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Questão agrária e América Latina: breves aportes para um debate urgente

Agrarian question and Latin America: brief contributions to an urgent debate

Resumo

Este artigo apresenta alguns aportes iniciais sobre o (re)pensar a centralidade da questão agrária nas histórias e lutas da América Latina passado e presente, a partir do referencial marxiano e marxista. Serão trabalhados três momentos, a saber: 1) Abya Yala x América Latina; 2) América Latina e Estado capitalista dependente; 3) América Latina e as diversas fases da ideologia do desenvolvimento. O objetivo principal é reforçar como a questão agrária sempre esteve no centro da função social que cumpre América Latina e Caribe na dinâmica geral de produção e reprodução do capital, mesmo em tempos de discussões contemporâneas sobre os problemas gerais das paisagens periféricas do século XXI. A pergunta principal do artigo é: se América Latina é uma construção territorial demarcada pela invasão colonial no século XVI, qual a função da questão agrária a partir das lógicas inerentes à dita dinâmica mercantil, ao longo de mais de cinco séculos?

Palavras-chaves:
América Latina e Caribe; Dependência; Questão agrária

Abstract

This article presents some initial contributions on (re) thinking the centrality of the agrarian question in the histories and struggles of Latin America past and present, from a Marxian and Marxist referential. Three moments will be worked out, namely: 1) Abya Yala x Latin America; 2) Latin America and dependent capitalist state; 3) Latin America and the various phases of the ideology of development. The main objective is to reinforce how the agrarian question has always been at the heart of the social function of Latin America and the Caribbean in the general dynamics of capital production and reproduction, even in times of contemporary discussions about the general problems of the peripheral landscapes of the 21st century. The main question of this text is: If Latin America is a territorial construction demarcated by the colonial invasion in century XVI, what is the function of the agrarian question from the logics inherent in this mercantile dynamics for more than five centuries?

Keywords:
Latin America and the Caribbean; Dependency; Agrarian question

Introdução

Na produção social de sua existência, os homens estabelecem determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado estágio evolutivo de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade a base real sobre a qual se alça um edifício jurídico e político, e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material determina o processo social, político e intelectual da vida em geral. Não é a consciência dos homens que determina seu ser, é sua existência social o que determina sua consciência. Em um estágio determinado de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações existentes ou [...] com as relações de produção dentro das quais estavam se movendo até o momento. Ao considerar esta classe de inversões, sempre é imprescindível distinguir entre a inversão material das condições econômicas de produção, fielmente comprováveis ao ponto de vista das ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas e filosóficas, em suma, ideológicas, dentro das quais os homens cobram consciência deste conflito e o solucionam. (MARX MARX, Karl.Contribuição à crítica da economia política ,SP: expressão popular, 2003., Contribuição à crítica da economia política, 2003, p. 5)

A compreensão que os povos originários do nosso continente tinham de território e produção de vida, dista muito da concepção mercantil referente à lógica societária capitalista. Enquanto no primeiro grupo a centralidade estava na conformação de um tipo de (cons)ciência centrada na relação sol-lua-terra-pessoas, no segundo, sob a tirania do tempo da máquina, sobressaem todas as demais formas de compreensão sobre vida, relações sociais, história.

É da conformação do que havia no continente como processo histórico e milenar de produção de vida que se fundou o violento mecanismo de invasão colonial cujo significado segue presente em nossos tempos. A questão agrária 1 1 Partimos de uma definição de questão agrária centrada nas análises de Kautsky (1974) , Bartra (2006) e Silva (1980) . Nesses autores a questão agrária é entendida como relações sociais de produção demarcadas por diferentes concepções de terra, território e vida. Tem a ver portanto com como se produz alimentos, que tipo de relação social a fundamenta e qual forma-conteúdo do processo de trabalho e de produção. Cabe reforçar que se a questão agrária não pode ser vinculada somente ao capitalismo dado que terra e trabalho não são próprios somente deste modo de produção, é neste processo violento de transformação da terra e da força de trabalhos em mercadoria que a questão agrária ganha uma tônica hegemonizada na figura da propriedade privada sobre a vida ao longo dos últimos duzentos anos. , entendida a partir da função que cumpre a então denominada pela política de guerra da invasão América Latina, cumpre uma relação dialógica entre passado-presente dos sujeitos no território. Por um lado, tem no passado pré-colombiano 2 2 Para um debate sobre diversos modos de produção e de contestação à ordem invasora ver: PORTILLA, M.L. LEÓN-PORTILLA, Miguel. A Visão dos Vencidos. A tragédia da conquista narrada pelos astecas. Porto Alegre/RS: 1987. Ver também, CARDOSO, Ciro Flamarion S.; BRIGNOLl, Héctor Pérez. História econômica da América Latina. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984. narrativas históricas hoje difíceis de serem acessadas e compreendidas - tamanha a complexa gama de destruições envolvidas -, mas ainda presentes a partir da existência das raízes maias, incas, astecas, quéchuas, mapuches, guaranis, tupinambás, no nosso presente. Por outro lado, mas associado diretamente ao primeiro, expõe o processo contínuo de drenagem de recursos naturais e minerais 3 3 Ver,Bruckman (2011) e CECEÑA (2018) . de dentro para fora e a necessidade de manutenção, no continente, de uma (des)ordem no plano da existência humana a partir da condução de um trabalho que antes escravo, tornou-se livre sem as garantias formais da ideia de liberdade projetada como ideologia sem concreção pelo processo de internacionalização da concepção mercantil-capitalista.

