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A História Da Ocupação Chiquinha Gonzaga: Uma Análise Marxista Do Processo De Conscientização Do Sujeito

The History of the Occupation Chiquinha Gonzaga: Towards a Marxist Analysis of the Process of Awareness of the Subject

Resumo

Este artigo tem por objetivo problematizar a história do movimento social Chiquinha Gonzaga, ocupação urbana localizada na zona central da Cidade do Rio de Janeiro. A história desta Ocupação foi definida pelo discurso de um de seus organizadores e revelou o caráter complexo do processo de conscientização de seus ocupantes. A linguagem do discurso revelou prática política que distinguia os sujeitos entre os que tinham e os que não tinham consciência crítica como requisito da ação política. Esta prática ocorreu em reuniões para a formação da Chiquinha Gonzaga e em assembleias para consolidação desta Ocupação. Ela traduziu a um só tempo concepção mecânica e orgânica na constituição do sujeito político com a inclusão e a exclusão da história deste sujeito.

Palavras-chave:
Ocupação Urbana; Consciência Crítica; Sujeito Político

Abstract

This article has for objective to problematize the history of the social movement Chiquinha Gonzaga, an urban occupation that is located in the central area of Rio de Janeiro. The history of this Occupation was defined by the speech of one of its organizers, and it revealed the complex nature of the process of the occupants' awareness. The language of the speech revealed political practice that distinguished the subjects among the ones that had and the ones that had not critical conscience as a requirement of the political action. This practice was adopted in meetings for Chiquinha Gonzaga's formation and in assemblies for consolidation of this Occupation. It translated mechanical and organic conception at the same time in the political subject's constitution with the inclusion and the exclusion of the history of this subject.

Keywords:
Urban occupation; Critical Conscience; Political Subject

Introdução

Chiquinha Gonzaga é o movimento popular urbano por moradia que ocupa desde 2003 o antigo prédio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) no Rio de Janeiro, situado na Rua Barão de São Félix, nº 110, na zona central da capital fluminense. Neste trabalho, sua história não é definida nem por sua evolução nem por sua cronologia nem mesmo por seus acidentes. Parte-se da ideia de que “não há história sem discurso” e que “discurso é produção de sentidos (ORLANDI, 1990ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista; discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Cortez Editora, 1990., 14).

Assim, a história da Ocupação Chiquinha Gonzaga, ou o discurso que constitui a história desta Ocupação, é definida quanto aos sentidos da conscientização – e de seu processo - enquanto mecanismo, etapa ou instrumento da prática política na formação e consolidação da referida Ocupação. Por outro lado, enquanto “materialidade específica do discurso” (ORLANDI, 1990ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista; discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Cortez Editora, 1990., 28-29), a linguagem faz aparecer o sujeito deste discurso.

Aqui, encarnando falas e momentos diversos na história da Chiquinha Gonzaga, Orlando Costa é o sujeito do discurso e o sujeito da linguagem na história desta Ocupação. Com trabalho formal e moradia formal, ele morou de 2003 a 2006 na Chiquinha Gonzaga e desempenhou a função de “organizador” quanto aos momentos da formação e da consolidação da Ocupação. Foi na condição de organizador desta Ocupação que, em março de 2018, durante a realização de entrevistas semiestruturadas, ele fez duas afirmações que permitem pensar o caráter problemático da articulação entre processo de conscientização e prática política no campo das ocupações em geral e da Ocupação Chiquinha Gonzaga em particular. Primeira: “No meio das discussões, a gente procurava também dar uma conscientizada. Na verdade, a meta era que a gente queria fazer um movimento mais consistente. Então, a gente procurava conscientizar as pessoas”. Segunda: “(...) muita gente ia nas reuniões e depois não teve coragem de ir [tomar parte da ocupação] (...)”.

Na primeira fala, a linguagem de Orlando Costa traduz principalmente a importância da conscientização das pessoas associada à preocupação com a fundamentação e concretização da Ocupação. Na segunda, a linguagem mais parece remeter ou ao desapontamento possível do sujeito ou à mera constatação pelo sujeito de uma situação de fato. O caráter problemático da relação entre processo de conscientização (consciência) e prática política (ocupação) é aqui definido como expressão da linguagem contraditória e paradoxal do organizador da Ocupação que procede segundo uma consciência que é a um só tempo orgânica (includente) e mecânica (excludente). Que fator principal pode explicar a diferença entre o número de pessoas presentes às reuniões públicas de conscientização para a Ocupação e o número de pessoas que efetivamente compareceram para tomar parte deste movimento? A despeito de seu caráter mais formal, este tipo de pergunta permite questionar a relação entre “conscientizador” e “conscientizado” quanto a natureza deste vínculo.

