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Diversidade Sexual e Proteção Integral à Infância e Juventude no Direito Internacional

Sexual Diversity and Integral Protection of Childhood and Youth in International Law

Resumo

No presente trabalho defende-se que a orientação sexual constitui âmbito de proteção integral prevista na normativa internacional dos direitos humanos da criança, o que impõe ao Estado e à sociedade o desenvolvimento de ações e políticas que tenham por objetivo promover discussões sobre diversidade sexual e direitos sexuais como mecanismo de prevenção e enfrentamento às violências dessa natureza.

Palavras-chave:
Diversidade Sexual; Proteção Integral; Direito Internacional

Abstract

In the present study, it is argued that sexual orientation constitutes an integral protection’s scope foreseen in the international norm about the human rights of the child, which imposes to the state and the society the development of actions and policies with the objective to promote discussions about sexual diversity and sexual rights as a mechanism of prevention and confrontation to violences of this nature.

Keywords:
Sexual diversity; Integral protection; International law

Introdução

O presente estudo surge da preocupação com a necessária reflexão acerca da garantia da proteção integral a todas as crianças e adolescentes, indistintamente, pois encontram-se em etapa da vida em que o ser humano está em desenvolvimento biopsicossocial.

A questão encontra respaldo na Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas______. “Convenção sobre os Direitos da Criança”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm. Acesso em 23 Fev. 2019.
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(1989), a qual expõe a necessária atuação dos Estados-Parte em assegurar que todas as crianças e jovens tenham plenas condições de desenvolvimento saudável e adequado.

Nesse sentido, diante de dados produzidos em pesquisas (DUQUE, 2011DUQUE, Tiago. “Novas travestilidades: notas preliminares de um estudo sociológico com travestis adolescentes”. Disponível em http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST61/Tiago_Duque_61.pdf. Acesso em 28 mar. 2011.
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; SMITH, 2016) com recorte na orientação sexual e na identidade de gênero, vislumbra-se que este aspecto do desenvolvimento humano tem sido negligenciado e tem servido de base para a perpetração de variadas violências contra crianças e jovens, seja por parte da família, de membros da sociedade ou mesmo por agentes estatais.

É na senda desta preocupação que no presente trabalho se objetiva defender que a orientação sexual constitui âmbito de proteção integral, da perspectiva dos direitos sexuais do público infanto-juvenil, abarcada pela normativa internacional dos direitos humanos e fazendo parte dos compromissos assumidos pelo Brasil.

Tais compromissos internacionais impõem ao Estado e à sociedade o desenvolvimento de ações e políticas que tenham por objetivo a discussão sobre diversidade sexual e direitos sexuais como mecanismo de prevenção e enfrentamento das violências dessa natureza. Para dar conta da análise, utilizou-se a pesquisa bibliográfica e documental.

1. A proteção integral no Direito Internacional

O surgimento da pessoa humana como sujeito de direitos no Direito Internacional constitui uma construção progressiva, desde as previsões do Direito Internacional Humanitário, passando pelo Direito Internacional dos Refugiados, até as construções do Direito Internacional dos Direitos Humanos (PORTELA, 2017PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: incluindo noções de direitos humanos e de direito comunitário. Salvador: JusPODIVM, 2017.).

É com a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações UnidasORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=por. Acesso em 23 Fev. 2019.
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(ONU), em 1948, que ocorreu a “emergência histórica da pessoa humana no âmbito do Direito Internacional” (ALMEIDA, 2018ALMEIDA, Guilherme Assis de. A proteção da pessoa humana do direito internacional: conflitos armados, refugiados e discriminação racial. São Paulo: Editora CLA Cultural, 2018., p. 89).

O reconhecimento da criança como sujeito de direitos específicos no âmbito internacional também segue a mesma lógica, impulsionada pelas preocupações existentes na ONU com os reflexos da segunda guerra mundial e os sofrimentos que afligiam as crianças nos países europeus. Assim surgiu o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), que foi transformado em órgão permanente em 1953, com o objetivo de agir para melhorar a situação de milhares de crianças em países em desenvolvimento.

Reconhecendo que a criança necessita de proteção especial pelo fato de estar em desenvolvimento físico e mental, em 20 de novembro de 1959 a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas______. “Declaração Universal dos Direitos da Criança”. Disponível em: http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1069.html. Acesso em 23 Fev. 2019.
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adotou a Declaração Universal dos Direitos da Criança1 1 Conferir em: <http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1069.html>. Acesso em: 23 fev. 2019. , apelando para que indivíduos e governos observassem os dez princípios instituídos na declaração, quais sejam:

(1) o reconhecimento de que todas as crianças são sujeitos de direitos, sem distinção;

(2) a garantia da proteção social para seu sadio desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, a partir do melhor interesse da criança;

(3) direito a um nome e a uma nacionalidade;

(4) benefícios da previdência social, especialmente à saúde, alimentação, recreação;

(5) cuidados especiais às crianças com deficiências;

(6) direito à convivência familiar e comunitária;

(7) educação para promoção da cultura geral e capacitação para desenvolvimento de suas aptidões;

(8) prioridade na prestação de socorro;

(9) proteção contra qualquer forma de negligência, crueldade, exploração; e

(10) proteção contra discriminação racial, religiosa ou de outra natureza.