A questão agrária 4 4 Ver capítulo dois: TRASPADINI, R. Imperialismo, dependência e questão agrária na América Latina: a trajetória do MST entre novas-velhas encruzilhadas, UFMG: 2016. demarca a centralidade da história entendida como disputas, contradições, complexas relações sociais de demarcação sobre o que se entende por vida, terra, ser social e sociabilidade para cada um dos grupos que, ante a guerra, exercem suas distintas formas de poder ao longo da história. A partir do caráter histórico material, a questão agrária demarca as relações sociais de poder-contrapoder e a conformação das regras político-jurídicas-morais a partir da perspectiva dominante sobre o exercício concreto do poder sobre todos. Explicitada a partir de uma condicionalidade histórica, a relação entre os seres sociais, os demais seres vivos e a natureza, a questão agrária ganha uma dimensão que não começa no capitalismo mas ganha neste novas formas de um conteúdo centrado na propriedade privada da terra. E portanto da condicionalidade da liberdade desconectada à posse, uso, possibilidades de sobrevivência para além da compra-venda.

Delimitar o caráter histórico da questão agrária para além da era do capital, significa colocar em evidência como cada sociedade define seu modo de produzir vida a partir dos tipos de relações sociais estabelecidos e dos diferentes processos de estágio e compreensão da técnica e da tecnologia. Ou seja, a terra para muitos povos, ontem e hoje, não é entendida - como desenhou ao longo dos últimos quinhentos anos as ideias dominantes hegemônicas com uma ideia de desenvolvimento concebida na Europa e tomada na América Latina - como meio de produção, instrumento de produção, reserva de valor, guerra de domínios cada vez mais privados. A terra, elementos substantivo de produção e reprodução social, também era/é entendida como espaço comum, de bem viver. A terra concebida como território comum e cheio de vidas independente da ação humana sobre ela. Processo de cosmovisão que, no espaço-tempo, permitia que os sujeitos formassem suas linguagens, suas regras, suas dimensões políticas, a partir de outra concepção de espaço-tempo.

Mas bastou ganhar a sangrenta guerra e denominar a partir das concepções vitoriosas o território – América Latina – e os sujeitos – bárbaros – para que a diversidade de compreensão sobre o significado terra, fosse restringido à direito, propriedade, instrumento de poucos indivíduos sobre muitas vidas. Assim, a compreensão enraizada em uma ontologia ser-solar, é violenta e cruelmente substituída por uma concepção de indivíduo-terra, mercantis 5 5 Ver, Orlando Fals Borda: Una sociología sentipensante para América Latina, 2009. .

A questão agrária nos revela o fundamento das disputas, das guerras e das históricas formas-conteúdos de ocupação territorial pelos sujeitos que geram vida, e muita morte, ao longo da história. Dar centralidade à questão agrária é demarcar o momento na história em que a concepção originária foi, através de múltiplas guerras por diversos territórios, suplantada, massacrada, aniquilada pela concepção mercantil em transição na Europa 6 6 Ver, BARTRA, Armando. El capital en su laberinto De la renta de la tierra a la renta de la vida, 2006. .

Em outras palavras, pautar a questão agrária a partir da América Latina significa três coisas: 1. Reconhecer o desconhecimento histórico sobre o que havia antes e que foi soterrado, destruído, saqueado, violentado pela condição de invasão colonial do século XVI; 2. Explicitar as histórias de resistências presentes ao longo dos últimos quinhentos anos que nos remetem a um passado ainda vivo na concepção de território, vida e sociabilidade dos povos originários e demais grupos que, também saqueados, violentados, violados, foram trazidos para o continente em condições (des)humanas ou de um tipo de humanidade questionável em seus princípios basilares. Foi assim com os povos originários da África e com os trabalhadores expulsos e jogados em uma condição de miséria e criminalização como os pobres da Europa; 3. Entender a centralidade da terra para a acumulação capitalista, dado que se transformou na forma-conteúdo dominante mundial a partir do século XIX.

Nesse sentido, a pergunta principal deste texto é a seguinte: Se América Latina é uma construção territorial demarcada pela invasão colonial no século XVI, qual a função da questão agrária a partir das lógicas inerentes à dita dinâmica mercantil ao longo de cinco séculos?

1. Questão agrária: Abya Yala 7 7 Abya Yala é uma expressão oriunda do povo Kuna, presente na região norte da Colômbia e tem como significado terra madura. Para uma reflexão sobre o termo seu contexto e uso ver: http://www.iela.ufsc.br/povos-origin%C3%A1rios/abya-yala Mas o mais importante é que, centrado na autodeterminação dos diversos povos e suas identidades apresenta-se como um contraponto a concepção territorial de América. versus América Latina

Marx, em O Capital (2013) 8 8 MARX, Karl (2013). , após apresentar os elementos substantivos de dinâmica de produção da mercadoria na sociedade capitalista, revela, nos capítulos XXI, XIV e XXV, a relação indissociável entre acumulação primitiva-colonização-acumulação de capital. E explicita, portanto, ainda no livro 1 em que está tratando do tema da produção de valor, mostra a relação indissociável entre terra-trabalho-violações do direito à vida, a partir da premissa da lógica da produção material de riqueza capitalista. Nesse sentido, nesses capítulos encontramos um processo explicativo do marco em que Pachamama (mãe terra) na significação dos incas, tekohá (modo de ser) 9 9 Sobre o tema da região guarani no cone sul, vale muito a pena uma análise do mapa guarani produzido em 2016 disponível em: http://guarani.map.as/#!/ Neste mapa se explicitam as aldeias, terras e sítios indígenas guaranis. Destacamos também a importância do documento de estudo disponível em: http://campanhaguarani.org/guaranicontinental/downloads/caderno-guarani-portugues-baixa.pdf na concepção guarani e abya yala na denominação dos kuna são substituídos, a ferro e a fogo, por uma violenta construção social como América Latina. O que quer dizer que, o que era um território diverso na produção de vida, transformou-se em território privado de alguns grupos em guerras de domínios políticos territoriais.

