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Modernidade, Pós-Modernidade e Emancipação na Perspectiva da Ética da Alteridade

Modernity, Postmodernity and Emancipation in the Perspective of the Ethics of Alterity

Resumo

No mundo contemporâneo houve um enfraquecimento das utopias modernas, com isso uma relativização de certos valores e mesmo de algumas bandeiras morais da modernidade. Ao mesmo tempo, aconteceu uma drástica mudança nos padrões de socialidade, com o declínio das instituições tradicionais e fortalecimento das relações gregárias de natureza comunitária. Isso abre espaço para um repensar do sentido e do papel da ética. A ética deve ser entendida, então, a partir da relação com o outro. Propõe a ideia de ética da alteridade, por propiciar que o outro exista como potência, como força que pode construir-se a si mesma. Aqui reside o sentido mais profundo da ideia de emancipação. Também propõe como tarefa especial da ética a consideração pelo sujeito da injustiça social, de forma a contribuir com as condições de possibilidade de autoemancipação do oprimido.

Palvras-chaves:
Modernidade e pós-modernidade; Ética da alteridade; Emancipação

Abstract

In the contemporary world there has been a weakening of modern utopias, with a relativization of certain values and even some moral flags of modernity. At the same time, there has been a drastic change in patterns of sociality, with the decline of traditional institutions and the strengthening of community-based gregarious relations. This opens space for a rethinking of the meaning and role of ethics. Ethics should be understood, then, from the relationship with the other. It proposes the idea of ethics of otherness, by providing that the other exists as a potentiality, as a force that can build itself. Herein lies the deeper meaning of the idea of emancipation. It also proposes as a special task of ethics the consideration by the subject of social injustice, in order to contribute to the conditions of possibility of self-emancipation of the oppressed.

Keywords:
Modernity and postmodernity; Ethics of alterity; Emancipation

I) Introdução

Segundo Sérgio Paulo Rouanet, os ingredientes principais do projeto civilizatório da modernidade são os conceitos de universalidade, individualidade e autonomia:

A universalidade significa que ele visa todos os seres humanos, independentemente de barreiras nacionais, étnicas ou culturais. A individualidade significa que esses seres humanos são pensados como pessoas concretas e não como integrantes de uma coletividade e que se atribui valor ético positivo à sua crescente individualização. A autonomia significa que esses seres humanos individualizados são aptos a pensarem por si mesmos, sem a tutela da religião ou da ideologia, a agirem no espaço público e a adquirirem pelo seu trabalho os bens e serviço necessários à sobrevivência material. 1 1 ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-Estar na Modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1993, p.9.

Entretanto, como reconhece o próprio autor, este projeto encontra-se em verdadeiro apuro. A universalidade cedeu lugar para particularismos de todas as ordens, que, muitas vezes, explodem em manifestações de intolerância e violência, ou mesmo em profundos conflitos étnicos e culturais decorrentes de diferentes tipos de essencialismos. 2 2 Para uma crítica do essencialismo Cf. MOUFFE, Chantal. O Regresso do Político . Lisboa: Gradiva, 1996, pp. 33-36. A Individualidade degenerou sob a forma de hiperindividualismo, onde não há respeito ou solidariedade e a figura do outro aparece como indiferente, no caso da massificação, ou como ameaça, no caso da competição. E, finalmente, a autonomia parece ser a dimensão mais comprometida, seja por totalitarismos de estado, seja pelo totalitarismo do capital e dos mercados. 3 3 Boaventura de Souza Santos, desde a década de noventa, fala que o projeto da modernidade se sustenta sobre dois pilares: regulação e emancipação. Enquanto o primeiro é constituído pelos princípios de estado, mercado e comunidade, o segundo é constituído pelas racionalidades estético-expressiva (arte e literatura), moral-prática (ética e direito) e cognitivo-instrumental (ciência e técnica). Contudo, reconhece que o pilar da regulação, sobretudo pelo princípio do mercado, se sobrepôs ao pilar da autonomia. E mesmo no pilar da emancipação, a racionalidade cognitivo-instrumental, em alguma medida, controlou as demais. Tudo isso está na base da crise do projeto da modernidade. Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade . São Paulo: Cortez, 1997, pp. 75-114 e 235-280.

A par dessa crise, ou como consequência dela, o projeto de modernidade também vive sérios problemas com alguns de seus fundamentos jurídico-políticos mais importantes, tais como o conceito de soberania. É o caso da incontornável tensão entre o Estado-nação e os diferentes modos de globalização, na medida em que esta desenvolve um processo onde certa condição ou instituição consegue estender sua influência por todo o globo 4 4 SANTOS, Boaventura de Sousa. Por Uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos In Revista Lua Nova, No 39, São Paulo: CEDEC, 1997, p. 108. , produzindo padrões de regulação econômica, administrativa e jurídica que transcendem o poder de controle do estado nacional, colocando em questão o modelo de legitimidade/soberania sobre o qual se ergueu o pensamento moderno desde a Paz de Vestfália.

Diante desse novo momento, aonde as descontinuidades vão se produzindo mais rapidamente do que as normatizações, fica em xeque o próprio projeto civilizatório da modernidade. Neste debate, é possível delimitar, ao menos, três campos conceituais: (1) existem aqueles que reconhecem certa crise civilizatória, mas continuam apostando nas categorias modernas como forma de superação desta crise (p. ex. Habermas); (2) outros analisam as debilidades e fragilidades do projeto moderno, mas não diagnosticam nenhuma ruptura ou novo período civilizatório, limitando-se à crítica (p. ex. Weber e Foucault); (3) por fim, há aqueles que apontam a crise da modernidade como a sua própria superação, admitindo o início de um novo momento histórico marcado por novas formas de socialização, expressão e conhecimento (p. ex. Maffesoli e Boaventura Santos). É em meio a este polêmico debate que surgem expressões como pós-modernidade ou transmodernidade, embora não haja um consenso em torno de um sentido único para tais expressões.

Nesse turbulento contexto do projeto civilizatório moderno, permanece a questão fulcral: como pensar a emancipação das pessoas num contexto de crise dos ideais de universalidade, individualidade e autonomia? A questão ganha tons dramáticos quando se considera a urgência daqueles que vivem diferentes formas de violência resultantes de injustiças sociais, seja por privações materiais graves, seja por opressões decorrentes de hierarquias de identidades que geram preconceitos e discriminações.

II) O Discurso Forte da Modernidade

Embora não seja pouco comum o recurso ao conceito de modernidade para explicar ou mesmo adjetivar certas situações ou fenômenos, ainda não existe um consenso quanto ao significado da palavra. De um ponto de vista mais acadêmico, há muita diversidade quanto à definição do que seja moderno ou modernidade, sem embargo de certos elementos de análise que são comuns ao tema. De um ponto de vista do senso comum, o moderno se liga à ideia de “modernização” (modernizar ou modernizado) que, por sua vez, se liga à ideia de eficiência, traduzindo uma intuição de que o moderno ou modernizado é melhor do que aquilo que lhe antecedia. É assim, por exemplo, quando se fala em modernizar o estado ou modernizar uma empresa. Passa-se a ideia de que o estado terá uma administração mais eficiente e a empresa uma produção mais eficiente. Por si só, isso já oferece uma noção da força ideológica do conceito de modernidade.

Buscando marcos para delimitar o período moderno, a historiografia costuma apontar alguns acontecimentos históricos considerados como verdadeiras balizas. Os fatos mais citados são a Reforma Protestante, a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. Uma reforma e duas revoluções, conforme os nomes já consagrados, evidenciam que a modernidade surge de uma profunda vocação para a ruptura e a mudança. A Reforma Protestante rompe com o tradicional monopólio da Igreja Católica na formulação da doutrina cristã e institui uma nova relação entre os homens e Deus, manifestando a implicação teológica da modernidade. A Revolução Industrial rompe com a base produtiva do feudalismo e institui uma nova relação entre produção e comércio, manifestando a implicação econômica da modernidade. A Revolução Francesa rompe com a estrutura estamental do Ancien Régime e institui uma nova relação entre estado e sociedade civil, manifestando a implicação política da modernidade. Portanto, falar de modernidade é falar também, e a um só tempo, de teologia, economia e política, como conceitos que lhe são correlatos e fundamentais. No entanto, Hannah Arendt ao falar da era moderna aponta outros dois fatos que considera determinantes: a descoberta da América e a invenção do telescópio. 5 5 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, pp. 260-263. O primeiro encarna, em teoria, aquele otimismo cultural próprio da modernidade, agora desnudado sob a forma de um violento eurocentrismo que buscou subjugar o Novo Mundo imaginando poder reconstruir o paraíso terreno sem cometer os mesmos erros já praticados no Velho Mundo. Entre o sonho de Colombo e a realidade da colonização/invasão, muitas vidas se perderam no que talvez tenha sido o maior genocídio da humanidade. O outro fato apontado por Hannah Arendt, a invenção do telescópio, é sim o ícone maior e principal fundamento da modernidade.

Evidentemente, não se trata da invenção do telescópio isoladamente 6 6 A invenção do telescópio costuma ser atribuída ao fabricante de lentes holandês Hans Lippershey, em 1608. , mas do seu desenvolvimento por Galileu Galilei e de todas as grandes transformações que se sucederam a partir daí. Dessa maneira o telescópio pode ser tomado como a grande metáfora do pensamento que realmente revolucionou a tessitura ontológica da Idade Média provocando sua descontinuidade: a ciência. Para compreender melhor a questão, voltemos a Galileu e ao telescópio. É sabido que este cientista sofreu duro processo eclesiástico por parte da Inquisição, chegando inclusive a ser preso, e acabou se retratando de suas afirmações contrárias ao pensamento escolástico dominante. Contudo, as linhas básicas de suas teorias se sustentavam na defesa da astronomia de Copérnico que, anteriormente, já havia negado o geocentrismo. Então, por que tanta dureza no tratamento com Galileu se o que ele afirmava (heliocentrismo x geocentrismo) já não era assim tão original? Porque coube a ele não apenas falar, mas também provar suas teorias por intermédio do Telescópio. A partir de Galileu, o procedimento científico padrão passou a combinar uma linguagem matemática, mais exata e precisa, com experimentos capazes de demonstrar empiricamente suas teorias. Com efeito, houve um radical deslocamento do lugar da verdade, que deixou de ser a religião para se instalar na ciência. Dito de outra maneira, a verdade saiu da revelação e foi para a razão, encarnada, sobretudo, no método e na retórica da ciência moderna. 7 7 ARENDT, Hannah. Ob. Cit, pp. 269-285. Cf. TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos . São Paulo: Loyola, 2000, pp. 13-31. SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência . São Paulo: Cortez, 2000, pp. 60-68.

Portanto, se a ideia de modernidade está ligada às novas compreensões em torno de conceitos teológicos, políticos e econômicos, é na categoria de ciência/tecnologia que ela encontra seu mais alto padrão de definição, representação ou expressão. Evidentemente, toda essa euforia epistemológica só foi possível graças às sucessivas rupturas que vão se produzindo, sobretudo a partir do século XVI, onde o humanismo renascentista gera uma nova crença na importância e na centralidade do ser humano. Se o próprio mundo não é mais visto como um cosmo fechado, mas como um universo infinito, então o centro pode estar em qualquer lugar, inclusive em cada indivíduo. Em todas as áreas do conhecimento – economia, política, artes, medicina, geografia – o homem passa a ser reconhecido como um protagonista que vai, paulatinamente, saindo da condição de “estar sujeito a” para situar-se na condição de “ser sujeito de”. Na verdade, trata-se do próprio conceito de sujeito que é reinventado para designar aquele que pratica a ação. Pratica a ação porque controla a ação, controla os fenômenos sociais e, inclusive, os naturais. Tudo isso é possível porque o homem se destaca não apenas como ser animal, mas, sobretudo, como ser racional. É na racionalidade que reside o poder do sujeito que, uma vez “esclarecido” pode se libertar de todas as amarras obscurantistas. Trata-se do próprio credo Iluminista, tão bem exposto por Kant:

A ilustração é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele é o próprio responsável. A menoridade é a incapacidade de fazer uso do entendimento sem a condução de um outro. O homem é o próprio culpado dessa menoridade quando sua causa reside não na falta de entendimento, mas na falta de resolução e coragem para usá-lo sem a condução de um outro. Sapere aude! ‘Tenha coragem de usar seu próprio entendimento’ – esse é o lema da ilustração. 8 8 KANT, Emanuel. O que é a ilustração InWEFFORT, Francisco (Org.). Os Clássicos da Política. Vol. 2, São Paulo: Ática, 1993, pp. 83-84.

Com o poder da razão, o sujeito passa a ser entendido como aquele que pode conhecer e controlar a realidade mesma. A razão possibilita o cálculo e o discernimento, tornando o sujeito livre e capaz, tanto no campo da ciência (cálculo) como no campo da moral (discernimento). É a grande aspiração da autonomia que parece realizar-se. O sujeito autônomo é capaz de responder por si mesmo e conduzir sua vontade conforme seus interesses. Surge a figura do “sujeito de direito”, capaz para exercer direitos e deveres inerentes à sua natureza e posição social. Por essa certa perspectiva jurídica, fala-se em indivíduos que pela sua própria condição humana, são vistos como portadores de direitos universais e inalienáveis que constituem não apenas um patrimônio moral, mas também jurídico e que deve ser protegido de qualquer arbitrariedade, seja da sociedade ou do estado.

Impulsionada por esse otimismo cultural, a modernidade começa a alicerçar as fundações de uma nova ordem. Se num primeiro momento foi caracterizado pelo seu poder revolucionário, neste segundo momento o pensamento moderno pode ser caracterizado por um profundo conservantismo. Conservar é garantir a ordem, a nova ordem, tomada como expressão maior das conquistas modernas. Na perspectiva da ordem moderna, a sociedade é traduzida por um conjunto de conhecimentos científicos – ciências sociais – que, uma vez dominados pelo homem, garantem um caminho previsível e necessário aos acontecimentos. Trata-se de uma espécie de sociedade epistemológica que naturaliza a ordem social, controlando as ações humanas e fazendo com que os fenômenos sociais-históricos sejam analisados de forma análoga aos fenômenos naturais. Alain Touraine enfatiza a dimensão ordenadora da ideologia modernista:

Porque as sociedades onde se desenvolveram o espírito e as práticas da modernidade procuravam mais pôr em ordem que pôr em movimento: organização do comércio e das regras de câmbio, criação de uma administração pública e do Estado de direito, difusão do livro, crítica das tradições, das proibições e dos privilégios. É a razão, mais que o capital e o trabalho, que desempenha então o papel principal. Esses séculos são dominados pelos legistas, filósofos, escritores, todos homens do livro, e as ciências observam, classificam, ordenam para descobrir a ordem das coisas. 9 9 TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 36.

Rapidamente a ordem se transforma numa “metafísica da ordem” onde esta é desenraizada de suas condições históricas para ser compreendida como um valor em si. A ordem se converte num princípio inatacável por possibilitar a realização da abundância, da liberdade e da felicidade. 10 10 TOURAINE, Alain. Ob. Cit., p. 38. Trata-se de uma concepção de bem estar que irá perpassar toda a modernidade, especialmente os séculos XIX e XX, por meio de um crescente e sofisticado processo de industrialização e juridicização. Numa ponta (econômica), a produção ancorada em técnicas científicas produz em massa para satisfazer, com custos reduzidos, as necessidades materiais da população; noutra ponta (política), os indivíduos se crêem livres por estarem submetidos, apenas, ao império da lei, onde o direito é apresentado como único instrumento legítimo de composição dos conflitos. Com efeito, a ordem social é, antes de qualquer coisa, uma ideologia de bem estar que promete conforto e segurança.

III) Crítica e crise da modernidade

A força libertadora da modernidade enfraquece à medida em que ela mesma triunfa. O apelo à luz é perturbador quando o mundo está mergulhado nas trevas e na ignorância, no isolamento e na servidão. 11 11 TOURAINE, Alain. Ob. Cit., p. 99.

