Acessibilidade / Reportar erro

Esquerdas do mundo, uni-vos! Boaventura de Souza Santos.

Santos, Boaventura de Souza. . Esquerdas do mundo, uni-vos!São Paulo: Boitempo, 2018, 87p.

Com publicação simultânea no Brasil, México, Colômbia, Portugal e Espanha, o mais recente lançamento de Boaventura de Souza Santos traça uma análise conjuntural das forças de esquerda que atravessam cada um desses países. A convocação que confere título ao livro, “Esquerdas do mundo, uni-vos!”, abre-se a uma proposta arriscada: valer-se da reflexão do quadro sociopolítico de nações distintas para sugerir possibilidades de integração entre posições políticas da mesma margem, mas de diferentes fronteiras.

A terceira obra de Souza Santos publicada entre nós pela editora Boitempo divide-se em três capítulos, além de um adendo que antecede a conclusão. Porém, a larga experiência do pesquisador português na observação das ocorrências políticas em solo nacional garantiu à edição brasileira uma específica introdução. A encruzilhada pela qual se depara a democracia brasileira é assinalada nas primeiras linhas do texto. Seu resultado, “uma perplexidade paralisante”, decorre de três fatores apresentados pelo professor da Universidade de Wisconsin-Madison.

O primeiro diz respeito à conjuntura eleitoral, com tonalidades de “seletividade política”, quando considerado o impedimento da candidatura do ex-presidente Lula da Silva, na esteira de um “golpe institucional continuado”. A “invisibilidade do Brasil profundo” (p.12) constituído por uma maioria socialmente excluída traduz um segundo componente deste estado de perplexidade. Por sua vez, a intervenção na opinião pública pela influência e interesse de redes originadas por potentados econômicos norte-americanos, segundo o autor, teria por extensão o avanço de movimentos de ultradireita como o Movimento Brasil Livre (MBL). O contexto constituído por tais condições resulta na “dificuldade das forças de democráticas, sobretudo às de esquerda, em organizar uma estratégia de resistência e de alternativa eficaz” (p.20).

Porém o maior desafio diante do acentuado cenário de erosão democrática no Brasil seria a progressiva inversão entre meios e fins. Na avaliação de Souza Santos, o funcionamento das instâncias de controle da disputa política, marcado por incertezas, tem sido substituído pelo comprometimento do resultado eleitoral, cada dia mais antecipado mercê da manipulação dos conglomerados de mídia. No campo das incertezas institucionais, a aposta do autor para as esquerdas, já fragmentadas, seria o recurso “à luta extrainstitucional pacífica como estratégia complementar” (p.22). Como é possível notar, o pesquisador não se esconde atrás de uma análise equidistante, aproximando-se, de partida, da afirmação de posições políticas declaradas.

Participante ativo da maior parte das edições do Fórum Social Mundial, Boaventura destaca um conjunto de patologias que atingem a democracia nas mais variadas regiões do globo, ao longo dos últimos cinco anos. Seu diagnóstico, no primeiro capítulo, trata de características histórico-sociais típicas do intervalo na ordem econômica e social com o qual nos deparamos. A crise financeira (2008-2011) teria secundado o panorama verificado após a queda do muro de Berlim sem a ruptura, entretanto, de seus efeitos. Assim, ainda não surgiu um novo estágio de transição, apenas variações da mesma agenda de formulação neoliberal. A eleição presidencial de bilionários sem experiência política, corrupção endêmica, crises sociais como questões de política e a ação silenciosa dos lobbies seriam exemplos mais recentes de como o espaço institucional da democracia tornou-se ele próprio o lugar do mercado.

Ao desenvolver a ideia de que estamos vivendo “um novo interregno” (p. 25), Boaventura aplica a célebre análise de Gramsci, com discreta ausência de referência ao terceiro volume dos Cadernos do Cárcere do autor marxista 1 1 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 3. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.184. . Trata-se de situação intervalar de um ciclo que parece encerrado, todavia sem dar lugar ao subsequente. Assim como indicou o teórico político antifascista italiano, neste ínterim uma série de “fenômenos mórbidos” são aqui reatualizados pelo professor português. Entretanto, as razões desse novo interstício sociopolítico não são atribuídas a uma crise de consenso, como na clássica formulação gramsciana. Na leitura de Souza Santos, a “democracia de baixa intensidade” dos dias atuais é resultado da tensão entre as novas faces do capitalismo e a própria instância democrática.

De todas as implicações provocadas pelo quadro de “asfixia democrática”, o que importa realmente é a descoberta de posições decisivas para a superação desse período a serem encontradas pelas distintas bases de esquerda. Para que novas formulações possam germinar, o autor sugere uma misteriosa “sabedoria pragmática”. Já ao leitor restará o suspense, porque saídas de curto, médio e longo prazo não serão suscitadas no primeiro capítulo.

O segundo capítulo incorpora o núcleo central do livro, em torno do qual gravita a recente experiência de coalizão das forças de esquerda verificadas na formação do governo português vigente. Por um lado, a crítica às práticas políticas usuais deu origem a movimentos que se colocam fora da lógica partidária, no ímpeto de “democratizar a democracia” (p.38). Por outro, existe um risco de marginalização tendo em vista o caráter transitório de algumas dessas novas mobilizações pela cidadania. Assim, o professor português alerta que as lutas reivindicatórias não podem abdicar das fronteiras sociais conquistadas que restam.

