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“Um Paraíso de Homicidas, Estupradores, Corruptos”: sexualidade e gênero no julgamento do Habeas Corpus de Lula no STF

“A paradise of murderers, rapists, corrupts”: sexuality and gender on the judgement of Lula's Habeas Corpus by the Federal Supreme Court

Resumo

Neste ensaio, analiso diferentes formas como relações de gênero e de sexualidade operam na tessitura narrativa do julgamento do Habeas Corpus 152752/PR, impetrado pelos advogados de Luiz Inácio Lula da Silva junto ao Supremo Tribunal Federal. Para tanto, examino os votos dos três ministros do Supremo que aludiram às figuras do “estupro” e/ou do “estuprador” durante as fundamentações de suas decisões. Com isso, persigo duas tematizações principais: a) a de que a mobilização de convenções morais de gênero e de sexualidade participa profundamente das narrativas judiciais e, em especial, da figuração do “algoz”, de modo que o “estuprador” acaba funcionando como exterior constitutivo do “réu”; e b) a de que relações de gênero e de sexualidade atuam na produção de sentidos, lógicas e processos de Estado, mas sobretudo, no que aqui interessa mais diretamente, em suas dimensões jurídicas.

Palavras-chave:
Sexualidade; Gênero; Supremo Tribunal Federal; Lula

Abstract

On this essay, I analyze different ways in which gender and sexuality relations works on the narrative contexture of the judgement of the Habeas Corpus 152752/PR, impetrated by Luiz Inácio Lula da Silva's lawyers to the Brazilian Federal Supreme Court. Therefore, I examine the three Federal Supreme Court ministers' votes in which the figures of “rape” and/or “rapists” were alluded on the basis of their decisions. Thereby I pursue two main problems: a) the mobilization of moral conventions about gender and sexuality deeply participates in the juridical narratives and, specially, in the figuration of the “executioner”, in a way that the “rapist” works as an external element which constitutes the “defendant”; and b) gender and sexuality relations act on the production of Estate's meanings, logics and processes, but, overall, on what interests here the most, act on the juridical dimensions.

Keywords:
Sexuality; Gender; Brazilian Federal Supreme Court; Lula

“Agora, este não é o país que eu gostaria de deixar para os meus filhos: um paraíso de homicidas, estupradores, corruptos. Eu me recuso a participar, sem reagir, de um sistema de justiça que não funciona. E quando funciona é pra prender menino pobre, geralmente primário e de bons antecedentes”.

Ministro Luís Roberto Barroso, HC 152752/PR, STF

Na tarde de 04 de abril de 2018, o Habeas Corpus 152752, do Paraná, que tinha como paciente o ex-presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva, foi julgado pelos nove ministros e pelas duas ministras integrantes do Supremo Tribunal Federal 1 1 Agradeço enormemente a Ana Lia Almeida e Ricardo Prestes Pazello pelo convite ao dossiê que possibilitou este ensaio. Agradeço igualmente a Mariana Azevedo, pela revisão e pelos comentários ao texto, a Rafael Efrem, pela tradução do abstract, e, enfim, agradeço a Irandhir Santos, pela conversa desta noite sobre Luiz Inácio e por todos os meus textos serem seus. 2 2 Os ministros e ministras do STF eram (e, hoje, ainda são): Cármen Lúcia, Dias Toffóli, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux, Rosa Weber, Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes. Deles, cinco votaram pela concessão do Habeas Corpus de Lula, seis votaram pela denegação. Luiz Roberto Barroso, Luiz Fux, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Alexandre de Moaraes e Edson Fachin foram os ministros que denegaram a liberdade, sendo que Fachin foi o relator do Habeas Corpus. . Lula havia sido condenado pelo juiz da 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba, em 12 de julho de 2017, a uma pena de nove anos e seis meses de reclusão, em razão, segundo o referido juiz, do cometimento dos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro decorrentes do recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS envolvendo um apartamento tríplex no Guarujá, no estado de São Paulo, e contratos com a empresa pública Petrobrás. Em 24 de janeiro de 2018, a condenação do ex-presidente foi confirmada pelos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre. Na decisão sobre o recurso de apelação, os desembargadores do TRF 4 ainda aumentaram a pena anteriormente atribuída, elevando-a a doze anos e um mês. Diante da decisão dos desembargadores, os advogados de Luís Inácio impetraram um Habeas Corpus preventivo junto ao Superior Tribunal de Justiça, com o objetivo de impedir uma futura decretação de prisão contra Lula.

Em 06 de março, contudo, os ministros da quinta turma do STJ negaram, por unanimidade, o pedido apresentado no HC, sob a justificativa central de que, de acordo com a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal, é possível executar a prisão de um réu após a existência de decisão condenatória em segunda instância – ou seja, o Tribunal Regional Federal – mesmo antes do trânsito em julgado da condenação – ou seja, antes de se esgotarem todas as possibilidades de defesa –, sem que essa prisão signifique uma violação do “princípio da presunção de inocência”, presente no inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal, aquele segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Naquela tarde de 04 de abril, portanto, os ministros do Supremo se reuniram para decidir acerca de um novo Habeas Corpus preventivo, que recebeu o citado número 152752, impetrado pelos advogados de Luiz Inácio Lula da Silva contra a decisão anterior dos ministros do STJ. No cerne das discussões a serem travadas pelos ministros do STF, reapareciam a questão da presunção de inocência e, consequentemente, a discussão acerca da possibilidade ou não da execução da prisão provisória antes do trânsito em julgado da condenação. No limite, decidir-se-ia a respeito da prisão da principal liderança de esquerda da história do Brasil, o sindicalista metalúrgico que se tornou presidente da república, aquele que em julho de 2018, mesmo preso há mais de três meses, reunia, conforme pesquisa do Vox Populi, 41% das intenções de votos contra os 12% do segundo possível candidato com maiores intenções, os 5% do terceiro e os 4% do quarto e do quinto possíveis candidatos 3 3 De acordo com o mesmo instituto Vox Populi, Lula somava, em maio de 2018, 39% das intenções de voto. Nem mesmo sua permanência na prisão diminuiu seu potencial eleitoral. Os dados da pesquisa do Vox Populi podem ser conferidos aqui: https://www.cartacapital.com.br/politica/cut-vox-populi-lula-tem-41-e-venceria-no-primeiro-turno .

Eu, que naquela tarde assistia à transmissão da sessão e me juntava ao ansioso público do que seria um dos julgamentos – talvez o julgamento – exercidos por membros da cúpula do Poder Judiciário a gerar os mais contundentes efeitos sobre as disputas políticas nacionais e nossas “(in)disponibilidades democráticas” 4 4 Em outra oportunidade, por ocasião dos debates sobre a viabilidade de realização de uma “constituinte exclusiva” para o nosso sistema político, Ana Lia Almeida e eu nos valemos da expressão “(in)disponibilidade democrática” para, em diálogo sobretudo com as contribuições de Florestan Fernandes (2009; 2006), caracterizar a relação de determinados setores sociais e sujeitos brasileiros com a experiencia democrática. Ver: Efrem Filho; Almeida, 2014 . , intriguei-me especialmente, no entanto, com a presença de referências explícitas a imagens de violências de gênero e sexual nos votos de algum ministros. Por exemplo, a anunciação pública do desejo íntimo do ministro Luís Roberto Barroso de não deixar, aos seus filhos, um país que seja “um paraíso de homicidas, estupradores, corruptos” sucedeu a apresentação de alguns casos exemplares do que seriam, para o ministro Barroso, “impactos negativos” de uma interpretação literal do mencionado “princípio da presunção de inocência” e que adiaria enorme e prejudicialmente a aplicação da pena de prisão, provocando a sensação de impunidade e impedindo a efetivação do que chamou de um “sentimento mínimo de justiça da sociedade”.

Entre tais casos exemplares estariam o caso de um ex-senador condenado pelo desvio de 169 milhões de reais por conta de fatos ocorridos em 1992 e que só teve a decisão de prisão cumprida em 2016, demora esta que faria “as pessoas acreditarem que o crime compensa”; o caso de um famoso jogador de futebol condenado pelo homicídio culposo de três pessoas por as haver atropelado acidentalmente, enquanto dirigia alcoolizado, e que teve a prescrição de sua pena declarada, em 2011, por um ministro do próprio Supremo, não sendo preso, portanto; o caso da missionária norte-americana Dorothy Stang, morta em 2005, aos 73 anos, a mando de um fazendeiro da região de Anapu, no Pará, e cujo júri somente se realizou em 2013. O primeiro de tais casos apresentados pelo ministro Barroso, contudo, foi o “caso célebre” de um jornalista que assassinou a namorada.

Houve o caso célebre do jornalista que matou a namorada com um tiro pelas costas por motivo fútil, foi julgado e condenado pelo Tribunal do Júri e continuava livre 10 anos depois do julgamento. O pai da moça, o pai da vítima, devastado pela dor, deu a seguinte entrevista: “Um dia eu liguei pra casa dele” - do assassino - “e disse: você vai morrer igual a um frango, eu vou cortar o seu pescoço”. E prossegue o pai da moça, da vítima: “Eu sonhava em fazer justiça por mim mesmo. Era só pagar cinco mil reais a um pistoleiro. Quem tirou essa ideia da minha cabeça foram os advogados” (Trecho do voto do ministro Luís Roberto Barroso junto ao HC 152752 / PR).

