Acessibilidade / Reportar erro

Tendências históricas universais do ser social na Ontologia de Lukács: apontamentos de uma leitura imanente

Universal historical trends of the social being in the Lukács Ontology: notes of an immanent reading

Resumo

Este artigo é produto de leitura imanente realizada em parte da Ontologia do Ser Social, em que Györg Lukács expõe as principais tendências históricas universais pelas quais o ser social se reproduz. Ao esclarecer, entre outras questões, como o homem faz a sua própria história, ainda que em circunstâncias não desejadas por ele, o autor demonstra a possibilidade ontológica do fim da exploração do homem pelo homem. Com este trabalho, temos o objetivo de auxiliar o início dos estudos da obra de maturidade desse importante filósofo marxista.

Palavras-chave:
Ontologia; Reprodução social; Leitura imanente

Abstract

This article is the product of immanent reading accomplished in part of the Ontology of Social Being, in which Györg Lukács exposes the main universal historical tendencies from which the social being reproduces itself. By clarifying as how the man makes his own history, even if in circumstances not desired by him, the author demonstrates the ontological possibility of the end of the exploration of men by men. With this work, the objective is to assist with the beginning of studies of the maturity work made by this important marxist philosopher.

Keywords:
Ontology; Social reproduction; Immanent reading

Este artigo é produto de leitura imanente que analisa duas tendências históricas universais do ser social destacadas por Györg Lukács. Tratam-se do desenvolvimento das forças produtivas e do afastamento das barreiras naturais, esta última também articulada com outra peculiaridade do ser social, o tempo de trabalho socialmente necessário. Com isso, temos o objetivo de auxiliar o início dos estudos da obra de maturidade desse filósofo marxista, a Ontologia do Ser Social 1 1 A leitura imanente foi realizada na versão italiana traduzida por Alberto Scarponi e sempre que necessário também foi confrontada com a versão em alemão. Daqui em diante vamos nos referir a essa obra apenas por Ontologia. , a partir do capítulo A Reprodução 2 2 Neste capítulo autor explica como o trabalho funda o ser social sem que a humanidade seja reduzida a ele. Os próximos capítulos são dedicados aos complexos da Ideologia e da Alienação. Assim, por ser um capítulo de síntese e, ao mesmo tempo, de transição para a análise de complexos importantes para o estudo da ética – texto que não pôde ser escrito em razão do falecimento do autor – A Reprodução é uma interessante porta de entrada para a compreensão da obra de maturidade de Lukács. .

Ao se debruçar sobre tendências de desenvolvimento do ser social, este estudo reafirma, juntamente com Marx e Lukács, a existência de uma legalidade imanente à história humana que permite que essa história possa ser conhecida e, sob certas circunstâncias, alterada. Essa é outra maneira de afirmar a possibilidade ontológica do comunismo, da humanidade superar a exploração do homem pelo homem 3 3 Reconhecer a possibilidade ontológica da superação da exploração do homem pelo homem não significa afirmar a sua inevitabilidade, como ficará claro ao longo deste artigo. . No entanto, como veremos, não se trata da legalidade tal como a entende o materialismo vulgar e mecanicista. Na Ontologia Lukács não poupa esforços no combate a essa vertente do marxismo.

A aproximação a esse texto lukacsiano, contudo, não é tarefa simples. Além de um contexto histórico francamente avesso a considerações ontológicas, essa obra é extensa e inacabada. Demais disso, ainda hoje carecemos de estudos mais sistemáticos que deem conta de suas inúmeras articulações internas. Os perigos parecem se intensificar quando se trata dos estudos na área do direito. Na Ontologia, Lukács dedica uma pequena parte à caracterização do complexo jurídico, o que poderia ser um convite a pinçar esse fragmento do texto em detrimento da compreensão do esforço do autor em fundar todas as atividades humanas no trabalho e, a partir daí, articular a reprodução social como processo histórico total.

Por isso, nosso argumento é de que a leitura imanente da Ontologia é um recurso metodológico poderoso para dar conta dessa tarefa, pois nela a prioridade ontológica do texto é a primeira exigência. Mas de que maneira é possível controlar a subjetividade no estudo da Ontologia? 4 4 Recomendamos de modo enfático a leitura do livro “O revolucionário e o estudo. Porque não estudamos?”, de Sergio Lessa (2014). Nele o autor detalha um plano de estudo para a leitura imanente. Não se trata de um modelo. Quem se convencer que esse é um poderoso recurso metodológico para a compreensão dos textos clássicos deve encontrar seu próprio caminho. Fazer leitura imanente é um exercício individual, diário e cumulativo. No entanto, o texto pode servir de inspiração pois o autor sistematiza a sua experiência de mais de 30 anos nessa forma de estudo. Comecemos por explicar o que a leitura imanente não é. Em primeiro lugar, a leitura imanente não tem por objetivo fazer uma “interpretação inédita” da Ontologia. Nesse aspecto, sua finalidade é mais modesta e, por isso mesmo, vai na contramão dos critérios mercadológicos que parecem pesar cada vez mais sobre a pesquisa acadêmica 5 5 A “novidade” como critério de mercado que se introduziu na pesquisa acadêmica pode não só comprometer os seus resultados mas, pior ainda, impedir que os pesquisadores construam base teórica sólida. Em detrimento do estudo cumulativo, necessariamente mais lento e não linear, muitos são impelidos a dirigir suas principais energias para atender a essa exigência. . Em segundo lugar, a leitura imanente tampouco se contenta em fisgar um “problema de pesquisa” no conjunto da obra. Ao contrário, ela quer extrair do texto sua ideia central, buscar as conexões entre os argumentos e compreender os motivos pelos quais o autor deu determinada forma ao texto. Nesse sentido, seu objetivo é mais ambicioso, em especial para a área do direito 6 6 Profissionais de outras áreas do conhecimento se impressionam com nossa capacidade de comparar fragmentos – de maneira abstrata e às vezes em um único artigo com 30 páginas – de autores tão distintos como Marx, Foucault, Lukcács, Althusser, Heidegger, Sartre etc. Talvez isso se deva à nossa formação generalista, que nos faz acreditar que somos capazes de falar de tudo (ou quase tudo). No entanto, como parece que parte da pesquisa em direito tende a se afastar da dogmática e a se aproximar de outras áreas, talvez seja o caso de repensarmos seriamente essa prática. Nas Ciências Sociais, por exemplo, os textos dedicados à comparação de autores paradigmáticos e correntes téoricas em geral são feitos por aqueles que, após longa experiência em pesquisas empíricas, passam a discutir as categorias teóricas e o método com aporte da filosofia. . O rigor analítico na exegese tem por finalidade reproduzir na consciência de quem estuda o movimento imanente ao texto e, assim, tornar acessível suas articulações de ideias, bem como sua argumentação 7 7 Para mais informações sobre a metodologia da leitura imanente cf. LESSA, 2011, especialmente a introdução e o capítulo V. .

A seguir abordaremos o processo de explicitação do ser social a partir de duas de suas tendências gerais – o desenvolvimento das forças produtivas e o tempo de trabalho socialmente necessário, ambas articuladas com o afastamento das barreiras naturais. Concentramos a análise dessas tendências na leitura imanente dos 12 (doze) primeiros parágrafos do capítulo A Reprodução, da Ontologia. Mas antes disso será necessário caracterizar a especificidade do ser social com a discussão sobre as três esferas ontológicas que compõem o ser em sua máxima universalidade. Ao concluir, ressaltaremos a peculiaridade dos problemas e do método ontológico que foram expostos ao longo deste artigo.

1. Materialismo e as três esferas ontológicas

Os quatro primeiros parágrafos d’A Reprodução, capítulo 2 da Ontologia, são uma espécie de síntese do capítulo anterior, intitulado O Trabalho, em que Lukács faz uma ampla abstração. É importante destacar que com essa sequência de capítulos o autor não pretende deduzir a reprodução social de uma categoria teórica. O que ele faz é justamento o oposto de uma dedução. Uma das principais finalidades do capítulo 1 é destacar as premissas que tornaram possível o ser social, para assim chegar a falar de suas características mais gerais, sem as quais ele não poderia se tornar real. Como o trabalho é a categoria essencial do ser social, aquilo que o diferencia dos seres inorgânico e orgânico, destacar seus elementos mais simples e universais – o que só poderia ser feito de maneira abstrata – é uma opção metodológica que ressalta os elementos essenciais do próprio ser social. Portanto, tal abstração torna possível ao autor destacar o surgimento do trabalho a partir das formas de ser precedentes, de que maneira as categorias do ser social se vinculam a essas formas, como se fundamentam nestas e se diferenciam destas ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 11).

Assim, antes de tratar das tendências de desenvolvimento do ser social, vamos seguir os passos de Lukács e expor algumas conclusões da ampla abstração feita no capítulo O Trabalho 8 8 Para expor as principais conclusões do capítulo 1 da Ontologia vamos nos valer de passagens do tópico 1 e 2 do capítulo 2 do volume II da Ontologia, mas quando necessário vamos recorrer também a alguns autores que estão mais avançados na leitura imanente dessa obra lukacsiana, especialmente Lessa, 2015a e Andrade, 2016. Assim, nesse primeiro momento do presente texto, não seguiremos – tal como recomenda a leitura imanente – a ordem dos parágrafos iniciais do capítulo 2. No entanto, retomaremos essa sequência tão logo avancemos na concepção de fundo da Ontologia de Lukács, a filosofia materialista unitária de Marx. .

1.1 Salto ontológico: a gênese de uma nova essência

No materialismo de Marx, assim como no de Lukács, o ser conserva a unidade última, a continuidade, no seu processo de desenvolvimento histórico. Isso não significa que a matéria seja homogênea. Ao contrário, a heterogeneidade do ser é explicitada de forma clara por uma gradação de esferas ontológicas − marcada por rupturas − mas que só pode ser refletida adequadamente na consciência se seus aspectos e critérios forem “tratados, exclusivamente, pela caracterização do ser enquanto ser” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 166).

Lukács explica que a ontologia materialista não implica uma hierarquia de valor entre as formas de ser, do mesmo modo que está livre dos ofuscamentos provocados por categorias lógicas e gnosiológicas:

Isso significa, em primeiro lugar, perguntar-se: qual grau de ser pode possuir ser mesmo quando faltam os outros, e qual, ao invés, pressupõe, ontologicamente, o ser dos outros graus. Se nos colocarmos essas questões, as respostas são claras e facilmente verificáveis: a natureza inorgânica não pressupõe, de nenhuma forma, nem o ser biológico nem o ser social. Pode existir em termos completamente autônomos, enquanto o ser biológico pressupõe uma particular constituição do inorgânico e, sem uma perene interação com ele, não é capaz de reproduzir seu próprio ser nem mesmo por um momento. Do mesmo modo o ser social pressupõe a natureza orgânica e inorgânica e, sem esses como base, não pode desenvolver as próprias categorias que, não obstante, são diferentes daqueles dois graus do ser. Daí a possibilidade de um ordenamento dos graus do ser sem propósitos valorativos, sem confundir com esses propósitos o problema da prioridade ontológica, da independência e dependência ontológica ( LUKÁCS. 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 166). (grifos nossos)

O processo evolutivo 9 9 O termo “evoluir” é, em geral, malvisto pelas Ciências Sociais porque certas correntes teóricas positivistas, ou que flertam com o positivismo, equipararam desenvolvimento a um juízo de valor. Insistimos que essa perspectiva é totalmente alheia à Ontologia de Lukács. Aqui evoluir é sinônimo de transformação, de movimento, de historicidade, que é uma propriedade ontológica universal da matéria e, portanto, está presente nos seres inorgânico, orgânico e social. É por esse motivo que Marx e Engels afirmam: “Conhecemos apenas uma ciência, a ciência da história” (MARX; ENGELS, 2009, p. 21). do ser inorgânico, sua história 10 10 O estudo sobre a origem e desenvolvimento das esferas ontológicas é muito importante para a concepção materialista desenvolvida por Marx e continuada por Lukács. Daí o grande interesse nas pesquisas e descobertas científicas realizadas pela Cosmologia, área da física que se dedica a discutir a origem do universo, bem como da Geologia e da Geografia que se debruçam sobre a história da Terra. É também relevante os estudos e pesquisas da Biologia, da Arqueologia e da Antropologia sobre os processos de continuidade e ruptura entre os seres inorgânico, orgânico e social. , tem como característica ontológica decisiva a transformação, mediante processos físicos e químicos, em algo distinto de si mesmo, dos elementos que o conformam. Transformar-se em outro é a qualidade essencial dessa forma de organização da matéria. O exemplo mais corriqueiro é a água, que é composta de dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. A composição química da água, cuja molécula é mais que a simples soma desses átomos, revela uma propriedade muito importante da matéria – o fato de que a totalidade é algo mais que a soma ou justaposição das partes que a compõem pois abrange também as relações entre as partes e a relação de cada uma delas com a totalidade. Tal característica será de grande relevância para a compreensão da reprodução do ser social como um complexo de complexos, como veremos, em suas linhas gerais, adiante.

De qualquer forma, para evoluir, se desenvolver, esse grau do ser não pressupõe, como afirma Lukács, qualquer outra esfera ontológica. Até onde alcança os conhecimentos científicos atuais, de fato, o ser inorgânico possui absoluta independência ontológica dos demais graus do ser.