No lugar das estratégias operárias, das “guerras de movimento e de posição” contempladas por Gramsci 2 2 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 3. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.255. , Santos defende “guerras de trincheira, de linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas” (p.39). Para o filósofo italiano, a greve caracterizava uma guerra de movimento, enquanto no boicote e na resistência passiva de Gandhi havia prevalência da posição. 3 3 Ibidem, p.124. Aqui, entretanto, o pesquisador português perde a oportunidade de oferecer ao leitor exemplos concretos dessa espécie de disputa de “trincheira” contemplada nos dias atuais.

O desafio lançado por Souza Santos será encontrar o traço distintivo entre forças de esquerda e a consistência prática das políticas com esse mesmo viés político. Para ilustrar esse caso, teríamos o exemplo do partido grego Syriza, à margem esquerda, mas, que aplica no país preceitos de direita. Porém, o problema da identidade partidária divergente da prática política é lançado pelo pesquisador português como uma provocação à reflexão, sem que respostas sejam suscitadas no horizonte especulativo. Para ajudar na distinção, ao menos o autor não deixará de registrar em seu novo livro sua específica definição da instância política a que se refere:

Esquerda é o conjunto de teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos 150 anos, resistiram à expansão do capitalismo e aos tipos de relações econômicas, sociais, políticas, e culturais que ele gera e que, assim, procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do efetivo exercício da liberdade (p.8).

A citação que traduz a compreensão de Santos do flanco político também poderá ser encontrada no último livro do autor publicado pela editora Boitempo em 2016. 4 4 SANTOS, Boaventura de Souza. A difícil democracia: reinventar as esquerdas. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 74. A diferença em 2018, no plano de integração das esquerdas, repousa na formulação de estratégias compatíveis com as características do quadro eleitoral brasileiro, colombiano e mexicano. Por sua vez, a chave de acesso ao encontro das instâncias progressistas nesses países poderá ser encontrada na experiência política lusitana examinada por Boaventura a partir do retrospecto eleitoral português.

Em outubro de 2015, as três alas de esquerda (Partido Socialista, Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português) inovaram ao formalizar “acordos de governança” sem precedentes. A nova receita política prometia superar o patamar dos ajustes suprapartidários para a convergência de objetivos comuns. Seu diferencial está forjado no pragmatismo dos pontos fixados, com a manutenção das siglas e dos programas de cada partido. Mas o principal dessas formulações está no que Boaventura identifica como fator de “coerência”: a definição de um partido líder a tomar assento no governo para possibilitar sua durabilidade. Com resultados socioeconômicos favoráveis a partir da execução daqueles pactos, aos setores da direita restou a crítica ao novo modelo sob o título de “estabilidade a prazo”. Já o nome mais conhecido da fórmula valeu-se de uma metáfora, a “Geringonça” portuguesa prospera apesar do título. A ideia central é que o caso traduz uma solução de convergência que transcende os limites do país. Assim, o autor delimitará uma série passos para articulação das esquerdas a partir desse novo parâmetro de ação política no velho mundo.

Quando partidos tiverem por base posturas de fundo ideológico distinto será preferível fixar avenças pós-eleitorais, pois se estabelecem depois que as lideranças partidárias possam “medir pesos relativos.” (p.44). Porém, uma vez que a correlação de forças esteja estabelecida, a chama do debate deve permanecer acesa, a partir de “canais de divergência construtiva” (p.46). Neste sentido, a consulta às “bases” das organizações partidárias será vital, principalmente no que concerne à tomada de posições políticas arriscadas. Nesta instância de ação política de risco, a disposição para transigir daqueles que estão no topo da estrutura dos partidos alcança importância estratégica. Aqui, Souza Santos não esconde sua avaliação política específica, ao buscar inspiração na capacidade de diálogo e na aptidão para negociar, características que atribui aos líderes que fundaram a coligação partidária portuguesa.

Em essência, a maior aprendizagem para unificação as esquerdas observada será descortinada pela estrutura dos pactos alinhavados em seu país. A soma de forças no caso português costurou acordos nos detalhes, no “caráter defensivo e limitado das políticas acordadas” (p.47). Isto porque a operação delimitou quais os espaços de manobra mínimos, reduzidos a termo, na luta contracorrente das diretrizes lançadas pela tríade composta por Banco Central Europeu, União Europeia e FMI. Sendo assim, será possível extrair um significado simbólico decisivo do paradigma lusitano sumarizado por Boaventura. Seu sentido será desfazer o mito de que partidos de esquerda teriam apenas o viés de oposição, matizado por protestos discursivos, sem perfil para “assumir as complexas responsabilidades da governança” (p.47).