De acordo com o ministro Barroso, esse caso de homicídio – que poderia ser lido como uma “violência de gênero” ou, atualmente, um “feminicídio” 5 5 O “feminicídio” consiste numa modalidade de homicídio qualificado, prevista desde a Lei 13.104 de 2015, no segundo parágrafo A do artigo 121 do Código Penal. Tratar-se-ia de homicídio cometido por “razões da condição de sexo feminino” em duas hipóteses: a) a de violência doméstica e familiar; e b) a de menosprezo e discriminação à condição de mulher. Se os fatos houvessem ocorrido recentemente, após a vigência da lei de 2015, o caso de que fala o ministro Barroso se referiria à primeira hipótese. O jornalista em questão, Antônio Marcos Pimenta Neves, então com 63 anos de idade e diretor de redação do jornal O Estado de São Paulo, assassinou, em 22 de agosto de 2000, a também jornalista Sandra Gomide, que o havia rejeitado. O jornalista foi preso treze dias após o cometimento do homicídio, mas passou apenas sete meses na prisão. Solto a partir de um Habeas Corpus, Pimenta Neves só seria preso definitivamente em 2011, após os ministros do STF negarem seu último recurso. Para uma discussão acerca da categoria “feminicídio” e uma problematização de seu emprego “homogeneizante”, ver o ótimo e já clássico trabalho de Wânia Pasinato (2011) . Para uma análise, a partir da criminologia feminista, da criminalização do feminicídio no Brasil, ver Campos, 2015 . Para um interessante debate acerca das compreensões de operadores jurídicos sobre “homicídios afetivo-conjugais”, ver: Zamboni; Oliveira, 2016 . – junta-se aos demais casos exemplares elencados para justificar a necessidade da manutenção da atual jurisprudência da Corte e, assim, da compreensão de que a presunção da inocência não impede a prisão antes do trânsito em julgado da condenação. Com isso, evitar-se-iam a impunidade, ou sua sensação, e o que Barroso denomina como regresso “ao tempo da vingança privada”. Afinal, sob seu argumento, “um sistema penal que não funciona com o mínimo de efetividade desperta os instintos de se realizar justiça com as próprias mãos”. Desse modo, para que esses instintos não emerjam, para que aquele “sentimento mínimo de justiça da sociedade” seja preservado, seria preciso manter a jurisprudência e garantir, com ela, as céleres prisões de homens que assassinam suas namoradas, fazendeiros que ordenam a morte de missionárias religiosas, ex-senadores desviadores de 169 milhões de reais, jogadores de futebol que dirigem alcoolizados e matam três pessoas e, claro, seria preciso garantir a célere prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, condenado pela acusação de haver recebido um apartamento tríplex no Guarujá. Com essas prisões, o ministro Luís Roberto Barroso estaria, na esteira de suas próprias palavras, participando de “um sistema de justiça que funciona” e, assim, talvez, poderia deixar para os seus filhos um país livre de homicidas, estupradores e corruptos. Um país livre de Lula, enfim.

Os acionamentos das citadas imagens de violências de gênero e sexual são o que permite a aparição de “estupradores” e, ao menos em parte, de “homicidas” ao lado de “corruptos” no voto do ministro Barroso. Não é difícil perceber, esses acionamentos oportunizam que “corruptos” – um ex-senador acusado do desvio de 169 milhões; ou Luiz Inácio... – sejam postos numa relação de equivalência de gravidade com “estupradores” e “homicidas”. Daí a premência da necessidade de prisão para apaziguar a alegada sensação de impunidade e inibir “os instintos de se realizar justiça com as próprias mãos”. Entretanto, as presenças dessas imagens de violências de gênero e sexual nos votos dos ministros do Supremo, mas notadamente as menções expressas às figuras do “estuprador” e do “estupro” tanto no voto de Luís Roberto Barroso quanto, como indicarei adiante, nos votos do ministro Luiz Fux e da ministra Rosa Weber, representam mais do que voltas retóricas que justifiquem tomadas de posição hermenêuticas e formas de convencimento. Tais presenças, acredito, recendem a modos como relações de gênero e de sexualidade operam como linguagem de outros conflitos sociais, como já percebeu Isadora Lins França (2017 FRANÇA, Isadora Lins. “Refugiados LGBTI”: direitos e narrativas entrecruzando gênero, sexualidade e violência. Cadernos Pagu , n. 50. Campinas, 2017, e17506. ; 2012 FRANÇA, Isadora Lins. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetividades na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2012. ), o que ilumina os motivos daquela minha intriga e, sendo assim, deste texto.

Neste ensaio, procuro analisar diferentes formas como relações de gênero e de sexualidade operam na tessitura narrativa do julgamento do Habeas Corpus 152752 / PR, impetrado pelos advogados de Luiz Inácio Lula da Silva junto ao Supremo Tribunal Federal, contra decisão anterior dos ministros da quinta turma do Superior Tribunal de Justiça. Para tanto, dedico-me à análise dos votos dos três ministros do Supremo que aludiram às figuras do “estupro” e/ou do “estuprador” durante as fundamentações de suas decisões 6 6 Por alguma razão, os textos dos votos presentes no arquivo do acórdão disponível no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal não correspondem necessariamente ao que foi realmente dito pelos ministros na sessão do plenário de 04 de abril de 2018. Por isso, para o desenvolvimento da análise, precisei tanto ler o acórdão em questão quanto assistir novamente às manifestações dos votos, agora através de canais do Youtube. Os textos dos votos do ministro Luís Roberto Barroso e da ministra Rosa Weber são praticamente iguais ao que foi apresentado durante a sessão. O mesmo, todavia, não acontece com o texto do voto do ministro Luiz Fux, bastante mais formal do que sua exposição em plenário. As citações aos votos do ministro Luís Roberto Barroso e da ministra Rosa Weber foram retiradas do acórdão e, assim, dos textos escritos. Já as citações ao voto do ministro Luiz Fux advêm do que ele disse durante a sessão, por ser lá, e não no acórdão, que aparece a referência à figura do estuprador. . Com isso, persigo duas tematizações principais: a) a de que a mobilização de convenções morais de gênero e de sexualidade participa profundamente das narrativas judiciais e, em especial, da figuração do “algoz”, de modo que o “estuprador” acaba informando a figura do “réu”; e b) a de que relações de gênero e de sexualidade atuam na produção de sentidos, lógicas e processos de Estado, como Adriana Vianna e Laura Lowenkron (2017) VIANNA, Adriana; LOWENKRON, Laura. O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens. Cadernos Pagu, n. 51. Campinas, 2017, e175101. têm destacado, mas sobretudo, no que aqui interessa mais diretamente, em suas dimensões jurídicas.

Este ensaio parte, ainda, de uma intenção política intimamente articulada a dois campos teóricos de discussão. A intenção é a de fazer notar que gênero e sexualidade não correspondem a “questões específicas” que podem ser opostas a “questões centrais”. Ao contrário, gênero e sexualidade participam da compleição de conflitos sociais, inclusive daqueles a respeito dos limites e das possibilidades da experiencia democrática e, logo, da “luta de classes”. Não à toa, optei por analisar, neste texto, não os autos de uma ação judicial mais claramente atinente a direitos sexuais e reprodutivos ou às pautas dos movimentos feministas e LGBT 7 7 Tentei realizar este outro objetivo, o de analisar as relações de poder que atravessam decisões pertinentes a direitos sexuais e reprodutivos e às pautas do Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, num artigo anterior sobre a decisão do Supremo a respeito das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, as “uniões homoafetivas”. Ver: Efrem Filho, 2014a . , mas o Habeas Corpus impetrado pelos advogados do ex-presidente Lula junto ao Supremo Tribunal Federal: ali, como se verá, num dos instantes judiciais mais dramáticos das recentes disputas políticas do país, entre uma referência ou outra a estupradores e homicidas, gênero e sexualidade preenchiam o contexto narrativo e suas tensões, desde os obsessivos rituais da Corte – os quais Anne McClintock (1993) McCLINTOCK, Anne. Maid to order: commercial S/M and gender power. In: GIBSON, Pamela Church; GIBSON, Roma (Ed.). Dirty looks: women, pornography, Power. London, British Film Institute, 1993, pp. 87 – 116. designaria como “fetichistas” – até os esforços argumentativos de constituição da presunção de uma “inocência” que jamais poderia ser tão inocente assim...