A inauguração de uma nova esfera ontológica – o ser orgânico – mantém a inter-relação com o ser inorgânico que está na sua base mas, ao mesmo tempo, dá origem a uma nova qualidade ontológica, com categorias, relações e leis de desenvolvimento próprias. No ser orgânico a peculiaridade de seu desenvolvimento, a essência dessa nova forma de organização da matéria, é a reprodução de seres vivos com a mesma constituição biológica. Em outras palavras, é a possibilidade da reprodução do mesmo. No entanto, sem água, para continuar com o exemplo, não há vida. Essa dependência ontológica do ser orgânico não altera a essência e a legalidade do ser inorgânico. Vida pressupõe água, mas não é capaz, absolutamente, de modificar as determinações desta última. Referindo-se à dependência ontológica de uma esfera de ser com relação a que está em sua fundação, afirma Lukács:

As suas relações recíprocas produzem, ao invés, transformações que conservam os nexos legais do ser fundador da nova esfera, mas inserindo-lhes em novos nexos, fazendo desenvolver suas determinações em novos contextos, sem poder – obviamente – alterar a essência dessa legalidade ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 166).

É importante considerar ainda que “o desenvolvimento da especificidade categorial de uma esfera dependente nunca tem lugar de um golpe, alcançando imediatamente sua completude” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 166). O salto ontológico – expressão que Lukács utiliza para designar mudanças qualitativas, origem de novas essências 11 11 Como veremos, as mudanças qualitativas que ocorrem no interior de cada uma das esferas ontológicas também são chamadas de salto por Lukács. – não deve induzir ao equívoco de um “antes e depois” em sentido meramente cronológico 12 12 Mais adiante será explicado que o ser social, assim como o ser em geral, tem a estrutura de um complexo de complexos. Isso afastará a falsa impressão de que a discussão sobre a gênese se refere a uma consideração cronológica. , pois isso implicaria apenas no desdobramento de uma essência dada de antemão, ela mesma fora da história. Assim, o salto realizado pelo ser orgânico apresenta um momento de ruptura, de negação da esfera do ser que está em sua fundação, mas igualmente aponta para um momento positivo, de explicitação progressiva das categorias peculiares a essa nova esfera ontológica. O salto, o desenvolvimento da especificidade categorial também

[…] constitui o resultado de um processo histórico no qual a constante reprodução das novas formas de ser produz, em um nível cada vez mais desenvolvido, autônomo – relativamente –, nas suas conexões postas sobre si mesmas, as categorias, as leis, etc. especificamente características destas formas ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 166).

O processo de generalização da vida na Terra é também o processo de afirmação e desenvolvimento cada vez mais autônomo ─ ainda que sempre relativamente, pois trata-se de um afastamento e não de uma independência absoluta do ser inorgânico ─ das categorias, relações e leis do ser orgânico. Lukács nos oferece um exemplo bastante significativo: enquanto as plantas se reproduzem mediante intercâmbio direto com o mundo inorgânico, os animais substituíram as exclusivas relações biofísicas e bioquímicas com o meio ambiente por reações cada vez mais complexamente mediadas (sistema nervoso, consciência) ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 147).

O ser orgânico evolui pelo afastamento das barreiras do ser inorgânico 13 13 Nesse exato sentido, há uma analogia entre a reprodução biológica e a reprodução social: em ambas o processo de desenvolvimento histórico se dá, em seu princípio ontológico último, cada vez mais pelo domínio de suas próprias categorias em detrimento daquelas que estão no nível inferior do ser ( LUKÁCS, 1981 , P. 147) . De fato, o momento predominante na interação entre a esfera orgânica e a esfera inorgânica é a vida. Não poderia ser de outro modo, são esferas ontológicas distintas. Mas, ao mesmo tempo, o ambiente opera, estimula, permite ou impede a reprodução dos seres vivos 14 14 É importante ressaltar que alterações no DNA podem conduzir à evolução dos seres vivos no mesmo ambiente. . Daí que “a historicidade do mundo orgânico não é separável, nas suas fases evolutivas essenciais, da história geológica da Terra” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 177/178).

Lukács, porém, está muito atento para o fato de que o processo histórico de explicitação e desenvolvimento da nova esfera ontológica não apresenta qualquer linearidade, nem é dirigido teleologicamente para o que vem em seguida. Perspectivas lógicas e gnosiológicas da história chegam continuamente a essas falsas conclusões. Do ponto de vista ontológico, ao contrário, os processos históricos têm, necessariamente, caráter desigual e contraditório. Como nos processos históricos concretos não é possível encontrar uma força motriz teleológica, eles só podem ser corretamente apreendidos post festum ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , 167/168).

Nesses termos, a seleção das espécies não responde a uma ordem valorativa, de todo estranha 15 15 Usamos o termo “estranho” no sentido de desconhecido, alienígena, e não de alienação. Assim, tomamos Entfremdung por alienado, alienação. Para mais informações sobre essa discussão cf. LESSA, 2015b. ao ser orgânico, nem se conforma a uma trajetória previamente traçada. A evolução da vida só pôde ser verdadeiramente conhecida post festum, depois de ter sido realizada. Por isso, a vida mais complexa é a “chave” para o conhecimento da vida mais simples 16 16 Essa questão remete a uma discussão bastante ampla, sobretudo no que diz respeito ao método. Para uma análise mais detida cf. TONET, 2013 . . Com a descoberta do DNA nos anos 1950 ficamos sabendo como atua o mecanismo propriamente biológico dessa história: variações na duplicação do DNA introduzem novidades na constituição do seres vivos que, se forem vantajosas do ponto de vista da reprodução biológica, serão repassadas para as futuras gerações.

Como vimos, portanto, a inter-relação com o meio ambiente é fenômeno basilar de toda reprodução. É ela que possibilita o processo reprodutivo de seres vivos com a mesma constituição biológica. A tendência a preservar a si e a espécie são reproduções do processo vital da existência (meramente) biológica de um ser vivo. De um lado, os efeitos desse processo sobre o ambiente são puramente não intencionais e acidentais e, de outro, surgem para os seres vivos apenas relações relativamente estáveis com o ambiente ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 147) 17 17 Veremos que essas características do processo de reprodução biológico ressaltam a distinção da reprodução social quanto à sua essência. O trabalho, a posição teleológica que produz, é o que marca tal ruptura. .

Sem relações com o ser inorgânico e com o ser orgânico o ser social também não se reproduz. A reprodução do ser social se dá em articulação contínua com os seres inorgânico e orgânico mas constitui, da mesma forma, um salto ontológico que dá origem a uma nova forma de organização da matéria, com forças, categorias, relações e legalidades próprias. Nesse sentido, a Ontologia não se confunde com o materialismo ingênuo do Iluminismo, que pretendia retirar da natureza as leis do desenvolvimento social. Ao contrário, com o salto há a constituição de uma nova qualidade, de uma nova essência, de uma nova esfera do ser cuja especificidade categorial, como vimos, não tem lugar de um só golpe, mas vai se desenvolvendo processualmente de maneira cada vez mais autônoma – sempre relativamente – dos seres que estão em sua base. É o fenômeno do afastamento das barreiras naturais tantas vezes mencionado por Lukács.

O salto para além das fronteiras do ser natural 18 18 O ser natural abrange os seres inorgânico e orgânico. nos remete à gênese do ser social e, portanto, pressupõe a historicidade da essência. Nesse momento do texto não podemos nos debruçar sobre o amplo significado dessa afirmação, especialmente sua completa ruptura com as tradições filosóficas anteriores, inclusive com Hegel 19 19 Essa discussão é muito importante para compreender a Ontologia. Infelizmente poucos textos abordam, de forma sistematizada, a questão da historicidade da essência a partir de uma perspectiva ontológica. Há na internet a transcrição de aulas ministradas em 1988 por José Chasin que podem ajudar nessa discussão. Chama-se “Superação do Liberalismo”. Há ainda algumas indicações em um texto de Sergio Lessa (2001) . . Fiquemos então com uma colocação inicial, mas importante para diretiva ontológica marxiana. Da mesma forma que a história humana não tem começo, no sentido cronológico de “antes e depois”, ela também não termina. Não é um processo destinado a encontrar um “paraíso idílico” onde não haja contradições. Tampouco está fadado a remoer as contradições como se fossem eternas. Em resumo, a história humana não é um processo em que humanidade possa finalmente se identificar com uma “essência” dada previamente e reconhecida ao gosto do “sujeito cognoscente”. Tal concepção, que retira a essência humana do processo histórico, é tributária de Hegel. Em Marx, ao contrário, essência e fenômeno não são duas esferas separadas de maneira fixa, estanque. A essência não é eterna enquanto a mudança ocorre apenas na esfera fenomênica. Ambas são históricas, elas se interpenetram e se influenciam reciprocamente. O que distingue uma esfera da outra é que a essência concentra elementos de continuidade, ao passo que a esfera fenomênica concentra os elementos de mudança.

E qual é a categoria ontológica que funda essa nova esfera do ser? A qualidade ontológica decisiva do ser social, a essência que está presente desde a sua origem, é a incessante produção do novo pelo trabalho, pela posição teleológica que transforma a natureza em meios de produção e de subsistência. Ao fazer isso, o trabalho transforma igualmente o indivíduo que o realizou e, por meio dele, as suas relações sociais também são modificadas. Conforme Lukács, “no ser social a reprodução implica − por princípio − mudanças internas e externas” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 135). Não há reprodução social que se realize sem mudanças no ambiente, nos indivíduos e na sociedade. A força motriz decisiva dessas transformações não provêm do ser inorgânico ou do ser orgânico. O trabalho é o fundamento ontológico objetivo das mudanças na estrutura e na dinâmica das sociedades particulares.

A ciência ainda não sabe as circunstâncias concretas em que ocorreu o salto ontológico para além das barreiras do ser orgânico. Até o momento, as pesquisas mais consolidadas indicam que há cerca de 100 mil anos certo grupo hominídeo no continente africano passou a reagir às necessidades e possibilidades da reprodução biológica, impostas pelo ambiente, pela mediação da consciência. Não foi, desse modo, uma transformação operada por reações físico-químicas, tampouco por instinto ou por determinações biológicas. É certo que a origem da consciência pressupõe determinado grau de organização do ser orgânico, pois seria impossível seu aparecimento nos estágios iniciais da vida na Terra. Mas essa constatação reforça tanto, de um lado, a dependência relativa do ser social em face do ser orgânico, quanto, de outro, a sua própria peculiaridade, sua essência qualitativamente diversa. Como afirma Marx (1985, p. 149/150) “o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. […] Além do esforço dos órgãos que trabalham, é exigida a vontade orientada a um fim”.

A partir de então, os homens – o corpo biológico que é portador de consciência – se fizeram homens, foram capazes de estabelecer uma nova relação com o ambiente e com os outros homens que dá origem a uma nova forma de desenvolvimento da matéria, uma nova esfera ontológica.

Sem troca orgânica com o ambiente não há reprodução biológica do homem. Sem reprodução biológica do homem não é possível a reprodução do ser social. Essa inter-relação entre homem e ambiente, que funda o ser social e é ao mesmo tempo uma relação de dependência ontológica com o ser natural, confere prioridade ontológica ao trabalho. Em outros termos, o trabalho teleologicamente, conscientemente, posto está a serviço direto da reprodução biológica e, por isso, tem prioridade ontológica em relação a toda outra atividade humana, até mesmo as mais mediadas, como o direito e a arte 20 20 Como veremos, prioridade ontológica é exatamente o oposto de uma relação mecânica, de causa e efeito. .

É bom enfatizar a frase que está no primeiro parágrafo do capítulo 2 da Ontologia: “todo fenômeno social pressupõe, direta ou indiretamente, o trabalho com todas as suas consequências ontológicas” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 135). Essa foi a grande descoberta de Marx e Engels 21 21 Na Ideologia Alemã, Marx e Engels deixam claro que seus pressupostos não são ideais nem arbitrários: “Com os alemães, que não partem de qualquer pressuposto, temos que começar por constatar o primeiro pressuposto de toda existência humana e, portanto, de toda história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poderem ‘fazer história’. Mas da vida fazem parte sobretudo comer e beber, habitação, vestuário e ainda algumas outras coisas.. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios para satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e a verdade é que esse é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história; que ainda hoje, tal como há milhares de anos, tem de ser realizado dia a dia, hora a hora, para ao menos manter os homens vivos” (MARX; ENGELS, 2009 p. 40). , que Lukács incorporou em sua plenitude, pois o autor não parte de um ponto de vista valorativo, arbitrário e puramente ideal para analisar a estrutura interna do ser social. Para enfrentar essa questão Lukács, tanto quanto Marx e Engels, não introduz princípios heterogêneos, alheios à caracterização do ser enquanto ser, mas utiliza o método ontológico e, por isso, pergunta-se novamente:

[…] qual categoria ou complexo categorial tem a prioridade ontológica em relação à outra, qual pode existir sem aquela cujo ser, ao invés, pressupõe ontologicamente o ser da outra. Se consideramos o ser social dessa ótica puramente ontológica, percebemos imediatamente que sem a reprodução biológica dos homens não é possível nenhum ser social. Esse ponto do nexo entre natureza orgânica e ser social é, ao mesmo tempo, a base ontológica de todas as categorias mais complexas e mediadas desse grau de ser. […] É necessário, portanto, atribuir prioridade ontológica a esse momento do ser. ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 169).

Para Lukács é exatamente este fundamento ontológico que dá solidez científica à teoria do desenvolvimento histórico-social proposta por Marx:

Se subordinarmos, como é justo, a solução desse problema do ser sobre todos os outros princípios cognoscitivos, estas conexões, de um lado, indicam com clareza a prioridade ontológica do ser e, de outro, fornecem um fundamento ontológico, com clareza compreensível, ao desenvolvimento histórico das atividades humanas mais complexas, de todo independentes, em aparência, da atividade econômica ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 171).

Deixemos para um tópico específico a discussão de como, pelo desenvolvimento da totalidade, surgem novas qualidades e, desse processo, o complexo da economia se firma como fundamento ontológico de todas atividades humanas. Nesse momento, é relevante sublinhar, mesmo de forma breve, que a diretiva ontológica abre as portas para o conhecimento do ser-precisamente-assim existente porque é criticamente fundada, ao contrário do arbítrio da valoração. Ela se dirige, rigorosamente, pela formulação marxiana de que é o ser que determina a consciência e não o contrário 22 22 Seguir as múltiplas implicações dessa concepção nos afastaria muito da leitura imanente do texto lukacsiano. Mesmo assim pontuemos que esse conhecimento não é um reflexo do que existe em termos mecânico, absoluto ou mesmo completo. O conhecimento da realidade é sempre aproximativo, não há identidade entre o conhecido e a totalidade do ser. .