A contradição central do pensamento moderno reside exatamente no conflito entre sua proposta revolucionária e sua prática conservadora. 12 12 Em outro trabalho, explorei esse aspecto conservador da modernidade a partir da análise que Walter Benjamin faz da obra crítica do porta francês Charles Baudelaire. Benjamin registra como o moderno não significa necessariamente o novo pois ele se opõe ao antigo e não ao sempre igual. Cf. CUNHA, José Ricardo. Duas Almas. In revista Direito, Estado e Sociedade nº 6. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1995, p 143-145. Pensando o problema em termos dialéticos, pode-se afirmar que estes movimentos de mudança e mantença produziram como síntese uma nova ordem, instituída por forças revolucionárias que se transformaram em forças conservadoras, conferindo à ordem resultante um tom reacionário, que por isso mesmo acaba por se enfraquecer e produzir sérias lesões no seu próprio organismo. É claro que esse tom reacionário não é exclusividade das forças políticas conservadoras, podendo as forças consideradas progressistas serem tão intransigentes e reacionárias como os conservadores. Albert Hirschman num ensaio dedicado ao estudo da retórica da Modernidade 13 13 HIRSCHMAN, Albert. A Retórica da Intransigência: perversidade, futilidade, ameaça. São Paulo: Cia das Letras, 1992, p. 138. toma o exemplo da ação social para demonstrar como conservadores e progressistas podem assumir um tom intransigente, onde os primeiros afirmam que a mudança será desastrosa ou ineficaz, pois atenta contra uma ordem necessária da sociedade, já os segundos dizem que não mudar levará ao caos e destruição, porque as forças da história já estão em marcha. Note-se que no exemplo oferecido, ambos os discursos não buscam fundamentos mais sólidos para justificarem-se e procuram sua sustentação apenas na força intransigente de suas retóricas reacionárias. O dado fundamental é que seja na ordem concreta ou na ordem aspirada o sujeito parece estar confinado num inescapável determinismo.

Na crise do paradigma da modernidade, o ser humano se encontra, de certa forma, indefeso ao interior de uma ordem que produz destruição e morte, revelando, paradoxalmente, certa irracionalidade. O movimento do capital especulativo, a sucessão de guerras étnicas, os recessivos ajustes macroeconômicos, a intolerância dos fundamentalismos e a submissão de importantes descobertas científicas aos interesses do lucro antes da vida, são alguns exemplos dessa fragilidade humana diante de uma ordem que enlouqueceu pelo próprio esclarecimento, tal qual Frankenstein. A fantasia não está nem tão distante da realidade; basta lembrarmo-nos do Projeto Genoma Humano que pretende conhecer, mapear, sequenciar e controlar boa parte dos genes que codificam proteínas do corpo humano, estabelecendo um novo tipo de identidade. 14 14 Cf. http://www.genome.gov/10001772 acessado em julho de 2018. Cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Genome_project acessado em julho de 2018. Agora não seremos identificados apenas pela nacionalidade, pela etnia, pelo sexo e pela inscrição civil, mas também por nossa cadeia de DNA. Da mesma forma, não seremos apenas controlados por nossa nacionalidade, etnia, sexo e inscrição civil, mas também por nossa cadeia de DNA. Imagine-se, numa hipótese não tão absurda, que um casal poderá fazer uma fertilização in vitro, por meio de alguma técnica de reprodução assistida, de vários embriões e pelo mapeamento do DNA escolher como filho apenas aquele que tenha uma identidade genética que lhe agrade, se “desfazendo” dos demais. Some-se a isso, a questão das empresas que solicitaram a patente de genes que mapearam, o que implicaria submeter a produção de medicamentos específicos para esses genes que estejam associados a doenças à lógica brutal do enriquecimento de donos e acionistas dessas empresas. As consequências que se pode vislumbrar são tão assustadoras como o monstro de Frankenstein, sendo que nesse caso a ficção já é realidade.

Como vimos, a ideia de uma ordem irresistível é o ponto nevrálgico da crise da modernidade. Tal questão também pode ser analisada como um conflito entre duas perspectivas, onde uma acaba por dominar a outra, ao menos superficialmente. As perspectivas colocadas são a do ser e a do devir, ou da permanência e da mudança. Embora a questão não seja nova e remonte mesmo à antiguidade clássica na polêmica entre os pensadores pré-socráticos Heráclito de Éfeso (devir) e Parmênides de Eléa (ser), ela foi retomada no centro do paradigma moderno, sobretudo a partir da ciência moderna que toma a realidade como uma ordem necessária constituída por padrões que constituem leis gerais. Essa predominância da permanência sobre a mudança ou do ser sobre o devir é analisada por Carlos Plastino:

A racionalidade intrínseca dessa ordem, por sua vez, tornava possível exprimi-la em termos matemáticos, reduzindo a mudança a uma dinâmica apreensível em trajetórias determinadas e reversíveis. Assim, a possibilidade de conhecer essa ordem e sua dinâmica viabiliza uma ciência potencialmente onisciente, capaz de calcular uma determinada situação a partir de qualquer outra, em um dado momento do passado e do futuro. 15 15 PLASTINO, Carlos Alberto. A Crise dos Paradigmas e a Crise do Conceito de Paradigma in BRANDÃO , Zaia (org.) A Crise dos Paradigmas e a Educação. São Paulo: Cortez, 1994, p. 32-33.

O aparente irresistível determinismo universal reduziu o devir e a criação a uma mera e previsível relação de causalidade, onde todos os fenômenos são compreendidos de um ponto de vista externo ao sujeito que foi confinado à posição de mero observador. Mesmo o controle do tempo parece possível nessa perspectiva que admite tudo como previsível. O maior ícone dessa perspectiva foi, sem dúvida, o astrônomo e físico da corte de Napoleão Bonaparte chamado Laplace, que escreveu:

Devemos considerar o estado presente do Universo como efeito de seu estado passado e como causa daquilo que virá a seguir. Uma inteligência que, num único instante, pudesse conhecer todas as forças existentes na Natureza e a posição de todos os seres que nela existem poderia apresentar numa única fórmula uma lei que englobaria todos os movimentos do Universo, desde os maiores até os mínimos e invisíveis. Para ela, nada seria incerto e, aos seus olhos, o passado o futuro e o presente seriam um único e só tempo. 16 16 LAPLACE apudCHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994, p. 264.

A ideia laplaceana de controle absoluto do universo por meio do princípio do determinismo universal ficou conhecida como demônio de Laplace. Nesse paradigma de radical permanência o tempo é mera abstração perceptiva e a realidade é tomada como pronta e acabada. Tudo pode ser conhecido e controlado por cálculos de probabilidades que analisam os fatores para apontar os resultados mais ou menos possíveis. Como no século XIX imperou a física sobre as demais áreas da ciência, esse modelo fisicista dominado pela ideia do determinismo universal acabou por influenciar as demais áreas de conhecimento e mesmo as chamadas ciências sociais foram produzidas e reproduzidas segundo esse modelo determinista, como se a história e o tempo nas sociedades fossem objetivos e, por isso mesmo, apreensíveis graças a sua suposta naturalidade. A ideia de um sujeito criador é abafada pelo conceito de indivíduo natural, com características e necessidades naturais, fazendo crer que seu comportamento e a organização da vida social podem ser previstos e controlados por métodos semelhantes aos das ciências da natureza. Essa reciprocidade entre natureza e vida social pode ser percebida, por exemplo, nas teorias que apresentam os direitos individuais como resultado da natureza humana. O problema central de uma teoria como essa é que “a-historicizando a experiência humana, esta teoria supõe que as motivações fundamentais dos homens sempre foram, são e serão as mesmas, em toda e qualquer sociedade”. 17 17 PLASTINO, Carlo Alberto. Ob. Cit., p. 36.

A crise da modernidade e a possível emergência de um novo paradigma societário deixam-se melhor compreender num estudo da realidade que, ironicamente, parte da própria física para alcançar as formas de organização social. Se o fisicismo – redução do paradigma científico ao modelo da física – já representou um perigo, agora parece representar uma oportunidade. Isso porque foi da própria física que surgiram as primeiras contestações contra esse modelo totalitário de ordem produzido pela modernidade. Físicos como Niels Bohr, Werner Heisenberg, Paul Dirac e Ilya Prigogine colocaram em xeque esse modelo epistemológico moderno que quer apresentar verdades ontológicas, mesmo que metafísicas. Contra o determinismo universal, Paul Dirac afirmou:

Neles (modelos deterministas) se admite em geral, que as leis da natureza foram sempre como são agora. Não há justificação para isso. As leis podem estar mudando e, em particular, as quantidades que são tomadas como constantes da natureza podem estar variando com o tempo cosmológico. Tais variações deixariam os construtores de modelos completamente perturbados. 18 18 DIRAC, Paul. Métodos em Física Teóricain SALAM, Abdus. A Unificação das Forças Fundamentais: o grande desafio da física contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 96.

Assim, no nível do estudo subatômico da matéria, a física quântica já descobriu que uma substância pode se apresentar quer como corpúsculo, quer como onda, ou seja, ora se concentra no espaço (corpúsculo), ora se estende no espaço (onda), sendo impossível o estabelecimento de uma causalidade determinista. Heisenberg descobriu que apenas se conhecendo o estado atual, não é possível prever a situação futura nem descobrir a situação pretérita de um fenômeno, dada a inconstância de forma e quantidade. De acordo com o novo paradigma quântico da física, o universo e a própria realidade não podem mais ser entendidos como um conjunto de fenômenos em equilíbrio, domados por leis universais da natureza. É forçoso reconhecer que existem instabilidades intrínsecas aos próprios fenômenos, observáveis nos fluxos e dissipações de energia. Entretanto, essa instabilidade ou esse caos cosmológico não significa destruição, mas a reabilitação do imprevisível e do acaso organizador como fatores constitutivos da realidade mesma. Ainda nessa perspectiva epistemológica, Prigogine nos dá uma boa ideia da ciência nesse novo paradigma quando afirma que “ela expressa nossas interrogações frente a um mundo mais complexo e mais inesperado do que poderia imaginar a física clássica. Tivemos, pois, que abandonar a tranquila quietude de já ter decifrado o mundo .” 19 19 Cf. PRIGOGINE, Ilya. Et alii. Ideias Contemporâneas. São Paulo: Ática, 1989, p. 59.

A ideia de uma ordem linear, tão cara à modernidade, nos dias de hoje vai cedendo espaço para um pensamento que compreende o mundo como uma organização complexa onde nem todos os fenômenos naturais e sociais são dados previamente. De efeito, a realidade pode ser tomada a partir de uma miríade de fatores interconectados, sendo que um não necessariamente prevalece sobre o outro. Dessa forma, a crise da modernidade põe em evidência a insuficiência daquele conhecido conceito de causalidade, pois para uma consequência pode haver, naquele momento, várias causas, assim como uma causa pode produzir várias consequências. Portanto, a palavra de ordem não é mais a certeza e sim a dúvida, não como mero imobilismo, mas como condicionante crítico para a construção de uma realidade que depende diretamente da força e da coragem da ação de um sujeito livre. A figura do indivíduo natural do liberalismo e de uma heróica classe operária que uma vez desalienada é protagonista da revolução, cedem lugar para um sujeito livre e criador que não é um mero reprodutor de práticas e conceitos fornecidos a priori. Desse ponto de vista, ao mesmo tempo filosófico e político, o sujeito não se caracteriza apenas pela racionalidade abstrata que opera relações de causalidade e prevê fenômenos. É claro que essa maneira de operar a realidade a partir de conceitos típicos de uma epistemologia mecânica, ainda tem espaço e guarda pertinência em certos campos ou aspectos da vida social. Certamente uma parte da realidade funciona mesmo como se fosse um relógio, mas essa ideia do mundo e da sociedade como uma grande engrenagem não é suficiente para explicar outras dimensões da realidade natural e cultural. Isso porque a verdadeira marca do sujeito está na sua singularidade, quer dizer, na sua capacidade criadora que lhe permite construir o seu mundo ao seu modo, onde os pré-condicionamentos podem ser absorvidos nessa dinâmica criadora gerando resultados imprevisíveis. Diferentemente dos animais, o ser humano não é plenamente suscetível à relação causal de estímulo e reflexo, podendo reagir de maneiras inesperadas diante de diversos estímulos ou mesmo, o que é mais interessante, diante dos mesmos estímulos. A historicidade do mundo humano e de sua cultura acontece exatamente pelo fato de seu mundo não estar desde sempre pronto, mas de ir se forjando de acordo com os sentidos que vão sendo estabelecidos processualmente a partir do encontro de sua consciência de si com sua consciência do mundo, gerando resultados sempre novos e imprevisíveis. Até porque não apenas os resultados são imprevisíveis como as próprias consciências de si e do mundo não são naturalmente dadas, mas vão se forjando como consciência histórica 20 20 Cf. GADAMER, Hans-Georg. O Problema da Consciência Histórica . Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998. , mediadas sempre pela relação com o outro.

Portanto, não é o mesmo ou o sempre idêntico da razão abstrata ou da ordem moderna que possibilita a existência, mas sim o próprio curso da história humana e dos processos de alteridade como relação com o outro e reconhecimento do diferente. Assim, a realização num mundo que não está desde sempre pronto, mas depende da ação do sujeito e de sua consciência histórica para fazer-se, está diretamente subordinada à capacidade de relação com o outro que não é para a consciência subjetiva mero ente manipulável, mas, este sim, um dado do mundo objetivo. Portanto negar o outro e sua liberdade é também negar o mundo onde se pretende existir, logo é negar-se a si e à possibilidade de existência. Ao contrário do surrado aforismo que afirma que a liberdade de um acaba quando começa a liberdade de outro, é possível e correto dizer que a liberdade de um começa exatamente onde começa a liberdade de outro, pois sujeitos históricos e mundo são mediados pela mesma liberdade.

Sujeitos (eu e o outro), mundo, liberdade e direitos não podem ser dissociados como se possuíssem cada um uma racionalidade própria e autônoma, colocada em referência à outra apenas em relação de causalidade. Ao contrário, e a crise dos parâmetros modernos evidencia isso, esses elementos formam um todo complexo que deve ser tomado numa perspectiva conjuntiva e não disjuntiva, portanto não numa relação mecânica, tal qual aquele grande relógio que quando para de funcionar resolve-se o problema substituindo-se a peça defeituosa. Não é possível confiar que toda a realidade corresponda a uma mesma ordem interna que possa ser conhecida a priori, muito menos que as rupturas e descontinuidades decorram de peças defeituosas que podem ser expurgadas e substituídas. Essa mentalidade mecanicista acaba por produzir pessoas descartáveis no mundo, afinal se não estão enquadradas na ordem, seriam elas as peças defeituosas. Longe de garantir o bem estar pretendido e o sonho de liberdade, abundância e felicidade, a ordem moderna representou para boa parte do mundo apenas extermínio e destruição.