Abya Yala e suas diferentes concepções de território, vida, sociabilidade, não descoberta por acaso, mas pela intencionalidade de disputas comerciais do ocidente com o oriente, portanto, descoberta-invadida-destruída em sua alteridade, pelas guerras comerciais, tornou-se América Latina por um ato de violência e guerra. E como tal, deixou de ser muita diversidade para transformar-se em mercadoria propriedade fundiária de alguém. A acumulação primitiva de capital, definida por Marx (2013) MARX, Karl. O capital. Livro 1. O processo de produção de capital. SP: Boitempo, 2013. , como a estrutura, base fundante, do processo de acumulação capitalista, narrava portanto a função social que América Latina teria na produção ditada de fora, para consolidar, dentro, um poder até então inexiste nas condições que se deram 10 10 Dussel, em Filosofia da libertação (1977), nos traz excelentes análises sobre a morte da alteridade a partir do processo de invasão colonial. O mesmo vale para Mariátegui, em sete ensaios de interpretação da realidade peruana (2008). : propriedade privada de reis, trabalhos escravos e/ou livres para extração de mercadorias valiosas na guerra produzida do lado de lá do Atlântico. E a colonização, demarca o princípio da crítica da economia política da produção capitalista de riqueza, baseada na acumulação originária de capital.

É nesta condução política do poder de fora para dentro protagonizado pelos proprietários de terras e de dinheiro europeus em guerra no continente, e reproduzindo-a na região com autoridades próprias – pachamama, abya yala, entre outras -, que nos deparamos com uma inflexão na questão agrária: se antes, poderia ser entendida historicamente como algo inerente às diversas concepções de poder entre diversos povos e suas cosmovisões, após a invasão colonial, torna-se a referência concreta na história de um território fecundo de extração de recursos minerais e naturais e de (super)exploração da força de trabalho (escrava-livre-assalariada) existente no continente ou para o mesmo enviada. A questão agrária, no processo de invasão colonial, demarca assim o processo histórico de saqueio, roubo, pilhagem, violências estruturais, torturas, genocídios, etnocídios, em nome da era da acumulação de capital.

O passado colonial da América Latina 11 11 Uma das interpretações marxistas mais interessantes sobre o processo colonial encontra-se em Jacob Gorender (1980) a partir da concepção do modo de produção escravista. , ao mesmo tempo em que abre elementos para a compreensão da função que cumprimos na dinâmica geral de produção-reprodução capitalista em gestação na Europa, nos exige refletir sobre as histórias destruídas possíveis de demarcar outros horizontes sobre o sentido da terra, dos sujeitos e sua relação com ela e entre si. Assim, o período colonial narra o momento histórico em que a questão agrária deixa de ser centralidade para os povos originários e passa a ser essência produtiva dos proprietários privados presentes nos povos invasores.

A terra que, na era das culturas originárias, compreende uma diversidade de modos de produzir vida, passou a ser padronizada em uma concepção geopolítica de demarcação territorial: América Latina. A partir da colonização, a questão agrária passou a ser elemento substantivo da sociabilidade do capital. Mas não sem lutas, sem resistências, sem gritos. No entanto, quanto mais fortes estas expressões, mais cruéis os mecanismos de opressão material-simbólica: torturas, escravidões, estupros, assassinatos, domesticações, evangelizações, entre outras importantes dinâmicas de produção de morte, nominadas de vida, pelos detentores da pólvora.

Vale destacar, que ao definirmos a questão agrária como um processo presente em diversos modos de produção, reforçamos com isto que a terra, a partir da centralidade que tem na dinâmica de produção de vida cotidiana dos sujeitos, se relaciona a diversas expressões de materialização do poder no território: seja comunal, sejam mercantil, ou outra natureza. Situação esta, que nos exige cautela para não se criar uma leitura idealista e romantizada sobre ditos processos, à luz da crítica às mazelas do período colonial em diante. Ser diferente, não implica em também não ter suas próprias dimensões de poder. Incas, maias, astecas, mapuches, guaranis, kunas, tupis, entre outros, eram povos que dominavam conhecimento, produziam cultura, e demarcavam concepções de mundo, portanto, havia nele uma questão agrária.

No entanto, a partir da colonização, a diversidade ganhou a forma de mercadoria padrão, e a terra deixou de ser a expressão dessa diversidade para tornar-se também um recurso nas mãos dos donos do capital. O que também aconteceu com os diversos sujeitos sociais, humanos, colonizados e transformados em recursos humanos de alguém.

A ideologia dominante mercantil 12 12 O venezuelano Ludovico Silva (2017), em mais valia ideológica, tece importantes aportes ao tema. , atrelada à racionalidade de conformação de uma ciência baseada no poder de uns sobre outros e sobre territórios, implementa na conformação da modernidade e do moderno estado de direito, uma nova fase e dimensão da questão agrária: os que terão terra versus os sem terra. Os primeiros, serão os responsáveis por fazer dinheiro virar mais dinheiro, ou seja, valor que se valoriza; enquanto os segundos serão os que, na condição de condenados da terra (ou da ausência criminosa dela) serão forçados a trabalhar em diversos regimes de trabalho para produzir a mercadoria.

Os produtores históricos de valor de uso a partir da produção compartilhada, foram, sob múltiplas formas de violência, transformados em trabalhadores “livres”, em alguns casos, mas não necessariamente assalariados 13 13 Martins (1986) , além de escravos em muitos outros, produtores de valores de trocas para os donos da terra, também donos de seus corpos. A invasão colonial consolida, pois, a partir da produção do modo de produção escravista, em diversas partes da concebida América Latina, a real propriedade privada da terra, sem a necessidade imediata de formalizar dita condição na forma do Estado de direito 14 14 Ver Galeano (1986) . .

A questão agrária aberta pela invasão colonial será pautada pela tríade monocultivo-latifúndio-trabalho escravo. A tríade da violência estrutural do capital europeu sobre o território – Abya Yala - de diferentes grupos étnicos.