Com a declaração do ano internacional da criança em 1979, o sistema ONU iniciou a chamada década da criança. Uma das grandes conquistas desse esforço em prol do reconhecimento da condição de sujeito de direitos à criança se deu em 1989, com a adoção da Convenção sobre os Direitos da Criança, normativa em que se reconhece a humanidade da infância, sendo o mais ratificado da história do sistema ONU (ROSENO, 2007ROSENO, Renato. Introdução. Convenção internacional sobre os direitos da criança. São Paulo: terre des hommes Holanda, 2007, p. 9-15.).

Assim, inaugura-se no Direito Internacional a condição de sujeito de direitos à criança, bem como a previsão da doutrina da proteção integral, pautada em “quatro grandes conjuntos: os direitos à sobrevivência, os direitos ao desenvolvimento, os direitos à proteção e o direito à participação” (ROSENO, 2007ROSENO, Renato. Introdução. Convenção internacional sobre os direitos da criança. São Paulo: terre des hommes Holanda, 2007, p. 9-15., p. 12).

A Convenção sobre os Direitos da Criança é o instrumento jurídico mais importante no cenário mundial no que se refere à garantia de direitos da criança, pois evidencia um marco geral de interpretação das normativas, promove a percepção sobre a nova condição de todas as crianças como sujeitos de direitos e não mais objeto de compaixão/repressão (MÉNDEZ, 1992MÉNDEZ, Emilio García. “La convencion internacional de los derechos del niño: del menor como objeto de la compasion-represion a la infancia-adolescencia como sujeto de derechos”. In: Nuevo Foro Penal, nº 57, Julio 1992, p. 421-432.).

A supracitada Convenção reconhece que crianças são as pessoas com menos de 18 anos de idade (art. 1º), salvo legislação específica que confira maioridade anteriormente. Recordando em seu preâmbulo o disposto na Declaração de 1959, a Convenção também afirma que “a criança, em razão de sua falta de maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidados especiais”, razão pela qual enseja na sociedade internacional o reconhecimento de que são sujeitos de direitos e estão em situação de desenvolvimento físico e mental, razão pela qual necessitam de proteção e cuidados especiais, inclusive de caráter legal.

Outra normativa internacional de relevo para a discussão em tela é a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), que em seu art. 19 determina que “Toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado” (Referência). Igualmente é possível identificar o reconhecimento de que a criança deve ser detentora de toda a atenção necessária para seu adequado desenvolvimento, cuja responsabilidade é solidária entre a família, a sociedade e o Estado.

Assim, o princípio da proteção integral é instituído no Direito Internacional com a perspectiva de estabelecer o dever dos Estados-Partes de assegurar que todas as crianças, indistintamente, tenham reconhecidas suas necessidades básicas em relação ao adequado desenvolvimento biopsicossocial. Nas lições de AminAMIN, Andréa Rodrigues. “Princípios orientadores do direito da criança e do adolescente”. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (coordenação). Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva, 2013.:

(...) a doutrina da proteção integral é formada por um conjunto de enunciados lógicos, que exprimem um valor ético maior, organizada por meio de normas independentes que reconhecem crianças e adolescentes como sujeitos de direitos (2013, p. 52).

Esta é, portanto, a primeira grande mudança operada pelo advento da doutrina da proteção integral, a de afirmar que todas as pessoas com menos de 18 anos são sujeitos de direitos em virtude do reconhecimento da sua condição de pessoa em desenvolvimento.

A este respeito, BobbioBOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 2002. leciona que é singular a proteção destinada às crianças e jovens, uma vez que a “criança, por causa de sua imaturidade física e intelectual, necessita de uma proteção particular e de cuidados especiais” (2002, p.35).

Portanto, a proteção integral também é composta pelo reconhecimento da condição de vulnerabilidade em que pessoas em desenvolvimento se encontram, bem como da necessária atenção ao interesse superior da criança, princípios correlatos.