IV) Pós-modernidade

Questionar a ideologia da ordem e contrapô-la à subjetividade criadora do sujeito significa evidenciar a crise da modernidade, é certo; mas também significaria afirmar uma época pós-moderna? Apresenta-se, então o problema da pós-modernidade. Se o conceito de modernidade não é consensual, muito menos o de pós-modernidade. 21 21 Nas palavras de Fredric Jameson: The concept of postmodernism is not widely accepted or even understood today. JAMESON, Fredric. The Cultural Turn: selected writings on the postmodern, 1983-1998. Nova Iorque: Verso, 1998, p. 1. Tradução: O conceito de pós-modernidade não é amplamente aceito ou mesmo compreendido hoje. Perry Anderson, num denso ensaio de 1998 denominado As Origens da Pós-Modernidade , traça um interessante percurso desde a criação da expressão até sua utilização por distintos segmentos filosóficos. Anderson mostra como o termo surge num movimento de crítica estética (artes e literatura) até ser incorporado à filosofia por meio do texto A Condição Pós-Moderna de Jean-François Lyotard. 22 22 ANDERSON, Perry. As Origens da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, pp. 9-57. O texto de Lyotard parte de uma indignação tanto da expressão política do que representou o comunismo real após a II Guerra, como da expressão política das experiências capitalistas. Segundo o autor, um certo viés autoritário, para não dizer totalitário, marcava ambas as experiências políticas e, de alguma forma, pareciam reduzir a vida social a um único e grande monólito. A perspectiva pós-moderna é atravessada por duas questões centrais: do saber e da legitimação. Lyotard está convencido de que houve uma mudança no estatuto do saber a partir do momento em que as sociedades entram numa fase pós-industrial e as culturas numa fase pós-moderna. 23 23 LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna . Rio de Janeiro: José Olympio, 1998, p. 3. O saber passa a ser tomado com fins exclusivamente instrumentais e, portanto, numa lógica de consumo. Mais importante que saber é o fazer que o saber proporciona. Transformado em mercadoria, o saber perde o valor de uso e mantém apenas seu valor de troca. 24 24 LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit., pp. 5-6. Essa é a característica do saber científico que se expressa pelas ciências em geral e pela diferentes técnicas. Esse saber técnico-científico é fundamental para o desenvolvimento produtivo e, assim, para a sustentação do capitalismo; por isso ele mesmo é convertido em mercadoria consumível e acumulável a fim de gerar riqueza.

A questão não se dá apenas porque a ciência e a técnica foram, em larga medida, subsumidas e instrumentalizadas pelo modo de produção capitalista. Antes disso, o problema reside no fato da modernidade apresentar a narrativa científica como a única capaz de expressar os mais altos valores da sociedade moderna, fazendo com que todo o mundo moral tenha se tornado dependente da verdade epistemológica. Dessa forma, o maior padrão de legitimação do mundo moderno passa a ser a ciência e o discurso técnico. Assim expressa Lyotard:

Nessa perspectiva, o direito de decidir sobre o que é verdadeiro não é independente do direito de decidir sobre o que é justo, mesmo se os enunciados submetidos respectivamente a esta e àquela autoridade forem de natureza diferente. É que existe um entrosamento entre o gênero de linguagem que se chama ciência e o que se denomina ética e política: um e outro procedem de uma mesma perspectiva ou, se se preferir, de uma mesma ‘opção’, e esta chama-se Ocidente. 25 25 LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. p. 13.

Lyotard afirma que o pensamento social moderno se polarizou em perspectivas funcionalistas de um lado e escolas marxistas de outro. Mas, segundo ele, nenhuma das duas perspectivas havia conseguido, até então, compreender adequadamente a nova natureza do vínculo social que se desenhava a partir das novas configurações típicas das sociedades pós-industriais, isto é, as configurações pós-modernas. O desenvolvimento econômico buscado pelo mercado, aliado ao mundo da ciência e da técnica se autonomizaram em face do poder do estado. Se antes o estado controlava o poder, agora é o poder econômico e científico que controla o estado. A regulação social muda de estatuto. A política parece ser o local das expertises e o bom político é visto como um técnico. As próprias ideologias são colocadas em questão. Por isso pólos políticos tradicionais como partidos, tradições e instituições da vida pública perdem sua força atrativa. 26 26 LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. pp. 27-28. Quando as instituições falham ou perdem a importância, cada qual é entregue a si mesmo. E cada qual sabe que este si mesmo é muito pouco . 27 27 LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. p. 28. Surge, assim, uma fragmentação da vida social que não condiz nem com a perspectiva funcionalista da sociologia sistêmica nem com o organicismo da classe operária de certas tradições marxistas. A isso Lyotard chamará de decomposição dos grandes relatos.28 28 Idem, ibidem. Essa expressão quer revelar um tipo de sociedade onde não há conexões orgânicas necessárias na macrotessitura social. Ocorre uma dissolução do vínculo social e a passagem das coletividades sociais ao estado de uma massa composta de átomos individuais. 29 29 Idem, ibidem.

Pelo si mesmo saber-se pouco, há uma busca de agregação real, ou seja, não baseada em grandes instituições abstratas, mas em movimentos concretos propiciados pela linguagem, pela comunicação. Há uma busca de coisas em comum que possam produzir novas filiações capazes de amparar as pessoas de alguma maneira. Esta coisa em comum é antes de tudo um processo comunicacional que une as pessoas a partir de certos temas ou pontos de interesse em comum. Cada indivíduo busca realizar uma performance comunicativa que não apenas o liga a outros indivíduos mas que acomoda os demais ao seu ponto de vista e interesses. Lyotard busca em Ludwig Wittgenstein o conceito de jogos de linguagem para expressar esse tipo de relação social que é típica do mundo pós-moderno. Como jogos de linguagem, as interações são mais livres e dinâmicas, produzindo resultados sempre imprevisíveis, embora cada um com sua performance tenha seus próprios interesses. O fato é que os indivíduos estão mais interligados pelos processos comunicacionais e pelos jogos de linguagem do que por regras institucionais. Lyotard chega a afirmar que nessa cultura pós-moderna a atomização do social em flexíveis redes de jogos de linguagem pode parecer bem afastada de uma realidade moderna que se representa antes bloqueada pela artrose burocrática. 30 30 LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. p. 31. O mundo social supera as instituições, embora conviva com elas. A possibilidade de superar as instituições decorre do fato de que esse sujeito entregue a si mesmo, e que precisa desenvolver performances em processos comunicacionais e jogos de linguagem para interagir socialmente, é capaz de produzir saberes. Não necessariamente o saber como conhecimento científico e técnico, mas saber como uma competência narrativa que não se restringe à determinação e aplicação de um critério científico e único de verdade. O saber é competente para produzir e disputar socialmente, por meio dos jogos de linguagem, a aplicação de critérios diversos em distintas áreas, por exemplo: critério de beleza, de eficiência, de felicidade ou de justiça. Não há, em nenhum desses campos, verdades pré-estabelecidas e fundadas por forças imemoriais, nem mesmo pela razão. 31 31 Cf. VATTIMO, Gianni. Adeus à verdade. Petrópolis: Vozes, 2016. Tudo é convencionado nesse processo de interação social e de performances em jogo pelos próprios sujeitos e pelos grupos, cada qual com sua narrativa, todos se encontrando em certas narrativas. 32 32 LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. pp. 35-41. São essas narrativas ou relatos que definem os critérios pelos quais uma ideia ou prática social podem ser socialmente aceitos e, por isso mesmo, estabelecem o que se tem o direito ou não de fazer numa dada cultura. De efeito, são os relatos que tem o poder de legitimação da ação social. 33 33 LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. p. 42.

Ao romper com a ideia de uma unidade divina da sociedade e da existência de um Deus que é a expressão máxima da toda a existência, a modernidade traz para a vida terrena o ideal antropológico da perfeição. A característica do humanismo moderno e da antropologia do iluminismo é ver o homem como ser grandioso e capaz dos grandes feitos e conquistas. O homem político moderno conquista a vida social como o cientista conquista o mundo natural. A história da modernidade é a história de muitos heroísmos que conquistaram patamares superiores da existência em relação ao passado. A narrativa moderna é, por isso mesmo, sempre poderosa e impetuosa, formada por grandes abstrações de vocação universal. Os critérios introduzidos por estas narrativas são o produto da história dos heróis: são eles pais fundadores, revolucionários, mártires, gênios, talentos extraordinários e ícones de todo o tipo. Esses são os incomuns, os extraordinários que engendram a história e modelam as instituições e suas regras. De outro lado, a homem comum é assim mesmo considerado: comum, regular, comezinho. Suas narrativas parecem não interessar ao ideário moderno. A legitimação moderna, por conseguinte, lastreia-se na história dos heróis, dos vencedores, não nas narrativas dos comuns, dos oprimidos. Na sociedade moderna, o povo é exatamente essa encarnação do herói que luta e vence todos os inimigos. Esse ente coletivo e abstrato que é o povo é capaz de se expressar como tal, manifestar sua vontade, estabelecer consensos, deliberar e fazer-se representar. O povo é uma unidade orgânica que se desenvolve a si mesmo, sempre em progresso. O contrário disso, a ideia de um povo em contradição e rupturas, capaz de conspirar contra si mesmo, aparece como um contrassenso, um fracasso momentâneo da história a ser superado por um novo heroísmo. Cito uma passagem de Lyotard que apesar de longa, oferece uma crônica precisa do que descrevi acima:

Este modo de interrogar a legitimidade sociopolítica combina-se com a nova atitude científica [da modernidade]: o nome do herói é o povo, o sinal da legitimidade seu consenso, a deliberação seu modo de normatização. Disso resulta infalivelmente a ideia do progresso; ela não representa outra coisa senão o movimento pelo qual supõe-se que o saber se acumula, mas este movimento estende-se ao novo sujeito sociopolítico. O povo está em debate consigo mesmo sobre o que é justo e injusto, da mesma maneira que a comunidade de cientistas sobre o que é verdadeiro e falso; o povo acumula as leis civis, como os cientistas acumulam as leis científicas; o povo aperfeiçoa as regras do seu consenso por disposições constitucionais, como os cientistas revisam à luz dos seus conhecimentos produzindo novos paradigmas. 34 34 LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. p. 55.

Contra esse modelo típico da modernidade, Lyotard se insurge e afirma que:

Vê-se que este “povo” difere completamente daquele que está implicado nos saberes narrativos tradicionais, os quais, como se disse, não requerem nenhuma deliberação instituinte, nenhuma progressão cumulativa, nenhuma pretensão à universalidade... 35 35 Idem, ibidem.

Lyotard usa a fundação da universidade de Berlin (entre 1807 e 1810) e o projeto humboldtiano de emancipação do espírito por meio da ciência para mostrar como o discurso científico assumiu não apenas um caráter teórico-especulativo, mas, também, um caráter prático-normativo. Explico-me. A esteira do conhecimento moderno se depara com dois grandes campos de linguagem: de um lado aquele feito de descrições, donde o critério único é o da verdade, isto é, da adequação entre o intelecto e a coisa; de outro lado está o campo de linguagem que trata de decisões e obrigações, enunciados donde não se espera uma relação necessária com a verdade, mas sim com a ideia do justo, do adequado. No projeto de Humboldt e em todo o idealismo alemão, há um compromisso com um tipo de conhecimento que expressa um bem único, superior e comum a todos os campos de linguagem. Assim, há uma unidade, ainda que invisível, entre a dimensão teórico-especulativa e a dimensão prático-normativa. Na base de ambas se encontra o espírito científico como aquele que revela e modela o espírito (heróico) humano. Diz Lyotard:

A unificação destes dois conjuntos de discursos é, no entanto, indispensável à Bildung visada pelo projeto humboldtiano, e que consiste não somente na aquisição de conhecimentos pelos indivíduos, mas na formação de um sujeito plenamente legitimado do saber e da sociedade. Humboldt invoca um Espírito, que Fichte também chamava de Vida, movido por uma tríplice aspiração, ou melhor, por uma aspiração simultaneamente tríplice e unitária: “a de tudo fazer derivar de um princípio original”, à qual corresponde a atividade científica; “a de tudo referir a um ideal”, que governa a prática ética e social; “a de reunir este princípio a este ideal em uma única Ideia”, assegurando que a pesquisa das verdadeiras causas na ciência não pode deixar de coincidir com a persecução de justos fins na vida moral e política. O sujeito legítimo constitui-se desta última síntese. 36 36 LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. p. 60.

Por isso mesmo aquele povo tão voluntarioso e capaz de manifestar-se em unidade orgânica e social numa textura coesa e coerente, capaz de produzir, desse modo, instituições e regras morais e jurídicas igualmente coesas e coerentes. Não é por outra razão que todo o projeto de universidade moderna expressa esse tipo de crença. Mesmo na área das ciências sociais as universidades buscam uma unidade epistemológica do seu discurso muito mais nas grandes narrativas cientificamente legitimadas por um povo grandioso do que nas narrativas fragmentadas dos grupos subalternizados.

O problema que se coloca é que ao constatar-se o modelo pós-moderno de agregação social depara-se com o fato de que a ciência não é mais reconhecida como a narrativa, mas como uma entre outras narrativas. Quando nos perguntamos por que o conhecimento científico deve ser reconhecido como o mais legítimo ou importante dentre todos os saberes, a resposta não é propriamente científica. Há um discurso de base epistemológica que é metacientífico embora apresente características familiares ao próprio mundo científico. Tal discurso manifesta razões que podem vir amparadas em critérios filosóficos, técnicos ou funcionais, mas elas não são o próprio corpo da ciência. Dito de outra maneira, a questão é que a ciência joga seu próprio jogo de linguagem, ao lado de outros inúmeros jogos de linguagem e processos comunicacionais existentes na sociedade. A conclusão é de que a unidade do corpo social não se dá por um viés epistemológico. O que mantém o tecido social não é a imagem iluminada do espírito evoluído desse heróico sujeito moderno ou mesmo das metanarrativas acerca desse sujeito. Como diz Lyotard, o vínculo social é de linguagem (langagier), mas ele não é constituído de uma única fibra. 37 37 LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. p.73. São inúmeros jogos de linguagens e diferentes narrativas que constituem a vida social. O indivíduo entregue a si mesmo busca sua agregação junto a outros indivíduos naquelas narrativas onde melhor se sente acolhido, às vezes representado e, geralmente, “presentado”, isto é, tornado ele mesmo presente pelos relatos, alegorias e ícones daquele grupo social. Nesse início de século XXI, esse movimento tem pouco a ver com as grandes bandeiras abstratas da modernidade e mais a ver com os processos concretos da socialização. Em muitos casos, tais processos parecem ser menos racionais e ideológicos e mais afetivos e comunitários.

O que ocorre na cultura pós-moderna é que os ideais modernos de universalidade e individualidade foram dissolvidos nas novas teias de relacionamentos. Não há mais uma crença absoluta numa narrativa que expresse uma grande verdade fundante e, por isso, o ideal de universalidade fica enfraquecido ou mesmo colocado em xeque. De outro lado o ideal de individualidade parece não dizer muita coisa ao sujeito que foi entregue a si mesmo. As teorias funcionalistas da modernidade depositaram mais crenças no funcionamento dos sistemas do que no sujeito em si. Como dito anteriormente, muitas representações organicistas do mundo compararam o próprio mundo àquele relógio. Nessa perspectiva os indivíduos são apenas molas e engrenagens substituíveis a qualquer tempo. Assim, o indivíduo entregue a si mesmo foi na verdade abandonado a si mesmo, à própria sorte. Fugindo desse desamparo, as pessoas parecem se sentir mais seguras, mais fortes, quando encontram algum tipo de agregação; as identidades gregárias são, via de regra, as mais marcantes. Por isso, muitas pessoas buscam participar de certos grupos e tem com esse grupo uma relação de lealdade. Os símbolos e valores do grupo passam a ser importantes para o indivíduo também, porque é neles que esse indivíduo passa a reconhecer a sua própria identidade. Há, portanto, um declínio do individualismo no seu sentido mais forte e a constituição de comunidades (reais ou virtuais), tribos ou redes que expressam um dado modo de vida. Não que a lógica individualista e concorrencial tenha desaparecido, mas a unidade por meio da qual ela se expressa não é, no mais das vezes, o indivíduo, mas sim o grupo. É no grupo que as pessoas manifestam com mais potencialidade sua própria identidade. Daí um certo egoísmo de grupo onde cada um assume uma disposição para atacar e defender em nome do grupo. Por isso que muitos costumam se descrever dizendo, com orgulho, que são “amigos dos amigos”. Numa visão mais poética e idealista, há algo de mosqueteiriano nisso.