Ficamos sabendo, assim, que o trabalho funda o ser social e que seus atos apontam, necessária e continuamente, para além de si mesmos. Com o trabalho tem origem a história do gênero humano e o complexo da economia – por estar nele o trabalho – tem prioridade ontológica sobre todas as outras atividades humanas. Agora podemos voltar à pergunta inicial: como se dá essa generalização que é impulsionada pelo trabalho e que se realiza processualmente em um complexo social? Para Lukács, insistimos, trata-se de um processo de afastamento progressivo das barreiras naturais e não de uma independência absoluta. Como vimos, a matéria conserva sua unidade última com o salto ontológico que, por sua vez, dá origem a uma nova essência que não se explicita em sua completude de um só golpe, mas desenvolve sua nova qualidade – categorias, relações e leis de desenvolvimento – em termos cada vez mais autônomos, próprios, ainda que sempre relativamente.

1.2 Desenvolvimento do ser social: apontamentos preliminares

É preciso, no entanto, fazer mais dois apontamentos preliminares antes de encarar o processo de explicitação do ser social, de seu desenvolvimento histórico, e suas principais tendências gerais de desenvolvimento.

O primeiro deles já aludimos muito brevemente ao nos referirmos à generalização da vida na Terra. Trata-se da ausência de qualquer linearidade e teleologia no processo histórico de desdobramento de uma nova esfera ontológica. E isso é ainda mais evidente no ser social, pois segundo Lukács

Até no ser social, onde sem dúvida as posições singulares operadas pelos homens têm caráter teleológico, as suas interações reais têm sempre um caráter causal puro. A essência dessas posições teleológicas, como vimos tratando do trabalho, consiste precisamente em colocar em movimento cadeias causais cujas consequências – causalmente determinadas – vão muito além do conteúdo da própria posição teleológica. Não se deve, em suma, supor nas tendências evolutivas dessas direções dinâmicas uma teleologia realmente operante, nem no que diz respeito ao ser social, nem no que concerne à natureza orgânica. A direção do processo reprodutivo, discernível apenas post festum, pode induzir facilmente a admitir uma teleologia, mas o pensamento correto deve resolutamente repelir tais tentações (LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. p. 167/168).

O trabalho teleologicamente, conscientemente, posto é o fundamento ontológico objetivo 23 23 A consciência tem um papel relevante no devir-humano dos homens mas na Ontologia ela não adquire autonomia absoluta em face dos processos objetivos da reprodução social. Não é a consciência que dirige diretamente a história humana. A consciência é sempre a consciência do indivíduo no cotidiano e o trabalho é, da mesma forma, o fundamento ontológico das mudanças subjetivas que ocorrem nos indivíduos. Além de várias passagens em toda obra, o papel da consciência no devir-humano dos homens também é analisado quando Lukács trata da linguagem, no tópico “Complexo de complexos”. das transformações qualitativas na estrutura e dinâmica das sociedades singulares porque “contém em si, desde o início, a possibilidade (dynamis) de produzir mais que o necessário para a simples reprodução daquele que realiza o processo de trabalho” pois, continua Lukács, “uma das consequências necessárias do trabalho é a fabricação de instrumentos, a exploração das forças naturais (uso do fogo, domesticação de animais etc.)” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 136). Esse fundamento ontológico objetivo é o momento predominante, a força motriz decisiva, necessária e ininterrupta ─ independente da vontade ou do assentimento do indivíduo que realiza o ato de trabalho ─, das transformações qualitativas no ser social.

O trabalho, portanto, comporta em si a possibilidade, no sentido aristotélico de dýnamis, de produzir mais que o necessário para a reprodução imediata do indivíduo que o realizou. Ao criar ferramentas e utilizar forças da natureza, o trabalho proporciona novas possibilidades e necessidades cujas satisfações impulsionam mudanças qualitativas na estrutura e dinâmica das sociedades singulares.

Assim, a noção de dýnamis aristotélica – incorporada nos termos da diretiva ontológica, materialista 24 24 Essa diretiva não incorpora, é bom ressaltar, a concepção aristotélica de que o ser social é determinado pela ordem cosmológica ordenada pela Ideia, pelo Logos. – não restringe a historicidade do ser social a um processo com fim determinado por uma força transcendente. As possibilidades criadas pelo trabalho tanto podem se realizar em ato como podem permanecer em estado de potência. Em ambas situações, as possibilidades existem. É a possibilidade de ser e de não ser. Nesse sentido, o trabalho comporta em si a dýnamis de, com o desenvolvimento das forças produtivas e das capacidades dos indivíduos, elevar a humanidade a um patamar de desenvolvimento em que a reprodução social seja feita sem exploração do homem pelo homem 25 25 A superação da exploração do homem pelo homem é, certamente, um tema muito mais amplo e complexo. Nessa passagem fazemos uma menção a essa possibilidade sem qualquer pretensão de fundamentá-la apenas na dỳnamis aristotélica. .

Essa possibilidade existe como potência desde a realização do primeiro ato de trabalho, posto de modo teleologicamente consciente. No entanto, tal potência imanente ao ato de trabalho se atualiza sob determinadas condições. No contexto das comunidades primitivas, o desenvolvimento das forças produtivas e das capacidades dos indivíduos só poderia abrir espaço para a escravidão, jamais para o feudalismo, para o capitalismo ou mesmo para o comunismo. As mudanças qualitativas na estrutura e dinâmica das sociedades singulares se dão dentro de um campo concreto de necessidades e de possibilidades, fundadas objetivamente pelo trabalho. Por isso,

[…] por mais irresistível que seja essa tendência em sua linha histórico-universal e em sua continuidade, as suas fases concretas, que podem talvez durar séculos ou mesmo milênios, são alteradas, favorecidas ou dificultadas pela estrutura, pela possibilidade evolutiva daqueles complexos totais em cujo quadro elas têm desenvolvimento concreto. […] Não dizemos nada de novo ao nosso leitor se recordamos a necessária desigualdade do desenvolvimento como modo de manifestação dessa contradição entre uma ineludível tendência geral e os obstáculos, modificações, etc. que ela encontra ao se realizar (LUIKÁCS, 1981, p. 141/142).

Para Marx, assim como para Lukács, só é possível constatar post festum essa tendência histórico-universal desigual, mas no todo progressiva, de desenvolvimento do ser social. Segundo Lukács,

Essa capacidade do trabalho de levar seus resultados para além da reprodução de quem o executou cria a base objetiva da escravidão, antes da qual existia apenas a alternativa de matar ou de fazer prisioneiro o inimigo. Daí o caminho leva através de várias fases ao capitalismo, em que este valor de uso da força de trabalho se torna a base de todo o sistema. Mas – seja qual for o horror ideológico a que se prenda certos teóricos frente à expressão mais trabalho – até mesmo o reino da liberdade no socialismo, a possibilidade de um tempo livre sensato, repousa sobre esta fundamental peculiaridade do trabalho de produzir mais do que o necessário para a reprodução do trabalhador ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 136).

Sem cair em dualismos, determinismos, etapismos, em resumo, sem sair da história, Lukács pode afirmar que as mudanças qualitativas na estrutura e na dinâmica das sociedades singulares – da escravidão para o feudalismo, daí para o capitalismo (todos constatados post festum) e a partir de então a possibilidade para o comunismo – respondem à tendência imanente, necessária (irresistível, independente da consciência), progressiva e sempre contraditória e desigual de desenvolvimento do ser social. Essa tendência advém, é sempre bom ressaltar, da capacidade de o trabalho produzir mais do que o necessário para a sobrevivência de seu produtor.

Essas características, que são objeto de tratamento concreto ao longo do capítulo 2, são expressões da peculiaridade do ser social, do trabalho que funda essa esfera superior de organização da matéria. Para adiantar, indiquemos que a referência à contradição e à desigualdade marca o quão distantes Marx e Lukács estão do mecanicismo econômico, próprio do materialismo vulgar. E que a progressividade diz respeito ao afastamento das barreiras naturais, tantas e tantas vezes mencionado pelo autor. O capitalismo é a etapa mais avançada do desenvolvimento humano não porque é melhor quando comparado, por exemplo, com as comunidades primitivas 26 26 A referência a “comunidades primitivas” não traz qualquer juízo de valor. Se insistimos nessa questão deve-se às inúmeras incompreensões que uma primeira aproximação à Ontologia pode suscitar em razão da diretiva subjetiva do método, largamente predominante na academia. . É o estágio mais evoluído porque a sua reprodução se dá por categorias de cunho predominantemente social, de um grau superior, mais complexo, de organização da matéria. Nele o valor de troca – categoria puramente social – se tornou determinante de toda produção, sem, no entanto, se desvincular do valor de uso, da transformação da natureza em meios de produção e subsistência. O ser social, mesmo em seu estágio mais avançado, não rompe com a sua base, com o ser natural.

Para concluir nossa primeira observação podemos ainda mencionar que com o capitalismo se atualizou uma potência do valor de uso da força de trabalho, que é a de ser portador do valor de troca, de produzir a mais valia. Em outras palavras, o “valor de uso da força de trabalho se converte na base de todo o sistema” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 136) porque no capitalismo as necessidades de reprodução do capital, a reprodução da mais valia, passam a ser realizadas por uma nova utilidade do trabalho excedente, do valor de uso. Pela primeira vez na história os meios de produção e subsistência só são produzidos se propiciarem acumulação de riqueza na forma de dinheiro, que é uma relação puramente social 27 27 No capitalismo, a acumulação de riqueza se descolou do seres inorgânico e orgânico. Não se acumula riqueza na forma de escravos ou de terras, por exemplo. O capital é uma relação puramente social. Daí poder ser acumulada indefinidamente, com todas as contradições que isso engendra. .

Vimos, assim, que não há linearidade nem teleologia no desenvolvimento do ser social. O segundo apontamento preliminar dá destaque a outra passagem emblemática desses primeiros parágrafos do capítulo 2 da Ontologia:

O ser social, mesmo em seu estágio mais primitivo, é um complexo de complexos, em que há inter-relações ininterruptas entre os complexos parciais e entre o complexo total e suas partes. Daí se desenvolve o processo reprodutivo do complexo total em questão, em que também os complexos parciais se reproduzem de maneira autônoma – ainda que apenas relativamente – mas em cada um desses processos é a reprodução da totalidade que neste múltiplo sistema de inter-relações constitui o momento predominante ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 138).

Certamente que não podemos desenvolver aqui as múltiplas questões que esse tema envolve. Isso foi feito pelo próprio Lukács ao longo de sua Ontologia. Para os nossos propósitos basta mencionar alguns aspectos que avancem no sentido de esclarecer ainda mais a forma pela qual o desenvolvimento histórico do ser, da matéria, mantém-se unitário e, ao mesmo tempo, cada vez mais heterogêneo com o processo de reprodução do ser social. Trata-se, em outras palavras, de retomar, como fez Lukács, à filosofia materialista de Marx no sentido de tornar mais clara a análise que faremos em seguida dos problemas gerais reprodução do ser social, com suas principais tendências de desenvolvimento.

Nesses termos, podemos dizer que o “complexo de complexos” corresponde à estrutura do ser social, do ser inorgânico e do ser orgânico, como também do próprio ser na sua máxima universalidade. Como afirma Sergio Lessa, “a totalidade consubstanciada pelo ser se manifesta, concretamente, pelas inelimináveis articulações das esferas ontológicas entre si” (LESSA, 2015a ______. Para compreender a ontologia de Lukács. 4 ed., Maceió: Instituto Lukács, 2015a. , p. 54). Vimos como as esferas ontológicas operam de modo articulado e, ao mesmo tempo, relativamente autônomo. Essas contínuas inter-relações expressam, ao mesmo tempo, autonomia e dependência relativas entre essas esferas. O salto ontológico marca o momento a partir do qual a nova qualidade essencial vai se desenvolver processualmente, isto é, de um momento inicial com traços de menor heterogeneidade em direção a uma maior diferenciação, de uma maior complexidade. A generalização da vida na Terra propicia, como vimos, um exemplo bastante ilustrativo da crescente complexificação das inter-relações entre ser orgânico e inorgânico. É, portanto, uma necessidade do processo de explicitação da nova qualidade essencial o desenvolvimento de sua relativa autonomia da esfera ontológica que está em sua base – em se tratando do ser social, o afastamento das barreiras naturais – e logo de seu processo de diferenciação interna em complexos parciais igualmente cada vez mais relativamente autônomos do salto que o fundou – no nosso caso, do trabalho.