Por sua vez, essa intenção política é devedora do acúmulo teórico alcançado pelo campo dos estudos de gênero e sexualidade, sobremaneira das análises empreendidas por intelectuais feministas, como Anne McClintock (2010) McCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Trad. Plínio Dentzien. Campinas, Editora da Unicamp, 2010. e Avtar Brah (2006) BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, n. 26. Campinas, 2006, pp. 329 – 376. , a respeito dos modos como, nas experiências em que os sujeitos se fazem, relações de classe, racialização, gênero, sexualidade, geração etc. não sobrevivem em domínios apartados, mas, pelo contrário, fazem-se umas através das outras, conflituosa e contraditoriamente 8 8 Em outros momentos, em estreito diálogo com as contribuições de Anne McClintock (2010) , Avtar Brah (2006) , Adriana Piscitelli (2008) , Isadora Lins França (2012) e Regina Facchini (2009 ; 2008), designei esse processo como “reciprocidade constitutiva das relações sociais”. Ver: Efrem Filho, 2017a ; Efrem Filho, 2017c . Dediquei, ainda, maior atenção analítica aos argumentos de McClintock – e a suas proximidades e seus afastamentos em relação ao marxismo – por ocasião de uma resenha do seu imprescindível “Couro Imperial”, livro pulicado, no Brasil, pela Editora da Unicamp. Ver: Efrem Filho, 2013 . . Disso decorre que se a compreensão de conflitos e dinâmicas de classe requer o dimensionamento dos modos através dos quais gênero e sexualidade produzem experiências de classe; a compreensão de conflitos e performances de gênero e sexualidade igualmente exige a avaliação das formas como, por exemplo, diferentes experiências e conflitos de classe produzem gênero e sexualidade. Estas conclusões, no entanto, resultam também de minhas aproximações com setores do campo marxista, sobretudo da história social, em que a “classe” não é tomada como um dado apriorístico, mas tida como um “fazer” aberto à “experiência”, se levadas em conta as contribuições de E. P. Thompson (1981 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981. ; 1987 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa I: a árvore da liberdade. Trad. Denise Bottmann. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. ; 1997 THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores. Trad. Denise Bottman. 2a ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997. ), ou tida como sujeito das disputas de hegemonia, se retemos os conceitos oferecidos por Antônio Gramsci (1968 GRAMSCI, Antônio. Maquiavel: a política e o Estado Moderno. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. ; 1966 GRAMSCI, Antônio. Concepção dialética da história . Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966. ). Nas análises exercidas pelos setores em questão, seja do campo dos estudos de gênero e sexualidade, seja do marxismo, importam mais os sujeitos e os conflitos em que se implicam e constituem do que as estruturas sociais que os constrangem.

Luís Roberto Barroso não foi o único dos ministros do Supremo Tribunal Federal a citar, na fundamentação de seu voto, o caso do jornalista que assassinou a namorada. Gilmar Mendes o fez, com o intuito de apontar a existência de “situações excepcionais”, “hipóteses de crimes graves” em que se deveria iniciar o cumprimento da pena a partir do julgamento em segundo grau, porque nesses casos haveria o objetivo de garantir a ordem pública ou a aplicação da lei penal 9 9 As garantias da ordem pública e da aplicação da lei penal são alguns dos requisitos para a decretação da prisão preventiva previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal. Para que se aplique tal prisão, segundo o texto desse artigo, é necessário que haja “prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”. Justamente em razão do princípio da presunção de inocência, a prisão preventiva é de regra compreendida conceitualmente como uma medida excepcional. Claro, como se sabe, “conceitualmente”. . Porém, de acordo com o ministro Gilmar Mendes, para além dessas situações excepcionais, “não se pode conceber um processo justo onde se aplique a alguém, pelo mero fato de ser réu, medida gravosa e de caráter irremediável, como é a privação de sua liberdade antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Foi, portanto, seguindo essa argumentação que Mendes votou pela concessão do Habeas Corpus e, assim, pela liberdade de Lula. Entretanto, Luiz Fux, o terceiro ministro a mencionar, em seu voto, o “caso célebre” do jornalista, não apenas confirmou a posição de Luís Roberto Barroso, a de que casos assim provocam sensações de impunidade e, nos termos do próprio Fux, “níveis alarmantes de insatisfação perante os destinatários de nossas decisões”, como trouxe à sessão mais um exemplo extremo de “justiça pelas próprias mãos” diante do que seria o descrédito popular com o Judiciário.

Tal exemplo concerne ao caso de um estuprador. Segundo Fux, “certa feita”, ao pesquisar sobre o iluminismo e a pena capital para um trabalho acadêmico, ele encontrou referências a um livro escrito pelo Padre Emílio Silva de Castro 10 10 O Padre Emílio Silva de Castro foi defensor da possibilidade da pena de morte. Seu livro “Pena de morte já” foi publicado em 1986, no Rio de Janeiro, pela então Revista Continente. . Nesse livro, contava-se que, “numa comarca longínqua de São Paulo”, um homem estuprou diversas moças. Diante da aparente ausência de uma resposta “de Estado” àquelas violências, contudo, as mães das vítimas resolveram elas mesmas perseguir aquele que seria o estuprador. “Prenderam-no, amarraram-no numa árvore e bateram nele até a morte”. No entanto, elas não fugiram após o assassinato, não deixaram o local. Permaneceram lá e esperaram a chegada da imprensa. Perante os jornalistas, as mães, nas palavras de Fux, disseram: “nós fizemos isso e faríamos tudo de novo porque não acreditamos na justiça”.

O recurso narrativo ao caso do estuprador de uma “comarca longínqua de São Paulo” se soma, como dito, àquela lista de casos exemplares da premência da necessidade da rápida execução da prisão, antes do trânsito em julgado da condenação. Mas seu caráter mais evidentemente “fabular” – uma história quase heroica, ocorrida num lugar tão, tão distante, contra um vilão incontestável, merecedor de morte – explicita as malhas das narrativas judiciais, de um “fazer jurídico” cruzado, como notou Mariza Corrêa (1983) CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1983. , por metáforas, símbolos e sua utilização. Por isso, o estuprador em questão e o jornalista assassino não se restringem às suas próprias pessoas e aos seus casos concretos, mas condensam – novamente, como em metáforas, parábolas – todos os estupros, “todas as mortes possíveis de acontecer neste mundo para o qual se volta a visão jurídica” ( Corrêa, 1983 CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1983. , p. 24). É assim, por esse movimento narrativo, que o estuprador da história contada pelo ministro Fux se torna os “estupradores” do voto do ministro Luís Roberto Barroso e do título deste texto, ainda que Barroso nunca haja lido o trabalho do Padre Emílio Silva de Castro, ou sequer sabido de sua existência. Na fábula, afinal, as peculiaridades do caso, suas características próprias, importam menos que os ganchos narrativos que desenham, mais ou menos previsivelmente, as personagens e os atos que compõem o drama.

Tal qual “o estuprador” condensa todos os estupradores e “o homicida” condensa todos os homicidas, “o corrupto” – no caso, Lula – condensa todos os corruptos. Não coincidentemente, o caso de corrupção do ex-senador que desviou 169 milhões de reais, cometeu tal crime em 1992 e só foi preso em 2016, adentra a fundamentação do voto de Luís Roberto Barroso junto ao Habeas Corpus 152752 / PR. Se, de fato, o que define a ocorrência ou não do crime de corrupção passiva não é o montante, mas sim a realização do ato de solicitar ou receber “vantagem indevida” 11 11 O crime de corrupção passiva está previsto no artigo 317 do Código Penal Brasileiro e é definido como “solicitar ou receber, para si ou para outros, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. A pena para tal crime pode ser de dois a doze anos de reclusão, além de multa. A pena pode ainda ser aumentada em um terço se tal vantagem significar falta de cumprimento de dever funcional. , não se pode ignorar, porém, que o conjunto de ações que possibilitam a reunião de 169 milhões de reais é consideravelmente diverso do que permite a alguém receber um apartamento tríplex reformado. A despeito dessas assimetrias, todavia, o caso do ex-senador é tomado como emblemático para “as pessoas acreditarem que o crime compensa” ou, por outro lado, para o engendramento da sensação de impunidade que conduziria ao descrédito no Judiciário e ao desejo de “justiça pelas próprias mãos”. É assim que, substituindo o ex-senador por Lula, já que o corrupto condensa todos os corruptos, chega-se à conclusão de que a não prisão de Luiz Inácio também incitaria a crença de que o “crime compensa” ou aquela sensação de impunidade.

Entretanto, além da fabulação de personagens condensadoras – “o homicida”, “o estuprador”, “o corrupto” –, acontece que, no interior do “fazer jurídico”, essas personagens se comunicam umas com as outras, ainda que elas estejam longe de atravessar os mesmos casos ou as mesmas fábulas. A mobilização narrativa de homicidas e estupradores nos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal no HC 152752 / PR é, de certo, sintomática dessa comunicação. O homicida e o estuprador informam o corrupto. E isto não só porque todos eles habitam o mesmo “paraíso” retórico de Luís Roberto Barroso. Como dito páginas atrás, “homicidas, estupradores, corruptos”, desta maneira encadeados, são personagens que se acham dispostos numa relação de equivalência de gravidade, num movimento que favorece a ideia de que “o corrupto” – Lula – precisa ser preso. Mas, mais que isso, mais profundamente, o homicida e o estuprador informam a própria arquitetura narrativa da personagem do “corrupto”. Transmitem a ele a suposição de “violência” que seu “crime” a priori não comporta 12 12 Para uma discussão a respeito das distinções entre as categorias “crime” e “violência”, ver o incontornável trabalho de Debert; Gregori, 2008 . , aproximam-no do inadmissível, colaboram com a sua identificação com um “monstro”, “vilão” ou, no mínimo, com alguém que deve ser controlado (ou eliminado) para a garantia do “bem comum” ou, voltando a citar o ministro Barroso, do “sentimento mínimo de justiça da sociedade”.