No discurso de Orlando Costa, a linguagem “a gente” e “as pessoas” garante pensar a existência de um dualismo como relação que opõe de forma radical um “nós” - que tem conhecimento, que sabe e sente e que possui história - a um “eles” - que não tem conhecimento, que não sabe e não sente e que não possui história. Nestes termos homogeneizadores e naturalizadores, momentos e dimensões da prática da conscientização política objeto do discurso de Orlando Costa podem ter contribuído para a realização da Ocupação Chiquinha Gonzaga de forma paradoxal, com a produção ao mesmo tempo de “inclusão” e de “exclusão” de pessoas das camadas mais populares sem moradia presentes nas reuniões públicas de conscientização.

O objetivo deste artigo é investigar a natureza desta relação e os sentidos do discurso da consciência de Orlando Costa. Esta investigação será conduzida de acordo com as categorias “educador”, de Paulo Freire, e “intelectual”, de Antonio Gramsci. Para o primeiro, a condição de teorização da experiência do educando pelo educador consiste em “testar a sua forma dialética de pensar na práxis com o povo” (FREIRE, 2004-----------------. Pedagogia da Tolerância. São Paulo: Editora UNESP, 2004., 126). Para o segundo, “o erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado (...), isto é, acreditar que o intelectual possa ser um intelectual (...) mesmo quando distinto e destacado do povo-nação. (...) não se faz política-história (...) sem essa conexão sentimental entre intelectuais e povo-nação (GRAMSCI, 1995----------------. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995., 138-139).

Paulo Freire (1921-1997) e Antonio Gramsci (1891-1937) possuem trajetórias políticas parecidas. A tomada e a elevação da conscientização dos “oprimidos” e “subalternos” são uma das inúmeras facetas dos pensamentos que aproximam estes dois “filósofos”. O trabalho que realizaram durante suas vidas de conscientização das massas aparecia para a elite conservadora e reacionária de seus mundos com todos os sinais de uma perigosa subversão. Seus pensamentos e atividades contribuíram para o desenvolvimento da conscientização e esclarecimento das massas populares e influenciaram pesquisadores e intelectuais em todo o mundo. As formas de repressão e as tentativas de silenciamento de suas vozes e de paralização de seus cérebros deixaram marcas na história de suas ideias e concepções de mundo. Eles escreveram suas obras na prisão (Gramsci) ou no exílio (Freire).

Paulo Freire é conhecido principalmente pelo método de alfabetização de adultos que leva seu nome. Ele desenvolveu pensamento pedagógico, assumidamente político, com o objetivo de educar e conscientizar o aluno. Isto significou, em relação aos oprimidos da sociedade, levá-los a entender sua situação e agir em favor da própria libertação. Freire fazia parte da classe média pernambucana. No entanto, em sua infância vivenciou a fome e a pobreza com a crise de 1929, experiência essa que o levaria a se preocupar com os mais pobres e o ajudaria a construir seu revolucionário método de alfabetização. Em 1961, tornou-se diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife e, no mesmo ano, realizou junto com sua equipe as primeiras experiências de alfabetização popular que levariam à constituição do Método Paulo Freire. O grupo de que fazia parte alfabetizou 300 cortadores de cana em apenas 45 dias, em 1964, ano em que iniciava a implementação do seu programa, mas o golpe militar acabou com seus esforços. Foi encarcerado pelo regime militar como traidor por 70 dias e, em seguida, conheceu a realidade e a experiência do exílio forçado no Chile. Freire morreu em 1997.