Ao comentar esse processo, explica Sergio Lessa

O que agora nos interessa é o processo pelo qual, partindo de uma situação primeira onde os traços de homogeneidade e identidade eram marcantes, o devir-humano dos homens deu origem a formações sociais nas quais as diferenças, os momentos de não identidade, ganham em intensidade sem, com isto, colocar em causa a unitariedade originária do mundo dos homens. Não apenas as formações sociais apresentam diferenças muito mais acentuadas entre si, não apenas os complexos sociais parciais são entre si crescentemente heterogêneos, mas, também, as próprias individualidades se diferenciam cada vez mais fortemente. Ainda mais: esse processo de diferenciação intensiva e extensiva não é apenas o resultado do processo do devir-humano dos homens, mas é uma necessidade para a sua continuidade (LESSA, 2015a ______. Para compreender a ontologia de Lukács. 4 ed., Maceió: Instituto Lukács, 2015a. , p. 56). (grifos no original)

Como havíamos mencionado, não há reprodução do ser social sem a produção do novo, seja no ambiente, nos indivíduos e, por essa via, na sociedade. Isso porque o trabalho abre continuamente novas possibilidades e coloca novas necessidades – para os indivíduos e para a sociedade – ao produzir meios de produção e de subsistência na troca orgânica com a natureza. É o trabalho, como afirma Lukács, o fundamento ontológico objetivo das transformações na estrutura e dinâmica das sociedades singulares. Para que isso seja realizado o ser social deve apresentar, desde a sua gênese, a estrutura de um “complexo de complexos” 28 28 É importante ressaltar que uma categoria elementar indivisível – como era considerado o átomo até a física moderna – não tem história. Tanto o átomo como seu modo de atuação conservam-se por princípio a-históricos. Só um complexo pode ter história (LUKÁCS, 2012, p. 353). . Lukács demonstra que a origem do ser social deve-se a uma articulação entre, pelo menos, trabalho, divisão do trabalho, relações sociais e linguagem:

Esta (a divisão do trabalho) é, por assim dizer, dada com o próprio trabalho, origina-se dele com necessidade orgânica. Atualmente, sabemos que uma forma particular de divisão do trabalho, a cooperação, já aparece em estágios muito iniciais: se pense no caso citado da caça no período paleolítico. A sua simples existência, ainda que em um nível muito baixo, faz surgir do trabalho outra determinação decisiva do ser social, a comunicação precisa entre homens que se reúnem para realizar um trabalho: a linguagem. […] órgão mais importante […] (das) posições teleológicas que não visam transformar, explorar etc. um objeto natural, mas tem a intenção, ao contrário, de induzir outros homens a realizar a posição teleológica desejada pelo sujeito que fala ( LUKÁCS1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 137). (grifos nossos)

A divisão do trabalho se origina do trabalho por “necessidade orgânica” porque o trabalho remete para além de si próprio, lhe é imanente a possibilidade (dynámis) de conduzir à divisão do trabalho. Na medida em que o trabalho amplia o conhecimento sobre a natureza, aumenta a produtividade de valores necessários à reprodução do indivíduo e da sociedade e com isso faz crescer a população, a divisão do trabalho pode dele surgir espontaneamente porque é uma forma de produzir mais com menos trabalho. A divisão do trabalho é, nesse sentido, uma afirmação da potência humana e da consolidação da reprodução do ser social 29 29 A divisão do trabalho, como possibilidade imante ao trabalho, não é necessariamente alienada. Essa dimensão vai ser introduzida com a sociedade de classes, com a exploração do homem pelo homem, com a separação entre trabalho intelectual e braçal. Precisamos deixar esse tema para esclarecimentos posteriores. Por ora basta apenas essa menção. .

Além disso, da divisão do trabalho, por mais inicial e primitiva que seja, se origina a linguagem 30 30 A questão da origem da linguagem é uma discussão bastante complexa porque as posições teleológicas são a síntese entre consciência e mundo que se objetivam mediadas por relações sociais historicamente determinadas. De toda forma, nesse tema Lukcács concorda com Engels: “Engels articula o nascimento da linguagem ao trabalho e, com o mesmo acerto, sustenta que ela deve surgir quando os homens têm alguma coisa para dizer uns aos outros” ( LUKÁCS, 1981 , p. 191/192). , outra determinação decisiva para o ser social. Ao produzir o novo, o trabalho e a divisão do trabalho fazem avançar, como vimos, o conhecimento da natureza, a produção dos valores necessários à vida e os conhecimentos e as habilidades dos indivíduos. Os objetos, as relações e os comportamentos que são construídos a partir das respostas que os homens dão a essas novas necessidades e possibilidades precisam ser nomeados e comunicados. Daí a linguagem – que “é um instrumento para fixar o conhecimento e expressar a essência dos objetos existentes” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 137) – se desenvolve de maneira ininterrupta e correspondente ao domínio crescente do homem sobre a natureza. Enquanto no ser orgânico, a reprodução do mesmo enseja o desenvolvimento de sinais que os animais compartilham entre si em situações vitais, mas que transmitem relações fixas e resultam em comportamentos estáveis, no ser social, ao contrário, o desenvolvimento da linguagem nomeia e comunica os novos objetos e as novas relações que se originam a partir do trabalho.

De acordo com Lukács,

É sem dúvida evidente que cada tipo de divisão do trabalho exige semelhante meio para a comunicação. Quer se trate da cooperação em geral ou de um trabalho em comum para fabricação ou uso de uma ferramenta etc., são sempre absolutamente necessários comunicações desse gênero, e tanto mais quanto mais se desenvolve o trabalho e a cooperação. Portanto, à medida que o trabalho, a divisão do trabalho e a cooperação progridem simultaneamente a linguagem deve alcançar níveis mais altos, deve tornar-se sempre mais rica, flexível, diferenciada etc. a fim de que os novos objetos e relações possam ser comunicáveis. O crescente domínio dos seres humanos sobre a natureza se expressa, portanto, imediatamente também em quantos objetos e relações que é capaz de nomear ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , P. 137)

Essa inter-relação com o trabalho implica o desenvolvimento da autonomia – igualmente relativa – cada vez mais acentuada de cada um dos complexos que estão na origem do ser social: trabalho, divisão do trabalho, linguagem, relações sociais e o próprio homem como ser biológico. Portanto, cada um desses complexos desenvolve progressivamente sua autonomia relativa sem romper com a unidade última do ser social, pois o trabalho permanece o fundamento ontológico objetivo das transformações que tem lugar nessa esfera ontológica. É o trabalho que põe novas necessidades e possibilidades a que os indivíduos respondem com novas posições teleológicas que, por sua vez, conformam e desenvolvem os complexos parciais. Daí que o ser social só pode ser apreendido corretamente como um “complexo de complexos”, cujas partes são sempre cada vez mais relativamente autônomas, portanto, ricamente articuladas.

Tais articulações são, nesse sentido, um fato ontológico da maior relevância. Como afirma Lukács,

[…] nesse contexto vem objetivamente à luz algo que para nós tem importância ainda maior: o fato ontológico de que toda ação, relação etc. – por mais simples que possa parecer à primeira vista – são sempre correlações entre complexos, pelo que os seus elementos têm eficácia real apenas como parte constitutiva do complexo ao qual pertencem. Que o homem, já como ser biológico, seja um complexo, não é necessário parar para esclarecer. Da mesma forma, é de evidência imediata também o fato de que a linguagem não pode deixar de ter caráter de complexo. Qualquer palavra possui sentido comunicável unicamente no contexto da linguagem a que pertence; para aqueles que não a conhecem ela constitui uma série de sons privados de sentido; não é por acaso que certos povos primitivos tenham designado o estrangeiro como 'mudo', como incapaz de comunicar. Da mesma maneira, não há dúvida de que a divisão do trabalho forma um complexo; pelo que atos singulares, operações singulares, etc., têm sentido apenas no interior do processo do qual fazem parte; é antes de tudo a função que devem realizar exatamente neste seu complexo que diz se são certos ou errados. É também evidente que os diversos grupos – permanentes ou ocasionais – produtos da divisão do trabalho não possam existir e funcionar independentemente um do outro, sem terem inter-relações recíprocas ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 137/138).

É o trabalho, repitamos mais uma vez, o fundamento ontológico objetivo das mudanças no ser social. O complexo da economia, por estar nele o trabalho, coloca novas necessidades e possibilidades que ensejam a criação de complexos parciais, cujas funções específicas vão se desenvolver para atender a tais necessidades, sempre novas, de maneira relativamente autônoma. No processo de afastamento da barreira natural – e do trabalho enquanto elo entre o ser social e a natureza –, é uma necessidade o desenvolvimento cada vez mais acentuado dessa autonomia relativa dos complexos singulares. Sem ela não há o desenvolvimento do gênero humano. Portanto, o complexo da linguagem, para continuarmos com um dos exemplos de Lukács, precisa desenvolver sua própria especificidade – leis, relações, categorias – para assim atender às demandas postas pelo complexo da economia.

Nesse momento, contudo, é importante fazer duas observações. Em primeiro lugar, não se trata de uma via de mão única. O complexo da economia impulsiona as transformações e o desenvolvimento dos complexos parciais e estes, do mesmo modo, também agem sobre o trabalho. Como afirma Lukács, “toda ação, relação etc. – por mais simples que possa parecer à primeira vista – são sempre correlações entre complexos” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 137). No entanto, como a economia atende diretamente à reprodução biológica do homem é ela o momento predominante nessas inter-relações. Em segundo lugar, a inter-relação entre o trabalho e os demais complexos parciais não se dá de forma direta, mecânica, mas é mediada pela totalidade social, que constitui o momento predominante nessas relações.

Como é possível que tanto o trabalho como a totalidade social sejam momentos predominantes? Não podemos nos dedicar aqui a delimitar conceitualmente a categoria ontológica “momento predominante”, em que pese a grande importância desse debate para a compreensão da Ontologia lukacsiana. Para nossos propósitos, basta dizer que o trabalho opera como momento predominante do desenvolvimento humano-genérico, pois seus atos “remetem para além de si mesmos” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 135). Para que o trabalho exerça essa função ontológica é necessário que a totalidade social seja a mediação entre tal função – a transformação da natureza nos meios de produção e subsistência necessários para a reprodução biológica dos homens – e cada um dos complexos parciais que compõe o ser social. Como afirma Mariana Andrade,

As teses ontológicas de Lukács revelam que o ser do ser social foi, no que concerne ao momento predominante, avaliado a partir de dois níveis de determinações, a saber: num nível mais genérico, no qual o trabalho enquanto categoria fundante do mundo dos homens é o momento predominante do devir-humano do homem, isto é, da totalidade social; e num segundo nível, no qual os complexos sociais parciais concretos são determinados pela totalidade social na medida em que ela é a mediação requerida entre o momento predominante exercido pelo trabalho e a evolução histórica de cada um dos complexos sociais ( ANDRADE, 2014 ANDRADE, Mariana. Trabalho e totalidade social: qual é o momento predominante da reprodução social? Anuário Lukács 2014. São Paulo: Instituto Lukács, 2014, p. 175/204. , p. 203)

Por fim, um último esclarecimento. O caráter de “complexo de complexos” do ser social não oferece qualquer tipo de modelo previamente construído para a compreensão do mundo dos homens. Lukács não arquitetou idealmente um sistema filosófico estático, e nem mesmo dinâmico, que pudesse dar conta da história do gênero humano. Isso seria negar o materialismo, a caracterização do ser enquanto ser:

As nossas considerações tomam o ponto de partida e o método do marxismo, materialista e dialético, reflexo ontológico-intelectivo da realidade. O materialismo na ontologia implica não somente que ela venha livre dos ofuscamentos provocados pelas categorias lógicas e gnosiológicas, mas também e sobretudo que se distinga, de maneria inequívoca, entre considerações ontológicas e valorativas ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 165)

O complexo da economia é, do ponto de vista do desenvolvimento total do gênero humano, o momento predominante. De fato, as formas fundamentais de apropriação do trabalho excedente, como observam Marx e Engels (2005) MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2005. , são as características econômico-sociais decisivas de uma época. Escravismo, feudalismo e capitalismo se distinguem pelas relações através das quais é apropriado o que é produzido a mais para a manutenção do trabalhador. Mas o problema da estrutura e da luta de classes não se limita ao seu fundamento. Ao contrário, se quisermos compreender a sua dinâmica processual precisamos nos debruçar sobre a questão do desenvolvimento da autonomia relativa desse complexo parcial em um complexo de complexos que é o ser social ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 243/244).

É importante destacar que, do ponto de vista da história da humanidade, a economia é o momento predominante porque é ela que dá a direção, o ritmo, a linha de desenvolvimento desse processo. No entanto, em cada momento concreto, em cada relação o peso da economia varia. No materialismo não há lugar para a criação de “posturas niveladoras ideais”, como afirma Lukács:

Nessa questão da autonomia dos complexos singulares, porém, é necessário também evitar toda sorte de posturas niveladoras ideais, já que no plano ontológico, por um lado, sempre varia muito a cota de eficácia da influência exercida pelos complexos que entram em uma interação, por outro lado, não é o mesmo, sempre e em toda parte, sequer o peso concreto do momento predominante (1981, p. 246/247).

Na Revolução Francesa, por exemplo, o político determinou a forma da propriedade privada e, portanto, ela não pode ser compreendida senão pela dinâmica da luta de classes que ali teve lugar (LESSA, 2015b ______. Alienação e estranhamento. In: MARX, Karl. Cadernos de Paris. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. São Paulo: Expressão Popular, 2015b, p. 449/492. ). Nesse sentido, as correlações entre os complexos são sempre, em cada interação concreta, qualitativamente diversas e para a sua correta apreensão é necessário se posicionar no nível – singular, particular ou universal – que essa interação exige. Podemos dizer, portanto, que o trabalho funda a história do gênero humano, mas o gênero humano não é redutível ao trabalho.

2. Tendências histórico-universais do ser social

As tendências legais de desenvolvimento do ser social emergem de sua própria essência. Em outras palavras, as tendências histórico-universais do ser social se desenvolvem do trabalho e, como tais, têm as características de serem imanentes a ele e necessárias, além de se concretizarem de maneira desigual.

Nessa parte do texto, trataremos de duas delas: o desenvolvimento das forças produtivas e o afastamento das barreiras naturais, esta última também articulada com outra peculiaridade do ser social, o tempo de trabalho socialmente necessário.

2.1. Desenvolvimento das forças produtivas e afastamento das barreiras naturais

Sabemos que o trabalho funda o ser social, que seus atos remetem para além de si, se generalizam conformando uma nova esfera ontológica. Essa potência decorre da possibilidade que o trabalho teleologicamente posto tem de produzir mais que o necessário para a simples reprodução daquele que o realiza, pois uma de suas consequências necessárias é o desenvolvimento de forças produtivas na inter-relação que estabelece com o ser natural. Nesse sentido, a ininterrupta produção de novas necessidades e de novas possibilidades fundadas no trabalho é o fundamento ontológico objetivo das mudanças na estrutura e dinâmica das sociedades singulares.