Todo esse processo narrativo é composto por relações de gênero e de sexualidade. A própria forma fabular de “ordenação da realidade”, como a designou Mariza Corrêa (1983) CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1983. , nos autos dos processos judiciais e no “fazer jurídico”, é tecida através de esforços e “performances de gênero”, para citar Judith Butler (2010) BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. 3ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010. , que precisam terminar com uma “lição moral”, a qual, não sendo devidamente aprendida, deve acarretar numa “punição”. Reciprocamente, as personagens dessa forma fabular constitutiva dos autos e do “fazer jurídico” precisam mais ou menos corresponder aos enquadramentos e expectativas do que se pode compreender como “vítima” e “algoz”. Este par narrativo dicotômico é forjado por convenções de gênero. Em outras palavras, a vítima deve, ao menos normativamente, espelhar atributos “femininos”, como fragilidade, passividade, docilidade etc. Por sua vez, o “algoz” demanda a sua adequação a atributos “masculinos”, como virilidade, periculosidade, agressividade etc. Ademais, a posicionalidade dicotômica da vítima e do algoz também é marcada por gênero, de modo que a vítima carece de ser extremamente vítima, enquanto o algoz precisa ser extremamente algoz. Vítima e algoz devem ser mantidos em disjunção, afastados um do outro e de embaraços ou ambiguidades que prejudiquem a insurgência narrativa da vitima por excelência, do algoz irretocável. Tais produções narrativas e presunções de “identidade”, “estabilidade”, “linearidade” e “coerência” são também performances de gênero.

Claro, os sujeitos não realizam normas absolutamente, arranjam-se diante ou através delas, e inúmeras disputas são travadas em torno da necessidade de adequação a convenções morais de gênero e de sexualidade. “Morte em família”, o pioneiro trabalho de Mariza Corrêa (1983) CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1983. , referência imprescindível para o que estou aqui argumentando, mas também para gerações de trabalhos de pesquisa dedicados a compreender as correlações entre gênero, sexualidade e violência, já demonstrava como, no tribunal do júri e nos autos de processos judiciais relativos a homicídios afetivo-conjugais, defesa e acusação, vítimas e réus, homens e mulheres – que podiam ser vítimas ou réus 13 13 Corrêa (1983) analisou tanto casos em que homens eram acusados do assassinato de mulheres, que eram suas esposas ou companheiras, quanto casos em que mulheres eram acusadas do assassinato de homens, igualmente seus maridos ou companheiros. Essa versatilidade analítica é parte do que faz de “Morte em família” um texto imprescindível. – esforçavam-se para se aproximar ou afastar o/a adversário(a) de convenções morais de gênero e de sexualidade. Nos interstícios dos processos de Estado, no “fazer jurídico”, há conflito, portanto.

Contudo, essa forma fabular de “ordenação da realidade” nos autos e nesse “fazer jurídico” de que venho tratando, por mais que intensamente disputada, permanece se referendando naquelas convenções morais e normatividades com as quais é preciso, como dito, arranjar-se. É nesse contexto narrativo que, nos votos dos ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux, o jornalista homicida e o estuprador de moças de uma comarca longínqua de São Paulo informam “o corrupto”. Essa informação não está dada, certamente. Ela somente se torna possível em razão dos esforços dos ministros em sua performatização. São eles, afinal, quem escolhe os casos a que se referirão e como construirão as fundamentações de seus votos. Mas ela, a informação, apenas possui inteligibilidade através da existência de uma forma fabular que arquiteta réus por meio de convenções de gênero e de sexualidade. Não fosse a fábula, faria ainda menos sentido a existência de tantas menções a imagens de violências de gênero e sexuais no julgamento de um Habeas Corpus cujo paciente – Lula – foi condenado por conta das convicções de determinado juiz acerca de um apartamento tríplex no Guarujá.

Não me parece mera coincidência o fato de que todos os casos exemplares trazidos à sessão pelo ministro Barroso digam respeito a réus homens: o ex-senador, o jogador de futebol, o fazendeiro, o jornalista. O jornalista assassinou uma mulher, então sua namorada. O fazendeiro também assassinou uma mulher, uma missionária católica. Essas posicionalidades de gênero ratificam o par narrativo dicotômico e participam da construção desses casos como exemplares. Mas de tal forma que, ao menos nos votos dos ministros Barroso e Fux, eles assumem força narrativa suficiente para, como salientado, informar a figura do corrupto. De alguma maneira, porém, eles também participam da criação das condições narrativas de possibilidade para a reivindicação retórica da personagem do estuprador.

É que embora, durante a fundamentação de seu voto, Luís Roberto Barroso fale, com eloquência, num “paraíso de estupradores”, ele não apresenta nenhum caso judicial em que um réu haja sido acusado de estupro. Tampouco expõe um caso sequer em que alguém condenado pelo cometimento do crime de estupro tenha passado anos em liberdade até que, esgotados os recursos e as possibilidades de defesa, com o trânsito em julgado da condenação, foi finalmente preso. Uma ausência parecida se dá no voto do ministro Luiz Fux. Tal qual Barroso, Fux não aponta nenhum caso judicial cujo réu fora acusado do ou condenado pelo cometimento do crime de estupro. Como visto, o ministro Fux trata, no voto que proferiu oralmente durante a sessão do julgamento, apenas do caso – anedótico, poder-se-ia dizer – do estuprador de moças daquela “comarca longínqua de São Paulo” retirado do livro do Padre Emílio Silva de Castro. Sendo assim, desprovidos de lastro em processos judiciais, “estupradores” entram em seus votos como uma fantasmagoria. Não requerem outros elementos para a sua caracterização, como o tempo extenso até a execução da prisão ou qualquer outra causa que justifique alegações de insatisfação popular com o Judiciário ou sensações de impunidade. Bastam-se. São “estupradores” e, por isso, informam “homicidas” e “corruptos”.

A invocação retórica da imagem dos estupradores aciona aquilo que Gayle Rubin (1998) RUBIN, Gayle. Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In: NARDI, Peter. M; SCHNEIDER, Beth. E. (Ed.). Social perspectives in lesbian and gay studies: a reader. New York, Routledge, 1998, pp. 100 – 133. nomeou como “pânicos sexuais”. Dá-se que essa invocação converge, a um só tempo, violência e sexo, prejudicando a realização do “consentimento”, noção esta que, como percebeu Laura Lowenkron (2015) LOWENKRON, Laura. Consentimento e vulnerabilidade: alguns cruzamentos entre o abuso sexual infantil e o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. Cadernos Pagu, n. 45. Campinas, 2015, pp. 225 – 258. , vem ocupando papel central nas definições acerca da legalidade ou da ilegalidade, da legitimidade ou da ilegitimidade dos comportamentos sexuais. Sem consentimento, irrealiza-se a “autonomia da vontade” e a “liberdade individual”. Exprimem-se a “vulnerabilidade” e, portanto, a necessidade de intervenção e regulação externas com vistas à garantia do exercício dos direitos. Assim, a “linguagem dos direitos humanos” e a “linguagem da violência e dos direitos”, como as definiram Sérgio Carrara (2016 CARRARA, Sérgio. A antropologia e o processo de cidadanização da homossexualidade no Brasil. Cadernos Pagu, n. 47. Campinas, 2016, e164717. ; 2015 CARRARA, Sérgio. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, v. 21, n. 02. Rio de Janeiro, 2015, pp. 323 – 345. ) e Laura Lowenkron (2015) LOWENKRON, Laura. Consentimento e vulnerabilidade: alguns cruzamentos entre o abuso sexual infantil e o tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. Cadernos Pagu, n. 45. Campinas, 2015, pp. 225 – 258. respectivamente, passam a ser desempenhadas como regime discursivo de regulação jurídica da sexualidade. Mas não apenas dela. As políticas de defesa da “boa sexualidade” atingem também outros conflitos sociais e processos de Estado. Por exemplo: a definição fabular do “réu” incontestável.

“O estuprador”, a encarnação da ameaça sexual, informa não somente “o homicida” e “o corrupto”, mas a arquitetura narrativa do próprio “réu”. Convergindo violência, sexualidade e gênero, ele extremiza a narrativa de criminalização a ponto de, como dito, dispensar a necessidade de justificativas para, por exemplo, relativizar o “princípio da presunção de inocência”. Sua personagem, afinal, é a antípoda da inocência. Mas sua tessitura extrema, se localizada no interior daquelas reciprocidades constitutivas de que falei anteriormente, aponta ainda para dois importantes marcadores, o racial e o geracional. O primeiro desses mercadores se relaciona ao “mito do estuprador negro”, de que falou Angela Davis (2016) DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo, Boitempo, 2016. . Já o segundo desses marcadores concerne à figura do “pedófilo”, o “monstro contemporâneo” objeto das reflexões de Laura Lowenkron (2012) LOWENKRON, Laura. O monstro contemporâneo: a construção social da pedofilia em múltiplos planos. Tese de doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional / UFRJ, 2012. .