Na invasão colonial vão se assentar as bases de consolidação da terra como propriedade privada e dos/das sem terras como potencial futuro de exército industrial de reservas à disposição dos donos do capital no território, responsáveis pela extração de metais, minerais, e bens naturais associados ao roubo da produção de vida dos sujeitos sob condições terríveis de manipulação de novas ideias como “Novo Mundo”. Esta fase, que vai em ampla parte do que se entende por América Latina (diversa e plural), de 1500 a 1800, pode ser entendida, assim, como um primeiro grande ciclo produção originária do poder do capital, sob muitas expressões de resistências, lutas, disputas, tanto no que tange à terra, como sobre a concepção sobre a ideia hegemônica de direito à mesma.

A colonização, ao longo de mais de trezentos anos de saqueio, pilhagem, extrativismos, espoliações, expulsões, significou a conformação da questão agrária nos termos que hoje conseguimos compreender: grandes proprietários de terras (igrejas e representantes monarcas europeus no continente); pequenos proprietários de terras; diversos seres sociais que atuavam nos territórios sem terras demarcadas, ou demarcadas pela luta como os casos de diversos quilombos existentes na América Latina Caribenha, com presença das violências cometidas contra diversos povos africanos. América Latina e Caribe e África são fundidos em um mesmo território a partir das mutilações culturais impetradas sobre os povos.

A questão agrária consolidada no período colonial expõe assim, As veias abertas, e através delas, o caráter contínuo da acumulação primitiva inerente ao histórico concreto da acumulação de capital. Esse período consolida a forma inicial daquilo que se viverá nas formas históricas de conflitos por terras no continente. A partir deste então, estão abertos os caminhos para a implementação jurídico-política do saqueio a partir da construção da Nação.

2. América Latina e Caribenha e a conformação do Estado capitalista dependente

No século XIX serão pautadas as consolidações político-econômicas formais do que até então era real: a posse, o uso, o direito à terra para alguns, frente a expulsão da terra de muitos, ou sua manutenção na mesma sob o controle violento do capital em suas diversas expressões. Com as independências 15 15 Marini (2005). Em dialética da dependência, Ruy Mauro Marini, a partir dos estudos de Marx e Lênin, nos dá uma das mais vigorosas interpretações marxistas sobre nossa função concreta de dependência frente a fase imperialista do capitalismo. Ver também, Bambirra (2013) , e o recente livro de Mathias Luce (2018) . , cada um a seu tempo e no ritmo das lutas de cada lugar, os donos do capital, começam a imprimir o ritmo da consolidação do moderno Estado de direito no continente, sob o abrigo definitivo da forma de expressar o poder das economias capitalista mais avançadas.

O Estado capitalista dependente 16 16 Cueva (1990) tece um ótimo panorama sobre os países no século XIX, as lutas e guerras oriundas das independências, além de situar o debate sobre a constituição dos Estados nacionais. responde à nova fase de desenvolvimento do capitalismo, avizinhando-se à fase imperialista clássica. Neste período que vai do final do século XIX até a segunda guerra mundial, mudam as relações internacionais configuradas a partir do comércio internacional. Ampliam-se as escalas de produção, as extrações de sobretrabalho e, principalmente a conformação político-ideológica sobre economias mais avançadas e economias retardatárias. Todos estes acontecimentos internacionais advindos das diversas fases da revolução industrial.

As lutas pelas independências formais, expressam assim uma nova etapa do capitalismo sob a égide da intensificação da composição orgânica do capital, em que, nas economias ditas avançadas o capital constante (trabalho morto: máquinas, equipamentos, matérias-primas) destaca-se frente ao capital variável (trabalho vivo, força de trabalho empregada), enquanto na América Latina, o capital variável sobressai frente ao constante. E quanto mais se amplia a produção industrial na Europa e nos Estados Unidos, maiores os dilemas relativos à questão agrária, seu conflitos e as interposições político-jurídicas contra os povos.

Nesta fase de independência formal, dependência capitalista real, a questão agrária, explicitada nas lutas sociais ocorridas no continente, ganha a expressão viva de luta pelo direito à terra e ao trabalho vinculado à mesma. Uma expressão viva dessa luta, e da consolidação de um Estado burguês que a agudiza, foi a Revolução Mexicana de 1910 17 17 Lowy (2009) produziu uma linda obra com imagens e textos sobre as revoluções que merece destaque. . Expressão concreta dos conflitos vinculados entre dois grupos: os que possuíam terra, e direitos e os sem terras, sem direitos. Entre estes últimos ainda que houvessem grupos com pequenas parcelas de terras, isto não lhes dava o direito de definições sobre suas dinâmicas de vida, dada a lógica formal de produção para o mercado internacional.

A revolução mexicana e a vitória camponesa-indígena advinda dela, explicitou para o mundo as diversas dimensões e expressões de revoluções. Antes da Revolução de Outubro, o continente latino-caribenho expressava ao mundo, que os herdeiros da concepção e práxis dos povos originários resistiam em viver, após séculos de expulsão, espoliação, etno-genocidios, processos alternativos.

Nesse período curto de cem anos, ocorreram muitas formas de resistência no território ao mesmo tempo em que se erguerão novas regras do jogo formais que imprimiram um ritmo severo sobre o dever ser e a forma de lidar com todos aqueles e aquelas que atuassem fora das regras. O cativeiro da terra, em toda América Latina, consolidou uma nova fase para além da acumulação originária do capital. Cumpria a América Latina neste período, produzir mais valor em escala mundial.