Cabe registrar que, nos dizeres de VeroneseVERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da Criança e do adolescente. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006. , a proteção integral consiste no reconhecimento da infância e adolescência como “prioridade imediata e absoluta exigindo uma consideração especial, o que significa que sua proteção deve sobrepor-se a quaisquer outras medidas, objetivando o resguardo de seus direitos fundamentais” (2006, p. 10), pelo que está relacionada ao reconhecimento de que a criança precisa de atenção especial e deve ter garantido o melhor ambiente de aprendizado e crescimento. Registre-se que a responsabilidade de garantir o atendimento aos direitos conferidos a crianças e jovens passa a ser da família, da sociedade e do Estado, solidariamente.

Desta forma, é imperioso reconhecer que todas as crianças e adolescentes, sem distinção de origem, são sujeitos de todos os direitos fundamentais necessários à salvaguarda da sua condição de pessoa em desenvolvimento.

Portanto, garantir que todas as crianças sejam tratadas sem discriminação de qualquer natureza, devendo ter o direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento, além de ser garantido seu acesso à saúde, à escolarização, entre outros, passam a ser imperativos para a sociedade internacional.

2. A orientação sexual e a identidade de gênero como âmbito de proteção integral

Como visto acima, a doutrina da proteção integral inaugura e afirma no cenário internacional a compreensão de que toda criança é detentora de proteção especial em virtude da sua condição de pessoa em desenvolvimento, o que significa o dever da família, da sociedade e do Estado em assegurar todos os seus direitos fundamentais, indistintamente.

Nessa perspectiva, afirma-se neste trabalho que a orientação sexual constitui âmbito de proteção integral, compreensão que decorre da leitura combinada entre a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e os Princípios de Yogyakarta. Antes, porém, é necessário fazer uma breve retrospectiva acerca do surgimento desses princípios.

Nas lições de Rios (2006)RIOS, Roger Raupp. “Para um direito democrático da sexualidade”. In: Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 12, n. 26, p. 71-100, 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ha/v12n26/a04v1226.pdf. Acesso em 23 Fev. 2019.
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, os direitos sexuais no cenário internacional surgem em decorrência das discussões sobre direitos reprodutivos e, nesse contexto, relacionados à condição da mulher. Após várias Conferências internacionais que reconhecem os direitos das mulheres como direitos humanos, ocorreu em 1994 a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento no Cairo, oportunidade em que foi estabelecido o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento. Tal programa:

(...) afirmou os direitos reprodutivos como categoria de direitos humanos já reconhecidos em tratados internacionais, incluindo o direito à escolha livre e responsável do número de filhos e de seu espaçamento, dispondo da informação, educação e meios necessários para tanto. Importante para os fins deste estudo, foi a declaração de que a saúde reprodutiva implica a capacidade de desfrutar de uma vida sexual satisfatória e sem riscos. O documento, como um todo, reafirma a importância de relações de gênero mais igualitárias, com maior liberdade para a mulher, livre de discriminação e violência. Relevante também é a menção ao direito de homens, mulheres e adolescentes de obter informação e ter acesso a métodos seguros, eficazes, aceitáveis e de sua eleição para a regulação da fecundidade. Dessa conferência decorreu o Plano de Ação do Cairo, que, além de introduzir o conceito de direitos reprodutivos, sinalizou para o reconhecimento de direitos sexuais, destacando o direito de exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminações, coerções e violências; na mesma oportunidade, também foi assentado que os Estados-Partes, além de estimular e promover o relacionamento respeitoso e igualitário entre homens e mulheres, devem: 1) atentar para as necessidades dos adolescentes, capacitando-os a melhor decidir sobre o exercício de sua sexualidade; e 2) dedicar atenção especial a segmentos populacionais mais vulneráveis às violações de direitos humanos nos campos da reprodução e da sexualidade (RIOS, 2006RIOS, Roger Raupp. “Para um direito democrático da sexualidade”. In: Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 12, n. 26, p. 71-100, 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ha/v12n26/a04v1226.pdf. Acesso em 23 Fev. 2019.
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, p. 76).

Assim, tem-se que o Plano de Ação do Cairo produziu importantes conteúdos para os fins deste estudo, uma vez que, para além de reconhecer e definir o que são os direitos sexuais, deixou evidente a necessidade de adoção de ações diferenciadas para pessoas jovens (adolescentes), a fim de permitir maior conteúdo informativo como ferramenta de autonomia e combate às violências praticadas contra este grupo de pessoas.

Mas o debate sobre direitos sexuais e reprodutivos não se encerrou com o Plano de Ação do Cairo, pois seguiram sendo discutidos em outras duas oportunidades no ano de 1995: na Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social e na IV Conferência Mundial sobre a Mulher em Beijing.