Em linhas gerais, segundo Angela Davis (2016 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo, Boitempo, 2016. [1981]), uma larga literatura norte-americana, parte dela feminista, dedicada à compreensão do fenômeno social dos estupros, adotou a compreensão de que homens negros seriam, por motivos de ordem biológica ou culturais, mais propensos à prática de violência sexual. A adoção dessa compreensão aparentemente derivava dos índices de aprisionamento de homens negros acusados de estupro, bastante maiores que os de homens brancos. Em suas críticas a essa literatura, Davis denunciou a seletividade do sistema punitivo dos Estados Unidos da América, que conduz às prisões expressivamente mais homens negros da classe trabalhadora do que brancos, e indicou a existência de um amplo contingente de estupros não notificados e estupradores anônimos, entre os quais poderiam estar, por exemplo, homens brancos em condição de superioridade hierárquica às vítimas no mundo do trabalho e ali protegidos do alcance do sistema punitivo. Além disso, contudo, Angela Davis situou a emergência do “mito do estuprador negro” no cenário histórico do pós-escravidão e do aumento significativo de linchamentos empreendidos por grupos formados, sobretudo, por homens brancos. Nesse contexto, o “mito” aparece como justificativa para os linchamentos de homens negros, acusados ou não do cometimento de estupros contra mulheres brancas. Tomado de antemão como estuprador, o homem negro seria mais facilmente passível de punição, controle e morte.

Embora, de certo, não se possa falar da reprodução evidente do “mito do estuprador negro” no Brasil, penso que as análises de Davis a respeito de suas conexões com os linchamentos nos Estados Unidos podem sugerir algumas pistas para as análises de nossas experiências de criminalização. Tenho argumentado em trabalhos anteriores ( Efrem Filho, 2017a EFREM FILHO, Roberto. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2017a. ; 2017c EFREM FILHO, Roberto. Os meninos de Rosa: sobre vítimas e algozes, crime e violência. Cadernos Pagu, n. 47. Campinas, 2017c, e175106. ) que o “crime” é inexoravelmente “criminalização” e, portanto, relação social, forjado no interior daquelas mesmas reciprocidades constitutivas, através de experiências de classe, gênero, sexualidade, geração e racialização, por exemplo. Assim, o crime, não raro, é personificado por homens jovens negros, habitantes de regiões periféricas e pertencentes aos setores mais precarizados da classe trabalhadora. Em certos contextos etnográficos ( Efrem Filho, 2017a EFREM FILHO, Roberto. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2017a. ; 2014b EFREM FILHO, Roberto. “Bala”: experiência, classe e criminalização. Revista Direito e Práxis, v. 05, n. 09. Rio de Janeiro, 2014b, pp. 501 – 537. ), esses jovens podem ser designados a partir da categoria “homens solteiros” – “aqueles que dão problema” para a comunidade, o bairro, a ocupação urbana onde vivem “trabalhadores” ... –, categoria esta densamente marcada por gênero e sexualidade, numa diferenciação clara das convenções narrativas sobre “família”. Em outros contextos, como naqueles analisados por Juliana Farias (2015 FARIAS, Juliana. Fuzil, caneta e carimbo: notas sobre burocracia e tecnologias de governo. Confluências: revista interdisciplinar de sociologia e direito, v. 17, n. 03. Niterói, 2015, pp. 75 – 91. ; 2014 FARIAS, Juliana. Governo de mortes: uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro. Tese de doutorado em Sociologia e Antropologia, IFCS/UFRJ, 2014. ), tais jovens são os sujeitos mais disponíveis ao “governo de mortes”, à gestão populacional dos matáveis, aqueles mais prontamente sacrificáveis no transcurso do que Farias (2015) FARIAS, Juliana. Fuzil, caneta e carimbo: notas sobre burocracia e tecnologias de governo. Confluências: revista interdisciplinar de sociologia e direito, v. 17, n. 03. Niterói, 2015, pp. 75 – 91. chamou de “institucionalização da vingança”.

Dessa maneira, ainda que não se possa transpor automaticamente o “mito do estuprador negro” para o Brasil, muito menos para a análise dos autos de um Habeas Corpus impetrado junto ao Supremo, se considerarmos as relações sociais que participam dos nossos processos cotidianos de criminalização, acredito que não seria demais imaginar que a figura do estuprador a informar a arquitetura narrativa do “réu” seja também ela racializada, mas de tal forma que a ameaça sexual preserva, em sua sombra, a ameaça racial 14 14 Para discussões mais aprofundadas sobre como gênero, sexualidade e raça se veem implicados em nossas experiências e, inclusive, em nossa projeção da “nação”, ver: Corrêa, 1996 ; Moutinho, 2004 . . Digo isso sobremaneira porque essa sombra de ameaça racial – também de classe, geracional – vibra numa outra personagem invocada, quase paternalistamente, pelo ministro Luís Roberto Barroso em seu voto: “o menino pobre, geralmente primário, de bons antecedentes”. Este menino é, de acordo com Barroso, o alvo preferencial do sistema de justiça. É, em suas palavras, “o menino da maconha”, aquele que, portando 100 gramas de maconha se tornou “muitíssimo mais fácil de prender (...) do que prender um agente público ou um agente privado que desviou 10, 20, 50 milhões”. Esse “menino” – narrativamente distinto dos filhos do ministro, “os meus filhos” – é a ameaça racial – de classe, geracional – de se fazer “homem solteiro”, um sujeito com quem, convenhamos, não sabemos se o ministro Barroso ainda estaria tão generosamente preocupado...

Enfim, o segundo marcador notável a respeito do extremo narrativo em que se localiza “o estuprador” é, como mencionei, geracional e se emblematiza no “pedófilo”. Nesta persona, a conjugação entre violência e sexualidade se soma à noção de infância, anulando qualquer possibilidade de acepção de “consentimento” e ampliando o impacto da “vulnerabilidade”. Como Laura Lowenkron (2012) LOWENKRON, Laura. O monstro contemporâneo: a construção social da pedofilia em múltiplos planos. Tese de doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional / UFRJ, 2012. vem assinalando, “pedófilos” e “abusadores de crianças” ocupam o limite mais extremo e “monstruoso” dentre os adversários do que seria a “boa sexualidade”, vivenciada como um valor e um direito. A aparição narrativa do “pedófilo” autoriza a ratificação de exercícios de intervenção e controle sobre a sexualidade que, mais uma vez, não necessariamente se dedicam à efetiva proteção de crianças e adolescentes. Por exemplo, de acordo com Lowenkron, a “construção da pedofilia como causa política” (2012, p. 94), em especial através da criação da “CPI da Pedofilia”, viabilizou a vocalização de sujeitos e interesses ligados à Frente Parlamentar Evangélica, à Frente Parlamentar em Defesa da Família e, logo, à oposição às pautas dos chamados direitos sexuais no Congresso Nacional, dentre elas a legalização do aborto e a união civil entre pessoas do mesmo sexo.

A forma fabular do “fazer jurídico”, como disse, favorece que a arquitetura narrativa do réu e, no que concerne mais diretamente ao Habeas Corpus de Lula, a do corrupto sejam informadas pelo “estuprador” que, por sua vez, mantém em sua sombra as marcas da raça e da geração. Essa forma fabular, entretanto, não consiste num destino inexorável. Pelo contrário, encontra-se sob intensa disputa. Tanto o é que, diferente do que acontece nos votos dos ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux, o ministro Gilmar Mendes menciona, em seu voto, como notei antes, o “caso célebre” do jornalista que assassinou a namorada, mas o faz com a intenção de construí-lo como uma “situação excepcional”. Na fundamentação do voto de Mendes, o caso do jornalista concerniria a uma “hipótese de crime grave”, do que se depreende a sua diferenciação dos crimes de que Luiz Inácio Lula da Silva foi acusado. O jornalista deveria haver sido preso, Lula não. Certamente, parte do que confere “gravidade” ao caso do jornalista se relaciona a convenções morais de gênero e de sexualidade e às correlações dessas convenções morais com a definição da figura do réu. No entanto, tais convenções, nas disputas travadas por Mendes, não permitem a equiparação de alguém que matou a namorada com alguém acusado de lavagem de dinheiro e do recebimento de vantagem indevida por conta da aquisição de um tríplex.

Essa forma fabular também é diversamente disputada durante a fundamentação do voto da Ministra Rosa Weber. Curiosamente, apenas no voto dela – não nos de Barroso e Fux – apresenta-se um caso judicial cujo réu foi acusado do cometimento do crime de estupro. Trata-se, em verdade, de um caso de “estupro de vulnerável”, o que poderia inclusive suscitar a aparição narrativa da noção de “pedofilia”. Entretanto, embora a ministra Rosa Weber tenha se referido à ementa desse caso durante a pronúncia de seu voto naquela sessão de 04 de abril de 2018, ela não mencionou, lá, o crime pelo qual o paciente do Habeas Corpus havia sido condenado. Eu apenas descobri essa informação, muito discreta, ao ler o texto do acórdão que consta no sítio eletrônico do STF. Dá-se que embora a ministra Rosa Weber tenha votado pela denegação do Habeas Corpus, ela parece não compartilhar, com Luís Roberto Barroso e Luiz Fux, as mesmas interpretações sobre a relativização do “princípio da presunção da inocência” e a premência de combater a sensação de impunidade e realizar um “sentimento mínimo de justiça da sociedade” por meio da antecipação da prisão, antes do trânsito em julgado da condenação. Sua decisão, contudo, deveu-se a uma necessidade de “coerência”.