A questão agrária tornou-se a expressão latente da ideia de conformação de Nação, Estado Nacional 18 18 Ver Hobsbawm, Nações e nacionalismo (1990). , geopolítica territorial de desenvolvimento dos países. Nasciam assim com força as identidades nacionais e junto com elas seus verdadeiros produtores pátrios: os donos de terras, os donos de comércios, os donos do Estado. A lei de terras, no caso do Brasil, de 1850, é uma importante expressão desse novo sentido. A questão agrária a partir daí torna-se um caso de polícia. E os sem terras um caso de prisão. A partir das concepções nacionais, os modos de produção indígenas, quilombolas e de diversas expressões migrantes do sistema de colonato, foram sendo na dialética da ideologia dominante, invisibilizados pela cultura da Pátria e/ou visibilazados na construção de estereótipos como bárbaros, selvagens, perigosos. Materiaza-se assim a capacidade da burguesia agrária latino-americana e caribenha disseminar suas ideias dominantes, como classe dominante que era.

Através da questão agrária no período das (in)dependências é possível traçar-se um retrato histórico dos que serão forjados, na história dominante, como os “atrasados”, “ignorantes”, “bárbaros”. É a fase de político-jurídica de todos os pré-conceitos materializados na invasão colonial. Índias-índios, negras-negros, camponeses e camponesas, além de pobres, tornar-se-ão, à força da ideologia dominante - e dos meios de seminação de suas ideias - a imagem do atraso para os veiculadores das verdades capitalistas desse tempo. Esse retrato cheio de deformações e interferências humanas postas para conformar uma ideologia dominante, contribuirão na estrutura de Pátrias abertamente desiguais e combinadas, a partir das regiões das quais os sujeitos são oriundos, suas cores, culturas, sabores e dissabores. Nascia assim formalmente uma sociedade política-jurídica sob a âncora da economia política clássica mercantil.

A construção das Nações e dos nacionalismos na América Latina e o Caribe, terão como primeira referência histórica os grandes proprietários de terras. Serão eles os que, na parceria direta com o capital financeiro internacional, se constituirão como os representantes da ideia de “progresso” e desenvolvimento a ser utilizada como referência, padrão. Enquanto o capital industrial se propagava de forma intensiva na Europa, aqui, o capital agrário, comercial, acelerava sua forma-conteúdo de expressar a mesma dinâmica a partir de suas próprias funções. Ante isto, quanto mais terras, formais, em nome dos representantes do progresso e mais criminalização daqueles que freavam a nova ordem, tanto mais fortes na ode do desenvolvimento.

Foi assim que, de meados do século XIX até a década de 1930 se desenharam novas dimensões da questão agrária na América Latina e o Caribe, sob o poder dos Estados Unidos: as teorias do desenvolvimento e da modernidade começam a se apresentar na forma de crítica à escravidão, crítica ao manejo externo sobre o interno, e defesa das expressões nacionais. Defesa esta que, mesmo quando reivindicava o nacional, não ousava em geral mexer no papel que cabia a cada uma das classes sociais (proprietários x não proprietários dos meios de produção) nessa concepção identitária nacional: os e as filhos/filhas da elite e suas expressões sobre os excluídos; os próprios sujeitos excluídos e suas expressões.

A questão agrária no período das (in)dependências da América Latina e o Caribe, demarca a nova fase de acumulação de capital, centrada no trabalho livre, em parte assalariado, no continente, sem com isso deixa de tratar com centralidade a acumulação primitiva na forma de apropriação de pedaços de terras cada vez maiores pelos donos do capital. A terra, mercadoria, os trabalhadores e trabalhadoras sem terras como futuros operários, consolidavam a nova matriz de desenvolvimento que despontaria em meio à crise de 1929.

3. América Latina e as diversas fases da ideologia do desenvolvimento (do nacional ao neodesenvolvimentismo clássico/contemporâneo)

A crise de 1929, expressa-se na história econômica capitalista, como a primeira grande crise com desdobramentos internacionais, tamanha a proporção de trabalhadores e territórios envolvidos. Demarca também a condição estruturante do capitalismo de expor seus fundamentos essenciais, segundo Marx, leis tendenciais de movimento do capital. Entre elas a tendência a queda da taxa de lucro e as forças contrarrestantes para não permitir que ela ocorra de forma contínua.

Esse caráter estrutural quando demarcado por um alto estágio de desenvolvimento técnico científico como o do pós 1ª e 2ª guerras mundiais, expõe mais do que uma correção de rotas, a intensificação das mesmas rumo a desequilíbrios ainda maiores. Este é o caso do uso abusivo dos recursos minerais e naturais, da jornada de trabalho dos trabalhadores e, não menos importante, da intensificação das mazelas sociais expressas na ampliação da concentração populacional nas grandes cidades, fruto dos êxodos rurais contínuos em nome da ampliação das cercas do latifúndio.

As teorias do desenvolvimento 19 19 Sobre o debate do desenvolvimento e questão agrária a sugestão de leitura é: STÉDILE (2005) . E para uma recuperação sobre a CEPAL, ver BIELSCHOWSKY (2000) . , críticas às teorias clássicas de Smith e Ricardo, mas envoltas na dinâmica da ordem capitalista, reforçavam a importância das reformas para a melhoria de suas condições de (sub)desenvolvimento. Na ode ao progresso, os cepalinos davam ênfase à modernização do campo– mecanização do campo – com vistas ao aumento da produtividade média do trabalho e com isso das melhorias das condições de vida dos povos, segundo os grandes mentores Prebish (Argentina) e Furtado (Brasil).

Neste período a questão agrária seria sinônimo de modernização. Substituição da matriz centrada na mais valia absoluta, pela da mais valia relativa. Mecanização do campo, diversificação produtiva mas em grande escala e, profissionalização da pequena agricultura, tornavam-se assim os novos motes de velhas práticas conservadas intactas como o tamanho das grandes propriedades, a desigualdade político-jurídica entre pequenos e grandes e, não menos importante, a primazia dada ao desenvolvimento urbano-industrial, frente ao modelo de integração para o desenvolvimento.