A generalização no ser social é impulsionada, assim, pelo desenvolvimento das forças produtivas. São elas que arrastam o processo histórico, o devir-homem dos homens. Com o desenvolvimento das forças produtivas, os homens – a partir de determinadas relações sociais – tornam-se cada vez mais sociais, menos determinados pela reprodução biológica, mas sem nunca romper definitivamente com os seres que estão em sua base.

As forças produtivas, consequência inevitável do trabalho, são desenvolvidas no complexo da economia, que tem na divisão do trabalho um momento necessário e determinante. Na estrutura categorial do ser social, no “complexo de complexos”, a economia tem prioridade ontológica sobre todas as outras atividades sociais. A razão disso está no fato de que o complexo da economia está diretamente voltado para a reprodução biológica dos homens, pressuposto da reprodução social.

Como afirma Lukács,

A divisão do trabalho se baseia originalmente na diferenciação biológica das pessoas que formam o grupo humano. O afastamento da barreira natural como consequência do tornar-se sempre mais clara e puramente social do ser social se revela antes de tudo no fato de que este princípio de diferenciação, originalmente biológico, assume em si mesmo momentos de socialidade sempre mais numerosos, que acabam por conquistar o primeiro plano, degradando a fatos secundários o momento biológico ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 138).

Para exemplificar esse afastamento das barreiras naturais, que tem por prioridade ontológica e força motriz decisiva o complexo da economia, Lukács nos lembra do papel que os sexos desempenham na divisão do trabalho e de como uma relação biológica 31 31 Para evitar mal entendidos que podem advir de nosso atual ambiente acadêmico, é preciso dizer claramente que quando Lukács se refere à insuprimibilidade do corpo biológico não está dizendo que os órgãos sexuais determinam as relações sexuais. Não há na sexualidade, como em nenhum outro complexo social, uma base a-histórica e uma superestrutura que se modifica. O autor quer “apenas” chamar a atenção para o fato de que toda relação sexual se expressa por um corpo biológico e que cada vez mais esse corpo, assim como a dimensão afetiva dessa relação, são marcados por momentos sociais. Basta pensarmos no desenvolvimento da complexidade dessa relação em termos de descobertas de novas zonas erógenas e da possibilidade de novos prazeres e de novas sensações que historicamente se abriram para os indivíduos. Portanto, a relação sexual vai se realizando em um campo de necessidades e de possibilidades cada vez mais sociais, em uma dimensão sempre mais ampla que o mero contato físico e a troca de fluidos entre órgãos sexuais. tão elementar quanto a sexual é em última análise determinada pela estrutura social que há no respectivo estágio de reprodução: “Engels revela que o lugar da mulher na vida social (matriarcado etc.) depende de que o aumento da riqueza atribui à função do homem um peso maior que a da mulher, enquanto no estágio precedente era o inverso” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 138).

De fato, em sociedades com baixo desenvolvimento das forças produtivas, a mulher ocupa lugar social de grande importância. Em um estágio de desenvolvimento social em que a dependência das forças e dos ciclos da natureza é mais direta, a preservação das vidas das mulheres torna-se imprescindível para a geração de filhos e, portanto, para a continuidade daquela sociedade. Com o aumento da riqueza, proporcionada pelo maior controle sobre a natureza mediante o avanço das forças produtivas, essa relação entre os sexos na divisão do trabalho é invertida. Não é mais da criação de filhos, de maneira tão direta com a natureza, que depende a reprodução social, mas sim da riqueza socialmente produzida. A origem da família monogâmica, com a consequente sujeição da mulher, é uma possibilidade histórica que se funda no trabalho e se atualiza com a apropriação privada do maior excedente produzido. São os homens, de uma determinada classe social, que passam a controlar as forças produtivas, enquanto as mulheres têm os seus laços com a vida social restringidos ao serem submetidas à esfera doméstica 32 32 O afastamento das barreiras naturais degradou a tal ponto o momento biológico na relação entre os sexos na divisão do trabalho que, atualmente, o que define o lugar social das pessoas nessa relação é a dedicação às tarefas domésticas, independente de ser homem ou mulher. Os mais variados “arranjos” familiares estão aí para demonstrar esse fato. .

Da mesma forma, afirma Lukács (1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 139), a relação entre jovens e anciãos pode parecer à primeira vista uma relação de caráter meramente biológico. Na verdade, a vida mais longa é apenas a base que possibilita acumular mais experiências socialmente relevantes. É dessa possibilidade que decorre a posição social de autoridade dos anciãos e não, propriamente, da base biológica. Quando essas experiências não são mais acumuladas empiricamente e preservadas na memória, mas passam a ser deduzidas cada vez mais das generalizações, tal posição social também vai decaindo ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 139). O desenvolvimento da linguagem escrita, por exemplo, se torna uma necessidade com o progressivo afastamento das barreiras naturais. Como o processo de trabalho produz constantemente o novo – novas relações, novos objetos antes ignorados – é necessário que o gênero humano desenvolva um complexo social que fixe o que foi adquirido no passado com vistas a resolver as questões que lhes são colocadas no presente, assim como também aquelas que ainda são desconhecidas nesse processo de reprodução continuamente mutável. Com o acúmulo constante das experiências socialmente relevantes, que se processa a partir de novas descobertas e novas relações impulsionadas pelo trabalho, essa função da linguagem só pode ser exercida se ela própria for fixada na escrita 33 33 Lukács trata mais detidamente da linguagem como órgão e médium da consciência no tópico “Complexo de complexos”. Aqui basta enfatizar que a linguagem não se limita a preservar o que foi adquirido no passado. Como afirma Lukács, “Na continuidade do processo, portanto, a consciência deve se desenvolver com continuidade, deve conservar em si o quanto já foi alcançado, como base daquilo que virá, como plataforma do nível superior; o nível a cada vez alcançado deve ser sempre elevado à consciência, mas em termos tais que, ao mesmo tempo, permaneça aberta a possibilidade de não bloquear a continuidade do caminho em direção ao futuro” ( LUKÁCS, 1981 , p. 184). . Daí que à ampliação e difusão da escrita corresponde o declínio da autoridade dos anciãos.

Lukács também adverte, ainda que brevemente, que a divisão do trabalho tem consequências mais amplas, que levam a ações e reações puramente sociais. Cita o exemplo das posições teleológicas secundárias, que não visam transformar a natureza mas suscitar que outra pessoa realize determinada posição teleológica. Já em um estágio primitivo, como no exemplo mais acima da caça do período paleolítico, é exigido o conhecimento das pessoas nas quais deve suscitar essa vontade de colaborar no plano mais geral da divisão do trabalho. Para Lukács,

Os valores que neste ponto passam a existir, como o conhecimento dos homens, da arte de persuadir, a criatividade, a astúcia, etc., ampliam a sua volta o círculo dos valores e das valorações (que são sociais a um grau de pureza sempre mais elevada). Se o grupo em questão já evoluiu a ponto de conhecer algum tipo de disciplina, essa socialidade conquista um caráter mais ou menos institucional, quer dizer é social em um significado ainda mais rico ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 139).

A discussão sobre a origem e a função dos valores no ser social é de grande importância para a Ontologia de Lukács, afinal essa obra foi escrita como introdução à Ética, que infelizmente não se concretizou. Aqui o autor já começa a dar pistas de que o trabalho funda os valores 34 34 Sobre o tema dos valores na Ontologia cf. ANDRADE, 2016. e que os complexos valorativos nunca ganham autonomia absoluta no processo contínuo de afastamento das barreiras naturais, mas se desenvolvem em inter-relação indissociável com o complexo da economia. No entanto, ele não a enfrenta nesse momento do texto. Tampouco é sua intenção percorrer o caminho da divisão do trabalho até a sua fase atual, extremamente diferenciada, nem mesmo seguir o processo de transformação do biológico no social. Lukács interrompe essas digressões porque lhe interessa destacar as questões ontológicas do processo de afastamento das barreiras naturais.

Marx, logo no primeiro capítulo d’O Capital, dedica-se a investigar a economia no capitalismo a partir da relação mercantil, categoria mais simples e fundamental dessa formação já predominantemente social. Da mesma forma, na análise do ser social, o primeiro capítulo da Ontologia de Lukács trata do trabalho. As questões ontológicas do processo de afastamento das barreiras naturais são também buscadas nas categorias mais simples e fundamentais da vida econômico-social em geral. Nesse momento predominante do devir-homem dos homens, segundo Lukács, “devemos reconhecer não apenas a tendência intrínseca à reproduzir-se ininterruptamente, mas também o impulso imanente desta reprodução a se erguer, a passar para formas superiores do econômico-social” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 141).

Realmente, a maior produção de valores de uso atualiza uma possibilidade imanente ao trabalho, que é o de tornar seus produtos valor de troca no quadro de uma divisão do trabalho cada vez mais desenvolvida e ramificada. Marx demonstrou que, de um lado, a produção de valores de uso superior às necessidades imediatas de seus produtores e, de outro, a necessidade de produtos que não se pode obter com o próprio trabalho evidenciam maior nível de desenvolvimento da divisão do trabalho, de maior especialização dos trabalhos. De início, com a produção de valores de uso mais dependente dos ciclos da natureza, a troca é apenas ocasional e ocorre entre pequenas comunidades, não entre os seus membros singulares. Na medida em que, pela própria dinâmica do trabalho, avança a produção dos valores de uso com o desenvolvimento das forças produtivas e com ramificação e especialização da divisão do trabalho há a pressão para que a economia de autossubsistência direta se insira na troca de mercadorias e esta se transforme cada vez mais na forma dominante da reprodução social. Como afirma Lukács,

O desenvolvimento da divisão do trabalho, portanto, extrai da própria dinâmica espontânea categorias sociais sempre mais marcantes. Referimo-nos à troca de mercadorias e à relação econômica de valor que com ela entra em ação. […] O tornar-se mercadoria dos produtos do trabalho representa então um estágio superior da socialidade, isso significa que o movimento da sociedade é dominado por categorias sempre mais puramente sociais e não mais unicamente naturais. Tal dinâmica nós vemos no fato de que do trabalho, de seu progresso por necessidade imanente, se desenvolve uma divisão do trabalho sempre mais ampla e ramificada, e correspondentemente no fato de que este desenvolvimento da divisão do trabalho pressiona na direção da troca de mercadorias, enquanto esta retroage sobre a divisão do trabalho na mesma direção. ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 140/141)

A troca, que em si pressupõe certa quantidade de produção de valores de uso, impulsiona a produção de valores de uso em maior quantidade pois insere na comunidade autossuficiente valores de uso que não ocupou o tempo nem as forças de seus membros. Estes bens podem ser usados no incremento da produção de novos valores de uso pela comunidade, o que permite, por sua vez, maior quantidade de produtos destinados à troca. Os membros dessas comunidades, em cujo interior a divisão do trabalho é pouco desenvolvida, podem se dedicar cada vez mais a trabalhos especializados, pois – com a inserção dos valores de uso advindos da troca com outras comunidades – os produtores ficam liberados de não ter que produzir diretamente todos os produtos que necessitam para a sua sobrevivência. Se isso ocorre, incrementa-se ainda mais a produção de valores de uso que podem ser destinados à troca. A produção de valores de uso e a troca de mercadorias, portanto, potencializam-se reciprocamente e impulsionam para que a reprodução social seja cada vez dominada por categorias puramente sociais.

Nesse sentido, coloca Lukács

Esta tendência, mesmo se de imediato vem à luz no trabalho concreto, no entanto tem efeitos que não se limitam ao simples melhoramento de seus pontos de partida originários, mas incide, às vezes com resultados até mesmo revolucionários, no próprio processo de trabalho, na divisão do trabalho, de modo que pressiona para que a economia de autossubsistência direta se insira na troca de mercadorias e esta se transforme sempre mais na forma dominante da reprodução social. ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 141).

É preciso advertir, como faz Lukács, que onde quer que se realize trabalho essa dinâmica imanente, necessária e espontânea se impõe. É uma tendência histórico-universal que a reprodução social se realize cada vez mais sobre relações sociais – a troca de mercadorias e a relação econômica de valor que com ela entra em ação. Contudo, este desenvolvimento tem um curso dialeticamente contraditório. Explica Lukács,

De um lado temos um processo que parece irresistível, que já no próprio trabalho pressiona para uma constante evolução. [...] Porém, por mais irresistível que seja essa tendência em sua linha histórico-universal e em sua continuidade, as suas fases concretas, que podem talvez durar séculos ou mesmo milênios, são alteradas, favorecidas ou dificultadas pela estrutura, pela possibilidade evolutiva daqueles complexos totais em cujo quadro elas têm desenvolvimento concreto ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 141).

Já havíamos chamado a atenção para o fato de que não há qualquer linearidade ou teleologia no processo de explicitação categorial das esferas do ser, mesmo no ser social em que as posições operadas pelos indivíduos são teleológicas. As tendências histórico-universais do ser social são sínteses de posições teleológicas dos indivíduos que se formam em seu processo de desenvolvimento. Não podemos nos deter em tal questão. Aqui é suficiente destacar que aquela dinâmica que se impõe onde quer que exista trabalho se realiza de maneira necessariamente desigual, pois é a expressão da contradição entre “uma tendência ineludível geral e os obstáculos, modificações etc. que ela encontra ao se realizar” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 141).