Como expliquei no início deste ensaio, o Habeas Corpus impetrado pelos advogados de Luís Inácio Lula da Silva junto ao Supremo Tribunal Federal buscava garantir a liberdade do ex-presidente até o trânsito em julgado da condenação. Para isso, os advogados atacavam, necessariamente, uma decisão anterior tomada pelos ministros do Superior Tribunal de Justiça, definindo-a como um ato coator ilegal ou abusivo. É que antes de ir ao Supremo, percorrendo o caminho normal em casos dessa natureza, os advogados de Lula impetraram um Habeas Corpus junto ao STJ. Lá, no entanto, os ministros argumentaram, nas fundamentações de suas decisões, que o Supremo Tribunal Federal havia, em fevereiro de 2016 e durante o julgamento de um outro Habeas Corpus 15 15 Tratava-se do HC 126292 / SP, cujo relator era o ministro Teori Zavascki. , consolidado jurisprudência segundo a qual a execução da prisão antes do trânsito em julgado da condenação e após decisão condenatória em segunda instância – no caso de Lula, o TRF – seria possível e não comprometeria o princípio constitucional da presunção da inocência. Desse modo, os ministros do STJ argumentaram fundamentalmente que não poderiam impedir a prisão de Luiz Inácio porque estavam comprometidos pela jurisprudência do Supremo.

Ao impetrar o Habeas Corpus junto ao STF, os advogados pretendiam, sendo assim, que os ministros do Supremo revissem a jurisprudência da Corte, ou seja, voltassem a interpretar a Constituição. Por outro lado, a ministra Rosa Weber e outros cinco ministros argumentaram que a concessão do Habeas Corpus de Lula pressupunha o reconhecimento de que a decisão tomada pelos ministros do STJ foi ilegal ou abusiva. Como, por sua vez, a decisão dos ministros do STJ estava submetida à jurisprudência do próprio STF, não haveria de se falar em ilegalidade ou abusividade, tampouco seria aquele o momento de reinterpretar a Constituição. Na fundamentação de sua decisão, a ministra Rosa Weber dissertou sobre a necessidade de garantia da “segurança jurídica”; asseverou a sua compreensão de que “a simples mudança de composição não constitui fator suficiente para legitimar a alteração de jurisprudência”; afirmou que “as instituições do Estado devem proteger os cidadãos de incertezas desnecessárias referentes aos seus direitos”. Mais. A ministra notou que, naquela Corte, as vozes individuais devem ceder espaço em favor de uma “voz institucional, objetiva, desvinculada das diversas interpretações colocadas na mesa para deliberação”.

Em resumo, compartilho da visão de que os juízes, individualmente considerados, de uma Corte Constitucional estão a serviço de um propósito institucional. O incremento da cultura constitucional e da legitimidade da jurisdição constitucional no corpo social e dos demais atores institucionais da democracia deve ser fomentado, precipuamente, por este Supremo Tribunal Federal (Trecho do voto da ministra Rosa Weber junto ao HC 152752 / PR).

Enquanto proferia seu voto, contudo, a ministra Rosa Weber foi interrompida pelo ministro Marco Aurélio. “Vossa Excelência me permite um aparte?”. “Pois não, Ministro Marco Aurélio, com muito gosto”. O ministro tentou argumentar que a composição daquela sessão era a mesma com competência para reinterpretar a Constituição e alterar a jurisprudência. Que não fazia diferença decidir ali, naquele momento, ou depois, quando as Ações Declaratórias de Constitucionalidade, que estavam sob sua relatoria, fossem trazidas ao plenário 16 16 Uma das maiores polêmicas que antecederam o julgamento do HC 152752 / PR no Supremo Tribunal Federal disse respeito às tais duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade sob a relatoria do ministro Marco Aurélio e ao momento em que elas seriam julgadas, se antes ou depois do julgamento do Habeas Corpus de Lula. As ações em questão – as ADC 43 e 44 – abordam o mesmo assunto controverso acerca dos limites do princípio da presunção de inocência. Espera-se que, com nova maioria, a votação dessas ações leve a uma nova mudança na jurisprudência da Corte, a qual passará a impedir a antecipação da prisão antes do trânsito em julgado da condenação. Se houvessem sido votadas antes do HC, possivelmente o resultado da votação do HC seria diferente porque, enfim, a ministra Rosa Weber poderia decidir de acordo com uma “voz institucional”. . A ministra Rosa Weber, porém, não mudou de posição. Ratificou a importância dos precedentes e o seu entendimento a respeito da necessidade de uma “voz da instituição”. Apresentou uma série de decisões anteriores em que se posicionou contra suas próprias interpretações e a favor da jurisprudência da Corte e, enfim, oportunizou que o Habeas Corpus impetrado pelos advogados de Luiz Inácio Lula da Silva fosse negado e, consequentemente, que Lula fosse preso.

Pois bem, acredito que, a despeito dos meus esforços, parte significativa de toda a discussão apresentada nestes últimos parágrafos parecerá mais ou menos difícil de compreensão para leitoras(es) externos ao campo jurídico e a seus jogos burocráticos. Dá-se que por mais que eu me esforce em entender e explicar, os termos e as lógicas característicos do “fazer jurídico” contam constitutivamente com uma “ilegibilidade” que afeta documentos, mas também determinadas práticas de Estado que, por meio do que não se compreende, perfazem formas de controle ( Das; Poole, 2004 DAS, Veena; POOLE, Deborah. Anthropology in the margins of the State. New Mexico, School of American Research, 2004 ). Reconheço, entretanto, que, para além da ilegibilidade constitutiva de certas práticas de Estado, as tomadas de posição da ministra Rosa Weber no interior do julgamento do Habeas Corpus de Lula parecem se exceder. De fato, as narrativas existentes nos textos dos votos não são capazes de apresentar respostas, mesmo que fabulares, sobre os porquês de aquele não ser o “momento de reinterpretar a Constituição”. Porém, elas explicitam certos esforços de “fazer Estado” finamente atravessados por gênero e bastante merecedores de atenção analítica. A tentativa narrativa de alimentar uma “voz institucional” é um deles. A pretensão de “coerência”, outro.

Segundo Philip Abrams (1988) ABRAMS, Philip. Notes on the difficulty of studying the State (1977). Journal of Historical Sociology, v. 01, n. 01, 1988, pp. 58 – 89. , uma importante dimensão dos processos de Estado está nos esforços de edificação da ideia de Estado como um ente, ou seja, na “ficção” – absolutamente “real” – de que “o Estado” constitui um sujeito apriorístico. Trata-se, enfim, do que Abrams chamou de “Estado-ideia”. Assim, multiplicam-se esforços para que “o Estado” produza sentidos, efeitos, lógicas próprias; para que conjugue verbos de sua competência; ou para que possua uma “voz” distinta das vozes dos sujeitos que compõem as práticas concebidas como “de Estado”. A ministra Rosa Weber se eximiu de produzir uma reinterpretação da Constituição que alterasse a jurisprudência que ainda hoje impede a liberdade de Lula porque, ela explica, deve respeitar a “voz institucional” que, contraditoriamente, ela mesma se esforça em produzir. Em última instância, afinal, em razão ou apesar de suas ambiguidades, foi a voz de Rosa Weber que, transmitida nacionalmente pelas redes de televisão, pronunciou as palavras que pouquíssimos entenderam, mas que, para todos, acabaram por significar a prisão de Luiz Inácio. Rosa Weber, assim, numa altercação entre a aparição e o ocultamento de si e da Corte, faz-se sujeito enquanto – se me valho do vocabulário empregado por Sílvia Aguião (2014) AGUIÃO, Sílvia. Fazer-se no “Estado”: uma etnografia sobre o processo de constituição dos “LGBT” como sujeitos de direitos no Brasil contemporâneo. Tese de doutorado em Ciências Sociais, IFCH/Unicamp, 2014. – “faz(-se) (no) ‘Estado’”.

A perseguição por uma “voz institucional” é, reciprocamente, um esforço, uma performance de gênero. Algo nada distante da suposição de existência de uma “vontade geral” representante de um “sujeito universal” – aquele que as primeiras feministas denunciaram como “masculino” e os primeiros comunistas definiram como “proprietário” – disposto, pela autonomia da vontade, diante de um “contrato social”. Novamente fabular, portanto. Assim como é fabular – e, generificada – a pretensão de produção de “coerência” que justifique, finalmente, a razão do seu voto contrário ao que seriam, de antemão, as suas convicções individuais sobre o princípio da presunção da inocência. A “coerência” opera, assinalei páginas atrás, como um dos elementos da forma fabular do “fazer jurídico” e, por isso, remete ao que seriam masculinizações ligadas às noções de “linearidade”, “retidão”, “racionalidade”. No entanto, nas narrativas postas pela ministra Rosa Weber, a reivindicação da coerência também concerne a um esforço de cuidado sobre a própria reputação, aqui associada à sua trajetória profissional, e que, ambiguamente, poder-se-ia ler como uma femininização.