Antonio Gramsci, dirigente e fundador do Partido Comunista Italiano, nasceu em 23 de janeiro de 1891 em Ales, província de Cagliari, na Ilha de Sardenha, na parte mais pobre e mais atrasada da Itália. De família humilde, ele pôde, apesar das duras privações, realizar seus estudos na Universidade de Turim, onde, em 1915, aderiu ao socialismo. Gramsci organizou conselhos de fábricas e fundou o jornal Ordine Nuovo, que reuniu em seu entorno um grupo de intelectuais. Como secretário-geral do Partido Comunista, ele se elegeu deputado no período fascista. Com a opressão desencadeada pelo regime de Mussolini, os mandatos oposicionistas foram cassados, e Gramsci foi preso em 8 de novembro de 1926 e confinado na ilha de Ustica, perto de Palermo. Em seu julgamento, ficaram célebres as palavras proferidas pelo promotor responsável pela acusação: “Devemos”, dizia aos juízes, “inutilizar por 20 anos esse cérebro perigoso”. No cárcere, Gramsci descobriu e descortinou a ilusória “independência do intelectual” de tipo tradicionalista. Exigiu a formação de um novo tipo de intelectual, técnico e científico, capaz de organizar o trabalho e a classe trabalhadora. Os sintomas de tuberculose e o receio das autoridades fascistas quanto à criação de um mártir com a morte de Gramsci na prisão determinaram a soltura do autor dos Cadernos do Cárcere. Três dias após sua liberdade, Gramsci morre em 27 de abril de 1937.

Para esses “educadores e intelectuais” revolucionários, o processo de conscientização e libertação do “oprimido” pela educação constitui campo de trabalho em que a teoria e a prática, a cultura e a política se confundem, e a pesquisa e a ação teóricas e práticas se misturam com a ação social e a consciência política. Com o objetivo de melhor compreender a natureza da relação que articula o processo de conscientização e a prática política no campo da história da Ocupação Chiquinha Gonzaga, suas principais categorias teórico-práticas (“educador” e “intelectual”) serão abordadas e confrontadas com os conceitos “intelectual moderno”, de Karl Mannheim, e “homem significativo”, de Gregory Lukács, numa tentativa de “construção” de uma “lente teórica” que permita “ver” os sentidos do processo de conscientização na história da Ocupação Chiquinha Gonzaga.

1 - Discursos que Definem a História da Ocupação Chiquinha Gonzaga

“A gente tinha um método de trabalho”. Esta foi a primeira afirmação feita por Orlando Costa quando ele começou a descrever o modo como foi organizada a chamada Ocupação Chiquinha Gonzaga, onde morou de 2003 a 2006. A organização desta Ocupação pressupôs um “sujeito múltiplo” de ação e uma estratégia consciente de atuação.

Na descrição deste sujeito, Orlando recorreu à distinção entre a atuação do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto em São Paulo e os movimentos sociais urbanos de luta pela moradia no Rio de Janeiro: “Ali, [na Chiquinha Gonzaga], foi um processo que tinha muito militante envolvido. Era um pouco diferente do MTST, das coisas lá de São Paulo, que é um negócio massivo, muita gente, geralmente um terreno. Ali era uma ocupação menorzinha.”

Quanto ao que chamou de “método de trabalho”, Orlando assim caracterizou o modo de atuação do “sujeito múltiplo”: “(...) tem influência pessoal (...), autonomista. (...) tinha um foco muito grande na organização de base, na conscientização.”

Assim, a história da Ocupação Chiquinha Gonzaga é narrada segundo sua vinculação a práticas e experiências que definem a atuação de movimentos sociais ligados à questão da habitação no País. A ênfase nas categorias práticas “organização de base” e “militância política” descreve a relação dinâmica e recíproca que articula “método de ação” e “sujeito de ação” na explicação do surgimento da Ocupação Chiquinha Gonzaga. Tem uma comissão que tem alguma influência técnica (...), [com alguma] pessoa ligada ao direito que faz uma avaliação. Na verdade, a gente faz uma avaliação política também.”

A afirmação da existência de uma comissão técnica e de uma comissão política correspondeu à preocupação dos organizadores da ocupação quanto ao modo pelo qual articular de forma estratégica a natureza jurídica do imóvel a ser ocupado e a definição política de seu proprietário. O relato abaixo é ilustrativo da natureza complexa entre as dimensões jurídicas e políticas no processo de ocupação do imóvel da Chiquinha Gonzaga.

Na época, o governo federal tava com o Lula, o governo estadual acho que era o Garotinho (...) e o governo da prefeitura era o César Maia. Um não falava com o outro. Esse é um negócio que a gente observou. Ainda teve um negócio que o Ministério das Cidades transferiu a posse de uma certa quantidade de prédios públicos abandonados no Brasil (...) para a prefeitura. Então, naquele momento exato, o prédio [da Chiquinha Gonzaga] ficou em um limbozinho jurídico, porque ele tava em transferência. Então, isso a gente usou [politicamente], porque confundiu na hora do processo de [ocupação], porque ninguém sabia quem assumiu [o imóvel]. Não, [ninguém] tava muito por dentro (...). Na verdade, a gente usou a malandragem. A gente usou esse momento como uma tática jurídica também. Aí, realmente, quando a gente entrou foi uma confusão tremenda. A ação [de reintegração de posse] foi pra um, depois foi pra outro, entendeu?