Na obra de Dumas a grande virtude dos soldados que faziam a guarda do Rei de França no início do século XVII era, exatamente, a unidade do grupo: um por todos e todos por um . A honra de proteger o rei não era maior do que a honra em si de ser um mosqueteiro, de exibir uma identidade gregária que superava as histórias individuais. Nos dias de hoje e numa visão menos poética e idealista esse egoísmo de grupo associa-se mais com a ideia de máfia. 38 38 Cf. MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 128-136. Embora possa parecer, a princípio, assustadora a correlação, ela expressa bem um modelo de socialidade que é tão bem conhecido por todos nós e qualquer pessoa: uma agregação que valoriza: 1) a proteção frente ao exterior; 2) a lealdade; e 3) o segredo. A tendência atual da socialidade é de buscar grupos que expressem valores internos que tragam alguma segurança e certa importância para os seus integrantes, nem que seja a importância de ser parte de algo que seus membros considerem importante. O modo de ser conhecido da máfia (ao menos no seu sentido clássico ou literário) opera exatamente dessa maneira. Forma um grupo que protege os seus contra as demais formas impostas de poder, inclusive as institucionais. Por isso a metáfora da família como meio de expressão da identidade mafiosa. O que se espera em troca da proteção, é exatamente o que se espera dos vínculos familiares: lealdade, isto é, a família vem primeiro. O próprio ordenamento jurídico, na maior parte do mundo, já concluiu que seria uma demasia exigir que pessoas rompam os profundos vínculos familiares mesmo em nome da lei. Ninguém se espanta porque um pai ou uma mãe protege um filho omitindo seus crimes ou não testemunhando contra ele. O que causa espanto é quando ocorre o contrário: pais, filhos e irmãos rompendo o vínculo de lealde e se denunciando mutuamente. Por fim, um elemento quase místico dessa forma de agregação é o segredo. É o cultivo de mistério que cria uma aura especial em torno do grupo. O grupo se destaca na sociedade porque contém algo que apenas os iniciados conhecem, todos os demais podem apenas especular sobre, mas o que acontece internamente somente os membros daquele grupo efetivamente sabem. Nesse jogo de linguagem próprio do grupo mafioso há narrativas proibidas, símbolos ocultos, sinais secretos, palavras chave, piadas internas, paramentos e linguagens que são próprios dos que pertencem ao grupo; apenas estes são dignos de ter acesso ao segredo. De forma mais corriqueira, essa descrição se aproxima do que a linguagem popular convencionou chamar de “panelas”. As panelinhas são aqueles grupos que se destacam como tendo algo a mais. Todos os que não participam falam mal das panelinhas, mas desejam, secretamente, fazer parte dela como forma de sua própria aceitação e afirmação. Em certo sentido, somos todos mafiosos.

O fato é que o padrão de socialidade típico da modernidade possuía uma estrutura mecânica com base em organizações econômicas e políticas. Por isso mesmo a crença num sujeito capaz de se aglutinar em grupos contratuais. Aqui, a mecânica do sujeito de direito e de sua capacidade contratual decorrente da condição de pessoa livre e autônoma é essencial para se compreender o mundo moderno. Entretanto, a dinâmica das relações sociais sofreu alterações brutais. O mundo do trabalho passa a compartilhar sua centralidade com o mundo do consumo de maneira que a relação capital-trabalho, embora permaneça decisiva, compartilha seu lugar de protagonista com a relação consumidor-fornecedor. Isso, em alguma medida, se explica pelo fato do mercado e de seus processos de regulação terem crescido, em certo aspecto, mais do que o estado e os processos de emancipação da sociedade. Com efeito, a socialidade típica da pós-modernidade não se caracteriza por estruturas mecânicas, mas sim por processos e organizações complexas. Tais organizações embora permaneçam, até certo ponto, mediadas pela forma jurídica, não se limitam ás configurações institucionais típicas da economia e da política. Por isso mesmo que a agregação contratual se dissolve em outros laços mais afetivos. Michel Maffesoli nos fala que nesse cenário pós-moderno assistimos a uma passagem da polis ao thiase, 39 39 Na mitologia grega o thiase ou thiaso ou tíaso é uma associação ou confraria que realiza festas e cultos. O mais famoso de todos os thiases é o dionisíaco. Uma comitiva que acompanhava Dionísio e era formada de mênades e sátiros. O que caracteriza os thiases era exatamente esse caráter afetivo e não necessariamente racional. Talvez por isso Maffesoli tenha usado esse termo – thiase – em oposição ao termo polis que, por seu turno, designa uma associação política e racional. ou de uma ordem política a uma ordem de fusão. Para esse autor, a palavra polis privilegia os indivíduos e suas associações contratuais e racionais, enquanto a palavra thiase procura acentuar uma dimensão afetiva e sensível. Diz Maffesoli que de um lado está o social que tem uma consistência própria, uma estratégia e uma finalidade. Do outro lado, a massa onde se cristalizam as agregações de toda a ordem, tênues, efêmeras, de contornos indefinidos. 40 40 MAFFESOLI, Michel. Ob. Cit. p. 102. Percebe-se uma diferença entre o social e a socialidade . Enquanto no primeiro – social – o indivíduo tem uma função na sociedade e atua dentro de grupos e associações estáveis, na segunda – socialidade – a pessoa representa diferentes papéis e atua com distintos figurinos, códigos e narrativas. Na socialidade a pessoa está em tantas e diferentes tribos quantos seus gostos, preferências e afetos assim determinarem. 41 41 MAFFESOLI, Michel. Ob. Cit. p. 108. O que está em questão na cultura pós-moderna, como já foi apontado por Lyotard, é mais o aspecto da socialidade do que do social. Claro que o mundo social também é afetado pelos influxos da pós-modernidade, sobretudo pelo questionamento do papel da ciência e pela incredulidade numa única narrativa capaz de revelar a verdade. O mundo social é afetado a partir do momento em que o excesso de regulação da modernidade supera a sua perspectiva emancipatória. 42 42 Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1997. SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. Mas é na paisagem das socialidades que se revela com mais clareza e eloqüência esta dinâmica pós-moderna. Na socialidade desaparecem a funcionalidade e a racionalidade estratégica do social moderno. Aqui as pessoas não se agregam porque contratam conforme seus interesses, mas porque simplesmente preferem estar juntas por diferentes afetações e não porque precisam estar. Há um laço dos afetos que envolve os sujeitos e os fazem estar juntos nem que seja à toa, isto é, sem compromisso. 43 43 MAFFESOLI, Michel. Ob. Cit. pp. 111-115. Esse vínculo dos afetos é curiosamente ambíguo. É forte o suficiente para fazer que pessoas que nunca se viram antes cheguem a se abraçar, como ocorre num estádio de futebol quando dois torcedores estranhos comemoram o gol do seu time. Por outro lado, o vínculo é fraco a ponto de permitir que uma pessoa mude de grupo ou deixe a tribo sem dar uma satisfação sequer aos ex-companheiros. Aquela lealdade vista anteriormente, caracteriza uma forma de ser para aqueles que estão dentro do grupo, enquanto estão dentro, mas não significa que os laços sejam indissolúveis. Muitas vezes, mais importante do que a finalidade ou os objetivos daquele grupo, daquela tribo, onde as pessoas se engajam, é o fato de participar desse ou de algum grupo que expresse uma afetação positiva para seus integrantes. A energia em si mesma do grupo e da sua constituição traduz uma experiência de socialidade que fascina as pessoas. Por isso Maffesoli afirma:

Dessa maneira, elaborar novos modos de viver é uma criação pura para a qual devemos estar atentos. É importante insistir nesse ponto, pois existe uma “lei” sociológica que leva a julgar todas as coisas com base no que está instituído. Essa carga nos faz passar ao largo do que está em vias de surgir. O vaivém entre o anômico e o canônico é um processo de que não descobrimos toda a riqueza. Assim, para definir melhor o meu postulado direi que a constituição em rede dos microgrupos contemporâneos é a expressão mais acabada da criatividade das massas. 44 44 MAFFESOLI, Michel. Ob. Cit. pp. 136-137.

V) Pós-Modernidade, Comunidade e Ética

Though the philosophical movement of postmodernism was initially opposed to every kind of normative theory, this initial reticence has since given way to dramatically changed attitude. 45 45 HONNETH, Axel. Disrespect: the normative foundations of Critical Theory . Cambridge: Polity Press, 2007, p. 99. Tradução: Embora o movimento filosófico do pós-modernismo tenha sido inicialmente contrário a todo tipo de teoria normativa, essa reticência inicial, desde então, deu lugar a uma mudança drástica de atitude.

Axel Honneth

Em geral, os autores que estão no tronco da teoria crítica e que possuem compromissos intelectuais mais progressistas, tendem a ver com receio e reservas as manifestações pós-modernas como se elas representassem um risco àquilo de emancipatório que trouxe o ideal moderno de universalidade, individualidade e autonomia. 46 46 Num breve espectro podemos citar os casos marcantes de autores como Habermas, Jameson, Harvey e Anderson. Cf. HABERMAS, Jurgen. O Discurso Filosófico da Modernidade . Lisboa: Dom Quixote, 1990. JAMESON, Fredric. The Cultural Turn: selected writings on the postmodern, 1983-1998. Nova Iorque: Verso, 1998. HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1993. ANDERSON, Perry. As Origens da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. De fato, como assevera Honneth na citação acima, houve alguma resistência de teóricos da pós-modernidade em relação às teorias normativas. 47 47 Ver, por todos: LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade Pós-Moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Barueri: Manole, 2005. Muitas das narrativas sobre a pós-modernidade possuem um tom mais descritivo, o que sugere uma impossibilidade de discursos de caráter ético ou moral. Contudo, isso não é uma regra em sentido amplo. Em outras palavras, não apenas podemos encontrar aspectos normativos em sentenças de intelectuais ditos pós-modernos como é possível produzir teorias normativas na cultura pós-moderna. Na verdade, a descrição adequada do cenário social e das diferentes formas de socialidade sob uma visada da pós-modernidade permite uma nova compreensão, mais adequada, do próprio fenômeno moral. 48 48 BAUMAN, Zygmunt. Ética Pós-Moderna. São Paulo: Paulus, 1997, p. 6. Alguns identificam a pós-modernidade como se fosse uma implacável relativização e isso levaria à consequência necessária da perda das utopias e do fim da busca da emancipação. Todavia, a negação de uma unidade epistemológica do real, como pretendido pela pós-modernidade, não se confunde com ceticismo moral, embora alguns até possam acreditar nisso. A crítica da modernidade e o reconhecimento de seus limites simplesmente colocam o rei a nu para se poder enxergar melhor as encarnações do poder e suas contradições. Aqui faço minhas as palavras de Zygmunt Bauman: a perspectiva pós-moderna, à qual se refere esse estudo, significa sobretudo o rasgamento da máscara das ilusões . 49 49 BAUMAN, Zygmunt. Ob. Cit. p. 8. Continua Bauman em eloqüente sentença:

Sugiro que a novidade da abordagem pós-moderna da ética consiste primeiro e acima de tudo não no abandono de conceitos morais caracteristicamente modernos, mas na rejeição de maneiras tipicamente modernas de tratar seus problemas morais (ou seja, respondendo a desafios morais com regulamentação normativa coercitiva na prática política, e com a busca filosófica de absolutos, universais e fundamentação na teoria). Os grandes temas da ética – como direitos humanos, justiça social, equilíbrio entre cooperação pacífica e auto-afirmação pessoal, sincronização da conduta individual e do bem-estar coletivo – não perderam nada de sua atualidade. Apenas precisam ser vistos e tratados de maneira nova. 50 50 Idem, ibidem.

No artigo The Other of Justice: Habermas and the Ethical Challenge of Postmodernism51 51 O artigo corresponde ao capítulo 5 do livro Disrespect: the normative foundations of Critical Theory. Cambridge: Polity Press, 2007, pp. 99-128. , Axel Honneth faz um percurso a partir de Lyotard e Derrida para mostrar como estes autores que estavam inicialmente preocupados com uma crítica radical da razão iluminista acabaram por se debruçar sobre questões éticas e de justiça. Esse retorno às questões éticas indica que as preocupações concernentes ao processo emancipatório que foram erguidas com a bandeira moderna não desaparecem na cultura pós-moderna. Ao contrário, estas preocupações foram incrementadas a partir de uma descrição mais arguta da vida social e dos movimentos reais de socialidade.

Segundo a argumentação de Honneth, a perspectiva pós-moderna de Lyotard ao admitir que os sujeitos se relacionam socialmente com base em diferentes narrativas e jogos de linguagem, produz um campo radical de interatividade que coloca em relevo a própria ação do individuo e, de efeito, a responsabilidade que cada indivíduo tem ao agir. Nessa esteira, cita Stephen White para dizer como esse autor crítica as bases morais da modernidade que tendem a reprimir as singularidades que são latentes em indivíduos e grupos sociais em nome de uma razão universal e abstrata. 52 52 HONNETH, Axel. Ob. Cit. pp. 106-107. Honneth continua sua análise mostrando como Derrida, no ensaio The Politics of Friendship, mostra que no mundo contemporâneo há dois padrões de interação distintos que produzem dois tipos de responsabilidade, mas que formam uma síntese: de um lado uma relação de afeto que está na base da amizade e de suas socialidades e, de outro lado, uma relação cívica que está na base da vida social mediada por espaços simbólicos e instituições. Assim Honneth apresenta a posição de Derrida:

A principle of responsibility bearing asymmetrical features governs here, because I am obligated to respond to my friend's pressing request or entreaty without considering reciprocal duties. But if the relationship were determined solely by a principle of asymmetrical, one-sided obligation, it would no longer be a friendship but love. Only in affection, which is untroubled by any other considerations, do I experience the other as a person to whom I am obligated unconditionally – i.e., beyond all moral responsibility. That is why, for Derrida, friendship displays a second dimension of intersubjectivity, one in which the other person appears as a generalized other. In this moment of generality, institutionally embodied moral principles emerge which, in accordance with symmetrically distributed rights and duties, regulate the responsibility I have for all other persons in society. 53 53 HONNETH, Axel. Ob. Cit. pp. 115-116. Tradução: Um princípio de responsabilidade que carrega características assimétricas governa aqui, porque eu sou obrigado a responder ao pedido urgente do meu amigo ou súplica sem considerar deveres recíprocos. Mas, se a relação foi determinada apenas por um princípio de assimetria, a obrigação de um lado, ela não seria mais uma amizade, mas amor. Somente em afeto, que é imperturbável por quaisquer outras considerações, posso experimentar o outro como uma pessoa a quem eu sou obrigado incondicionalmente – i.e., além de toda responsabilidade moral. É por isso que, para Derrida, a amizade mostra uma segunda dimensão da intersubjetividade, em que a outra pessoa aparece como um outro generalizado. Neste momento de generalidade, os princípios morais institucionalmente consagrados emergem para, de acordo com os direitos e deveres simetricamente distribuídos, regularem a responsabilidade que tenho por todas as outras pessoas na sociedade.

O ponto essencial que sublinha Honneth, é que Derrida concorda, em parte, com a ideia universalista de igual tratamento proposta por Kant, mas acha que tal ideia é insuficiente. 54 54 HONNETH, Axel. Ob. Cit. p. 101; pp. 113-114. Claro que, por um lado, o ideal moderno de igualdade universal continua soando importante, de alguma maneira. Chega a ser impensável um padrão de vida social onde não seja respeitada a igualdade perante a lei e o igual tratamento dado pela lei e pelas instituições. Porém, a vida concreta das pessoas possui laços que transcendem as mediações institucionais. Em meu ponto de vista, a questão que levanta Derrida e que interessa tanto a Honneth é que a modernidade parece ter investido mais nas mediações institucionais, enquanto a cultura pós-moderna revela eloquentemente que os padrões de interação que parecem estar mais fortalecidos são os da socialidade por agregação voluntária, não mediados pela lei. Por isso a amizade é tão importante. Trata-se de uma agregação que não se dá por contrato – jurídica – mas sim por afetos. Qualquer perspectiva emancipatória deve considerar esse fato.