O senhor ministro Marco Aurélio – No início, confesso que não sabia o sentido do voto de Vossa Excelência. Olha que tenho alguma experiência no colegiado.

A senhora ministra Rosa Weber – Meu voto é tão claro! Quem me acompanha nesses 42 anos de magistratura não poderia ter a menor dúvida com relação a ele. Tenho critérios de julgamento e procuro manter a coerência nas minhas decisões. Embora, claro, as compreensões sejam diversas. E isso é normal, saudável, faz bem, faz evoluir.

(Trecho do diálogo entre o ministro Marco Aurélio e a ministra Rosa Weber durante a apresentação do voto da ministra junto ao HC 152752 / PR)

A tentativa da ministra Rosa Weber de proteger a “segurança jurídica” através do esforço de produção de uma coerência apta a permitir que critérios meramente formais – para mim, ainda ininteligíveis – a respeito do momento adequado para reinterpretar a Constituição releguem alguém à prisão é, entretanto, substancialmente diferente das tentativas do ministro Luís Roberto Barroso de prender alguém para assegurar o que ele denomina de “sentimento mínimo de justiça”, aquilo que seria imprescindível para que as pessoas não resolvam “realizar justiça com as próprias mãos”. Rosa Weber e Luís Roberto Barroso fazem Estado e gênero distintamente. Ela performatiza tecnicidade. Ele, loquacidade. Ela arquiteta sua narrativa em torno do procedimento. Ele, da persuasão – “homicidas, estupradores, corruptos”. Ela resguarda para a Corte funções de defesa da democracia que não correspondem às funções das “instituições majoritárias representativas populares”. Ele sustenta “que uma interpretação que produz consequências absurdas e frustra sentimentos mínimos de justiça da sociedade não pode ser a interpretação adequada do texto constitucional”. O voto do ministro Luís Roberto Barroso, enfim, tangencia o populismo. Tal tangência, a seu tempo, expressa-se mais claramente em torno de duas questões, ambas já mencionadas neste ensaio, mesmo que indiretamente. A primeira delas alude aos “meninos da maconha”. A segunda trata diretamente de Lula.

Como argumentei anteriormente, os “meninos da maconha” são acionados quase paternalistamente por Barroso. Eles são retoricamente os que devem ser salvos, diferenciados dos “corruptos” e verdadeiros criminosos. De acordo com o ministro Barroso, sendo assim, não é desses “meninos” que se ocupam as pessoas que defendem a interpretação de que o “princípio da presunção de inocência” obstaculiza a antecipação da prisão antes do trânsito em julgado da condenação. “Não usem os pobres!” – diz, enfaticamente. Isto porque, conforme o ministro, “não é disso que se trata. Os pobres são presos em flagrante com 100g de maconha ou algumas pedras de crack e ficam lá mofando, sem ninguém se preocupar muito com eles”. Desse modo, de acordo com Luís Roberto Barroso, seria fundamental fazer o sistema punitivo alcançar os “ricos delinquentes”. Para tanto, é preciso enfrentar as formas de impunidade e, por isso, manter a relativização da presunção de inocência para assegurar a celeridade da prisão.

Nesse avanço paternalista de generosa consideração dos “pobres”, o ministro escorrega, no entanto, numa contradição incontornável: restringir os direitos de defesa não supera a seletividade fundamental aos processos de criminalização. Eles não deixarão de ser presos com “100g de maconha” – a não ser que os ministros do Supremo resolvam, enfim, finalizar a votação da ação que oportunizará a descriminalização da substância –, mas terão menos chances de ser soltos se os direitos de defesa forem ainda mais restringidos e o sistema punitivo for ainda mais endurecido normativamente – porque, de fato, já o é nas experiências daqueles jovens negros pertencentes aos setores mais precarizados da classe trabalhadora. Além disso, a crença de Barroso na premência da punição – uma crença de pater, afinal – escamoteia não só que a punição é uma realidade cotidiana para uma parte considerável da população brasileira, toda aquela relacionada aos mencionados jovens negros, como o fato de que o sistema punitivo participa decisivamente do engendramento do crime e da criminalização. Parafraseando Gabriel Feltran (2012) FELTRAN, Gabriel. Governo que produz crime, crime que produz governo: o dispositivo de gestão do homicídio em São Paulo (1992 – 2011). Revista Brasileira de Segurança Pública, n. 02. São Paulo, 2012, pp. 232 – 255. : “governo produz crime, crime produz governo”.

Mas o recurso paternalista aos “meninos da maconha” opera, no voto do ministro Luís Roberto Barroso, como siamês narrativo da personagem do “estuprador”. Em suma, eles precisam ser salvos dele. Aparentemente, são “os meninos” a vítima posta diante do algoz incontestável. Porém, como esses “meninos”, já notei, figuram como ameaça geracional – de classe, racial – de se tornarem os “homens solteiros”, como as soluções oferecidas pelo ministro Barroso realmente não os contemplam; como, por outro lado, “o estuprador” se desenlaça como uma fantasmagoria; percebe-se que esse par dicotômico narrativo fabula no voto do ministro, arregimenta o inadmissível e o terror, sobretudo porque informa um outro par: aquele vividamente formado por “meus filhos” e “Lula”. Sim, “meus filhos”, aqueles a quem Barroso quer deixar um mundo liberto do “paraíso de homicidas, estupradores, corruptos”.

Eu gostaria de dizer, logo de início, como disse na sessão passada, que não me é indiferente o fato de se tratar aqui de um habeas corpus impetrado por um ex-Presidente da República – por Luiz Inácio Lula da Silva – e, mais do que isso, por um político que deixou o cargo com elevados índices de aprovação popular e que presidiu o país em um período de relevante crescimento econômico e de expressiva inclusão social. Não é, no entanto, o legado político do Presidente que está aqui em discussão. O que se vai decidir é se se aplica a ele, ou não, a jurisprudência que este Tribunal fixou e que, em tese, deve se aplicar a todas as pessoas (Trecho do voto do ministro Luís Roberto Barroso junto ao HC 152752 / PR).

É Lula quem Barroso está enfrentando em seu voto. Daí tantos recursos populistas, apelos narrativos a estupradores e homicidas, a sensações de impunidade, a um sistema punitivo que, segundo ele, deveria viabilizar a existência de um “país civilizado”. Luís Roberto Barroso, afinal, dispôs-se a enfrentar a maior liderança popular de nossa história. Como dito, aquele que preso há mais de três meses reunia, em julho de 2018, 41% das intenções de voto. Ironicamente, aquele que mantém sua base eleitoral e de legitimidade sobretudo entre “os pobres”, aquele que foi “pobre” e cujo “legado político” definitivamente não pode ser julgado por um ministro do Supremo Tribunal Federal. Entretanto, seis ministros do Supremo Tribunal Federal podem, como testemunhamos, impedir que “os pobres” julguem aquele legado e, nas urnas, reelejam Lula presidente do país. Isto para que, afinal, aqueles seis ministros garantam o tal “sentimento mínimo de justiça da sociedade”.