Lukács não pode avançar, nesse momento do texto, sobre a explicação do curso dialeticamente contraditório de explicitação categorial dessa esfera do ser. Por ora, seu foco está no desenvolvimento das forças produtivas e no afastamento das barreiras naturais como tendências histórico-universais do ser social. De todo modo, é importante ressaltar que a contraditoriedade desse processo não se verifica entre uma essência a-histórica e sua forma fenomênica de concretização. Na Ontologia não há espaço para dualismos. Sua proposta é radicalmente histórica. Trata-se de compreender intelectivamente, post festum, o devir-homem dos homens por intermédio de suas categorias mais simples e fundamentais (a troca de mercadoria e a relação econômica de valor que com ela entra em ação), portanto, em um alto nível de abstração, ainda que em certos trechos da explicação o autor precise fazer alusões a circunstâncias concretas dessa realização afim de torná-la mais clara.

Para enfatizar que é um processo de afastamento das barreiras naturais, e não de ruptura, Lukács também observa que o valor de troca – que regula a atividade econômica – tem caráter social puro. Com efeito, o valor de troca não se origina nem opera por processos físicos, químicos ou biológicos. No entanto, “na pura socialidade desta categoria não há nenhum espiritualismo social […] o valor de troca apenas pode se realizar na relação reflexiva 35 35 A categoria “relação reflexiva” vai ser melhor explicitada adiante, quando Lukács trata das classes sociais. Nesse momento, também vai ficar claro que a produção de valores de uso e a troca de mercadorias potencializam-se reciprocamente, no entanto a produção de valores de uso permanece o momento predominante nessa inter-relação. com o valor de uso, esta relação o conecta com a base natural geral da socialidade” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 142). Não há, portanto, valor de troca – categoria puramente social – sem valor de uso.

O ser social não é menos social porque continua a se reproduzir, mesmo depois do salto ontológico, em uma relação de dependência relativa com o ser natural. Longe disso. Sem a produção de valores que satisfaçam diretamente as necessidades humanas – que se processa no intercâmbio orgânico com o ambiente 36 36 Os valores de uso não são produzidos apenas no intercâmbio com a natureza. O que define se uma coisa é valor de uso é a possibilidade de satisfazer necessidades humanas, não importa se elas se originam do estômago ou da fantasia, como afirma Marx (1985 , p. 45). – não é possível valor de troca. No entanto, essa relação puramente social se torna cada vez mais predominante com o desenvolvimento das forças produtivas e da divisão do trabalho. À medida que o valor de troca se difunde assume relevo central na reprodução social, cada vez mais, outra relação puramente social – o tempo de trabalho socialmente necessário, que no capitalismo passa a ser o fundamento econômico da grandeza concreta do valor de troca, seu critério de valor.

2.2. Afastamento das barreiras naturais e o tempo de trabalho socialmente necessário

Sabemos que um bem para ser trocado precisa ter alguma utilidade, algum valor de uso. Mas como medir seu valor de troca? Não pode ser pela utilidade das mercadorias, alguma propriedade física ou química própria – isso é importante apenas para o uso –, porque é justamente a utilidade que precisa ser abstraída para que a troca possa ser realizada. Para haver troca é preciso existir algo em comum, algum critério único para comparar e medir as inúmeras mercadorias, a despeito de suas mais diversas utilidades, nas quantidades as mais variadas. Descartado o valor de uso das mercadorias, resta em comum apenas o fato de serem elas produtos de trabalho. Contudo, do mesmo modo, na relação de troca não importa se é produto deste ou daquele trabalho, se é feito por Maria ou José, por um mineiro ou por um carpinteiro. Para que haja troca é necessário abstrair as diferenças que existem entre os múltiplos trabalhos. Não é relevante, para usar as expressões de Marx, as diferentes formas concretas desses trabalhos, mas justamente que não mais se diferenciem entre si, que sejam igual trabalho humano, trabalho humano abstrato – “a mesma objetividade fantasmagórica, uma simples gelatina de trabalho humano indiferenciado” ( MARX, 1985 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 2 a ed., São Paulo: Nova Cultural, 1985. 1 v. em 5. , p. 47). Se o que há de comum nas mercadorias não é suas utilidades mas trabalho abstrato que as produziu, então a quantidade deste trabalho determina o valor de troca. De novo, como medi-la? Como a propriedade comum das mercadorias é o trabalho abstrato, o valor de troca não pode ser medido pelo tempo que este ou aquele trabalhador dispendeu para produzi-la. Não importa, nesse caso, o tempo em que é realizado o trabalho concreto. É necessário abstrair a habilidade ou a falta de destreza deste ou daquele trabalho individual.

Como afirma Marx,

A força conjunta de trabalho da sociedade, que se apresenta nos valores do mundo das mercadorias, vale aqui como uma única e a mesma força de trabalho do homem, não obstante ela ser composta de inúmeras forças de trabalho individual. Cada uma dessas forças de trabalho individuais é a mesma força de trabalho do homem como a outra, à medida que possui o caráter de uma força média de trabalho social, e opera como tal força de trabalho socialmente média, contanto que na produção de uma mercadoria não consuma mais que o trabalho em média necessário ou tempo de trabalho socialmente necessário. Tempo de trabalho socialmente necessário é aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas condições dadas de produção socialmente normais, e com o grau social médio de habilidade e de intensidade de trabalho ( MARX, 1985 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 2 a ed., São Paulo: Nova Cultural, 1985. 1 v. em 5. , p. 48). (grifos nossos)

Podemos perceber, assim, que o tempo de trabalho socialmente necessário é, enquanto critério de valor, a base da circulação de mercadorias, o fundamento de toda circulação econômico-social no capitalismo 37 37 É importante destacar que a função social do tempo não é a mesma nas diferentes formações sociais. Não podemos equiparar a função social do tempo no feudalismo, por exemplo, com o tempo como medida de valor da mercadoria no modo de produção capitalista. . Para que determinados valores de uso sejam inseridos e permaneçam na circulação como mercadorias é necessário que sua produção obedeça ao tempo de trabalho médio que aquela sociedade conquistou para produzi-los.

O tempo de trabalho socialmente necessário surge com o valor de troca em um determinado nível do processo de produção e de circulação. Nos estágios inicias do trabalho, como afirma Lukács (181, p. 143), o tempo para obter os valores de uso era algo secundário (o nascimento do produto era mais importante), assim como a execução dos trabalhos singulares era baseada nas características biológicas, e mesmo psíquicas, dos indivíduos. O tempo de trabalho socialmente necessário se desenvolve cada vez mais como categoria verdadeiramente social – e, podemos acrescentar, o trabalho abstrato – à medida que o valor de troca se difunde na reprodução social. Só com a difusão da troca de mercadoria como relação social na qual se sustenta cada vez mais a reprodução social, o tempo de trabalho socialmente necessário vai se firmando também como a base dessa circulação.

Lukács chama atenção para dois aspectos relevantes. O primeiro deles refere-se ao absoluto caráter social do tempo de trabalho socialmente necessário, pois não existe no seres inorgânico e orgânico nada parecido a essa categoria. No entanto, o tempo de trabalho socialmente necessário tem fundamento, em sentido ontológico, no ser inorgânico, “na pura objetividade do tempo, na completa independência do tempo com relação às reações dos homens a ele” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 143).

Essa afirmação o leva à segunda advertência: o tempo de trabalho socialmente necessário é uma característica da reprodução social em geral, ou melhor, trata-se de uma universalidade social. ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 144). O que Lukács quer dizer com isso? Será que alega que o valor de troca, o mercado, é uma categoria da reprodução social em geral e, portanto, deve estar presente mesmo no comunismo? Ou simplesmente que não importa como os homens se reproduzam socialmente, pois o tempo irá repercutir necessariamente sobre eles e, nesse sentido, mesmo no comunismo será preciso organizá-lo e distribuí-lo a partir do trabalho associado e não mais pela concorrência do mercado?

Lukács argumenta que seu interesse é “apenas mostrar como as relações econômicas dos homens são reguladas pelo tempo de trabalho socialmente necessário” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 144). Por isso cita a conversão recíproca entre valor de uso e valor de troca da força de trabalho no capitalismo:

É verdade que o valor de uso e o valor de troca são formas objetivas reciprocamente heterogêneas, mas a socialidade da produção põe em movimento justamente um permanente processo de conversão recíproca de um ao outro. Quando, por exemplo, um capitalista para produzir contrata operários, ele (como todo comprador) compra um valor de uso, a força de trabalho, a sua capacidade de produzir mais que o necessário para a própria reprodução, exatamente a propriedade que determina o valor de troca. Unicamente a execução do trabalho – no quadro do tempo de trabalho socialmente necessário – permite que os produtos vindos à luz (como ele valores de uso) adquiram valor de troca, no qual está contido como mais valia o produto específico do valor de uso da força de trabalho.

A força de trabalho é, a depender da relação, da interação concreta de que se trate, valor de uso e valor de troca. Assim como também o são os produtos do trabalho. A socialização da produção, sempre em um quadro de tempo de trabalho socialmente necessário, é que faz a conversão de um em outro 38 38 Essa passagem nos faz lembrar da estrutura do ser social: todo complexo faz parte de um complexo de complexos. Não é possível fazer uma definição prévia das categorias a partir de suas supostas peculiaridades, pois nada no ser social pode se originar e se desenvolver isoladamente, sem que esteja inserido em relações com outros complexos singulares e com a totalidade, que é o momento predominante. Logo, o que vai determinar se algo é valor de uso ou valor de troca é a função que exerce em dada relação. . Se não existe valor de troca sem valor de uso a recíproca não é verdadeira. Prova disso é que a humanidade se originou e de desenvolveu durante milênios sem a presença do valor de troca. A expansão do valor de troca leva a que o tempo de trabalho socialmente necessário seja o fundamento econômico de sua grandeza concreta, mas este não se confunde com o valor de troca. A “força conjunta de trabalho da sociedade”, para usar uma frase de Marx, se evidencia e pode ser empregada conscientemente pela difusão do valor de troca, mas isso não é uma necessidade ou um bloqueio para o desenvolvimento histórico da humanidade.

Nem por isso Lukács deixa de constatar que, com todas as suas formas fenomênicas necessariamente contraditórios, a socialização da produção na troca de mercadorias é um veículo objetivo do progresso da socialidade ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 143). E cita Marx textualmente

Quanto menos tempo a sociedade necessita para produzir trigo, gado etc. mais tempo ganha para outras produções materiais ou espirituais. Como para o indivíduo singular, para a sociedade a universalidade de seu desenvolvimento, de seu gozo e de sua atividade depende da poupança de tempo. Economia de tempo, nisto se reduz afinal toda a economia (MARX, apudLUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 143/144).

Lukács continua a desenvolver sua argumentação afirmando que Marx também está interessado em demonstrar que o tempo de trabalho socialmente necessário é uma característica da reprodução social em geral, ainda que esta se apresente de maneiras diferentes, em diferentes níveis parciais de consciência ou de mera espontaneidade. De fato, no capitalismo o tempo de trabalho socialmente necessário, como regulador da produção econômico-social, se mostra de forma reificada e fetichizada. No entanto o próprio Marx, segundo Lukács, além recorrer a um exemplo construído – o de Robinson Crusoé – para justificar a necessidade da presença do trabalho abstrato e do tempo de trabalho socialmente necessário, constata a sua existência na economia feudal e na economia da família camponesa autossuficiente:

Marx começa com o exemplo – construído – de Robinson, a propósito do qual escreve: “A própria necessidade o obriga a distribuir exatamente o seu tempo entre as suas funções diferentes” que são explicitadas na dependência de condições objetivas e subjetivas, mas que em todo caso, tendo em conta todas as diferenças qualitativas, “são apenas...modos diferentes de trabalho humano”. Mais interessante […] Na economia feudal a característica social mais importante é a dependência social, apenas em casos excepcionais o trabalho assume a forma de mercadoria, e apesar disso a corveia se mede pelo tempo, como o trabalho produtor de mercadorias. Nem mesmo na família camponesa patriarcal as condições da divisão do trabalho são determinadas diretamente, no interior da família, pela troca de mercadoria, “mas aqui o dispêndio da força de trabalho individual medido com a duração temporal se apresenta por sua própria natureza como determinação social dos próprios trabalhos, porque as forças de trabalho individuais operam por sua própria natureza apenas como órgãos da força de trabalho comum da família” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 144)

Essa passagem reforça a interpretação de que Lukács está se referindo à ineludível imposição de organizar os diferentes trabalhos em função do tempo a fim de que possa suprir as necessidades de sobrevivência e reprodução de qualquer sociedade. E esse tempo, porque a produção é sempre social, é determinada pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas, da divisão do trabalho, da ciência, da habilidade dos trabalhadores etc. Por isso, também no comunismo o tempo de trabalho socialmente necessário deve estar presente, mas sua distribuição é feita pelo trabalho associado, de maneira consciente, sem a fetichização reificante 39 39 Não é possível desenvolver aqui uma discussão mais aprofundada sobre fetichismo e reificação. Podemos apenas assinalar, muito brevemente, que enquanto a reificação é sinônimo de coisificação, o fetichismo alude a processos de substituição do poder humano de fazer história por alguma outra coisa, outro poder. A coisificação pode remeter ou não a um processo de alienação. Para agirmos no cotidiano, por exemplo, devemos introduzir uma série de automatismos sem os quais a vida não pode se realizar. Faz parte dessas atividades acender uma luz, escovar os dentes, atravessar a rua etc. Já o fetichismo é sempre um processo alienante. Contudo, nem sempre um processo alienante cumpre um papel histórico exclusivamente alienado. Exemplo disso é a propriedade privada, que é fruto de um processo de alienação mas que só com capitalismo passa a cumprir uma função histórica exclusivamente alienante. No caso da organização do tempo socialmente necessário feito pela concorrência do mercado temos uma fetichização reificante absolutamente alienada porque, entre outras questões, reduz o humano, a sua essência, à mercadoria. No mercado, tempo é dinheiro, a vida de um homem, seu tempo, se reduz à quantidade de dinheiro que é capaz de acumular. O processo fetichizante substitui o poder humano de fazer história pelo mercado. Com a reificação, por sua vez, a história é cancelada, porque parece que o mercado sempre existiu e sempre existirá. Agimos como se o futuro não existisse e como se o passado não tivesse acontecido. A temporalidade se limita apenas ao presente. Para mais informações sobre reificação e fetichismo cf. NETTO, 1981 . da concorrência do mercado. Lukács cita novamente Marx,

O tempo de trabalho desempenharia, então, um duplo papel. Sua distribuição, socialmente planejada, regula a exata proporção das diferentes funções laborativas de acordo com as diferentes necessidades. De outra parte, o tempo de trabalho serve ao mesmo tempo como medida da participação individual do produtor no trabalho comum, e então também a parte do produto comum consumível individualmente. As relações sociais dos homens com seus trabalhos e com os produtos de seu trabalho permanecem aqui simples e transparentes tanto na produção quanto na distribuição (MARX apudLUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 144/145)

Lukács esclarece que essa breve aproximação com diversas formas de reprodução social não se limita apenas a polemizar contra a forma reificada e fetichizada com que o tempo de trabalho socialmente necessário, enquanto princípio regulador da produção econômico-social, se apresenta no capitalismo. A discussão sobre a universalidade social dessa categoria envolve duas importantes questões que ajudam a compreender a maneira pela qual se dá, com o afastamento progressivo da barreira natural, a generalização do ser social impulsionada pelo trabalho:

De um lado, isso mostra como, na reprodução no interior do ser social, determinadas tendências legais, emergentes da própria essência da coisa, terminam necessariamente por se afirmar nas mais diversas condições objetivas e subjetivas. De outro lado, e juntos, parece evidente que tal princípio regulativo da produção, ao se afirmar nas condições mais variadas, contudo está sempre vinculado às relações concretas dos homens entre si e, portanto, é sempre também uma expressão concreta do respectivo estado da reprodução. Toda tentativa de transportar a outro estado a estrutura concreta de uma relação no interior de uma circunstância concreta só pode levar à falsificação das formas fenomênicas – objetivamente necessárias e muito ativas – o que em certas condições pode ter amplos efeitos econômicos práticos ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 145).