Enquanto parte do “método de trabalho”, “a malandragem” dos organizadores quanto ao uso político da natureza jurídica do imóvel no momento da ocupação não impediu a reação da força de ordem: “Teve polícia. A polícia botou pistola na cara. Ameaçou pra sair. Aí teve um período em que a gente ficou preparando pra resistir. Se viesse a ter desocupação, o pessoal tava preparando resistência mesmo”.

Além da orientação técnica e política como dimensões do “método de trabalho”, Orlando Costa articula de modo claro a importância social e econômica da escolha do local da ocupação com a necessidade de enfrentamento da situação de precarização dos ocupantes: “No centro da cidade, um local que tava muito abandonado, e aí a gente queria. Assim, para a pessoa que tá numa situação meio precária, morar perto do centro é uma grande ajuda, né?”. Morar no centro do Rio de Janeiro implica estrategicamente ter acesso à infraestrutura da cidade (comércio, transporte, trabalho) e fundamenta politicamente a decisão dos organizadores quanto ao local da ocupação.

A orientação política específica quanto à ocupação particular de prédio abandonado no centro da cidade do Rio de Janeiro transcende os limites tanto da questão da habitação popular das camadas mais pauperizadas da capital fluminense como da atuação mais individualizada dos organizadores e ocupantes iniciais da Chiquinha Gonzaga. A orientação política da Ocupação Chiquinha Gonzaga foi “conduzida” por agremiação política determinada. “Quem organizou lá foi a FLP”, a Frente de Luta Popular, da qual fazia parte Orlando Gomes. “A gente fez movimentos (...) ligados à chacina de Vigário Geral. Tinha dia de luta do povo contra a violência, ligado à violência contra as favelas”. Quanto à orientação e à atuação da FLP, à questão específica do problema da habitação popular no centro do Rio de Janeiro quanto à Ocupação Chiquinha Gonzaga se somava a questão mais geral do problema da violência contra as camadas mais pobres da população da cidade que moram em favelas. Assim, movimento de ocupação e movimento de protesto são movimentos políticos orgânicos e solidários.

“Contra” toda forma de violência - a violência pela “desocupação” e a violência pela “chacina” -, estes movimentos são movimentos “contra” os autores da violência, isto é, a Polícia como órgão do poder público. Por outro lado, se eles resistem e se insurgem contra o Estado, eles também recorrem e contam com “a ajuda” do Estado. “(...) tem uma defensora pública, a Maria Lucia. Ela era bem próxima. (...) foi uma que participou bem. Ela conhece bem o processo por dentro. (...) às vezes, certas coisas, ela não entrava tanto, mas assim, alguma coisa que tava dentro da alçada dela ajudar...”. Sem esclarecer a natureza e o tipo de ajuda ao movimento social quanto à orientação a ser adotada para a concretização da ocupação, Orlando Costa apenas reconheceu a importância do fato de a referida defensora ocupar “um cargo público”. Assim, a ajuda aos organizadores da ocupação contra a violência traduz relação que opõe a Polícia que está “por fora” e a Defensoria Pública está “por dentro”. Além disto, reconhece Orlando Costa que os organizadores contaram ainda com a contribuição da “Central de Movimentos Populares; que era o Marcelo Edmundo, um militante antigo que tá no PT até hoje”.

Ao descrever de forma específica o resultado das “orientações” quanto à definição do dia e do modo de realização da ocupação Chiquinha Gonzaga, Orlando Costa opõe dois métodos – um aberto e um fechado -, duas cidades – Rio de Janeiro e São Paulo – e dois estilos – um soviético um não soviético:

Aí, o dia é assim: a gente tinha o método [no Rio de Janeiro] que a galera faz a coisa mais aberta assim. O MTST, lá em São Paulo, eles fazem um negócio tipo ataque soviético mesmo. Eles tomam a região. Aí panfletam para as pessoas falando: ‘quem tá precisando, fala e tal’. Aí, eles ocupam uma galerinha e depois a galera vem, entendeu? O nosso [método], não. O nosso era mais assim: a gente fazia reuniões em lugares públicos, assim, várias, antes da ocupação, e bem combinadinha.