O conceito de dignidade, conforme desenvolvido por Kant, 55 55 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes . In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 140. Assim afirma Kant: No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade. que é tão caro à modernidade, parece ter um papel mais relevante ainda na tessitura pós-moderna. Isso porque enquanto na modernidade a dignidade humana assume contornos genéricos e abstratos, tanto na universalidade quanto na individualidade e na autonomia, na pós-modernidade ela assume uma dimensão mais pessoal, mais singular, como se ganhasse um nome e um rosto. Em outras palavras, a modernidade se funda sobre metanarrativas que propõem perspectivas totalizantes. Na política, elas aparecem por meio de conceitos tais quais estado, nação , soberania, cidadania, sufrágio , mercado etc... Tais metanarrativas generalizam em demasia o sujeito e o capturam em categorias como cidadão, sujeito de direito, eleitor, trabalhador, consumidor, empresário etc... Essas são categorias por demais abstratas e que, no mais das vezes, não expressam as formas mais autênticas e espontâneas de sociabilidade. É aqui que ocorre uma das fortes clivagens pós-modernas, isto é, quando as pessoas dão menos importância às metanarrativas e mais importância à busca daquilo que há em comum. Isso significa colocar o concreto no lugar do abstrato, isto é, a pessoa mesma – presentação – e não sua re-presentação funcional. Essa dimensão mais íntima e pessoal não nega o ideal kantiano de dignidade, mas parece ressignificá-lo de uma forma curiosa, como uma ampliação para as relações elementares. Enquanto a modernidade apresenta a dignidade kantiana como a dimensão fundamental de uma moralidade universal, a pós-modernidade toma a dignidade como o produto de relações de pertença, como algo que valoriza alguém não por ser uma pessoa qualquer, mas por ser uma pessoa determinada. A intimidade reclama dignidade. Nas palavras de Kant: aquilo porém que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é um preço, mas um valor íntimo, isto é dignidade. 56 56 KANT. Ob. Cit., p. 140. Esse valor íntimo pode ser interpretado como intrínseco, no sentido da moralidade moderna, mas também pode ser interpretado como aquilo que diz respeito ao cotidiano, à ausência de cerimônia, à vida íntima. Dessa forma, a menschenwürde – dignidade humana – kantiana pode ser ressignificada e ampliada para expressar relações autênticas de âmbito comunitário.

Como dito, a cultura pós-moderna parece privilegiar o concreto ao invés do abstrato e, de efeito, as práticas comunitárias passam a ter mais importância e significação na vida das pessoas comuns. A comunidade toma o lugar das metanarrativas, pois mais importante do que grandes conceitos e ideais são as experiências, as situações de vivência e relações de convivência que estabelecemos em diferentes grupos. A despeito de a questão comunitária ser especialmente relevante para o pensamento pós-moderno, o tema da comunidade atravessa uma linhagem de autores desde o final do século XIX. Entre esses autores está Martin Buber. Dou destaque a esse autor em função da conexão que é possível fazer a partir de sua obra entre práticas de socialidade baseadas em laços comunitários e a ética da alteridade, que é a perspectiva normativa que orienta minha reflexão. Buber rejeita a ideia de comunidade como um vínculo pré-social e, ao mesmo tempo, não reduz o seu conceito àquelas que resultam de ligações sanguíneas ou de herança cultural e legado de crenças. Enquanto a sociedade seria uma racionalização artificial, a comunidade é, por definição, o lugar do comum: comunidade é a ligação que se desenvolveu mantida internamente por propriedade comum (sobretudo terra), por trabalho comum, costumes comuns, fé comum; sociedade é a separação ordenada, mantida externamente por coação, por contrato, convenção, opinião pública. 57 57 BUBER, Martin. Sobre Comunidade. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 50. Na virada do século XIX para o século XX, Buber fala em uma “nova comunidade” formada por pessoas que possuem interesses específicos em comum ainda que não necessariamente se conheçam todas. É uma porta sempre aberta para o desenvolvimento de relações autênticas baseadas mais em afetos do que em postulados racionais. Não é a sociedade, mas sim a comunidade o lugar de interação mais forte com o outro. Por isso que a finalidade da vida comunitária não deve ser instrumentalizada para outros fins. Buber pergunta: que finalidade tem a nova comunidade? E responde: si mesma e a vida. A comunidade tem como finalidade a própria comunidade. 58 58 BUBER, Martin. Ob. Cit., p. 33. O fim em si mesmo da comunidade não significa isolamento ou autossuficiência, mas a possibilidade de experimentar novas formas de vida em comum que não estejam capturadas pelos cânones da modernidade.

É preciso reconhecer que há uma grande diferença entre Martin Buber e teóricos da pós-modernidade como Lyotard ou Maffesoli. Esses últimos descrevem práticas sociais que confrontam certos pilares do pensamento moderno, já Buber propõe práticas sociais de natureza comunitária como uma forma de escapar de certos males da modernidade e que foram sentidos por esse autor especialmente na forma da primeira e da segunda guerras mundiais. Contudo, a natureza normativa do discurso de Buber não é um problema. Ela apenas revela convicções de ordem ética e moral no tocante à ação humana e à vida social. Trata-se de um lugar de fala capaz de criticar a realidade e, ao mesmo tempo, buscar superá-la. Veja-se:

Os homens que na atual sociedade forma atirados em uma engrenagem movida pelo proveito, de modo a atrofiar sua criatividade livre sob o jugo do trabalho que visa o proveito, serão, nesta nova vida, elevados à nova ordem de coisas, onde reina não o princípio utilitário, mas o princípio criador e libertador de suas forças subjugadas...

Assim a humanidade que teve sua origem numa comunidade primitiva obscura e sem beleza e passou pela crescente escravidão da “sociedade”, chegará a uma nova comunidade que, diferentemente da primeira, não terá mais como base laços de sangue, mas laços de escolha. 59 59 BUBER, Martin. Ob. Cit., p, 39.

Para Maurice Blanchot, diferentemente de Buber, não se trata de denunciar, mas de compreender que a experiência do comum é uma marca existencial e nos define tão radicalmente que não há nada que se possa falar sobre isso que ofereça a exata dimensão da vivência comunitária. Num instigante ensaio publicado em 1983 afirma a comunidade como algo inconfessável, pois não há confissões que a revelem de forma suficiente e definitiva. 60 60 BLANCHOT, Maurice. A Comunidade Inconfessável. Brasília: EdUnB, 2013, p. 76. Em diálogo com Georges Bataille, Blanchot assinala um princípio de insuficiência que comanda e ordena a possibilidade de um ser. 61 61 BLANCHOT, Maurice. Ob. Cit., p. 16. Não que a falta demande uma completude, mas sim uma interação. Esse parece ser um ponto vital da diferença entre o moderno e o pós-moderno. A leitura de Blanchot no contexto da reflexão que aqui proponho me permite sugerir que a modernidade possui um anseio pela completude, daí seu espírito de totalidade, suas metanarrativas e o desejo obsessivo pela ordem que culmina com a verdade da ciência. Tudo isso se traduz na vida social moderna. Já a pós-modernidade não parece ter essa mesma fixação pela completude. Está mais marcada pelas rupturas e descontinuidades ou por uma certa fluidez. 62 62 Aqui vale lembrar como Zygmunt Bauman desenvolveu um percurso reflexivo onde na década de 1990 se voltava para a compreensão do fenômeno pós-moderno, porém a partir da década de 2000 prefere adotar a expressão modernidade líquida, seja para distinguir sua análise de outras, seja para evitar confusões já que a expressão “pós-modernidade” não possui um consenso teórico-semântico. Nela, a vida social não anseia muitas regulações, mas experiências de interação e reciprocidade. Todavia, não é a sociedade propriamente dita que permite essas interações e reciprocidades, mas sim a experiência comunitária. E isso é o mais difícil para a modernidade que sempre resistirá em admitir sua teoria social como sendo comunitária. É nesse sentido que afirma Blanchot: Mas se a relação do homem com o homem cessa de ser relação do Mesmo com o Mesmo, mas introduz o Outro como irredutível e, em sua igualdade, sempre em dissimetria a respeito daquele que a considera, é uma espécie de relação totalmente outra que se impõe, e que impõe uma outra forma de sociedade que dificilmente se ousará nomear de “comunidade”. 63 63 BLANCHOT, Maurice. Ob. Cit., p. 14.

Na medida em que o comunitário é constituído a partir do que se tem em comum, seria de se supor que a grande força da vivência comunitária reside na comunhão de seus membros, como se o ser em comum tivesse como ponto de partida e como ponto de chegada uma sintonia de sentimentos, de modo de pensar e agir, uma plena identificação. Entretanto isso não é real. A comunidade não se define necessariamente pela comunhão, embora eventualmente possa até acontecer, mas certamente de forma provisória. A comunhão dissolve as diferenças numa espécie de totalidade. Isso poderia ter sentido num plano místico ou espiritual, mas no âmbito da vida social e, especialmente, no sentido político dessa vida social, a dissolução das diferenças seria a negação da própria diferença. Portanto, o que caracteriza a vivência comunitária não é a comunhão de seus membros, mas a disposição para a partilha. Em comunidade se partilha algo que pode ser material ou imaterial. Não se trata, pois, de ser em comum, mas de ter em comum; ter coisas em comum, símbolos em comum e sentimentos em comum. A partilha é a dinâmica incessante da experiência comunitária e isso mantém o outro sempre irredutível no seu modo de ser e na sua dignidade concreta. Nessa linha afirma Blanchot:

... a comunidade não tem de se extasiar nem dissolver os elementos que a compõem em uma unidade supra-elevada que se suprimiria a si mesma, ao mesmo tempo que ela se anularia como comunidade. A comunidade não é, no entanto, a simples colocação em comum, nos limites que ela traçaria para si, de uma vontade partilhada de ser vários, mesmo que fosse para nada fazer, quer dizer, nada fazer além de manter a partilha de “alguma coisa” que precisamente parece sempre já ter-se subtraído à possibilidade de ser considerada como parte a uma partilha: palavra, silêncio. 64 64 BLANCHOT, Maurice. Ob. Cit., p. 19.

Essa perspectiva da partilha que define a comunidade em um dos seus sentidos mais relevantes, assinala também aquilo que ela tem de mais profundo: a figura do outro. Esse outro concreto e que me interpela, que na sua condição mais crua revela a minha insuficiência, posto que sem ele já não posso ser comunidade. O outro me interpela em vários níveis e nessas distintas formas de interpelação me mobiliza em minha própria singularidade. Afirma Blanchot: Sem dúvida, a insuficiência chama a contestação que, mesmo que viesse só de mim, é sempre a exposição a um outro (ou ao outro), único capaz, por sua posição mesma, de me colocar em jogo. 65 65 BLANCHOT, Maurice. Ob. Cit., p. 20.

Na vivência comunitária a partilha implica algo para se colocar em comum, mas, sobretudo, a presença de um outro com quem eu partilho algo e que, ao mesmo tempo, reclama alguma coisa de mim a ser compartilhada. Esse outro me mobiliza porque exige algo de mim em uma dimensão concreta e nessa exigência comprova que aquilo que oferece sentido à minha própria existência como ser é a contestação que o outro me oferece. Novamente Blanchot:

O ser busca, não ser reconhecido, mas ser contestado: ele vai, para existir, em direção ao outro que o contesta e por vezes o nega, a fim de que ele não comece a ser senão nessa privação que o torna consciente (está aí a origem de sua consciência) da impossibilidade de ser ele mesmo, de insistir como ipse , ou caso se queira, como indivíduo separado: assim, talvez, ele ex-istir-á, provando-se como exterioridade sempre prévia, ou como existência de parte à parte estilhaçada, não se compondo senão ao se decompor constante, violenta e silenciosamente. 66 66 BLANCHOT, Maurice. Ob. Cit., p. 17.

A inquietante afirmação acima revela o caráter agonístico da existência comunitária que, ao fim e ao cabo, expressa o caráter agonístico da própria vida social. Na relação com o outro, ainda quando buscamos partilha ou conforto, somos desafiados a sair do nosso lugar mais confortável, ao menos pelo fato de que temos de articular linguisticamente nossas ideias para apresentar ao outro. Mesmo quando compartilhamos algo de objetivo, é necessário um discurso que convença o outro da importância ou, ao menos, da pertinência desse algo. Além disso, as diferenças intrínsecas ao grupo, que são decorrentes das diversas singularidades que lhe são constitutivas, produzem inevitáveis tensões e contestações que exigem de cada um uma certa elaboração performática e/ou discursiva para conquistar a adesão do grupo. O exercício desse agonismo comunitário, por mais árduo que pareça, permite que cada pessoa se torne proto-agonista em sua vida social e ganhe destaque ou importância nas relações que estabelece, de forma a conquistar melhores condições para autogovernar-se. Isso, certamente, ajuda a entender porque Buber afirma que a autonomia não pode de modo algum ser decretada. Ela não pode ser estabelecida de outro modo a não ser através do crescimento e da autoafirmação de um sistema comunitário que, de fictício, se transformou em entidade real . 67 67 BUBER, Martin. Sobre Comunidade. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 50. Tudo isso que é próprio da dinâmica comunitária pode ser mais bem compreendido ao se olhar com mais cuidado e detença para os padrões pós-modernos de socialidade.

A maior parte das narrativas que constituem a moderna cosmovisão está associada ao fazer no mundo, desde a ciência que instrumentaliza o conceito de verdade para fins tecnológicos até certos marcadores sociológicos definidos por padrões acerca do estado ou do mundo do trabalho. É claro que ciência e tecnologia são decisivas no mundo contemporâneo, da mesma forma que o são a organização jurídico-política de um país ou a configuração uma classe trabalhadora, mas existe potência social para além dessas relações. Mais do que isso, certos padrões de socialidade não podem ser explicados por essas narrativas. A comunidade é um exemplo disso, até porque ela resiste às classificações utilitárias e coloca em destaque o puro plano da alteridade. De forma eloquente, Maurice Blanchot pergunta e responde: para que serve a comunidade? Para nada, senão para tornar presente o serviço a outrem até na morte, para que outrem não se perca solitariamente, mas nela se encontre suplenciado, ao mesmo tempo que traga a um outro esta suplência que lhe é fornecida. 68 68 BLANCHOT, Maurice. A Comunidade Inconfessável. Brasília: EdUnB, 2013, p. 23. A vivência comunitária implica ser para o outro como construção conjunta de autonomia, onde essa não pode ser considerada de maneira isolacionista, pois emancipação não significa distanciamento do outro. Autonomia na experiência dialética da comunidade implica a relação com o outro. Essa é uma questão fundamental para Buber que pretende se afastar de dois males típicos da modernidade: o individualismo e a massificação. A chave para uma compreensão adequada da questão do sujeito ou da pessoa sem as distorções decorrentes do individualismo e da massificação é o conceito de personalidade, sendo isso que diferencia, segundo Buber, uma pessoa humana de um indivíduo humano. 69 69 BUBER, Martin. Ob. Cit., p, 106.

A personalidade é algo que se forja no âmbito da outricidade, por isso implica uma relação real com o outro, sem mediações abstratas. A palavra chave aqui é relação. Não se trata de experimentar o mundo como algo a ser descoberto, mas de participar do mundo de uma forma que somente é possível no encontro com o outro. Para expressar essa ideia Buber cria aquilo que designa por palavra-princípio. São duas essas palavras, formadas por pares, que são o Eu-Tu e o Eu-Isso. Enquanto o Eu-Isso designa experimentação, o Eu-Tu designa relação: o mundo como experiência diz respeito à palavra-princípio Eu-Isso. A palavra-princípio Eu-Tu fundamenta o mundo como relação. 70 70 BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001, p. 53. E Buber ainda afirma que naquilo que diz respeito ao Eu-Isso, o experimentador não participa do mundo, é a experiência que se realiza nele e não entre ele e o mundo. 71 71 Idem, ibidem. Por isso assevera que o indivíduo se torna pessoa apenas na relação Eu-Tu 72 72 BUBER, Martin. Sobre Comunidade. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 123. , de modo que a única categoria que pode permitir uma compreensão ontologicamente adequada do fato da vida é, conforme Buber, o entre. 73 73 BUBER, Martin. Ob. Cit., p, 126. O autor reconhece essa perspectiva como audaciosa, mas é exatamente esse o sentido de ser do Eu-Tu, como uma relação entre pessoas reais que funda a vida social e implica autenticidade e espontaneidade, o que está mais para a esfera das relações concretas da comunidade do que das relações mediadas por regras e instituições da sociedade. A personalidade aflora é nesse contexto e depende dele, pois não é algo que possa ser artificialmente produzida. A esse respeito Buber é claro:

A personalidade jamais pode ser formada como algo desejado, pois é exatamente o espontâneo, a imediaticidade, a autenticidade profunda, o não-intencionado, o não-preparado, o inacabado da vida com os seres com o mundo que conduz à personalidade. E isso não pode ser controlado. Toda personalidade que procura um fim é uma personalidade fictícia. Só é real aquilo que cresceu e experimentou a si mesmo. 74 74 BUBER, Martin. Ob. Cit., p, 107.

