos distintos para o fim do regime autoritário. Constatamos que os instrumentos que hegemonizaram o bloco histórico da oposição ao regime à esquerda, como o recém-criado Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Comunista do Brasil (PC do B) e o novo sindicalismo defendiam essa bandeira ( LIMA, 2003 LIMA, Luziano Pereira Mendes de. Congresso constituinte brasileiro (1986-1988): Expectativas, atuação e avaliação dos partidos comunistas e do partido dos trabalhadores. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 21., 2003, João Pessoa. Anais... João Pessoa: ANPUH, 2003. ), assim como a oposição institucional, o MDB. Porém, parcela da esquerda enxergava com desconfiança a movimentação pela constituinte uma vez que vislumbrava a possibilidade de, por meio dela, haver uma consolidação de um projeto conservador aquém de uma estratégia revolucionária ( GARCIA, 1985 GARCIA, Marco Aurélio. A transição e a constituinte. Lua Nova, São Paulo, v. 1, n. 4, 1985, pp. 16-19. Disponível em<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451985000100004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 18 out. 2017.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=...
    ).
  • 9
    Também em torno do enfrentamento pela forma de construção constitucional se traduzia disputa pelo caráter das mudanças que se promoveria com a transição. A chave de leitura da revolução passiva gramsciana ( GRAMSCI, 2002 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. V. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. ) pode nos auxiliar a compreender as temporalidade em conflito. A revolução passiva nos indica uma tática de pôr o tempo em movimento através de movimentações dos detentores da hegemonia que combina restauração, ação pelo alto, com renovação, através de concessão a pautas populares. A revolução passiva trata de fazer o futuro continuidade do núcleo essencial do passado-presente. Essa passagem do tempo promovida pela revolução passiva pode fazer uso do transformismo, que consiste incorporação de intelectuais orgânicos da oposição no bloco histórico no poder para consolidar um consenso em torno das modificações promovidas por ela ( GRAMSCI, 2002 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. V. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. ). A consolidação de uma revolução passiva, portanto, se fez presente em um dos polos de enfrentamento quanto ao futuro que seria consolidado com a transição.
  • 10
    Apesar da presença e da força de blocos conservadores e, em sentido contrário, da pequenez dos setores progressistas, a constituinte produziu um texto constitucional predominantemente progressista graças às vitórias pontuais dessa parcela progressista no Congresso Constituinte. Isso se deu tanto por fatores endógenos ao processo − como a capacidade dos progressistas de explorarem brechas procedimentais e a regra do jogo para pautarem as suas agendas ( PILATTI, 2008 PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. ) −, como por elementos externos ao congresso − como a pressão dos grupos organizados da sociedade civil; o mecanismo das emendas populares ( MICHILES; et al., 1989 MICHILES, Carlos et al. Cidadão constituinte: a saga das emendas populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. ; SILVA, 2007 SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular. São Paulo: Malheiros, 2007. ); e as audiências públicas ( SILVA, 2007 SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular. São Paulo: Malheiros, 2007. ). Ao longo de redação do novo texto constitucional, o cenário foi marcado por disputas regimentais entre progressistas e conservadores, como bem demonstra a tentativa do bloco conservador de, após o êxito político dos progressistas na Comissão de Sistematização, alterar o Regimento Interno na fase posterior para minar a influência progressista na votação final ( PILATTI, 2008 PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. ). Fato é que os progressistas souberam também manejar as diferenças políticas entre os integrantes do bloco conservador, como demonstra a articulação daqueles para a eleição de Mário Covas como líder da maioria ( PILATTI, 2008 PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. ). Por sua vez, como reação ao avanço da agenda dos progressistas, os conservadores constituíram o “centrão”, sem número suficiente para aprovar suas próprias posições, mas capaz de exercer o poder de veto e barrar as proposições mais radicais daquele outro setor ( PILATTI, 2008 PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. ). Todo esse enfrentamento teve seu desfecho favorável ao setor progressista com a aprovação de um texto constitucional com marcante presença das propostas defendidas por eles, o que levou, inclusive, o presidente Sarney, representante da Nova República no executivo, a combater o projeto de texto constitucional proposto ( PILATTI, 2008 PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. ).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
  • Data do Fascículo
    Set 2018

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2017
  • Aceito
    21 Nov 2017
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