Esse período, que vai de 1930 a 1970 se caracteriza por uma modernização conservadora pautada em uma questão agrária que, em meio a urbanização, não destruiu a lógica da concentração de terras, de poder de seus donos sobre os sem terras do campo e da cidade, e não menos importante, da consolidação regional de grandes nomes nacionais em todo o continente. A oligarquia agrária nacional das economias latino-americanas, parceira da oligarquia financeira internacional produziu mudanças para manter a velha ordem atrelada à dinâmica da terra para poucos e trabalho, ou falta dele, para muitos e muitas, no nascente continente urbano-industrial. A partir do pacto do desenvolvimento nacional e regional, América Latina, intensificava sua matriz extrativista-espoliador e suscitava, via questão agrária, embates ainda mais fortes advindos do campo e da cidade em ebulição social. Nesta era, o destaque das Revoluções boliviana (1952) e cubana (1956), além de todos os golpes político-militares presentes no continente, sob o manto sagrado do capital estadunidense.

O exemplo pedagógico da revolução mexicana e o mundo dividido por uma guerra fria com lados bem definidos, expunha as concepções em disputa no continente sobre o nacional, o democrático e o popular. Além disso, reforçavam a concepção mecanicista do desenvolvimento dos partidos comunistas atrelada à concepção de avanço das forças produtivas para a transição ao comunismo.

De 1970 a 1989 a situação internacional se agudizou com a intensificação da concorrência intercapitalista entre grandes capitais financeiros europeus, japoneses e estadunidenses. A partir da guerra pelo petróleo e pelas jazidas minerais matérias-primas das guerras químicas, se intensificavam os mecanismos de imperialismo e dependência. A dependência, forma particular de ser do capitalismo latino-americano após as independências formais, a partir dessa nova era de automatização e produção financeira especulativa, ao dar evidência para as megacidades, foi transformando o campo em algo menor, e as lutas sociais advindas deste espaço como necessárias de serem contidas em nome do progresso. O campo, que viveu um esvaziamento contínuo de pessoas, dada a migração forçada pelo êxodo rural para o êxodo urbano, passou a ser o espaço de propagação de uma modernidade centrada em alta tecnologia, ao menos na propaganda.

A questão agrária que no real concreto segue sendo a força centrípeta das lutas de classes no continente, passou a ser intencionalmente periférica com o fim de gerar uma nova fase ideológica em que sem terras, povos originários, indígenas e quilombolas fossem vistos pelo imaginário coletivo como sinônimo de passado, perigo, atraso. Criminalizar as lutas e judicializar os sujeitos não são elementos que começam no século XXI. Se intensificam mas demarcam a história da constituição das nações, de poucos, para ser internalizadas por muitos, e condicionadas de forma prisional aos contestatário da ordem.

A destruição do muro de Berlim teve um impacto direto sobre América Latina e a luta pela volta à democracia ganha ares de uma nova fase histórica demarcada pelo neodesenvolvimentismo contemporâneo. Este sinônimo de políticas neoliberais reforçadas pela luta pela democracia da maioria. Nesse terreno de lutas democráticas, começam a ser mescladas as bandeiras de direita e de esquerda e desse hibridismo perigoso nascem as confusões políticas das defesas de diversos grupos até então progressistas.

O neodesenvolvimentismo 20 20 Sobre esse tema, encontram-se debates interessantes nas seguintes obras: Gonçalves (2012) ; Traspadini (2016) ; Paula (2005) . é a expressão das ideologias e políticas de desenvolvimento do capitalismo dependente. Nascidas na década de 1940, terão um novo processo consolidado no marco da internacionalização das economias nacionais, a partir da concepção de um mundo global.

Nessa seara a questão agrária apresenta-se no continente como pauta das minorias que, em realidade, são maiorias: indígenas, quilombolas, sem terras do campo e da cidade. E a questão agrária passa a ser uma pauta de movimentos sociais organizados na luta pela terra e pelo direito vinculado à ela. Mas já não representa mais o universo das maiorias. Maiorias estas residentes em condições e paisagens periféricas das grandes cidades, mas sem o reconhecimento e o pertencimento de se sentirem sem terras.

O neodesenvolvimentismo-neoliberalismo gerou, a partir da centralidade econômica de países como Brasil, Argentina e México, uma nova geografia política para América Latina. As megacidades e o resto do continente. Enquanto o resto do continente abarca mais de 70% do território, é nos 30% restantes que se demarcam os grandes conflitos territoriais de nossos tempo, a partir da concentração-centralização da riqueza e da pobreza irradiada nos territórios.

A questão agrária no século XXI está entre três trincheiras: a) a trincheira do agronegócio, faceta mais avançada da apropriação de terras pelos capitais financeiros nacionais e internacionais; b) a trincheira dos Estados Nacionais que, na maior parte do continente trabalham a serviço do capital estadunidense e responde às ordens de suas forças armadas; c) a trincheira religiosa-ideológica que refaz de tempos em tempos as ideias dominantes das classes dominantes de cada território. Essas trincheiras demarcam o teor da luta de classes de nosso tempo e a possibilidade, ou não, de ruptura da ordem vigente dada a intensificação dos conflitos sociais presentes na dificuldade de reprodução social da vida de ampla maioria dos trabalhadores sem terras do campo e da cidade no continente.

Breves considerações

A questão agrária segue com centralidade na América latina e Caribe dada a função que cumpre o continente na dinâmica geral de produção de riqueza capitalista. As fases nas quais a questão agrária esteve vinculada na forma de disputa – invasão colonial; independências e diversas fases do desenvolvimentismo) não narram processos desconectados. Todo o contrário. São fases que estão tão mescladas uma na outra que, a depender do tempo-espaço-território a partir do qual fazemos a análise, a América Latina e o Caribe e os territórios de cada um dos países que a compõem, explicitam tempos presentes do passado ainda vivo.