Como forma de preparação da ocupação por meio da conscientização da necessidade de ocupar, a realização de reuniões em lugares públicos referida à forma “combinada” das mesmas permite pensar que as reuniões são realizadas com certa frequência, continuidade e proximidade. No entanto, o “estilo combinado” de realização das reuniões diz respeito principalmente à articulação de diversos espaços públicos da cidade. É quanto à descrição desse estilo que Orlando Costa aponta a origem histórica do núcleo originário da Ocupação Chiquinha Gonzaga:

A maioria das reuniões foi na região do centro mesmo.... Teve assim um grupo de organização original. Foram os camelôs ali do Largo do Machado. Eles moravam já em uma casa que era ocupada, que era um casarão. Assim, umas dez pessoas mais ou menos. (...) [A casa] era lá pra o lado, acho, do Catete, o casarão onde eles moravam. Aí eles foram expulsos, e foi essa galera tipo um nucleozinho, entendeu?

Associada ao “método de trabalho”, a definição do “estilo combinado” permite descrever a natureza da composição da base da Ocupação Chiquinha Gonzaga: moradores sem teto e sem trabalho formal. Por outro lado, a informalidade conhecida por estes moradores é reveladora de suas vivências e experiências quanto à ocupação e à expulsão anteriores. Em suma, o núcleo inicial da Ocupação Chiquinha Gonzaga possui história própria.

Na tentativa de descrever o modo como se articulou a relação entre esse núcleo inicial, originário da zona sul da cidade do Rio de Janeiro, e as pessoas conscientizadas nas reuniões realizadas no centro da capital fluminense, Orlando Costa revela como que a produção de uma “ordem” quanto ao momento da ocupação – que, segundo ele, contabilizou cerca de trinta pessoas, das quais 15 eram militante políticos – de acordo a distinção clara entre um “Nós” e um “Eles”, bem como associa o modo inicial da ocupação às características e condições do prédio a ser ocupado:

A gente entrou. Também teve muita gente que entrou depois, né. A gente foi entrando. Era um prédio. Essa entrada é que é um negócio bem interessante. Era um prédio completamente [abandonado]. Tem foto sobre isso. Tinha samambaias crescendo no chão, tinha urubu morando. (....) [O prédio estava abandonado há mais de 10 anos. Aí, no início, a gente ocupava e ficava no térreo, dormindo, tipo num alojamento coletivo.

Como parte da história da Ocupação Chiquinha Gonzaga, o papel das reuniões nos espaços públicos ocupa lugar central. A narrativa de Orlando Costa a este respeito revela também a concepção que possuíam os dirigentes das reuniões acerca do próprio “movimento” que procuravam realizar:

No meio das discussões, a gente procurava também dar uma conscientizada. Na verdade, a meta era que a gente queria fazer um movimento mais consistente. Então, a gente procurava conscientizar as pessoas. Falava de capitalismo (...). E falava as coisas mais práticas, né? Como a gente planejava. Falava coisas também pra as pessoas terem segurança, que [a ocupação] não era uma coisa assim... não era uma aventura (...) pra demonstrar que a gente sabia o que tava fazendo.

Com o papel de conscientização e sensibilização daqueles que poderiam vir a tomar parte da ocupação, as reuniões públicas constituíam momento e espaço de representação da ocupação como movimento social consciente. Não sendo descrita como uma “aventura inconsequente”, e sim como um “movimento consciente”, os dirigentes das reuniões se orientavam por perspectiva instrumental. Definindo a ocupação como sendo um meio para um fim, eles procuravam gerar a segurança necessária capaz de sensibilizar e recrutar “pessoas” para concretizar o projeto da ocupação. Este processo de conscientização e de produção de segurança para a ocupação, tal como descrito por Orlando Costa, apoiava-se num discurso que articulava dimensões tanto práticas – referidas ao planejamento em si - como teóricas – referidas ao sistema capitalista - e orientava-se pela distinção entre “dirigentes” (“a gente”) e “dirigidos” (“as pessoas”).