  • 1
    Agradeço enormemente a Ana Lia Almeida e Ricardo Prestes Pazello pelo convite ao dossiê que possibilitou este ensaio. Agradeço igualmente a Mariana Azevedo, pela revisão e pelos comentários ao texto, a Rafael Efrem, pela tradução do abstract, e, enfim, agradeço a Irandhir Santos, pela conversa desta noite sobre Luiz Inácio e por todos os meus textos serem seus.
  • 2
    Os ministros e ministras do STF eram (e, hoje, ainda são): Cármen Lúcia, Dias Toffóli, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux, Rosa Weber, Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes. Deles, cinco votaram pela concessão do Habeas Corpus de Lula, seis votaram pela denegação. Luiz Roberto Barroso, Luiz Fux, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Alexandre de Moaraes e Edson Fachin foram os ministros que denegaram a liberdade, sendo que Fachin foi o relator do Habeas Corpus.
  • 3
    De acordo com o mesmo instituto Vox Populi, Lula somava, em maio de 2018, 39% das intenções de voto. Nem mesmo sua permanência na prisão diminuiu seu potencial eleitoral. Os dados da pesquisa do Vox Populi podem ser conferidos aqui: https://www.cartacapital.com.br/politica/cut-vox-populi-lula-tem-41-e-venceria-no-primeiro-turno
  • 4
    Em outra oportunidade, por ocasião dos debates sobre a viabilidade de realização de uma “constituinte exclusiva” para o nosso sistema político, Ana Lia Almeida e eu nos valemos da expressão “(in)disponibilidade democrática” para, em diálogo sobretudo com as contribuições de Florestan Fernandes (2009 FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. 4ª ed. São Paulo, Global, 2009. ; 2006 ______. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5ª ed. São Paulo, Globo, 2006. ), caracterizar a relação de determinados setores sociais e sujeitos brasileiros com a experiencia democrática. Ver: Efrem Filho; Almeida, 2014 EFREM FILHO, Roberto; ALMEIDA, Ana Lia. A (in)disponibilidade democrática. In: RIBAS, Luiz Otávio. Constituinte Exclusiva: um outro sistema político é possível. São Paulo, Expressão Popular, 2014, pp. 43 – 52. .
  • 5
    O “feminicídio” consiste numa modalidade de homicídio qualificado, prevista desde a Lei 13.104 de 2015, no segundo parágrafo A do artigo 121 do Código Penal. Tratar-se-ia de homicídio cometido por “razões da condição de sexo feminino” em duas hipóteses: a) a de violência doméstica e familiar; e b) a de menosprezo e discriminação à condição de mulher. Se os fatos houvessem ocorrido recentemente, após a vigência da lei de 2015, o caso de que fala o ministro Barroso se referiria à primeira hipótese. O jornalista em questão, Antônio Marcos Pimenta Neves, então com 63 anos de idade e diretor de redação do jornal O Estado de São Paulo, assassinou, em 22 de agosto de 2000, a também jornalista Sandra Gomide, que o havia rejeitado. O jornalista foi preso treze dias após o cometimento do homicídio, mas passou apenas sete meses na prisão. Solto a partir de um Habeas Corpus, Pimenta Neves só seria preso definitivamente em 2011, após os ministros do STF negarem seu último recurso. Para uma discussão acerca da categoria “feminicídio” e uma problematização de seu emprego “homogeneizante”, ver o ótimo e já clássico trabalho de Wânia Pasinato (2011) PASINATO, Wânia. “Feminicídios” e as mortes de mulheres no Brasil. Cadernos Pagu, n. 37. Campinas, 2011, pp. 219 – 246. . Para uma análise, a partir da criminologia feminista, da criminalização do feminicídio no Brasil, ver Campos, 2015 CAMPOS, Carmen Hein de. Feminicídio no Brasil: uma análise crítico-feminista. Sistema Penal e Violência: revista eletrônica da faculdade de direito, v. 07, n. 01. Porto Alegre, 2015, pp. 103 – 115. . Para um interessante debate acerca das compreensões de operadores jurídicos sobre “homicídios afetivo-conjugais”, ver: Zamboni; Oliveira, 2016 ZAMBONI, Marcela; OLIVEIRA, Helma J. S. de. Homicídio afetivo-conjugal sob a lente dos operadores jurídicos. João Pessoa, Editora da UFPB, 2016. .
  • 6
    Por alguma razão, os textos dos votos presentes no arquivo do acórdão disponível no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal não correspondem necessariamente ao que foi realmente dito pelos ministros na sessão do plenário de 04 de abril de 2018. Por isso, para o desenvolvimento da análise, precisei tanto ler o acórdão em questão quanto assistir novamente às manifestações dos votos, agora através de canais do Youtube. Os textos dos votos do ministro Luís Roberto Barroso e da ministra Rosa Weber são praticamente iguais ao que foi apresentado durante a sessão. O mesmo, todavia, não acontece com o texto do voto do ministro Luiz Fux, bastante mais formal do que sua exposição em plenário. As citações aos votos do ministro Luís Roberto Barroso e da ministra Rosa Weber foram retiradas do acórdão e, assim, dos textos escritos. Já as citações ao voto do ministro Luiz Fux advêm do que ele disse durante a sessão, por ser lá, e não no acórdão, que aparece a referência à figura do estuprador.
  • 7
    Tentei realizar este outro objetivo, o de analisar as relações de poder que atravessam decisões pertinentes a direitos sexuais e reprodutivos e às pautas do Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, num artigo anterior sobre a decisão do Supremo a respeito das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, as “uniões homoafetivas”. Ver: Efrem Filho, 2014a EFREM FILHO, Roberto. Os ciúmes do Direito: o desejo pelas uniões homoafetivas e a repulsa a Amor Divino e Paixão Luz. Sexualidad, Salud y Sociedad: revista latino-americana, n. 16. Rio de Janeiro, 2014a, pp. 10 – 30. .
  • 8
    Em outros momentos, em estreito diálogo com as contribuições de Anne McClintock (2010) McCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Trad. Plínio Dentzien. Campinas, Editora da Unicamp, 2010. , Avtar Brah (2006) BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, n. 26. Campinas, 2006, pp. 329 – 376. , Adriana Piscitelli (2008) PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura , v. 11, nº 2. Goiânia, 2008, pp. 263 – 274. , Isadora Lins França (2012) FRANÇA, Isadora Lins. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetividades na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2012. e Regina Facchini (2009 FACCHINI, Regina. Entrecruzando diferenças: mulheres e (homo)sexualidades na cidade de São Paulo. In: DÍAZ-BENITEZ, Maria Elvira; FÍGARI, Carlos Eduardo (Orgs.). Prazeres dissidentes. Rio de Janeiro, Garamond, 2009, pp. 309 – 341. ; 2008 FACCHINI, Regina. Entre umas e outras: mulheres, (homo)sexualidades e diferenças na cidade de São Paulo. Tese de doutorado em Ciências Sociais, IFCH/Unicamp, 2008. ), designei esse processo como “reciprocidade constitutiva das relações sociais”. Ver: Efrem Filho, 2017a EFREM FILHO, Roberto. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2017a. ; Efrem Filho, 2017c EFREM FILHO, Roberto. Os meninos de Rosa: sobre vítimas e algozes, crime e violência. Cadernos Pagu, n. 47. Campinas, 2017c, e175106. . Dediquei, ainda, maior atenção analítica aos argumentos de McClintock – e a suas proximidades e seus afastamentos em relação ao marxismo – por ocasião de uma resenha do seu imprescindível “Couro Imperial”, livro pulicado, no Brasil, pela Editora da Unicamp. Ver: Efrem Filho, 2013 EFREM FILHO, Roberto. Os despudores de Anne McClintock. Cadernos Pagu , n. 40. Campinas, 2013, pp. 377 – 388. .
  • 9
    As garantias da ordem pública e da aplicação da lei penal são alguns dos requisitos para a decretação da prisão preventiva previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal. Para que se aplique tal prisão, segundo o texto desse artigo, é necessário que haja “prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”. Justamente em razão do princípio da presunção de inocência, a prisão preventiva é de regra compreendida conceitualmente como uma medida excepcional. Claro, como se sabe, “conceitualmente”.
  • 10
    O Padre Emílio Silva de Castro foi defensor da possibilidade da pena de morte. Seu livro “Pena de morte já” foi publicado em 1986, no Rio de Janeiro, pela então Revista Continente.
  • 11
    O crime de corrupção passiva está previsto no artigo 317 do Código Penal Brasileiro e é definido como “solicitar ou receber, para si ou para outros, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. A pena para tal crime pode ser de dois a doze anos de reclusão, além de multa. A pena pode ainda ser aumentada em um terço se tal vantagem significar falta de cumprimento de dever funcional.
  • 12
    Para uma discussão a respeito das distinções entre as categorias “crime” e “violência”, ver o incontornável trabalho de Debert; Gregori, 2008 DEBERT, Guita Grin; GREGORI, Maria Filomena. Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66. São Paulo, 2008, pp. 165 – 211. .
  • 13
    Corrêa (1983) CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1983. analisou tanto casos em que homens eram acusados do assassinato de mulheres, que eram suas esposas ou companheiras, quanto casos em que mulheres eram acusadas do assassinato de homens, igualmente seus maridos ou companheiros. Essa versatilidade analítica é parte do que faz de “Morte em família” um texto imprescindível.
  • 14
    Para discussões mais aprofundadas sobre como gênero, sexualidade e raça se veem implicados em nossas experiências e, inclusive, em nossa projeção da “nação”, ver: Corrêa, 1996 CORRÊA, Mariza. Sobre a invenção da mulata. Cadernos Pagu , n. 06 – 07. Campinas, 1996, pp. 35 – 50. ; Moutinho, 2004 MOUTINHO, Laura. Razão, “cor” e desejo: uma análise comparativa sobre relacionamentos afetivo-sexuais “inter-raciais” no Brasil e na África do Sul. São Paulo, Unesp, 2004. .
  • 15
    Tratava-se do HC 126292 / SP, cujo relator era o ministro Teori Zavascki.
  • 16
    Uma das maiores polêmicas que antecederam o julgamento do HC 152752 / PR no Supremo Tribunal Federal disse respeito às tais duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade sob a relatoria do ministro Marco Aurélio e ao momento em que elas seriam julgadas, se antes ou depois do julgamento do Habeas Corpus de Lula. As ações em questão – as ADC 43 e 44 – abordam o mesmo assunto controverso acerca dos limites do princípio da presunção de inocência. Espera-se que, com nova maioria, a votação dessas ações leve a uma nova mudança na jurisprudência da Corte, a qual passará a impedir a antecipação da prisão antes do trânsito em julgado da condenação. Se houvessem sido votadas antes do HC, possivelmente o resultado da votação do HC seria diferente porque, enfim, a ministra Rosa Weber poderia decidir de acordo com uma “voz institucional”.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
  • Data do Fascículo
    Set 2018

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2018
  • Aceito
    05 Ago 2018
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