O Eu-Tu expressa o sentido mais profundo dos vínculos comunitários. Como dito antes, não se trata de ser em comum, não é uma questão de comunhão, mas de encontro e partilha numa dinâmica tão espontânea quanto a própria vida. Dinâmica essa que pode alterar sempre as configurações comunitárias e aquilo que se partilha, que pode encerrar-se e reiniciar-se por várias razões, claras ou não, mas que projeta proteção e lealdade, que são as condições propícias para o estabelecimentos de vínculos autênticos, para um encontro. Nessas condições existimos como pessoa, isto é, não de forma individualista ou massificada, mas como seres humanos agindo numa vida real, que se constroem na medida em que se amparam e se tornam mutuamente responsáveis. Quando unimos a questão do agir no mundo com a presença do outro, surge o tema central de uma ética capaz de levar em consideração não apenas as utopias e metanarrativas da modernidade, mas também os novos padrões de socialidade típicos do fenômeno pós-moderno: a responsabilidade. Esse é um aspecto que destaca Buber:

Creio que a sociedade, imensa inter-relação de muitos homens, só é real na medida em que consiste em relações autênticas entre homens. Por outro lado, creio igualmente que o indivíduo atinge a realidade na medida em que se torna pessoa, isto é, um homem que estabelece relações com outros homens, com outras pessoas. Como pessoa, é responsável por eles e aceita a responsabilidade deles por sua própria pessoa. Ele os confirma como homens existentes e se deixa confirmar por eles como homem existente e sempre se oferece como pilar sobre o qual será construída uma ponte sobre si e sobre seus parceiros momentâneos – ponte eterna que desaba a cada momento, mas que a cada momento se reconstrói novamente. 75 75 BUBER, Martin. Sobre Comunidade. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 123.

Claramente se percebe que Buber está raciocinando numa perspectiva normativa e não poderia ser diferente quando se tem a ética como pano de fundo ou em perspectiva. O mesmo ocorre com a ideia que desenvolvo nesse texto. Como Honneth havia assinalado, mesmo dentro de pensamentos reconhecidos como pós-modernos houve o desenvolvimento de teorias normativas 76 76 HONNETH, Axel. Disrespect: the normative foundations of Critical Theory . Cambridge: Polity Press, 2007, p. 99 e ss. , se não tanto em relação à filosofia política, certamente em relação à filosofia moral, é claro. A hipótese aqui sustentada e que vai se descortinando ao leitor é que no mundo contemporâneo houve um enfraquecimento das utopias modernas, com isso uma relativização de certos valores e mesmo de algumas bandeiras morais da modernidade. Ao mesmo tempo, aconteceu uma drástica mudança nos padrões de socialidade, com o declínio das instituições tradicionais e fortalecimento das relações gregárias de natureza comunitária. Isso abre espaço para um repensar do sentido e do papel da ética. Conforme sustento aqui, não se trata de afirmar o desaparecimento da ética e nem mesmo sua redução como se fosse apenas a especificação de padrões de conduta de determinados grupos ou corporações. A ética deve ser entendida, nesse contexto, a partir dessa relação com o outro. Sugiro que ela seja definida como consideração pelo outro. Isso implica ser afetado pelo outro, contestado pelo, outro, porém, antes de tudo, reconhecê-lo, respeitá-lo e valorizá-lo em sua singularidade. Mas para isso, é preciso evitar os obstáculos que possam atrapalhar o acesso ao Tu. Com razão, Buber afirma que a relação com o Tu deve ser imediata, por isso não se pode interpor nessa relação nenhum jogo de conceitos, nenhum esquema, nenhuma fantasia. 77 77 BUBER, Martin. Ob. Cit., p, 57. Na mesma linha Emmanuel Lévinas nos recorda que a relação com o outro não pode ser mediada por representações, pois toda representação se deixa essencialmente interpretar como constituição transcendental . 78 78 LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 25. O outro deve ser tomado na sua imanência, ou seja, naquilo que ele de fato é nas condições que fazem dele um outro e não um mesmo.

VI) Ética da Alteridade e Emancipação

O sentido da ética como consideração pelo outro, é típico do campo da filosofia moral conhecido como ética da alteridade, que envolve não apenas o pensamento de Martin Buber, mas, sobretudo, de Emmanuel Lévinas. Embora e ética na perspectiva levinasiana não seja necessariamente identificada com a pós-modernidade, não há dúvida que suas premissas e suas demandas também podem a ela ser associadas. Para compreender melhor essa minha afirmação, basta trazermos mais uma vez à mente o já citado artigo The Other of Justice: Habermas and the Ethical Challenge of Postmodernism79 79 O artigo corresponde ao capítulo 5 do livro Disrespect: the normative foundations of Critical Theory. Cambridge: Polity Press, 2007, pp. 99-128. , onde Axel Honneth realça como autores críticos da razão iluminista e associados à pós-modernidade, acabam por se envolver em debates sobre ética e justiça, nos quais comumente recorrem a categorias levinasianas ou, ao menos, dialogam com Lévinas. A perspectiva da ética levinasiana é fundamental não porque descreve uma realidade, mas porque parte da intersubjetividade (o Eu-Tu em termo buberianos), para consagrar um horizonte normativo que não apenas se adéqua à realidade pós-moderna, mas que se revela como algo imprescindível e necessário ao mundo contemporâneo. No artigo, Honneth mostra como Derrida caminha em direção a Emmanuel Levinas para lidar com essa questão: here, a brief reference must be made to the basic ethical ideas Derrida takes from the work of Emmanuel Levinas. 80 80 HONNETH, Axel. Ob. Cit. pp. 118 e ss. Tradução: Aqui deve ser feita uma breve referência às ideias éticas básicas que Derrida toma da obra de Emmanuel Levinas. Segue Honneth explicando:

For Levinas, the ethical beliefs we are familiar with as the late product of postmodernism's reflection on its own foundations are already present at the start of the path into philosophy. The departure point of his theoretical work is the thesis that intersubjective relations possess a normative content that the philosophical tradition has not been able to acknowledge because of its ontological premises. 81 81 HONNETH, Axel. Ob. Cit. p. 118. Tradução: Para Levinas, as crenças éticas que estamos familiarizados como produto final da reflexão do pós-modernismo em suas próprias fundações já estão presentes no início do caminho para a filosofia. O ponto de partida de seu trabalho teórico é a tese de que as relações intersubjetivas possuem um conteúdo normativo que a tradição filosófica não foi capaz de reconhecer por causa de suas premissas ontológicas.

Para Lévinas, o maior esforço da filosofia ocidental, que culmina na modernidade, sempre foi descobrir a essência do ser, portanto uma empreitada de natureza ontognoseológica. A premissa fundamental dessa empreitada é que o conhecimento do ser é possível porque e na medida em que ele não se transforma, permanece sempre idêntico a ele mesmo. Portanto, aquilo que é permanece sendo como o mesmo, o que torna possível conhecê-lo e descrevê-lo. Não que Lévinas divirja desse trabalho ontológico, mas para ele essa recondução do ente a um ser universal significou uma redução do outro ao mesmo, de maneira que o outro ficou limitado e comprometido pela própria ontologia. Isso afeta especialmente o ser humano, na medida em que cada um é um ser próprio e singular, irredutível a uma concepção geral de mesmo. Portanto, é preciso uma atitude crítica que me demova da situação passivo-agressiva de observador do outro (que pretende enquadrá-lo na condição de um mesmo ser universal), para me colocar na circunstância de quem se relaciona com o outro e é afetado por ele, como se fosse um encontro genuíno com o mundo exterior. De acordo com Lévinas, a crítica não reduz o Outro ao Mesmo como a ontologia, mas põe em questão o exercício do Mesmo. Um pôr em questão do mesmo – que não pode fazer-se na espontaneidade egoísta do Mesmo – é algo que se faz pelo outro. 82 82 LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 30. E na sequência, faz a afirmação decisiva: Chama-se ética a esta impugnação da minha espontaneidade pela presença de Outrem. A estranheza de Outrem – a sua irredutibilidade a Mim, aos meus pensamentos e às minhas posses – realiza-se precisamente como um pôr em questão da minha espontaneidade, como ética. 83 83 Idem, ibidem. Com efeito, a ética deve ser anterior a ontologia, pois antes de conhecer e classificar o outro é preciso considerá-lo na sua singularidade e dignidade. Conforme nos adverte Lévinas, a ontologia como filosofia primeira é uma filosofia do poder. 84 84 LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 33. Isso parece se adequar àquela dimensão reguladora da modernidade que submete as pessoas às instituições mais pela coerção e menos pela justificação; um conhecimento destinado a rotular e classificar os sujeitos, controlando suas ações e seus corpos. O contrário disso, a emancipação, requer a consideração ética do sujeito como um outro absoluto, não incorporável por mim e não redutível às classificações e aos interesses dominantes. Em outras palavras, considerar o outro como absolutamente outro. 85 85 LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 19.

Para que seja possível esse nível de consideração ética, é preciso que todos e cada um de nós desenvolvamos a capacidade de sermos afetados pelo outro naquilo que ele tem de outro, na sua diferença e singularidade. Isso implica livrar-se daquele comportamento padrão que nos coloca numa atitude primeira de interrogar o outro, mapeá-lo como forma de conhecê-lo para enquadrá-lo em categorias e classificações. Esse tipo de comportamento não deixa de ser uma maneira de subjugação, já que essa atitude, no mais das vezes automática, corresponde a uma relação de poder – o conhecimento é em si um poder, como afirmou Francis Bacon 86 86 BACON, Francis. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 13. – onde o outro é submetido aos meus preconceitos e idiossincrasias. Outra consequência possível nesse comportamento padrão, mas tão perigosa quanto a subjugação, é uma certa indiferença ao outro, ainda que ela venha travestida da linguagem do respeito. Não que o respeito seja necessariamente falso, ele pode ser verdadeiro, mas não é capaz de quebrar a barreira e produzir o encontro com o outro. Já em certos casos, o respeito é apenas uma formalidade e não produz deferência ou condescendência, ao contrário, pode até embutir arrogância e desprezo. Esse é o caso onde ele pode também conter uma armadilha para uma pedante indiferença, algo do tipo “eu lhe respeito, mas não estou nem aí para você...” O respeito certamente é condição necessária para as relações intersubjetivas, porém não suficiente. Por essa razão a consideração ética implica afetação.

Essa afetação, que demanda afeto, está ligada ao campo do pathos e, assim, envolve certa paixão. Buber assevera: O Tu encontra-se comigo. Mas sou eu quem entra em relação imediata com ele. Tal é a relação, o ser escolhido e o escolher, ao mesmo tempo ação e paixão. 87 87 BUBER, Martin. Ob. Cit., p, 57. O outro do afeto, não é generalizado ou abstrato, mas concreto e real, disposto numa presença onde efetividade e afetividade devem entrelaçar-se. Esse outro se faz perceptível na sua corporeidade. A presença é, antes de tudo, a manifestação de um corpo e a autenticidade desse corpo é manifesta em sua nudez. Essa é a condição mais interpeladora do outro, pois o expõe naquilo que ele realmente é, sem falseamentos e mediações. O corpo nu é também o estado mais elementar de todos nós e, com efeito, revela certa fragilidade. O corpo nu clama por abrigo e proteção, invoca cuidado. Ele é o outro que exige de mim mais do que respeito, mas sim uma atenção tão especial quanto apenas um sentimento de verdadeira empatia é capaz de produzir. Claro que o corpo nu também invoca um sentimento moral que decorre da maior parte das culturas: a vergonha. E é em função dessa vergonha que ele é coberto e outras mediações são inseridas na relação que deixa de ser imediata corporeidade. Porém, há uma parte do corpo que resiste a essa vergonha e é sempre exposta em sua nudez na relação com outro: o rosto. Diz Lévinas: O rosto voltou-se para mim – e é isso sua própria nudez. Ele é por si próprio e não por referência a um sistema. 88 88 LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 64. E continua numa afirmação radical: Só um ser absolutamente nu pelo seu rosto pode também desnudar-se impudicamente. 89 89 Idem, ibidem.

Com efeito, o rosto é imprescindível para a ética, pois ele assinala alguém em toda a sua concretude e singularidade. Ele não representa, mas presenta uma pessoa de forma autêntica e me interpela em muitos níveis. A consciência ética exige de mim que minha reação primeira seja a da acolhida, da consideração, antes mesmo do conhecimento. O Eu-Tu ao invés do Eu-Isso. Enquanto o Eu-Isso pressupõe controle e poder, o Eu-Tu pressupõe acolhimento e respeito à autonomia. A emancipação radical está mais relação do que no conhecimento. Enquanto esse sugere domínio e poder, a relação, quando eticamente produzida, invoca vínculos libertários. Como nos lembra Lévinas, o rosto recusa-se à posse, aos meus poderes . 90 90 LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 192. Nesse sentido, a consciência ética interpela a consciência moral:

A consciência moral acolhe outrem. É a revelação de uma resistência aos meus poderes que, como força maior, não os põe em xeque, mas que põe em questão o direito singelo dos meus poderes, a minha gloriosa espontaneidade de ser vivo. A moral começa quando a liberdade, em vez de se justificar por si própria, se sente arbitrária e violenta. 91 91 LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 74.

A abertura para a alteridade conforme demandada pela consciência ética refunda o sentido de ser da moral. Não se trata mais apenas da onipotência do certo sobre o errado, embora isso continue sendo indiscutivelmente um de seus fundamentos mais radicais, mas de uma mediação do sentido de certo e errado pela figura do outro que me contesta na sua diferença e me interpela em sua singularidade. Como afirma Lévinas, o fato de, existindo para outrem, eu existir de outro modo que ao existir para mim, é a própria moralidade. Ela implica por todos os lados o meu conhecimento de Outrem por uma valorização de outrem, para além desse conhecimento primeiro. 92 92 LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 260.