“É, muita gente ia nas reuniões e depois não teve coragem de ir [tomar parte da ocupação], né?”. Esta fala de Orlando Costa permite pensar duas situações. Primeira: se as reuniões públicas alcançaram de fato sua “meta” quanto à produção de consciência e segurança junto a seus participantes. Segunda: se a conscientização buscada nas reuniões públicas não esbarrou na consciência “própria” de muitos participantes. Este fato permite questionar o modo como ocorria a relação entre “a gente” (os organizadores) e “as pessoas” (o público) e como eram abordadas as questões “teóricas” (o capitalismo, por exemplo) e “práticas” (o planejamento, por exemplo). “A gente também vai desenvolvendo todo um método de falar essas coisas numa linguagem popular, né? Óbvio que a gente evita usar categorias que... é tem toda uma tradução. Às vezes, coisa que o cara fala na academia a gente bola um jeito de falar aqui no popular, né?”. Ao descrever o método adotado nas reuniões públicas, segundo a distinção entre o mundo acadêmico e o mundo social e a tradução em linguagem popular de categorias teóricas e práticas, Orlando Costa inscreve na relação entre o “nós” (a gente) e “eles” (as pessoas) uma outra personagem, “o acadêmico”. Neste momento e neste espaço representados pelos espaços públicos, o “nós”, ou “a gente”, enquanto organizadores conscientes de um movimento consciente, desempenham o papel de “mediadores” na tradução ou explicação, por exemplo, do que é o capitalismo. Como processo complexo, a mediação supõe também a tradução da produção dos próprios mediadores, de seus instrumentos de conscientização e divulgação das ideias do movimento, o que fica evidenciado nesta fala de Orlando Costa: “O nosso jornal, por exemplo, é jornal de movimento; é geralmente ‘a verdade operária’; ´papo reto’ nada mais é que ‘a verdade’ em linguagem popular, né?”.

Retomando a questão do “método de trabalho” referido ao momento pós-ocupação - que supôs, de imediato, através de “comissões” específicas, a limpeza e a reforma do sistema hidráulico do prédio, bem como a obtenção de energia elétrica através da prática do “gato” -, Orlando Costa descreve a ocupação do prédio segundo critérios distintos e diversos:

[As pessoas que ocuparam] eram pessoas que tavam na condição mesmo de demanda por moradia (...). São 12 andares, com 6 apartamentos (...). Então, no total dá umas duzentas pessoas. (....). O pessoal ia subindo, montando os quartos (...). Os primeiros ainda ficavam em quartos coletivos, só que menores. Aí o pessoal juntava assim os grupos, né? A galera que era original do Largo do Machado ficava no segundo andar. Aí a galera que chegou - não sei quando - era no terceiro. Aí a gente ia limpando, reformando e ocupando.

Se a ordem de chegada foi um critério geral na ocupação do prédio, ele revelou o lugar ocupado pelo reconhecido “núcleo inicial” da ocupação em relação aos demais ocupantes que chegaram ao prédio uma vez realizada a ocupação física do mesmo, bem como a distinção entre os ocupantes quanto ao critério de diferenciação natural por idade e quanto à situação familiar. “Tinha vários critérios. Aí depois teve uma distribuição dos andares em respeito assim às pessoas idosas, [já] que [o prédio] não tinha elevador, né? Aí, nos andares baixos, na distribuição final, as pessoas idosas. Famílias ficavam nos andares mais baixos, e lá pra cima eram muitos solteiros, pessoa mais jovem. Eu, no caso, eu morei na cobertura”.

Parte ainda do momento de pós-ocupação diz respeito à realização de “assembleias”, agora com o objetivo de garantir a permanência no prédio por meio da resistência diante da ameaça de retomada do imóvel. “Então, era muita assembleia, direta. Principalmente, no início, tinha assembleia. No início, na ocupação, que tinha aquela tensão de resistência, (...) tinha assembleia duas vezes por dia e durante bem uns meses ficou assim”. Um dos pontos de pauta das assembleias era quanto ao método de resistência, e o método vitorioso foi o chamado “método da tartaruga”. “Tinha uma tática que foi aprovada no final. Seria o método da tartaruga, essa ideia de fechar mesmo na casquinha. A gente devia fazer assim, coisa pra impedir, cimentar porta, coisa assim, pra não ter como entrar. Nós chegamos a ter lá, juntar assim, uma quantidade de comida maior pra [garantir a resistência].

Ao afirmar que a Chiquinha Gonzaga foi “a mãe das ocupações” no centro da cidade do Rio de Janeiro, Orlando Costa pretendeu dizer que as ocupações que surgiram depois - Zumbi dos Palmares, Quilombo das Guerreiras, Machado de Assis – eram “filhas da Chiquinha Gonzaga” porque “gestadas” e “saídas” dela. Afinal, a Chiquinha Gonzaga “era o local da organização das outras [ocupações]”. No entanto, como deixa claro Orlando Costa, a relação entre a “ocupação-mãe” e as “ocupações-filhas” não foi de natureza mecânica, passiva e natural. Quanto às “outras ocupações, já foi bem mais difícil, porque aí já tinha alguma polícia civil acompanhando o movimento. Então, a Zumbi dos Palmares, na primeira vez que a gente tentou, já tava cheia de polícia no local, e a gente não sabe até hoje como é que eles descobriram”.