O exemplo que Lukács traz para ilustrar esse fato é a ruína dos artesãos no século XIX, ao não perceberem que o tempo socialmente necessário passou a ser medido nos termos da grande empresa capitalista. Com efeito, recordemos a citação mais acima de Marx quando afirma que cada uma das forças de trabalho individuais é uma força média de trabalho social, “contanto que na produção de uma mercadoria não consuma mais que o trabalho médio necessário ou tempo de trabalho socialmente necessário” ( MARX, 1985 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 2 a ed., São Paulo: Nova Cultural, 1985. 1 v. em 5. , p. 48). O tempo de trabalho socialmente necessário diminui conforme avança o desenvolvimento das forças produtivas, da divisão do trabalho, da ciência, da habilidade dos trabalhadores etc. Se isso ocorre, também diminui a quantidade de trabalho abstrato para produzir mercadorias e, portanto, o valor nelas cristalizado. Era impossível aos artesãos do século XIX competir com as mercadorias da grande indústria capitalista, com sua capacidade produtiva muito maior e seus preços muito mais baratos.

Assim, a tendência legal que emerge da essência do processo de trabalho se atualiza independente da consciência e nas mais diversas condições objetivas. Mas Lukács, ao mesmo tempo, não confere à essência o atributo da atividade enquanto a esfera fenomênica permaneceria na passividade, na simples manifestação passiva de uma potência a-histórica. De novo, não há lugar para dualismos na Ontologia radicalmente histórica de Lukács. A esfera fenomênica é também objetivamente necessária e muito ativa. Tanto assim o é que os artesãos foram à ruína, sustenta Lukács, por não adequarem seus comportamentos práticos à nova objetividade, à nova dinâmica da produção e circulação de mercadorias. Permaneceram no século XIX enquanto lhes era exigido mais que um comportamento espontâneo na condução de seus negócios:

Apenas em um estágio evoluído de planejamento consciente torna-se vital, no sentido prático imediato, possuir um conhecimento adequado das relações econômicas, que não pode ser substituída pela adoção manipulatória dos comportamentos que tenham demonstrados serem bons em outra estrutura ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 145).

A função que o tempo de trabalho socialmente necessário assumiu na formação capitalista – base da circulação de mercadorias, seu critério de valor – constrangeu esses artesãos a adequarem o tempo de suas produções às exigências da indústria capitalista. Ao não adotarem planejamento consciente – reificado e fetichizado, é certo – conforme essa imposição foram excluídos do mercado. No entanto, ainda permanece a questão: qual seria a posição de Lukács quanto à função do tempo socialmente necessário no comunismo, pois o autor afirma que é uma característica da reprodução social em geral? Ao utilizar essa expressão o fez como Marx ao se referir à função dessa categoria na formação capitalista? Ou extrapolou a significação desse termo para se referir ao tempo de produção em geral?

Como pudemos perceber, não se trata de um problema secundário. O próprio Lukács, tanto quanto Marx, relaciona comunismo e “tempo livre” para o desenvolvimento omnilateral dos indivíduos e das formações sociais. Por isso, ainda são necessárias investigações específicas que levem em consideração as muitas outras passagens da Ontologia em que esse tema aparece.

3. Considerações finais

Com esse esboço, provisório, aproximativo e incompleto, Lukács apresenta, em seus traços gerais, as peculiaridades mais importantes da reprodução do ser social. O afastamento das barreiras naturais nos é retratado a partir das categorias mais simples e fundamentais da vida econômico-social – a troca de mercadorias e a relação econômica de valor que com ela entra em ação –, que são arrastadas, por sua vez, pelo desenvolvimento das forças produtivas no interior de uma divisão do trabalho cada vez mais rica e ramificada.

Como vimos, a explicitação categorial progressiva do ser social se processa por tendências histórico-universais que são imanentes, necessárias e desiguais. Além disso, o afastamento das barreiras naturais exige o desenvolvimento da autonomia relativa de cada um dos complexos que compõe esse “complexo de complexos”. Linguagem, arte e direito, por exemplo, são complexos sociais que desenvolvem suas autonomias internas, sem romper com o complexo econômico que lhes dá fundamento. Não podem ser compreendidos, portanto, se forem removidos do contexto – absolutizados, reificados e fetichizados –, pois são momentos do processo total da reprodução social.

Após os 12 (doze) parágrafos iniciais aqui analisados, Lukács refere-se a momentos da reprodução biológica da vida humana que conquistam cada vez mais caráter social – a alimentação e a sexualidade – e a momentos decisivos que, pela dialética do trabalho e da divisão do trabalho, explicitam a diversidade qualitativa do ser social ao conferir novo cunho ontológico à sua estrutura – trabalho intelectual e trabalho físico, campo e cidade e classes sociais. Tais questões merecem ser objeto de outro texto, mas cabe aqui adiantar que com essas explicações o autor também vai deixando claro, passo a passo, quais são as demais tendências histórico-universais do ser social. Ao final da parte 1 do capítulo 2 da Ontologia aprendemos que, além do desenvolvimento das forças produtivas e do afastamento das barreiras naturais, o desenvolvimento da individualidade e do gênero humano fazem parte dessas tendências.

Ao proceder dessa maneira, Lukács evidencia as peculiaridades dos problemas e do método ontológico. A prioridade ontológica da reprodução biológica do homem, a que se dedica diretamente o complexo da economia, não é um ponto de partida arbitrário 40 40 Atenção para não confundir “ponto de partida” com algo a partir do qual se deduz a realidade. No materialismo dialético, o método não é o critério de verdade. . O ser-precisamente-assim, o que existe independente de seu reflexo na consciência, com todas as suas contradições e desigualdades, é o ponto de partida e de chegada de toda tentativa de compreender em termos ontológicos o ser social na sua mobilidade. Como Marx, Lukács não recorre a construções teóricas ideais a-históricas para conhecer o ser social. Ao contrário, aquela prioridade é o reflexo ontológico-intelectivo da realidade e, por isso, é capaz de dar solidez científica à teoria do desenvolvimento histórico-social materialista. Todos os fenômenos sociais se fundam no trabalho. Sem reprodução biológica dos homens não há reprodução social. Isso não significa, contudo, que as determinações sociais sejam deduzidas do trabalho. A totalidade social, o complexo de complexos que é o ser social, realiza a função de momento predominante entre os complexos parciais e o trabalho. A continuidade da reprodução social não se rompe com o desenvolvimento dos complexos parciais. É assim que o ser social, como o ser em geral, permanece unitário em seu processo de desenvolvimento cada vez mais heterogêneo.

A leitura imanente, em nossa opinião, é uma maneira segura e eficaz de fazer jus à obra de maturidade de Lukács. Ao dar prioridade ontológica ao texto, exigindo o controle – não a anulação – da subjetividade de quem aceita o convite ao estudo, esse método é coerente com a proposta da própria Ontologia de nos remeter aos fundamentos da socialidade e da vida humana, tão urgente quanto necessária nesse momento histórico de profunda crise.