Para Colina, nessas duas últimas conferências os direitos sexuais e reprodutivos tiveram sua conceituação ampliada, para abarcar o direito “a pensar e manifestar livremente as ideias relacionadas com a própria sexualidade”2 2 No original: “a pensar y manifestar libremente las ideas relacionadas con la propia sexualidade”. (2009, p.12. Tradução nossa). Porém, vale lembrar que tais compreensões estavam sendo conduzidas em face das muitas discussões internacionais provocadas pelos movimentos de mulheres, que lutavam pela igualdade de gênero.

É com a adoção dos Princípios de Yogyakarta que emerge no cenário internacional maior dedicação com as questões afetas à diversidade sexual, especialmente acerca da orientação sexual e da identidade de gênero. Tais princípios surgiram no seguinte contexto:

Se adotaram em uma reunião multidisciplinar de experts de direitos humanos, de 25 países, realizada na Universidade de Gadjah Mada, Yogyakarta, Indonésia, de 6 a 9 de novembro de 2006, e foram relançados oficialmente em Genebra, em 26 de março de 2007, em uma sessão do conselho de direitos humanos da ONU. Obviamente o objetivo é a equidade de gênero e a defesa dos direitos sexuais e por fim de uma vez à discriminação, já que os direitos humanos são universais e não admitem exceções. Trata-se de um texto que convida as Nações Unidas, as instituições nacionais de direitos humanos, as ONGs e outros órgãos relacionados a tomar medidas concretas. O seu desenvolvimento baseou-se em estudos bem documentados de abusos nesta área, incluindo execuções extrajudiciais, violência e tortura, supressão da liberdade de expressão e associação, e discriminação no trabalho e acesso à saúde e educação, abuso médico, acesso à justiça e imigração3 3 No original: “Se adoptaron en una reunión multidisciplinaria de expertos de derechos humanos, de 25 países, realizada en la Universidad de Gadjah Mada, Yogyakarta, Indonesia, del 6 al 9 de noviembre de 2006, y fueron relanzados oficialmente en Ginebra, el 26 de marzo de 2007, en una sesión del Consejo de Derechos Humanos de la ONU.Obviamente el objetivo es la equidad de género y la defensa de los derechos sexuales y ponerle coto de una vez a la discriminación, ya que los derechos humanos son universales y no admiten excepciones. Es un texto que exhorta a la ONU, las instituciones nacionales de derechos humanos, las ONG y a otras instancias relacionadas a que tomen acciones concretas. Su desarrollo se fundamentó en estudios muy bien documentados de abusos y atropellos en esta área, entre los que encontramos, ejecuciones extrajudiciales, violencia y tortura, represión de la libertad de expresión y asociación, y la discriminación en el trabajo y en el acceso a la salud y la educación, abusos médicos, acceso a la justicia e inmigración.” (COLINA, 2009COLINA, Carlos. “La homofobia: heterosexismo, masculinidad hegemónica y eclosión de la diversidad sexual”. Revista Razón y Palabra, número 67 Agosto-Octubre, 2009. Disponível em: http://razonypalabra.org.mx/n/n67/varia/ccolina.html. Acesso em 23 fev. 2019.
http://razonypalabra.org.mx/n/n67/varia/...
, p. 12. Tradução nossa).

A centralidade das preocupações com a garantia de tratamento igual às pessoas surge introdutoriamente com a afirmação de que a orientação sexual e a identidade de gênero são aspectos da dignidade humana e, portanto, não podem servir como razão de discriminação ou abuso. O próprio texto esclarece o que se compreende por orientação sexual e identidade de gênero:

COMPREENDENDO “orientação sexual” como estando referida à capacidade de cada pessoa de experimentar uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como de ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas;

ENTENDENDO “identidade de gênero” como estando referida à experiência interna, individual e profundamente sentida que cada pessoa tem em relação ao gênero, que pode, ou não, corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo-se aí o sentimento pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive o modo de vestir-se, o modo de falar e maneirismos; (PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA, 2007PRINCÍPIO DE YOGYAKARTA. Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero”. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/gays/principios_de_yogyakarta.pdf. Acesso em 23 Fev. 2019.
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, p. 10)

Ressalte-se que o esforço dos especialistas reunidos em Yogyakarta para produzir tais princípios se deu em face do reconhecimento das diversificadas violências a que estão submetidas muitas pessoas no mundo em face da sua orientação sexual e identidade de gênero, bem como em virtude do reconhecimento universal de que todas as pessoas, independente de características pessoais, são detentoras de direitos humanos.

Assim, defende-se que, da perspectiva da proteção integral inscrita na Convenção Internacional dos Direitos da Criança (ONU/1989), a orientação sexual e a identidade de gênero também constituem âmbito de proteção e não podem servir como justificativa para perpetração de violências e abusos contra crianças e jovens.