Essa tentativa frustrada de fundação da ocupação Zumbi dos Palmares levou seus organizadores a mudarem o “método de trabalho”. “Aí nós fizemos uma operação lá militar pra conseguir entrar da segunda vez”. O caráter militar dessa operação consistia na realização da ocupação em “dia aleatório” a ser decidido em “comissão fechada”, isto é, o dia da ocupação seria decidido para o mesmo dia e contava apenas com a participação dos presentes na reunião realizada pela comissão. Como parte da “operação militar”, foram definidos “cinco caminhos diferentes” entre a Chiquinha Gonzaga e o prédio onde se formaria a Zumbi dos Palmares a serem percorridos de modo a calcular “o tempo que demorava pra fazer aí no dia [aleatório”. Orlando Costa atribuiu o caráter “ousado” desta operação a dois aspectos. Primeiro: o prédio a ser ocupado ficava próximo da Sede da Polícia Federal. Segundo: lacrada a entrada do prédio, os ocupantes tiveram de fazer uso de marreta. No entanto, a satisfação foi o fato de que “saiu na primeira página de todos os jornais no dia seguinte”. Tal qual a ocupação da Chiquinha Gonzaga, Orlando Costa reconheceu a distinção entre “a gente” e “as pessoas” quando o assunto era definir o número de participantes na ocupação da futura Zumbi dos Palmares: “o grupo foi grande. Esse aí tinha mais de 50 pessoas. Também de organizador tinha mais de 20 pessoas”. Preocupação que surgiu na preparação da ocupação da Zumbi dos Palmares revelou o problema do “vazamento de informação” referido ao problema da “confiança nos participantes”. “Então, a gente tinha formas objetivas de controlar isso. Então, envolve ter um número de pessoas de confiança e mais ou menos disciplinado, né?”. Isto significava dizer que, se, no “dia aleatório”, alguém dissesse ‘hoje não vai dá pra mim, não’, a referida pessoa era colocada numa espécie de “carcerizinho privado durante bem uma meia hora ali “. Ou poderia mesmo ser impedida de sair caso decidisse não participar da ocupação. “Mas, é assim, não foi nada violento. A gente sentava e conversava “.

Retomando a descrição da participação ou influência de grupos ou doutrinas políticas na Chiquinha Gonzaga, Orlando Costa afirma a existência de “uma boa quantidade de quadros teóricos”: “o que tinha mais forte lá era a FLP, gente não tipo o MTST, que chegava e botava a bandeira. Cada ocupação tinha sua autonomia, né? Mas era basicamente a FLP. Tinha um bocado de marxista e um bocado de anarquista.” E, ao descrever como ocorria a leitura ou a utilização mais prática dos referidos “quadros teóricos”, Orlando Costa define mecanismos de organização e funcionamento da Chiquinha Gonzaga quanto a comportamentos esperados e adotados pelos ocupantes: “É, você imagina, eu discutia coisa como, por exemplo, a crítica ao punitivismo jurídico, que era o negócio que, no início, a ocupação teve uma polêmica forte”.

O caráter forte da polêmica estava referido ao desacordo existente na ocupação – quanto ao papel de mediação realizado pelas assembleias - referente à adoção da “expulsão” como punição para o ocupante que fizesse “qualquer besteirinha”. Os casos passíveis de expulsão – considerados por alguns como reprodução da “estrutura da exclusão” da sociedade dominante – foram ilustrados como sendo fumar maconha, não querer participar de mutirão, cometer lesão corporal leve, fazer sexo em quarto coletivo. Nesta última hipótese, a reprodução da estrutura da sociedade dominante consagra a discriminação de gênero: “não queriam expulsar o cara, não, só a mulher”. Quanto a essa “polêmica forte”, Orlando Costa reconhece a oposição entre membros da base que defendiam a expulsão – que contavam com o apoio dos “anarquistas que são super libertários” – e membros da organização que combatiam a expulsão. No entanto, ele reconhece que “a gente não chegava de fora com alguma estrutura extra contra a base”. Segundo ele, tudo era “consenso”.