No terceiro capítulo, “Alguns cenários incertos para a articulação das forças de esquerda”, a análise da conjuntura política em quatro países tem por finalidade contribuir ao debate para uma agenda conjunta, em torno da ideia de um novo internacionalismo a integrar as esquerdas globalmente. O autor ressalva que as contingências para a formulação de coligações observadas regionalmente são distintas. Sendo assim, a imaginação de uma nova internacional das esquerdas dependeria, detidamente, da extensão desse exercício de reflexão coletiva ao contexto de um número suficiente de nações.

No caso do México, o professor português salienta que a polarização se forma pelo abismo que separa o partido que pretende representar a esquerda institucional das novas instâncias extrainstitucionais. No primeiro plano, figura o MORENA (Movimento de Regeneração Nacional), de Andrés López, enquanto em outro extremo situa-se o movimento zapatista do EZLM (Exército Zapatista pela Liberação Nacional), atualmente identificado pela líder indígena Marichuy. Ocorre que as forças zapatistas de Chiapas estão, por diversas razões, à margem do processo eleitoral. Deste modo, a persistir a exclusão das bases zapatistas do cenário político mexicano “oficial”, a integração das duas combativas instâncias no país seguirá apenas no campo das expectativas.

O terreno minado da conjuntura colombiana também procura ser explorado. O acordo para a dissolução do conflito armado entre o Governo e as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) começou a ser aplicado entre 2017 e atravessa instabilidades para seu cumprimento. Por sua vez, as tratativas de paz com o ELN (Exército de Libertação Nacional da Colômbia) alcançam apenas episódios de cessar-fogo. De acordo com Boaventura, as décadas de conflito foram acompanhadas de intensa “clivagem” entre as vertentes reformistas e revolucionárias de esquerda. Além disso, o estigma social se abate sobre enorme contingente de ex-guerrilheiros, que apesar de terem abandonado as armas, são tratados socialmente como se fossem criminosos comuns. Essencialmente, a leitura do autor sobre as circunstâncias do país traz a radiografia de uma “fratura da luta armada” (p.55) em seu quadro político marcado por forte “interferência norte-americana” (p.57). Por fim, o pesquisador português mostra-se cético quanto à possibilidade de consenso entre forças progressistas, enquanto persistir a sombra do conflito entre grupos paramilitares e governo colombiano.

Já o cenário espanhol é iluminado pelo autor com a descrição da trajetória de ascensão do Podemos, partido egresso da mobilização que ficou conhecida como o “Movimento dos Indignados”. Adicionalmente, o advento de novas lideranças à frente do PSOE, tradicional Partido Socialista Operário Espanhol, parecia compor um quadro favorável para a formação de um bloco entre as duas instâncias partidárias. Entretanto, no diagnóstico de Boaventura, as divergências sobre a independência da Catalunha, em junho de 2017, acarretou a suspensão da aliança entre os dois partidos.

Quem procura se informar sobre a formação do Estado espanhol percebe que há uma concepção de plurinacionalidade, composta pela histórica identificação de regiões autonômicas, como ocorre com o País Basco, a Galiza e, sobretudo, a Catalunha. A bandeira da independência catalã, na avaliação de Souza Santos, chegou a ser empunhada tanto pelo braço da direita como da esquerda. Por outro lado, as imposições que advém do centralismo de Madri vão de encontro ao direito democrático dos catalães de votar por sua emancipação. Todavia, a posição de ambos os partidos citados pela ilegalidade do referendo, do dia primeiro de outubro de 2017, à independência daquela região espanhola revelou o nível das contradições que atravessam o espectro das representações de esquerda no país. Assim, a intrincada questão das identidades nacionais na Espanha, tangidas pelo viés “transclassita”, além de sua oscilação por diferentes polos políticos, só se resolveria para Souza Santos com a ruptura do regime atual de governo espanhol. Em última análise, o autor dá a entender que a almejada composição de forças dependerá da cicatrização dos pontos de fragmentação da nacionalidade da quinta economia europeia.

Em paralelo ao lema transcendente do Manifesto Comunista, Boaventura encaminha suas conclusões com a voz ativa de quem convoca a refundação de um fórum interfronteiras de vanguarda. Neste sentido, o espaço de proposições alternativas, que configura a contribuição desta nova obra do pesquisador português, constrói instrumentos de transformação da indignação em estratégias de enfrentamento pós-liberal. Possivelmente, a vitalidade política que caracteriza este título do autor advém do calor das dificuldades da atualidade para a formulação de convergências contramajoritárias. Contudo, será reservado ao leitor o aprofundamento do contato com os pontos decisivos que mobilizam a agenda contemporânea de iniciativas contra-hegemônicas.

  • 1
    GRAMSCI, Antonio GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 3. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.184. . Cadernos do Cárcere. Vol. 3. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.184.
  • 2
    GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 3. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.255.
  • 3
    Ibidem, p.124.
  • 4
    SANTOS, Boaventura de Souza SANTOS, Boaventura de Souza. A difícil democracia: reinventar as esquerdas. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 74. . A difícil democracia: reinventar as esquerdas. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 74.

Referências:

  • GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 3. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.184.
  • SANTOS, Boaventura de Souza. A difícil democracia: reinventar as esquerdas. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 74.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
  • Data do Fascículo
    Set 2018

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2018
  • Aceito
    21 Maio 2018
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com