Tal pensamento se torna evidente quando se reconhece que a sexualidade e o gênero compõem a vida humana e, mesmo que tenham sido objeto de intervenção, controle e punição (TOMAZ, 2017), não podem ser esquecidos ou negados quando se está diante das potencialidades da vida humana.

Porém, é preciso reconhecer a complexidade do tema, especialmente porque:

Quando problematizamos a sexualidade é preciso enfatizar que nos referimos a ela como algo muito mais complexo do que o ato sexual ou a reprodução humana. A sexualidade refere-se aos sentimentos, desejos, relacionamentos entre as pessoas, sejam homens, sejam mulheres, e incluímos, nesse contexto, as crianças. (...)

No entanto, e tendo em vista que convivemos ainda com uma representação de criança muito próxima da criatura angelical - ideia bastante disseminada pela religião católica e incorporada fortemente pela cultura ocidental-, tratamos as crianças como sujeitos destituídos de sexualidade, porque as associamos à pureza e à incapacidade de sentir prazer ou desejo com seu próprio corpo (COMITÊ NACIONAL DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES, 2008COMITÊ NACIONAL DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES. “CADERNO TEMÁTICO: Direitos Sexuais são Direitos Humanos”. 2008. Disponível em: https://www.academia.edu/9001035/CADERNO_TEMÁTICO_Direitos_Sexuais_são_Direitos_Humanos. Acesso em 23 fev. 2019.
https://www.academia.edu/9001035/CADERNO...
, p. 45).

É no sentido do reconhecimento de que crianças e jovens são detentores de direitos e dignos de proteção e cuidado, porque estão em desenvolvimento biopsicossial, que surge a articulação de compreensões para enxergá-los como sujeitos de direitos sexuais, a fim de que sejam tomadas todas as providências para, por meio da informação e da garantia da privacidade e da intimidade, livrá-las de diversas formas de agressão (SOUZA, 2017SOUZA, Luanna Tomaz de. “Os direitos sexuais das crianças e adolescentes no estupro de vulnerável”l. In: Revista de Direito Penal, Processo Penal e Constituição, v. 3, n. 2, p. 41 – 62, Jul/Dez. 2017.).

No entanto, pesquisas (DUQUE, 2011DUQUE, Tiago. “Novas travestilidades: notas preliminares de um estudo sociológico com travestis adolescentes”. Disponível em http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST61/Tiago_Duque_61.pdf. Acesso em 28 mar. 2011.
http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/S...
; SMITH, 2017SMITH, Andreza do Socorro Pantoja de Oliveira. Tráfico de Pessoas para Exploração Sexual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.) com recorte na orientação sexual e na identidade de gênero, demonstram que este aspecto do desenvolvimento humano tem sido negligenciado e tem servido de base para a perpetração de variadas violências contra crianças e jovens, seja por parte da família, de membros da sociedade ou mesmo por agentes estatais.

Infelizmente, não são raros os registros de agressões físicas e verbais em espaços escolares cometidos contra meninos e meninas que são considerados LGBT’s, seja por parte do corpo estudantil, seja por parte do corpo docente e de funcionários das escolas. Também são frequentes os relatos de violências simbólicas, verbais e físicas perpetrados por pais e demais familiares desses mesmos meninos e meninas, o que muitas vezes conduz a atitudes de fuga ou mesmo expulsão do ambiente doméstico, em virtude do preconceito e da discriminação em razão da orientação sexual e da identidade de gênero (DUQUE, 2011; SMITH, 2017SMITH, Andreza do Socorro Pantoja de Oliveira. Tráfico de Pessoas para Exploração Sexual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.).

Portanto, é preciso reconhecer os direitos sexuais como espécies de direitos humanos que englobam “o direito da liberdade e autonomia e o exercício responsável da sexualidade” (HAZEU, 2004HAZEU, Marcel. Direitos Sexuais da Criança e do Adolescente. Uma visão interdisciplinar para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes. Rede TXAI. Movimento República de Emaús. 2004., p. 21), o que implica defender que crianças e jovens devem ter, conforme seu grau de desenvolvimento, garantidas sua liberdade sexual, autonomia sexual, integridade sexual, privacidade sexual e informação/educação baseadas em conhecimento científico, a fim de que possam crescer livres de qualquer forma de abuso, violência ou exploração.

A esse respeito, destaca-se a tese do direito democrático da sexualidade, pautado nos direitos humanos e nos direitos fundamentais constitucionais, os quais devem agir para “o reconhecimento do igual respeito às diversas manifestações da sexualidade e do igual acesso de todos, sem distinções, aos bens necessários para a vida em sociedade” (RIOS, 2006RIOS, Roger Raupp. “Para um direito democrático da sexualidade”. In: Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 12, n. 26, p. 71-100, 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ha/v12n26/a04v1226.pdf. Acesso em 23 Fev. 2019.
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, p. 88).