  • 1
    A leitura imanente foi realizada na versão italiana traduzida por Alberto Scarponi e sempre que necessário também foi confrontada com a versão em alemão. Daqui em diante vamos nos referir a essa obra apenas por Ontologia.
  • 2
    Neste capítulo autor explica como o trabalho funda o ser social sem que a humanidade seja reduzida a ele. Os próximos capítulos são dedicados aos complexos da Ideologia e da Alienação. Assim, por ser um capítulo de síntese e, ao mesmo tempo, de transição para a análise de complexos importantes para o estudo da ética – texto que não pôde ser escrito em razão do falecimento do autor – A Reprodução é uma interessante porta de entrada para a compreensão da obra de maturidade de Lukács.
  • 3
    Reconhecer a possibilidade ontológica da superação da exploração do homem pelo homem não significa afirmar a sua inevitabilidade, como ficará claro ao longo deste artigo.
  • 4
    Recomendamos de modo enfático a leitura do livro “O revolucionário e o estudo. Porque não estudamos?”, de Sergio Lessa (2014) _______. O revolucionário e o estudo. Por que não estudamos? Maceió: Instituto Lukács, 2014. . Nele o autor detalha um plano de estudo para a leitura imanente. Não se trata de um modelo. Quem se convencer que esse é um poderoso recurso metodológico para a compreensão dos textos clássicos deve encontrar seu próprio caminho. Fazer leitura imanente é um exercício individual, diário e cumulativo. No entanto, o texto pode servir de inspiração pois o autor sistematiza a sua experiência de mais de 30 anos nessa forma de estudo.
  • 5
    A “novidade” como critério de mercado que se introduziu na pesquisa acadêmica pode não só comprometer os seus resultados mas, pior ainda, impedir que os pesquisadores construam base teórica sólida. Em detrimento do estudo cumulativo, necessariamente mais lento e não linear, muitos são impelidos a dirigir suas principais energias para atender a essa exigência.
  • 6
    Profissionais de outras áreas do conhecimento se impressionam com nossa capacidade de comparar fragmentos – de maneira abstrata e às vezes em um único artigo com 30 páginas – de autores tão distintos como Marx, Foucault, Lukcács, Althusser, Heidegger, Sartre etc. Talvez isso se deva à nossa formação generalista, que nos faz acreditar que somos capazes de falar de tudo (ou quase tudo). No entanto, como parece que parte da pesquisa em direito tende a se afastar da dogmática e a se aproximar de outras áreas, talvez seja o caso de repensarmos seriamente essa prática. Nas Ciências Sociais, por exemplo, os textos dedicados à comparação de autores paradigmáticos e correntes téoricas em geral são feitos por aqueles que, após longa experiência em pesquisas empíricas, passam a discutir as categorias teóricas e o método com aporte da filosofia.
  • 7
    Para mais informações sobre a metodologia da leitura imanente cf. LESSA, 2011 ________. Trabalho e proletariado no capitalismo contemporâneo . 2a ed., São Paulo: Cortez, 2011. , especialmente a introdução e o capítulo V.
  • 8
    Para expor as principais conclusões do capítulo 1 da Ontologia vamos nos valer de passagens do tópico 1 e 2 do capítulo 2 do volume II da Ontologia, mas quando necessário vamos recorrer também a alguns autores que estão mais avançados na leitura imanente dessa obra lukacsiana, especialmente Lessa, 2015a ______. Para compreender a ontologia de Lukács. 4 ed., Maceió: Instituto Lukács, 2015a. e Andrade, 2016 ______. Ontologia, dever e valor em Lukács. Maceió: Coletivo Veredas, 2016. . Assim, nesse primeiro momento do presente texto, não seguiremos – tal como recomenda a leitura imanente – a ordem dos parágrafos iniciais do capítulo 2. No entanto, retomaremos essa sequência tão logo avancemos na concepção de fundo da Ontologia de Lukács, a filosofia materialista unitária de Marx.
  • 9
    O termo “evoluir” é, em geral, malvisto pelas Ciências Sociais porque certas correntes teóricas positivistas, ou que flertam com o positivismo, equipararam desenvolvimento a um juízo de valor. Insistimos que essa perspectiva é totalmente alheia à Ontologia de Lukács. Aqui evoluir é sinônimo de transformação, de movimento, de historicidade, que é uma propriedade ontológica universal da matéria e, portanto, está presente nos seres inorgânico, orgânico e social. É por esse motivo que Marx e Engels afirmam: “Conhecemos apenas uma ciência, a ciência da história” (MARX; ENGELS, 2009 ______. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009. , p. 21).
  • 10
    O estudo sobre a origem e desenvolvimento das esferas ontológicas é muito importante para a concepção materialista desenvolvida por Marx e continuada por Lukács. Daí o grande interesse nas pesquisas e descobertas científicas realizadas pela Cosmologia, área da física que se dedica a discutir a origem do universo, bem como da Geologia e da Geografia que se debruçam sobre a história da Terra. É também relevante os estudos e pesquisas da Biologia, da Arqueologia e da Antropologia sobre os processos de continuidade e ruptura entre os seres inorgânico, orgânico e social.
  • 11
    Como veremos, as mudanças qualitativas que ocorrem no interior de cada uma das esferas ontológicas também são chamadas de salto por Lukács.
  • 12
    Mais adiante será explicado que o ser social, assim como o ser em geral, tem a estrutura de um complexo de complexos. Isso afastará a falsa impressão de que a discussão sobre a gênese se refere a uma consideração cronológica.
  • 13
    Nesse exato sentido, há uma analogia entre a reprodução biológica e a reprodução social: em ambas o processo de desenvolvimento histórico se dá, em seu princípio ontológico último, cada vez mais pelo domínio de suas próprias categorias em detrimento daquelas que estão no nível inferior do ser ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , P. 147)
  • 14
    É importante ressaltar que alterações no DNA podem conduzir à evolução dos seres vivos no mesmo ambiente.
  • 15
    Usamos o termo “estranho” no sentido de desconhecido, alienígena, e não de alienação. Assim, tomamos Entfremdung por alienado, alienação. Para mais informações sobre essa discussão cf. LESSA, 2015b ______. Alienação e estranhamento. In: MARX, Karl. Cadernos de Paris. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. São Paulo: Expressão Popular, 2015b, p. 449/492. .
  • 16
    Essa questão remete a uma discussão bastante ampla, sobretudo no que diz respeito ao método. Para uma análise mais detida cf. TONET, 2013 TONET, Ivo. Método científico. Uma abordagem ontológica. Maceió: Instituto Lukács, 2013. .
  • 17
    Veremos que essas características do processo de reprodução biológico ressaltam a distinção da reprodução social quanto à sua essência. O trabalho, a posição teleológica que produz, é o que marca tal ruptura.
  • 18
    O ser natural abrange os seres inorgânico e orgânico.
  • 19
    Essa discussão é muito importante para compreender a Ontologia. Infelizmente poucos textos abordam, de forma sistematizada, a questão da historicidade da essência a partir de uma perspectiva ontológica. Há na internet a transcrição de aulas ministradas em 1988 por José Chasin CHASIN, José. Superação do liberalismo. Maceió, 1988. Transcrição de aulas. Disponível em: <https://www.afoiceeomartelo.com.br>. Acesso em 12/11/2016.
    https://www.afoiceeomartelo.com.br ...
    que podem ajudar nessa discussão. Chama-se “Superação do Liberalismo”. Há ainda algumas indicações em um texto de Sergio Lessa (2001) LESSA, Sergio. Lukács e a Ontologia. Uma introdução. Revista Outubro, n. 5, São Paulo: Xamã, 2001. .
  • 20
    Como veremos, prioridade ontológica é exatamente o oposto de uma relação mecânica, de causa e efeito.
  • 21
    Na Ideologia Alemã, Marx e Engels deixam claro que seus pressupostos não são ideais nem arbitrários: “Com os alemães, que não partem de qualquer pressuposto, temos que começar por constatar o primeiro pressuposto de toda existência humana e, portanto, de toda história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poderem ‘fazer história’. Mas da vida fazem parte sobretudo comer e beber, habitação, vestuário e ainda algumas outras coisas.. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios para satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e a verdade é que esse é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história; que ainda hoje, tal como há milhares de anos, tem de ser realizado dia a dia, hora a hora, para ao menos manter os homens vivos” (MARX; ENGELS, 2009 ______. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 40).
  • 22
    Seguir as múltiplas implicações dessa concepção nos afastaria muito da leitura imanente do texto lukacsiano. Mesmo assim pontuemos que esse conhecimento não é um reflexo do que existe em termos mecânico, absoluto ou mesmo completo. O conhecimento da realidade é sempre aproximativo, não há identidade entre o conhecido e a totalidade do ser.
  • 23
    A consciência tem um papel relevante no devir-humano dos homens mas na Ontologia ela não adquire autonomia absoluta em face dos processos objetivos da reprodução social. Não é a consciência que dirige diretamente a história humana. A consciência é sempre a consciência do indivíduo no cotidiano e o trabalho é, da mesma forma, o fundamento ontológico das mudanças subjetivas que ocorrem nos indivíduos. Além de várias passagens em toda obra, o papel da consciência no devir-humano dos homens também é analisado quando Lukács trata da linguagem, no tópico “Complexo de complexos”.
  • 24
    Essa diretiva não incorpora, é bom ressaltar, a concepção aristotélica de que o ser social é determinado pela ordem cosmológica ordenada pela Ideia, pelo Logos.
  • 25
    A superação da exploração do homem pelo homem é, certamente, um tema muito mais amplo e complexo. Nessa passagem fazemos uma menção a essa possibilidade sem qualquer pretensão de fundamentá-la apenas na dỳnamis aristotélica.
  • 26
    A referência a “comunidades primitivas” não traz qualquer juízo de valor. Se insistimos nessa questão deve-se às inúmeras incompreensões que uma primeira aproximação à Ontologia pode suscitar em razão da diretiva subjetiva do método, largamente predominante na academia.
  • 27
    No capitalismo, a acumulação de riqueza se descolou do seres inorgânico e orgânico. Não se acumula riqueza na forma de escravos ou de terras, por exemplo. O capital é uma relação puramente social. Daí poder ser acumulada indefinidamente, com todas as contradições que isso engendra.
  • 28
    É importante ressaltar que uma categoria elementar indivisível – como era considerado o átomo até a física moderna – não tem história. Tanto o átomo como seu modo de atuação conservam-se por princípio a-históricos. Só um complexo pode ter história (LUKÁCS, 2012 ________. Para uma Ontologia do Ser Social I. São Paulo: Boitempo, 2012. , p. 353).
  • 29
    A divisão do trabalho, como possibilidade imante ao trabalho, não é necessariamente alienada. Essa dimensão vai ser introduzida com a sociedade de classes, com a exploração do homem pelo homem, com a separação entre trabalho intelectual e braçal. Precisamos deixar esse tema para esclarecimentos posteriores. Por ora basta apenas essa menção.
  • 30
    A questão da origem da linguagem é uma discussão bastante complexa porque as posições teleológicas são a síntese entre consciência e mundo que se objetivam mediadas por relações sociais historicamente determinadas. De toda forma, nesse tema Lukcács concorda com Engels: “Engels articula o nascimento da linguagem ao trabalho e, com o mesmo acerto, sustenta que ela deve surgir quando os homens têm alguma coisa para dizer uns aos outros” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 191/192).
  • 31
    Para evitar mal entendidos que podem advir de nosso atual ambiente acadêmico, é preciso dizer claramente que quando Lukács se refere à insuprimibilidade do corpo biológico não está dizendo que os órgãos sexuais determinam as relações sexuais. Não há na sexualidade, como em nenhum outro complexo social, uma base a-histórica e uma superestrutura que se modifica. O autor quer “apenas” chamar a atenção para o fato de que toda relação sexual se expressa por um corpo biológico e que cada vez mais esse corpo, assim como a dimensão afetiva dessa relação, são marcados por momentos sociais. Basta pensarmos no desenvolvimento da complexidade dessa relação em termos de descobertas de novas zonas erógenas e da possibilidade de novos prazeres e de novas sensações que historicamente se abriram para os indivíduos. Portanto, a relação sexual vai se realizando em um campo de necessidades e de possibilidades cada vez mais sociais, em uma dimensão sempre mais ampla que o mero contato físico e a troca de fluidos entre órgãos sexuais.
  • 32
    O afastamento das barreiras naturais degradou a tal ponto o momento biológico na relação entre os sexos na divisão do trabalho que, atualmente, o que define o lugar social das pessoas nessa relação é a dedicação às tarefas domésticas, independente de ser homem ou mulher. Os mais variados “arranjos” familiares estão aí para demonstrar esse fato.
  • 33
    Lukács trata mais detidamente da linguagem como órgão e médium da consciência no tópico “Complexo de complexos”. Aqui basta enfatizar que a linguagem não se limita a preservar o que foi adquirido no passado. Como afirma Lukács, “Na continuidade do processo, portanto, a consciência deve se desenvolver com continuidade, deve conservar em si o quanto já foi alcançado, como base daquilo que virá, como plataforma do nível superior; o nível a cada vez alcançado deve ser sempre elevado à consciência, mas em termos tais que, ao mesmo tempo, permaneça aberta a possibilidade de não bloquear a continuidade do caminho em direção ao futuro” ( LUKÁCS, 1981 LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II. Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981. , p. 184).
  • 34
    Sobre o tema dos valores na Ontologia cf. ANDRADE, 2016 ______. Ontologia, dever e valor em Lukács. Maceió: Coletivo Veredas, 2016. .
  • 35
    A categoria “relação reflexiva” vai ser melhor explicitada adiante, quando Lukács trata das classes sociais. Nesse momento, também vai ficar claro que a produção de valores de uso e a troca de mercadorias potencializam-se reciprocamente, no entanto a produção de valores de uso permanece o momento predominante nessa inter-relação.
  • 36
    Os valores de uso não são produzidos apenas no intercâmbio com a natureza. O que define se uma coisa é valor de uso é a possibilidade de satisfazer necessidades humanas, não importa se elas se originam do estômago ou da fantasia, como afirma Marx (1985 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 2 a ed., São Paulo: Nova Cultural, 1985. 1 v. em 5. , p. 45).
  • 37
    É importante destacar que a função social do tempo não é a mesma nas diferentes formações sociais. Não podemos equiparar a função social do tempo no feudalismo, por exemplo, com o tempo como medida de valor da mercadoria no modo de produção capitalista.
  • 38
    Essa passagem nos faz lembrar da estrutura do ser social: todo complexo faz parte de um complexo de complexos. Não é possível fazer uma definição prévia das categorias a partir de suas supostas peculiaridades, pois nada no ser social pode se originar e se desenvolver isoladamente, sem que esteja inserido em relações com outros complexos singulares e com a totalidade, que é o momento predominante. Logo, o que vai determinar se algo é valor de uso ou valor de troca é a função que exerce em dada relação.
  • 39
    Não é possível desenvolver aqui uma discussão mais aprofundada sobre fetichismo e reificação. Podemos apenas assinalar, muito brevemente, que enquanto a reificação é sinônimo de coisificação, o fetichismo alude a processos de substituição do poder humano de fazer história por alguma outra coisa, outro poder. A coisificação pode remeter ou não a um processo de alienação. Para agirmos no cotidiano, por exemplo, devemos introduzir uma série de automatismos sem os quais a vida não pode se realizar. Faz parte dessas atividades acender uma luz, escovar os dentes, atravessar a rua etc. Já o fetichismo é sempre um processo alienante. Contudo, nem sempre um processo alienante cumpre um papel histórico exclusivamente alienado. Exemplo disso é a propriedade privada, que é fruto de um processo de alienação mas que só com capitalismo passa a cumprir uma função histórica exclusivamente alienante. No caso da organização do tempo socialmente necessário feito pela concorrência do mercado temos uma fetichização reificante absolutamente alienada porque, entre outras questões, reduz o humano, a sua essência, à mercadoria. No mercado, tempo é dinheiro, a vida de um homem, seu tempo, se reduz à quantidade de dinheiro que é capaz de acumular. O processo fetichizante substitui o poder humano de fazer história pelo mercado. Com a reificação, por sua vez, a história é cancelada, porque parece que o mercado sempre existiu e sempre existirá. Agimos como se o futuro não existisse e como se o passado não tivesse acontecido. A temporalidade se limita apenas ao presente. Para mais informações sobre reificação e fetichismo cf. NETTO, 1981 NETTO, José Paulo. Capitalismo e reificação. São Paulo: Ciências Humanas, 1981. .
  • 40
    Atenção para não confundir “ponto de partida” com algo a partir do qual se deduz a realidade. No materialismo dialético, o método não é o critério de verdade.

Referências bibliográficas

  • ANDRADE, Mariana. Trabalho e totalidade social: qual é o momento predominante da reprodução social? Anuário Lukács 2014 São Paulo: Instituto Lukács, 2014, p. 175/204.
  • ______. Ontologia, dever e valor em Lukács Maceió: Coletivo Veredas, 2016.
  • CHASIN, José. Superação do liberalismo. Maceió, 1988. Transcrição de aulas. Disponível em: <https://www.afoiceeomartelo.com.br>. Acesso em 12/11/2016.
    » https://www.afoiceeomartelo.com.br
  • LESSA, Sergio. Lukács e a Ontologia. Uma introdução. Revista Outubro, n. 5, São Paulo: Xamã, 2001.
  • ________. Trabalho e proletariado no capitalismo contemporâneo . 2a ed., São Paulo: Cortez, 2011.
  • _______. O revolucionário e o estudo. Por que não estudamos? Maceió: Instituto Lukács, 2014.
  • ______. Para compreender a ontologia de Lukács 4 ed., Maceió: Instituto Lukács, 2015a.
  • ______. Alienação e estranhamento. In: MARX, Karl. Cadernos de Paris. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 São Paulo: Expressão Popular, 2015b, p. 449/492.
  • LUKÁCS, György. Ontologia dell'essere sociale II Tradudor: Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981.
  • ______. Marx e o problema da decadência ideológica. In: Marxismo e teoria da literatura 2a ed., São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 51/104.
  • ________. Para uma Ontologia do Ser Social I São Paulo: Boitempo, 2012.
  • MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 2 a ed., São Paulo: Nova Cultural, 1985. 1 v. em 5.
  • MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista São Paulo: Boitempo, 2005.
  • ______. A ideologia alemã São Paulo: Expressão Popular, 2009.
  • NETTO, José Paulo. Capitalismo e reificação São Paulo: Ciências Humanas, 1981.
  • TONET, Ivo. Método científico Uma abordagem ontológica. Maceió: Instituto Lukács, 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
  • Data do Fascículo
    Set 2018

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2017
  • Aceito
    18 Jul 2017
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com