A questão agrária na atualidade se entendida a partir da grotesca e equivocada separação campo-cidade; urbano-industrial x rural; gera distorções no entendimento de sua função e das lutas que devem ser travadas em termos de processos e projetos políticos. Em tempos de ofensiva neoliberal, dar centralidade a questão agrária significa rever o papel da tabela periódica nas disputas cotidianas.

São os recursos minerais e naturais e o humano transformado em disputa pelo capitalismo que demarcam o teor da luta de classes nos territórios. Na dinâmica dos extrativismos e da superexploração da força de trabalho, devem ser retomadas as dinâmicas gerais de acumulação de capital a partir de uma forma-conteúdo de produção ancorada nos diversos tipos de renda da terra nas mãos dos especuladores. Renda absoluta por conta de terras paradas negociadas nas bolsas de valores; renda diferencial de tipo I devido ao estratégico posicionamento do continente na dinâmica do comércio internacional e a abundância de recursos do território; e renda diferencial do tipo II por conta do uso intensivo em tecnologia que, mesmo mudando a relação dentro da composição orgânica do capital (capital constante e capital variável) o faz a partir de seus próprios interesses e ciclos econômicos.

América Latina e Caribe conformam um território fértil para as ofensivas do capital ao longo de seus processo de bonança e crise, seja pelo que está descoberto e invadido, seja pelo que ainda está por vir na dinâmica das grandes descobertas técnico científicas. Uma vez projetada para ser colônia e, posteriormente, independentizar-se sob o controle do capital financeiro oligopolista, América Latina se apresenta, no passado e no presente como também como a história das revanches na totalidade das lutas. Silenciadas, caladas, oprimidas, mas presentes ao longo das tiranias do capital sobre o território e seus sujeitos.

A questão agrária precisa ser repensada na totalidade do movimento do capital. Sua força não se restringe aos debates do campo e sim ao movimento geral do capital. Seja no campo ou na cidade é a terra especulada, transformada em mercadoria e concentrada em poucas mãos que define a dinâmica de grande parte da população expulsa e concentrada nas cidades a partir do que se concebe como paisagens periféricas. Através dessas paisagens recuperamos à luz dos sem direito, a história concreta dos que, herdeiros da terra tornaram-se condenados.

A questão agrária deve ser entendida como o sistema nervoso central do modo de produção capitalista. Sem a condição estruturante de dependência a partir dos recursos naturais e volume de força de trabalho jovem existente, o capitalismo não produz acumulação de capital. E sem o sentido de propriedade privada alavanca da riqueza capitalista não se produzem os mecanismos de exploração e opressão que há mais de quinhentos anos – se contados do período colonial adiante - fazem parte da história e cotidianidade dos povos da América Latina e Caribe.

Estamos em um ano reflexivo sobre os duzentos anos da morte de Marx. À luz das revoluções, lutas e contestações contínuas à lógica do capital, seus ensinamentos vivos e relacionados à nossa particularidade histórica nos exigem revisar, em tempos modernos, os outros tempos com o intuito de construir um outro tipo de sociedade sem exploradores e explorados.

Na América Latina, tributar Marx significa resgatar Martí, Villa, Zapata, Mella, Mariátegui, Marini, Che, Craydt, Dos Santos, Bambirra e tantos outros e outras intelectuais militantes que interpretaram a realidade à luz do marxismo sem com isto deixar de entender os fenômenos particulares oriundos de nossos próprios dilemas sociais. Os duzentos anos de Marx vida e obra nos vinculam aos nossos mais de quinhentos anos de invasão colonial que precisam ser revertidos em outros projetos/mundos possíveis e necessários. Frente a isso, a história de Abya Yala tem muito a nos ensinar.