A supracitada ideia apoia a compreensão de que, independente da orientação sexual e da identidade de gênero que crianças e jovens manifestem, elas estão em fase de desenvolvimento e devem ter garantidos os direitos de informação e proteção, devendo estar a salvo de qualquer forma de constrangimento, violência e opressão.

O apoio normativo para a garantia da orientação sexual e da identidade de gênero dentro dos direitos sexuais que compõem o direito à proteção integral é fundamental de ser vislumbrado nos dispositivos da Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989) e nos Princípios de Yogyakarta, com a devida recepção dos dispositivos de direito interno, no caso do Brasil especialmente no art. 227 da Constituição Brasileira e nos diversos artigos da Lei n. 8.069 de 1990______. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm. Acesso em 23 Fev. 2019.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Lei...
(Estatuto da Criança e do Adolescentes), uma vez que a positivação dos direitos sob análise produz impacto nas políticas públicas (MATTAR, 2007MATTAR, Laura Davis. “Desafios e importância do reconhecimento jurídico dos direitos sexuais frente aos direitos reprodutivos”. In: PIOVESAN, F.; IKAWA, D. (coords.) Direitos humanos, 2. Curitiba: Juruá, 2007, p. 823-856.), o que se verá adiante especialmente no caso de crianças e jovens.

3. Os deveres do Estado em desenvolver ações e políticas de garantia de direitos e antidiscriminação

A grande preocupação com a construção dos direitos sexuais no Direito Internacional decorre das lutas dos movimentos sociais por igualdade e equidade. Tais esforços lograram êxito com a produção de normativas gerais, porém, conforme acima analisado, no aspecto específico os direitos sexuais ainda não são objeto de normativa específica, uma vez que os Princípios de Yogyakarta são considerados soft law (MATTAR, 2007MATTAR, Laura Davis. “Desafios e importância do reconhecimento jurídico dos direitos sexuais frente aos direitos reprodutivos”. In: PIOVESAN, F.; IKAWA, D. (coords.) Direitos humanos, 2. Curitiba: Juruá, 2007, p. 823-856.).

Em que pese esta condição, é possível fundamentar a obrigatoriedade de respeito à diversidade sexual a partir dos direitos humanos gerais de liberdade e igualdade, bem como no direito à proteção integral devida a crianças e jovens, uma vez que tal aspecto da vida é primordial para o seu saudável e adequado desenvolvimento.

A consequência de tais embasamentos é o dever dos Estados de adotarem ações e programas que garantam a fruição desses direitos. Um exemplo se encontra na leitura dos seis primeiros artigos da Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989), os quais determinam que os Estados-Parte:

1) Respeitarão os direitos inscritos na Convenção e assegurarão sua aplicação a cada criança sujeita à sua jurisdição, sem distinção alguma, inclusive de sexo ou qualquer outra condição da criança. Adotarão todas as medidas para proteger as crianças de toda forma de discriminação ou castigo (art. 2).

2) Irão agir por meio de todas as suas instituições públicas ou privadas de acordo com o interesse maior da criança. Se comprometem a assegurar à criança a proteção e o cuidado que sejam necessários para seu bem-estar (art. 3).

3) Adotarão todas as medidas administrativas, legislativas ou outras que sejam necessárias para a implementação dos direitos reconhecidos na Convenção, utilizando ao máximo os recursos disponíveis (art. 4).

4) Respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais e/ou demais responsáveis em proporcionar à criança instrução e orientação adequadas conforme a evolução de sua capacidade no exercício dos direitos reconhecidos na presente convenção (art. 5).

5) Reconhecem que toda criança tem o direito inerente à vida, pelo que assegurarão ao máximo a sobrevivência e o desenvolvimento da criança (art. 6).

Analisando-se os Princípios de Yogyakarta mais detidamente, é possível vislumbrar uma série de deveres inscritos aos Estados em cada princípio, afirmando sua obrigação primária de implementarem os direitos humanos, pois se “apresentam como uma poderosa ferramenta para transmitir a justiça, legislar com igualdade e governar democraticamente” (PULGARÍN, 2011PULGARÍN, Mauricio Pulecio. “Teoría y práctica de los principios de Yogyakarta en el derecho internacional de los Derechos Humanos”. Disponível em: https://revistas.utadeo.edu.co/index.php/RAI/article/view/70. Acesso em 23 Fev. 2019.
https://revistas.utadeo.edu.co/index.php...
, p. 242). Abaixo apresenta-se alguns excertos importantes para o presente estudo:

No primeiro princípio, o qual assegura que “Os seres humanos de todas as orientações sexuais e identidades de gênero têm o direito de desfrutar plenamente de todos os direitos humanos”, destaca-se que os Estados deverão:

c) Implementar programas de educação e conscientização para promover e aprimorar o gozo pleno de todos os direitos humanos por todas as pessoas, não importando sua orientação sexual ou identidade de gênero;

d) Integrar às políticas de Estado e ao processo decisório uma abordagem pluralista que reconheça e afirme a inter-relacionalidade e indivisibilidade de todos os aspectos da identidade humana, inclusive aqueles relativos à orientação sexual e identidade de gênero (Referência).