A crise da modernidade com o fim das metanarrativas e as fissuras nas grandes utopias abre espaço para a compreensão de um sujeito real, não idealizado. Ao fim e ao cabo, o mundo não é feito de heróis, nem todos são lideranças e nem haveria condições para que todos assim fossem. As formas gregárias de socialidade pós-moderna e as relações comunitárias chamam atenção para as pessoas comuns que são movidas mais por afeições do que por grandes ideais. As questões mais relevantes da ética e da moral precisam levar em consideração esses novos arranjos societários e comunitários para serem efetivas e coerentes em suas proposições. Claro que o discurso em favor do direito de todos e de uma cidadania livre e igual continua sendo uma potência da modernidade, talvez a maior de todas elas. Porém sua forma de realização precisa ser redimensionada para uma realidade repleta de contradições e injustiças. Essa realidade não invalida certas pretensões de emancipação que estão na base da modernidade, todavia, como dito antes, exige novas configurações do pensamento que sejam consentâneas com o tempo presente a as dinâmicas atuais de relações sociais. Nesse sentido, as rupturas provocadas no momento em que as sociedades entram numa fase pós-industrial e as culturas numa fase pós-moderna, além daquelas decorrentes da perda de força na crença em torno de uma verdade única, são oportunidades para essa reconfiguração. Vale recordar que de acordo com essa dinâmica pós-moderna, a descrença nas verdades imemoriais implica um campo radicalmente aberto às convenções que resultam das performances e narrativas. Como afirmou Lyotard, o poder de legitimação da ação social está diretamente ligado a esses relatos. 93 93 LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna . Rio de Janeiro: José Olympio, 1998, p. 42. É, sobretudo, aqui que a fissura das grandes utopias pode ser tomada como uma oportunidade para se levar em consideração os sujeitos não idealizados, especialmente para os mais simples e oprimidos. Nessa perspectiva, Kafka é insuperável, pois a literatura que produz é marcada pelo sujeito improvável, aquele que de tão sufocado pelas suas condições arrebenta com as idealizações e se revela como alguém absurdamente real, alguém que poderia até mesmo ser você ou eu. Kafka, um literato marginal na modernidade, nos ensina que é preciso olhar para as concretas formas do aprisionamento das representações e das idealizações. Isso é uma condição básica para um trabalho de reconstrução ética do mundo contemporâneo. Trata-se de compreender que as pessoas são mais importantes que as ideias e as ideias somente se legitimam quando valorizam as pessoas.

A essa altura do texto, suponho ter ficado claro que o outro é alguém que me contesta sim em sua diferença, mas que exige de mim a consideração ética. Por conseguinte, essa compreensão da ética não se coaduna com qualquer concepção onde o outro seja colocado no lugar de um estranho a ser colonizado. 94 94 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: EdUFMG, 2014, p. 60 e ss. A colonização é um tipo de violência que se opera em múltiplas dimensões – das físicas até as epistemológicas – e implica tomar o outro como subalterno e mantê-lo nessa posição. Ao contrário do que se possa imaginar, o colonialismo não é apenas uma relação entre povos ou entre nações, mas também entre pessoas. A base dessa relação é um exercício de poder onde alguém pretende fazer prevalecer seus interesses e sua visão de mundo em face dos interesses e visão de mundo de outra(s) pessoa(s). 95 95 É conhecida e vale ser lembrada a estimulante análise desenvolvida por Michel Foucault sobre uma genealogia do poder. Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016. Porém a colonização é mais do que uma disputa por interesses, trata-se de um processo por meio do qual uma pessoa é destituída de sua potência para permanecer como satélite preso à órbita do colonizador. Ora, retirar a potência de alguém significa condenar-lhe a uma espécie de morte. Pois a ética se levanta contra essa situação.

Embora não seja um autor que possa ser identificado com o campo da ética da alteridade, Giorgio Agamben faz uma interessante provocação onde associa a ética à potência humana. Antes de tudo, Agamben assevera que o conceito de ética é incompatível com qualquer forma de determinismo, ela implica possibilidade e por isso não se concilia com niilismos e nem com decisionismos. Diz Agamben:

O fato do qual deve partir todo discurso sobre a ética é que o homem não é nem há de ser ou realizar nenhuma essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum destino biológico. Somente por isso algo como uma ética pode existir: pois é claro que se o homem fosse ou tivesse que ser esta ou aquela substância, este ou aquele destino, não haveria nenhuma experiência ética possível – haveria apenas tarefa a realizar. 96 96 AGAMBEN, Giorgio. A Comunidade que Vem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 45.

Contudo, a inexistência dessa substância transcendental não significa que o homem não esteja diante de algo que lhe é próprio, que define sua condição humana. Segundo Agamben, esse algo é o simples fato da própria existência como possibilidade ou como potência . 97 97 Idem, ibidem. Mas ele nos chama a atenção para o fato de que essa potência que define o humano é tanto uma potência de ser quanto de não ser. De efeito, Agamben sustenta que a experiência ética é ser a própria potência, é existir como possibilidade. 98 98 AGAMBEN, Giorgio. Ob. Cit., p. 46. O oposto disso não seria apenas a anulação da ética, mas a própria perpetração do mal. Nas palavras de Agamben: o único mal consiste, ao contrário, no decidir permanecer em débito com o existir, de apropriar-se da potência de não ser como de uma substância ou de um fundamento exterior à existência... 99 99 Idem, ibidem. A provocação de Agamben é pertinente no contexto de nossa reflexão porque vai ao encontro de algo que está nas bases de uma ética da alteridade, que é, justamente, propiciar que o outro exista como potência, como força que pode construir-se a si mesma. Esse é, provavelmente, o sentido mais profundo da ideia de emancipação.

A ética, então, possui um sentido emancipatório na medida em que a consideração pelo outro reforça o outro como potência de ser. O cuidado que devemos ter com o outro não é para situá-lo como alguém incapaz, mas, ao contrário, para reforçar suas próprias potencialidades. Qualquer emancipação só tem sentido como autoemancipação. Todavia isso não deve ser interpretado como isolamento ou autossuficiência. Estamos sempre imbricados numa teia complexa de relações e a cultura pós-moderna revela isso com maior força e eloquência. Isso significa que a autoemancipação é a capacidade de promover a própria libertação num contexto marcado por relações intersubjetivas, grupais e de classe social. A ética deve mediar todas essas relações para que a consideração pelo outro seja o horizonte normativo que favorece a existência humana como potência de ser. Nesse sentido, uma tarefa ética de primeira grandeza que se coloca para todas e todos é buscar compreender aquelas circunstâncias que oprimem o outro, que produzem sofrimento e que estão repletas de obstáculos que impedem ou dificultam que a pessoa possa exercer suas potencialidades. Do ponto de vista ético, é preciso prestar uma atenção especial aos que mais sofrem. Evidentemente o sofrimento é uma experiência subjetiva, por isso mesmo não pode haver a ilusão de que a consideração ética implicará ao seu agente sentir o sofrimento de outro da mesma forma que o outro sente. Mesmo a empatia, que é uma das características centrais da ética da alteridade, não permite esse tipo de situação. Não se trata de sofrer como o outro e nem mesmo de sofrer pelo outro, mas de se colocar ao lado do outro nesse momento de sofrimento, estar com outro. O estar junto, esse tipo de com-paixão pelo Tu, para falar com Buber, é um movimento extremamente poderoso para reforçar as defesas daquele que sofre. 100 100 Num sentido mais radical do que sustento nesse texto, Maurice Blanchot vai muito além para dizer que aquilo que nos define como comunidade é a morte de outrem. Esse sofrimento máximo que vive o outro é capaz de nos colocar em causa como nada mais. Nas palavras de Blanchot: O que, pois, que me coloca o mais radicalmente em causa? Não minha relação comigo mesmo como finito ou como consciência de ser na morte ou para a morte, mas a minha presença para outrem enquanto este se ausenta morrendo. Manter-me presente na proximidade de outrem, que se distancia definitivamente morrendo, tomar sobre mim a morte de outrem como a única morte que me concerne, eis o que me põe para fora de mim e é a única separação que pode me abrir, em sua impossibilidade, ao Aberto de uma comunidade. BLANCHOT, Maurice. A Comunidade Inconfessável. Brasília: EdUnB, 2013, pp. 20-21.

Todavia, existe um sofrimento que não se contém na pura subjetividade. Trata-se daquele que decorre das diferentes formas de violência que caracterizam o que costuma ser denominado como injustiça social. Há um outro que sofre porque encontra-se na condição de sujeito da injustiça social. 101 101 Cf. CUNHA, José Ricardo. ASSY, Bethania. Teoria do Direito e o Sujeito da Injustiça Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. Esse sujeito está sujeitado à variadas formas de opressão que decorrem tanto de privações materiais como de uma hierarquia de identidades que provoca subalternação. Essas desigualdades imerecidas são sustentadas, no mais das vezes, por estruturas sociais que se alimentam da própria exploração e utilizam a exclusão como forma de preservação do sistema. Os sujeitos da injustiça social estão lançados – algumas vezes desde o nascimento – nessas estruturas e socialmente abandonados à própria sorte. Bader Sawaia denomina o tipo de sofrimento produzido sob essas circunstâncias de sofrimento ético-político. Nas palavras da autora:

Em síntese, o sofrimento ético-político abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida de diferentes formas. Qualifica-se pela maneira como sou tratada e trato o outro na intersubjetividade, face a face ou anônima, cuja dinâmica, conteúdo e qualidade são determinados pela organização social. Portanto, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. Ele revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade social, da negação imposta socialmente às possibilidades da maioria apropriar-se da produção material, cultural e social de sua época, de se movimentar no espaço público e de expressar desejo e afeto. 102 102 SAWAIA, Bader Burihan. O Sofrimento Ético-Político como Categoria de Análise da Dialética Exclusão/Inclusão. InSAWAIA, Bader Burihan (Org.) As Artimanhas da Exclusão: Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2001, pp. 104-105.

De um ponto de vista ético, todas as pessoas merecem nossa consideração, mas especialmente os que mais sofrem. De uma maneira geral o sofrimento é uma experiência íntima e pessoal, de natureza subjetiva. Porém, o sofrimento do sujeito da injustiça social possui uma dimensão objetiva que produz um vínculo de inquestionável responsabilidade ética. Não é possível ser ético e assistir impassivelmente as situações e processos que coisificam as pessoas ao submeterem-nas a várias formas de opressão, exploração, crueldade, humilhação, preconceito, discriminação, privação etc... Tais tipos de relação social produzem uma intersubjetividade que não pode ser eticamente aceita como correta, natural ou necessária. Ao contrário, essas injustiças produzem uma desordem estrutural onde a liberdade não pode ser reconhecida enquanto tal, pois a grande maioria é reduzida a meio para a realização dos fins egoísticos da minoria. 103 103 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e Racionalidade Moderna . São Paulo: Loyola, 1993, p. 108.

Não há dúvida de que a emancipação dos oprimidos deve ser uma autoemancipação, para que seja verdadeiramente revolucionária. Isso se coloca para a consciência ética como um triplo dever: 1) abrir espaço para a narrativa em primeira pessoa do oprimido, de forma que ele fale por sua própria voz, garantindo a autenticidade dos relatos; 2) ouvir, considerar, compreender e acolher o outro oprimido, nas suas condições concretas e não idealizadas; e 3) participar, quando for o caso, e apoiar, sempre, as organizações dos oprimidos e seus movimentos e processos de luta emancipatória. Isso não implica necessariamente adesão a nenhum tipo de ideologia, mas um puro exercício ético que tende a propiciar a instituição de um espaço verdadeiramente público, onde os interesses dos grupos dominantes possam ser confrontados pelas demandas dos oprimidos, tendo em vista a superação desse modelo de organização que institucionaliza a opressão. Nas palavras de Manfredo Oliveira: a criação de um espaço de mútuo reconhecimento das liberdades, concretiza-se no reconhecimento do oprimido enquanto tal, precisamente porque ele não oferece outra razão ao reconhecimento, a não ser a dignidade do homem enquanto ser livre. 104 104 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ob. Cit., p. 109. Esse plano emancipatório propiciado pela consciência ética alcança as mais variadas formas de relação social e de socialidade. Se vale, por exemplo, para a luta da classe trabalhadora contra a exploração pelo trabalho e produção do mais-valor, vale também para as lutas feministas e por igualdade racial dos movimentos de matriz identitária, como de mulheres e negros. Da mesma forma, alcança os movimentos de inclusão social daqueles que estão em situação de rua e abandonados à miséria. Nessa tarefa especial da ética que é a da consideração pelo sujeito da injustiça social, a face do oprimido como realidade que me interpela, como diferença que me contesta, ganha uma importância transcendental, pois é como se revelasse o outro na sua condição nua, sem as mediações das fantasias institucionais. Essa condição nua se apresenta como uma condição intrinsecamente possível de todos nós, como aquilo que qualquer um é ou poderia ser: o humano que sofre.

A ética da alteridade pretende uma vocação emancipatória porque não intenciona que o EU substitua o TU, mas porque oferece a acolhida e o amparo que são tão importantes para um processo de empoderamento que permita a autoemancipação, isto é, que o outro se construa a si mesmo como potência de ser. Voltando a Lévinas:

Esta inversão humana do em-si e do para-si, do “cada um por si”, em um eu ético, em prioridade do para-outro, esta substituição ao para-si da obstinação ontológica de um eu doravante decerto único, mas único por sua eleição a uma responsabilidade pelo outro homem – irrecusável e incessível – esta reviravolta radical produzir-se-ia no que chamo de encontro do rosto de outrem. 105 105 LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: ensaios de alteridade . Petrópolis: Vozes, 2005, p. 269.

VII) Considerações Finais

Não foi intenção desse texto entrar numa disputa dogmática acerca da melhor descrição sociológica ou da melhor reflexão filosófica sobre o mundo contemporâneo. Não se trata de alimentar uma querela conceitual sobre modernidade e pós-modernidade. A complexidade da realidade tende sempre a ultrapassar os tipos ideais que produzimos para bem compreendê-la. Portanto, a proposta central do texto é ter em conta um esquema interpretativo do tempo presente que seja mais amplo e, dessa forma, coloque em questão as demandas e os entraves para práticas que possam ser consideradas emancipatórias.

A emancipação é uma aspiração e um projeto que se realiza em diferentes níveis. Implica influxos sociológicos, psicológicos e filosóficos para se converter em ação social concreta no plano político, econômico, jurídico, cultural etc. Esse texto privilegiou os influxos vindos da reflexão ética e fez uma escolha pela ética da alteridade por considerar se tratar de um campo específico da ética normativa e da metaética que se coaduna com aquele esquema interpretativo mais amplo do tempo presente. Claro que essa escolha também reflete minha preferência filosófica, o que deve ter ficado claro para a leitora e para o leitor ao longo do texto.

No aspecto normativo, pretendi sustentar que a consideração pelo outro é em si mesma um valor incondicional que deve orientar todas as relações interpessoais, do plano comunitário ao plano político. Nesse sentido, dois aspectos são de especial relevância: 1) o outro deve ser visto nas suas condições concretas, na sua diferença e singularidade; é preciso escapar da armadilha das idealizações e representações que acabam por funcionar como epifenômenos que dificultam a compreensão e o acesso ao outro real; e 2) o outro oprimido pelas injustiças sociais, o sujeito da injustiça social, deve me interpelar como um caso especial da consideração ética; sua face nua me aborda no sentido mais profundo do termo humanidade e cria para mim uma obrigação ética de acolhimento. Isso deve resultar num processo de apoio e irmanação que fortaleça as condições de autoemancipação dos oprimidos.

Evidentemente, o que foi tratado aqui é um aspecto restrito e particular do processo mais amplo da consideração ética e, especialmente, da autoemancipação dos oprimidos, pois tal processo emancipatório possui outras dimensões e contornos que precisam ser vistos de forma específica. Obviamente a ética não é uma panaceia que irá acabar com a opressão no mundo, já que ela resulta da realização contínua e prolongada de diferentes ações e atividades que produzem aviltamento, exclusão e subalternações em geral. A luta contra esses males tem implicações no plano econômico, cultural e político. Contudo, não vejo como essas lutas emancipatórias possam ser bem sucedidas e não serem instrumentalizadas sem um profundo sentimento ético de consideração pelo outro.