  • 1
    Partimos de uma definição de questão agrária centrada nas análises de Kautsky (1974) KAUTSKY, Karl.La cuestión agrária. México: Siglo XXI editores, 1974. , Bartra (2006) ________. El capital en su labirinto. De la renta de la tierra a la renta de la vida. México: UAM Xochimilco, 2006. e Silva (1980) SILVA, José Grazeano. O que é questão agrária. SP: Ed brasiliense, coleção primeiros passos, 1980. . Nesses autores a questão agrária é entendida como relações sociais de produção demarcadas por diferentes concepções de terra, território e vida. Tem a ver portanto com como se produz alimentos, que tipo de relação social a fundamenta e qual forma-conteúdo do processo de trabalho e de produção. Cabe reforçar que se a questão agrária não pode ser vinculada somente ao capitalismo dado que terra e trabalho não são próprios somente deste modo de produção, é neste processo violento de transformação da terra e da força de trabalhos em mercadoria que a questão agrária ganha uma tônica hegemonizada na figura da propriedade privada sobre a vida ao longo dos últimos duzentos anos.
  • 2
    Para um debate sobre diversos modos de produção e de contestação à ordem invasora ver: PORTILLA PORTILLA, M.L. LEÓN-PORTILLA, Miguel. A Visão dos Vencidos. A tragédia da conquista narrada pelos astecas. Porto Alegre/RS: 1987 , M.L. LEÓN-PORTILLA, Miguel. A Visão dos Vencidos. A tragédia da conquista narrada pelos astecas. Porto Alegre/RS: 1987. Ver também, CARDOSO CARDOSO, Ciro Flamarion. Agricultura, Escravidão e Capitalismo. PETROPÓLIS: Vozes, 1979. , Ciro Flamarion S.; BRIGNOLl, Héctor Pérez. História econômica da América Latina. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
  • 3
    Ver,Bruckman (2011) BRUKMANN, Monica. Recursos Naturales y la geopolítica de la integración sudemaricana. Buenos Aires: Rebelion, 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 de janeiro de 2016. e CECEÑA (2018) CECEÑA, Ana Esther. Observatório latinoamericano de geopolítica. http://www.geopolitica.ws/author/ana-esther-cecena/. Acesso em 6 de agosto de 2018.
    http://www.geopolitica.ws/author/ana-es...
    .
  • 4
    Ver capítulo dois: TRASPADINI TRASPADINI, Roberta. Imperialismo, dependência e questão agrária. A trajetória do MST entre novas velhas encruzilhadas. Tese de doutorado apresentada ao programa de pós graduação em Educação, UFMG, 2016. , R. Imperialismo, dependência e questão agrária na América Latina: a trajetória do MST entre novas-velhas encruzilhadas, UFMG: 2016.
  • 5
    Ver, Orlando Fals Borda: Una sociología sentipensante para América Latina, 2009.
  • 6
    Ver, BARTRA ________. El capital en su labirinto. De la renta de la tierra a la renta de la vida. México: UAM Xochimilco, 2006. , Armando. El capital en su laberinto De la renta de la tierra a la renta de la vida, 2006.
  • 7
    Abya ABYA YALA: Texto disponível em: http://www.iela.ufsc.br/povos-origin%C3%A1rios/abya-yala Acesso em 7 de agosto de 2018.
    http://www.iela.ufsc.br/povos-origin%C3...
    Yala é uma expressão oriunda do povo Kuna, presente na região norte da Colômbia e tem como significado terra madura. Para uma reflexão sobre o termo seu contexto e uso ver: http://www.iela.ufsc.br/povos-origin%C3%A1rios/abya-yala Mas o mais importante é que, centrado na autodeterminação dos diversos povos e suas identidades apresenta-se como um contraponto a concepção territorial de América.
  • 8
    MARX, Karl (2013).
  • 9
    Sobre o tema da região guarani no cone sul, vale muito a pena uma análise do mapa guarani produzido em 2016 disponível em: http://guarani.map.as/#!/ Neste mapa se explicitam as aldeias, terras e sítios indígenas guaranis MAPA GUARANI CONTINENTAL. Campo Grande, 2016. Disponível em: http://campanhaguarani.org/guaranicontinental/downloads/caderno-guarani-portugues-baixa.pdf Acesso em 9 de agosto de 2018.
    http://campanhaguarani.org/guaraniconti...
    . Destacamos também a importância do documento de estudo disponível em: http://campanhaguarani.org/guaranicontinental/downloads/caderno-guarani-portugues-baixa.pdf
  • 10
    Dussel, em Filosofia da libertação (1977), nos traz excelentes análises sobre a morte da alteridade a partir do processo de invasão colonial. O mesmo vale para Mariátegui MARIÁTEGUI, Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. SP: expressão popular, 2008. , em sete ensaios de interpretação da realidade peruana (2008).
  • 11
    Uma das interpretações marxistas mais interessantes sobre o processo colonial encontra-se em Jacob Gorender (1980) GORENDER, Jacob. Escravismo colonial. SP: Atica, 1980. a partir da concepção do modo de produção escravista.
  • 12
    O venezuelano Ludovico Silva (2017) SIVLA, Ludovico. A mais valia ideológica. SC: IELA_Insular, 2017. , em mais valia ideológica, tece importantes aportes ao tema.
  • 13
    Martins (1986) MARTINS, José de Souza.O Cativeiro da Terra. 3. ed. São Paulo: Ciências Humanas, 1986.
  • 14
    Ver Galeano (1986) GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. .
  • 15
    Marini (2005). Em dialética da dependência, Ruy Mauro Marini, a partir dos estudos de Marx e Lênin, nos dá uma das mais vigorosas interpretações marxistas sobre nossa função concreta de dependência frente a fase imperialista do capitalismo. Ver também, Bambirra (2013) BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Florianópolis: Editora Insular. 2013. , e o recente livro de Mathias Luce (2018) LUCE, Mathias. Teoria marxista da dependência. Problemas e categorias uma visão histórica. SP: Expressão popular, 2018. .
  • 16
    Cueva (1990) tece um ótimo panorama sobre os países no século XIX, as lutas e guerras oriundas das independências, além de situar o debate sobre a constituição dos Estados nacionais.
  • 17
    Lowy (2009) LOWY, Michel. Revoluções. SP: Boitempo, 2009. produziu uma linda obra com imagens e textos sobre as revoluções que merece destaque.
  • 18
    Ver Hobsbawm, Nações e nacionalismo (1990).
  • 19
    Sobre o debate do desenvolvimento e questão agrária a sugestão de leitura é: STÉDILE (2005) STÉDILE, João Pedro. Questão Agrária no Brasil. O debate tradicional de 1500 a 1960. Vol. 1. SP: Expressão Popular, 2005. . E para uma recuperação sobre a CEPAL, ver BIELSCHOWSKY (2000) BIELSCHOWSKY, Ricardo.(Org.). Cinquenta Anos de pensamento da CEPAL. Rio de Janeiro: Record/CEPAL/Corecon, 2000. .
  • 20
    Sobre esse tema, encontram-se debates interessantes nas seguintes obras: Gonçalves (2012) GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o nacional-desenvolvimentismo às avessas. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, No. 31, p. 5-30, fevereiro 2012. ; Traspadini (2016) TRASPADINI, Roberta. Imperialismo, dependência e questão agrária. A trajetória do MST entre novas velhas encruzilhadas. Tese de doutorado apresentada ao programa de pós graduação em Educação, UFMG, 2016. ; Paula (2005) PAULA, João Antônio de (Org.). Adeus ao desenvolvimento: a opção do governo Lula. São Paulo: editora autêntica, 2005. .

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
  • Data do Fascículo
    Set 2018

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2018
  • Aceito
    15 Ago 2018
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