No princípio 2, ao reconhecer que “Todas as pessoas têm o direito de desfrutar de todos os direitos humanos livres de discriminação por sua orientação sexual ou identidade de gênero”, impõe-se aos Estados, entre outros, o dever de:

f) Implementar todas as ações apropriadas, inclusive programas de educação e treinamento, com a perspectiva de eliminar atitudes ou comportamentos preconceituosos ou discriminatórios, relacionados à ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero (Referência).

No princípio 5, em que se reconhece que “Toda pessoa, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero, tem o direito à segurança pessoal e proteção do Estado contra a violência ou dano corporal (...)”, determina-se ao Estado:

b) Tomar todas as medidas legislativas necessárias para impor penalidades criminais adequadas à violência, ameaças de violência, incitação à violência e assédio associado, por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero de qualquer pessoa ou grupo de pessoas em todas as esferas da vida, inclusive a familiar;

O Princípio 16 assegura que “Toda pessoa tem o direito educação, sem discriminação por motivo de sua orientação sexual e identidade de gênero, e respeitando essas características”, o que impõe ao Estado:

b) Garantir que a educação seja direcionada ao desenvolvimento da personalidade de cada estudante, de seus talentos e de suas capacidades mentais e físicas até seu potencial pleno, atendendo-se as necessidades dos estudantes de todas as orientações sexuais e identidades de gênero;

c) Assegurar que a educação seja direcionada ao desenvolvimento do respeito aos direitos humanos e do respeito aos pais e membros da família de cada criança, identidade cultural, língua e valores, num espírito de entendimento, paz, tolerância e igualdade, levando em consideração e respeitando as diversas orientações sexuais e identidades de gênero;

d) Garantir que os métodos educacionais, currículos e recursos sirvam para melhorar a compreensão e o respeito pelas diversas orientações sexuais e identidades de gênero, incluindo as necessidades particulares de estudantes, seus pais e familiares relacionadas a essas características;

e) Assegurar que leis e políticas deem proteção adequada a estudantes, funcionários/as e professores/as de diferentes orientações sexuais e identidades de gênero, contra toda forma de exclusão social e violência no ambiente escolar, incluindo intimidação e assédio;

f) Garantir que estudantes sujeitos a tal exclusão ou violência não sejam marginalizados/as ou segregados/as por razões de proteção e que seus interesses sejam identificados e respeitados de uma maneira participativa;

g) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar que a disciplina nas instituições educacionais seja administrada de forma coerente com a dignidade humana, sem discriminação ou penalidade por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero do ou da estudante, ou de sua expressão;

h) Garantir que toda pessoa tenha acesso a oportunidades e recursos para aprendizado ao longo da vida, sem discriminação por motivos de orientação sexual ou identidade de gênero, inclusive adultos que já tenham sofrido essas formas de discriminação no sistema educacional.

O Princípio 19, atesta que “Toda pessoa tem o direito à liberdade de opinião e expressão, não importando sua orientação sexual ou identidade de gênero”, o que leva o Estado a:

a) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar o pleno gozo da liberdade de opinião e expressão, respeitando os direitos e liberdades das outras pessoas, sem discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero, incluindo a recepção e transmissão de informações e ideias sobre a orientação sexual e identidade de gênero, assim como a defesa de direitos legais, publicação de materiais, transmissão de rádio e televisão, organização de conferências ou participação nelas, ou disseminação e acesso à informação sobre sexo mais seguro;

(...)

c) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar o pleno gozo do direito de expressar a identidade ou autonomia pessoal, inclusive por meio da palavra, comportamento, vestimenta, características corporais, escolha de nome ou qualquer outro meio;

d) Assegurar que as noções de ordem pública, moralidade pública, saúde pública e segurança pública não sejam empregadas para restringir, de forma discriminatória, qualquer exercício da liberdade de opinião e expressão que afirme a diversidade de orientações sexuais e identidades de gênero;

e) Garantir que o exercício da liberdade de opinião e expressão não viole os direitos e liberdades das pessoas de orientações sexuais e identidade de gênero diversas;

f) Assegurar que todas as pessoas independente de orientação sexual ou identidade de gênero, desfrutem de igual acesso a informações e ideias, assim como de participação no debate público.