  • 1
    ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-Estar na Modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1993, p.9.
  • 2
    Para uma crítica do essencialismo Cf. MOUFFE, Chantal MOUFFE, Chantal. O Regresso do Político. Lisboa: Gradiva, 1996. . O Regresso do Político . Lisboa: Gradiva, 1996, pp. 33-36.
  • 3
    Boaventura de Souza Santos, desde a década de noventa, fala que o projeto da modernidade se sustenta sobre dois pilares: regulação e emancipação. Enquanto o primeiro é constituído pelos princípios de estado, mercado e comunidade, o segundo é constituído pelas racionalidades estético-expressiva (arte e literatura), moral-prática (ética e direito) e cognitivo-instrumental (ciência e técnica). Contudo, reconhece que o pilar da regulação, sobretudo pelo princípio do mercado, se sobrepôs ao pilar da autonomia. E mesmo no pilar da emancipação, a racionalidade cognitivo-instrumental, em alguma medida, controlou as demais. Tudo isso está na base da crise do projeto da modernidade. Cf. SANTOS, Boaventura de Souza SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1997. . Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade . São Paulo: Cortez, 1997, pp. 75-114 e 235-280.
  • 4
    SANTOS, Boaventura de Sousa SANTOS, Boaventura de Souza. Por Uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos in Revista Lua Nova, No 39, São Paulo: CEDEC, 1997. . Por Uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos In Revista Lua Nova, No 39, São Paulo: CEDEC, 1997, p. 108.
  • 5
    ARENDT, Hannah ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. . A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, pp. 260-263.
  • 6
    A invenção do telescópio costuma ser atribuída ao fabricante de lentes holandês Hans Lippershey, em 1608.
  • 7
    ARENDT, Hannah. Ob. Cit, pp. 269-285. Cf. TAYLOR, Charles TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000. . Argumentos Filosóficos . São Paulo: Loyola, 2000, pp. 13-31. SANTOS, Boaventura de Souza SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. . A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência . São Paulo: Cortez, 2000, pp. 60-68.
  • 8
    KANT, Emanuel. O que é a ilustração InWEFFORT, Francisco WEFFORT, Francisco (Org.). Os Clássicos da Política. Vol. 2, São Paulo: Ática, 1993. (Org.). Os Clássicos da Política. Vol. 2, São Paulo: Ática, 1993, pp. 83-84.
  • 9
    TOURAINE, Alain TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994. . Crítica da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 36.
  • 10
    TOURAINE, Alain. Ob. Cit., p. 38.
  • 11
    TOURAINE, Alain. Ob. Cit., p. 99.
  • 12
    Em outro trabalho, explorei esse aspecto conservador da modernidade a partir da análise que Walter Benjamin faz da obra crítica do porta francês Charles Baudelaire. Benjamin registra como o moderno não significa necessariamente o novo pois ele se opõe ao antigo e não ao sempre igual. Cf. CUNHA, José Ricardo CUNHA, José Ricardo. Duas Almas. In revista Direito, Estado e Sociedade nº 6. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1995. . Duas Almas. In revista Direito, Estado e Sociedade nº 6. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1995, p 143-145.
  • 13
    HIRSCHMAN, Albert HIRSCHMAN, Albert. A Retórica da Intransigência: perversidade, futilidade, ameaça. São Paulo: Cia das Letras, 1992. . A Retórica da Intransigência: perversidade, futilidade, ameaça. São Paulo: Cia das Letras, 1992, p. 138.
  • 14
    Cf. http://www.genome.gov/10001772 acessado em julho de 2018. Cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Genome_project acessado em julho de 2018.
  • 15
    PLASTINO, Carlos Alberto. A Crise dos Paradigmas e a Crise do Conceito de Paradigma in BRANDÃO , Zaia BRANDÃO, Zaia (org.) A Crise dos Paradigmas e a Educação. São Paulo: Cortez, 1994. (org.) A Crise dos Paradigmas e a Educação. São Paulo: Cortez, 1994, p. 32-33.
  • 16
    LAPLACE apudCHAUÍ, Marilena CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994. . Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994, p. 264.
  • 17
    PLASTINO, Carlo Alberto. Ob. Cit., p. 36.
  • 18
    DIRAC, Paul DIRAC, Paul. Métodos em Física Teórica in SALAM, Abdus. A Unificação das Forças Fundamentais: o grande desafio da física contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. . Métodos em Física Teóricain SALAM, Abdus. A Unificação das Forças Fundamentais: o grande desafio da física contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 96.
  • 19
    Cf. PRIGOGINE, Ilya PRIGOGINE, Ilya Et alii. Ideias Contemporâneas. São Paulo: Ática, 1989. . Et alii. Ideias Contemporâneas. São Paulo: Ática, 1989, p. 59.
  • 20
    Cf. GADAMER, Hans-Georg GADAMER, Hans-Georg. O Problema da Consciência Histórica. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998. . O Problema da Consciência Histórica . Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998.
  • 21
    Nas palavras de Fredric Jameson: The concept of postmodernism is not widely accepted or even understood today. JAMESON, Fredric JAMESON, Fredric. The Cultural Turn: selected writings on the postmodern, 1983-1998. Nova Iorque: Verso, 1998. . The Cultural Turn: selected writings on the postmodern, 1983-1998. Nova Iorque: Verso, 1998, p. 1. Tradução: O conceito de pós-modernidade não é amplamente aceito ou mesmo compreendido hoje.
  • 22
    ANDERSON, Perry ANDERSON, Perry. As Origens da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. . As Origens da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, pp. 9-57.
  • 23
    LYOTARD, Jean-François LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. . A Condição Pós-Moderna . Rio de Janeiro: José Olympio, 1998, p. 3.
  • 24
    LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit., pp. 5-6.
  • 25
    LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. p. 13.
  • 26
    LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. pp. 27-28.
  • 27
    LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. p. 28.
  • 28
    Idem, ibidem.
  • 29
    Idem, ibidem.
  • 30
    LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. p. 31.
  • 31
    Cf. VATTIMO, Gianni VATTIMO, Gianni. Adeus à verdade. Petrópolis: Vozes, 2016. . Adeus à verdade. Petrópolis: Vozes, 2016.
  • 32
    LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. pp. 35-41.
  • 33
    LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. p. 42.
  • 34
    LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. p. 55.
  • 35
    Idem, ibidem.
  • 36
    LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. p. 60.
  • 37
    LYOTARD, Jean-François. Ob. Cit. p.73.
  • 38
    Cf. MAFFESOLI, Michel MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. . O Tempo das Tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 128-136.
  • 39
    Na mitologia grega o thiase ou thiaso ou tíaso é uma associação ou confraria que realiza festas e cultos. O mais famoso de todos os thiases é o dionisíaco. Uma comitiva que acompanhava Dionísio e era formada de mênades e sátiros. O que caracteriza os thiases era exatamente esse caráter afetivo e não necessariamente racional. Talvez por isso Maffesoli tenha usado esse termo – thiase – em oposição ao termo polis que, por seu turno, designa uma associação política e racional.
  • 40
    MAFFESOLI, Michel. Ob. Cit. p. 102.
  • 41
    MAFFESOLI, Michel. Ob. Cit. p. 108.
  • 42
    Cf. SANTOS, Boaventura de Souza SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1997. . Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1997. SANTOS, Boaventura de Souza SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. . A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.
  • 43
    MAFFESOLI, Michel. Ob. Cit. pp. 111-115.
  • 44
    MAFFESOLI, Michel. Ob. Cit. pp. 136-137.
  • 45
    HONNETH, Axel HONNETH, Axel. Disrespect: the normative foundations of Critical Theory. Cambridge: Polity Press, 2007. . Disrespect: the normative foundations of Critical Theory . Cambridge: Polity Press, 2007, p. 99. Tradução: Embora o movimento filosófico do pós-modernismo tenha sido inicialmente contrário a todo tipo de teoria normativa, essa reticência inicial, desde então, deu lugar a uma mudança drástica de atitude.
  • 46
    Num breve espectro podemos citar os casos marcantes de autores como Habermas, Jameson, Harvey e Anderson. Cf. HABERMAS, Jurgen HABERMAS, Jurgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990. . O Discurso Filosófico da Modernidade . Lisboa: Dom Quixote, 1990. JAMESON, Fredric. The Cultural Turn: selected writings on the postmodern, 1983-1998. Nova Iorque: Verso, 1998. HARVEY, David HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1993. . Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1993. ANDERSON, Perry. As Origens da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
  • 47
    Ver, por todos: LIPOVETSKY, Gilles LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade Pós-Moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Barueri: Manole, 2005. . A Sociedade Pós-Moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Barueri: Manole, 2005.
  • 48
    BAUMAN, Zygmunt BAUMAN, Zygmunt. Ética Pós-Moderna. São Paulo: Paulus, 1997. . Ética Pós-Moderna. São Paulo: Paulus, 1997, p. 6.
  • 49
    BAUMAN, Zygmunt. Ob. Cit. p. 8.
  • 50
    Idem, ibidem.
  • 51
    O artigo corresponde ao capítulo 5 do livro Disrespect: the normative foundations of Critical Theory. Cambridge: Polity Press, 2007, pp. 99-128.
  • 52
    HONNETH, Axel. Ob. Cit. pp. 106-107.
  • 53
    HONNETH, Axel. Ob. Cit. pp. 115-116. Tradução: Um princípio de responsabilidade que carrega características assimétricas governa aqui, porque eu sou obrigado a responder ao pedido urgente do meu amigo ou súplica sem considerar deveres recíprocos. Mas, se a relação foi determinada apenas por um princípio de assimetria, a obrigação de um lado, ela não seria mais uma amizade, mas amor. Somente em afeto, que é imperturbável por quaisquer outras considerações, posso experimentar o outro como uma pessoa a quem eu sou obrigado incondicionalmente – i.e., além de toda responsabilidade moral. É por isso que, para Derrida, a amizade mostra uma segunda dimensão da intersubjetividade, em que a outra pessoa aparece como um outro generalizado. Neste momento de generalidade, os princípios morais institucionalmente consagrados emergem para, de acordo com os direitos e deveres simetricamente distribuídos, regularem a responsabilidade que tenho por todas as outras pessoas na sociedade.
  • 54
    HONNETH, Axel. Ob. Cit. p. 101; pp. 113-114.
  • 55
    KANT, Immanuel KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. . Fundamentação da Metafísica dos Costumes . In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 140. Assim afirma Kant: No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.
  • 56
    KANT. Ob. Cit., p. 140.
  • 57
    BUBER, Martin. Sobre Comunidade. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 50.
  • 58
    BUBER, Martin. Ob. Cit., p. 33.
  • 59
    BUBER, Martin. Ob. Cit., p, 39.
  • 60
    BLANCHOT, Maurice. A Comunidade Inconfessável. Brasília: EdUnB, 2013, p. 76.
  • 61
    BLANCHOT, Maurice. Ob. Cit., p. 16.
  • 62
    Aqui vale lembrar como Zygmunt Bauman desenvolveu um percurso reflexivo onde na década de 1990 se voltava para a compreensão do fenômeno pós-moderno, porém a partir da década de 2000 prefere adotar a expressão modernidade líquida, seja para distinguir sua análise de outras, seja para evitar confusões já que a expressão “pós-modernidade” não possui um consenso teórico-semântico.
  • 63
    BLANCHOT, Maurice. Ob. Cit., p. 14.
  • 64
    BLANCHOT, Maurice. Ob. Cit., p. 19.
  • 65
    BLANCHOT, Maurice. Ob. Cit., p. 20.
  • 66
    BLANCHOT, Maurice. Ob. Cit., p. 17.
  • 67
    BUBER, Martin BUBER, Martin. Sobre Comunidade. São Paulo: Perspectiva, 2012. . Sobre Comunidade. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 50.
  • 68
    BLANCHOT, Maurice BLANCHOT, Maurice. A Comunidade Inconfessável. Brasília: EdUnB, 2013. . A Comunidade Inconfessável. Brasília: EdUnB, 2013, p. 23.
  • 69
    BUBER, Martin. Ob. Cit., p, 106.
  • 70
    BUBER, Martin BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001. . Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2001, p. 53.
  • 71
    Idem, ibidem.
  • 72
    BUBER, Martin. Sobre Comunidade. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 123.
  • 73
    BUBER, Martin. Ob. Cit., p, 126.
  • 74
    BUBER, Martin. Ob. Cit., p, 107.
  • 75
    BUBER, Martin. Sobre Comunidade. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 123.
  • 76
    HONNETH, Axel. Disrespect: the normative foundations of Critical Theory . Cambridge: Polity Press, 2007, p. 99 e ss.
  • 77
    BUBER, Martin. Ob. Cit., p, 57.
  • 78
    LÉVINAS, Emmanuel LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008. . Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 25.
  • 79
    O artigo corresponde ao capítulo 5 do livro Disrespect: the normative foundations of Critical Theory. Cambridge: Polity Press, 2007, pp. 99-128.
  • 80
    HONNETH, Axel. Ob. Cit. pp. 118 e ss. Tradução: Aqui deve ser feita uma breve referência às ideias éticas básicas que Derrida toma da obra de Emmanuel Levinas.
  • 81
    HONNETH, Axel. Ob. Cit. p. 118. Tradução: Para Levinas, as crenças éticas que estamos familiarizados como produto final da reflexão do pós-modernismo em suas próprias fundações já estão presentes no início do caminho para a filosofia. O ponto de partida de seu trabalho teórico é a tese de que as relações intersubjetivas possuem um conteúdo normativo que a tradição filosófica não foi capaz de reconhecer por causa de suas premissas ontológicas.
  • 82
    LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 30.
  • 83
    Idem, ibidem.
  • 84
    LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 33.
  • 85
    LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 19.
  • 86
    BACON, Francis BACON, Francis. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1984. . Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 13.
  • 87
    BUBER, Martin. Ob. Cit., p, 57.
  • 88
    LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 64.
  • 89
    Idem, ibidem.
  • 90
    LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 192.
  • 91
    LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 74.
  • 92
    LÉVINAS, Emmanuel. Ob. Cit., p. 260.
  • 93
    LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna . Rio de Janeiro: José Olympio, 1998, p. 42.
  • 94
    SPIVAK, Gayatri Chakravorty SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: EdUFMG, 2014. . Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: EdUFMG, 2014, p. 60 e ss.
  • 95
    É conhecida e vale ser lembrada a estimulante análise desenvolvida por Michel Foucault sobre uma genealogia do poder. Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.
  • 96
    AGAMBEN, Giorgio AGAMBEN, Giorgio. A Comunidade que Vem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. . A Comunidade que Vem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 45.
  • 97
    Idem, ibidem.
  • 98
    AGAMBEN, Giorgio. Ob. Cit., p. 46.
  • 99
    Idem, ibidem.
  • 100
    Num sentido mais radical do que sustento nesse texto, Maurice Blanchot vai muito além para dizer que aquilo que nos define como comunidade é a morte de outrem. Esse sofrimento máximo que vive o outro é capaz de nos colocar em causa como nada mais. Nas palavras de Blanchot: O que, pois, que me coloca o mais radicalmente em causa? Não minha relação comigo mesmo como finito ou como consciência de ser na morte ou para a morte, mas a minha presença para outrem enquanto este se ausenta morrendo. Manter-me presente na proximidade de outrem, que se distancia definitivamente morrendo, tomar sobre mim a morte de outrem como a única morte que me concerne, eis o que me põe para fora de mim e é a única separação que pode me abrir, em sua impossibilidade, ao Aberto de uma comunidade. BLANCHOT, Maurice. A Comunidade Inconfessável. Brasília: EdUnB, 2013, pp. 20-21.
  • 101
    Cf. CUNHA, José Ricardo. ASSY, Bethania CUNHA, José Ricardo. ASSY, Bethania. Teoria do Direito e o Sujeito da Injustiça Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. . Teoria do Direito e o Sujeito da Injustiça Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
  • 102
    SAWAIA, Bader Burihan. O Sofrimento Ético-Político como Categoria de Análise da Dialética Exclusão/Inclusão. InSAWAIA, Bader Burihan SAWAIA, Bader Burihan (Org.) As Artimanhas da Exclusão: Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2001. (Org.) As Artimanhas da Exclusão: Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2001, pp. 104-105.
  • 103
    OLIVEIRA, Manfredo Araújo de OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo: Loyola, 1993. . Ética e Racionalidade Moderna . São Paulo: Loyola, 1993, p. 108.
  • 104
    OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ob. Cit., p. 109.
  • 105
    LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós: ensaios de alteridade . Petrópolis: Vozes, 2005, p. 269.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
  • Data do Fascículo
    Set 2018

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2018
  • Aceito
    10 Ago 2018
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