Especificamente acerca dos direitos de crianças e jovens, é possível encontrar na Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente)4 4 Conferir em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm>. Acesso em: 23 fev. 2019. , aportes acerca dos deveres do Estado na instituição de ações e programas que, dentro dos conteúdos de proteção integral, voltem-se para a garantia da diversidade sexual (no que tange à orientação sexual e identidade de gênero) como âmbitos do desenvolvimento humano.

A começar pelos artigos 3º e 5º da Lei n. 8.069/90, os quais asseguram a toda criança e adolescente os direitos fundamentais inerentes à pessoa, sem prejuízo da proteção integral, bem como todos os meios para seu adequado desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, além de livrá-los de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O art. 17 da supracitada Lei prescreve importante conteúdo para os fins desta análise, pois assegura a toda criança e adolescentes o direito ao respeito, o qual significa a garantia da “integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças (...)” (BRASIL, 1990).

No capítulo da prevenção, o Estatuto da Criança e do Adolescente determina, no art. 70, que “É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente” (BRASIL, 1990) e que os entes da federação brasileira devem agir de forma articulada na elaboração de políticas públicas e na execução de ações destinadas a coibir o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante e difundir formas não violentas de educação de crianças e de adolescentes. Também é assegurado a toda criança e adolescente o direito à informação (art. 71).

Assim, a correlação entre os diferentes textos acima esposados conduz à compreensão de que os Estados devem adotar todas as medidas necessárias, incluindo políticas públicas de educação e proteção social, para garantir às crianças e jovens seu adequado desenvolvimento, inclusive considerando a orientação sexual e a identidade de gênero, dentro do âmbito da proteção integral, como ferramenta antidiscriminatória.

4. Considerações finais

O estudo realizado demonstra que o Direito Internacional tem se mostrado como cenário favorável à produção de normativas reconhecedoras dos direitos humanos, em especial de crianças e jovens.

Prova disso é a Convenção sobre os Direitos da Criança, que ao garantir a proteção integral como mecanismo de salvaguardar o sadio e adequado desenvolvimento de crianças e jovens, impõe às famílias, à sociedade e aos Estados-Parte o dever de tomar providências para não excluir de suas preocupações e ações o adequado desenvolvimento da sexualidade, uma vez que são muitas as denúncias de abusos, violências e explorações nesse contexto.

Em igual medida caminham os Princípios de Yogyakarta ao dispor sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero, uma vez que em diversos pontos convidam os Estados a adotar medidas educativas, legislativas e administrativas que busquem impedir qualquer forma de discriminação e violência em face da diversidade sexual característica da humanidade.

Ao garantir o direito à informação conforme seu grau de compreensão, o Estatuto da Criança e do Adolescente impõe o dever de diálogo, a fim de pôr a salvo de qualquer forma de violência as pessoas em desenvolvimento

Assim, resta evidente que os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil com a ratificação da Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989), em uma leitura sistemática com os Princípios de Yogyakarta e com a Legislação interna, especialmente o Estatuto da Criança e do Adolescente, impõem ao Estado e à sociedade o desenvolvimento de ações e políticas que tenham por objetivo a discussão sobre diversidade sexual e direitos sexuais como mecanismo de prevenção e enfrentamento das violências dessa natureza.

  • 1
    Conferir em: <http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1069.html>. Acesso em: 23 fev. 2019.
  • 2
    No original: “a pensar y manifestar libremente las ideas relacionadas con la propia sexualidade”.
  • 3
    No original: “Se adoptaron en una reunión multidisciplinaria de expertos de derechos humanos, de 25 países, realizada en la Universidad de Gadjah Mada, Yogyakarta, Indonesia, del 6 al 9 de noviembre de 2006, y fueron relanzados oficialmente en Ginebra, el 26 de marzo de 2007, en una sesión del Consejo de Derechos Humanos de la ONU.Obviamente el objetivo es la equidad de género y la defensa de los derechos sexuales y ponerle coto de una vez a la discriminación, ya que los derechos humanos son universales y no admiten excepciones. Es un texto que exhorta a la ONU, las instituciones nacionales de derechos humanos, las ONG y a otras instancias relacionadas a que tomen acciones concretas. Su desarrollo se fundamentó en estudios muy bien documentados de abusos y atropellos en esta área, entre los que encontramos, ejecuciones extrajudiciales, violencia y tortura, represión de la libertad de expresión y asociación, y la discriminación en el trabajo y en el acceso a la salud y la educación, abusos médicos, acceso a la justicia e inmigración.”
  • 4
    Conferir em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm>. Acesso em: 23 fev. 2019.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2019
  • Aceito
    23 Mar 2019
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