No entanto, a própria organização reconhece que “algumas vezes têm que expulsar mesmo (...). No final, só três caras foram expulsos”. A expulsão teve por motivo comportamento que comprometia não apenas “a causa” do movimento, mas principalmente a existência da ocupação: “eles tavam querendo, tipo, tomar o controle da ocupação pra vender quarto, entendeu?”. Orlando Costa distinguiu desta situação a hipótese segundo a qual “o cara foi morar em Minas (...) [e] vendeu a posse dele.” Em suma, “a gente [da organização] era contra mas teve alguns casos que passaram, né?”. Desta situação, Orlando Costa distingue ainda os casos em que “outros caras queriam lucrar com isso”.

Para ele, o que estava em jogo era a “lógica da distribuição pela assembleia” do espaço da Ocupação, que se orientava pelo princípio do não pagamento de dinheiro para o ingresso – ou saída – da Chiquinha Gonzaga. “É, eu tinha [onde morar]. Eu tava lá só pra organizar, né? Eu, quando saí [depois de três anos], devolvi o quarto para o coletivo. Foi dedicado para outra família”, afirmou Orlando Costa. No entanto, esta não era a situação de todos os membros da organização. Como lógica do funcionamento da Chiquinha Gonzaga pós-ocupação, a “lógica da distribuição pela assembleia” definia quem era admitido ou não a morar na Ocupação, segundo critérios distintos e diversos que revelam a composição da Chiquinha Gonzaga: “A gente foca muito assim, a mãe com vários filhos, ter filhos, ser mulher também, hipossuficiência, a pessoa que tem problema de saúde, coisas assim... e sem moradia”.

Uma vez organizada a ocupação segundo a “lógica da distribuição”, o funcionamento da Chiquinha Gonzaga contava com trabalho tanto interno quanto externo. Internamente, o trabalho era realizado pela atuação de comissões específicas constituídas por moradores da ocupação. “Tinha a comissão hidráulica, eu era da hidráulica, [afirma Orlando Costa]. Tinha a elétrica, tinha a marcenaria, tinha a limpeza, tinha a cozinha, tinha a portaria, tinha a recreativa pra criança”. Externamente, o trabalho era segundo “um negócio que chama ‘os apoios’, né? Os apoios eram as entidades. Eram estudantes, pessoal de movimento social que ia lá dá uma aula de alguma coisa: ‘eu quero fazer uma oficina de discussão de gênero’, e a galera ia lá e fazia assim. E funcionava. Tinha às vezes umas meninas que iam só pra cuidar das crianças, quando a mãe tinha que trabalhar”.

Fazia ainda parte da lógica do funcionamento da Ocupação o “trabalho” voltado para evitar toda tentativa de “entrada do tráfico” na Chiquinha Gonzaga: “a gente cuidava das pessoas que são de dentro. (...) se tivesse alguém que tivesse se posicionando a favor de entrar eventualmente [um traficante], essa pessoa poderia ser expulsa”. Segundo Orlando Costa, a ameaça de expulsão sempre funcionou como mecanismo capaz de impedir a presença de traficantes, que “respeitavam” a decisão do coletivo. No entanto, “hoje em dia (...), eles acabaram entrando lá mesmo, porque tá muito, assim, precário, a situação toda, né? A população de rua tá muito maior, a capacidade econômica das pessoas tá muito mais baixa. Então, a demanda pelo tráfico. Então, aí a violência tá maior. Aí acaba [o tráfico] conseguindo entrar”, afirmou Orlando Costa.

A assembleia era direto! Ela ficou muito tempo que era todo dia e depois, durante muito tempo, que era toda semana. Enquanto eu tava lá, eu não me lembro de ter passado um mês sem ter assembleia. No início, foi bem uns 15 dias. Tinha uma de manhã e uma de noite. De manhã, não tinha muita gente, né? Reuníamos as comissões e víamos o que tinha para fazer. Decidíamos o que tínhamos de decidir, a galera saía para trabalhar e, de noite, tinha uma comissão que fazia um balanço e uma programação do dia seguinte. Era um staff. Era uma imersão total. A assembleia era com todo o mundo.

Este relato de Orlando Costa traduz a importância e o papel das “assembleias” como etapa ou momento do “método de trabalho” adotado e desenvolvido pela Ocupação como condição de realização de seu principal objetivo. O caráter quase permanente e constante de sua realização em momento historicamente decisivo na consolidação da Chiquinha Gonzaga se confunde com a formação da Ocupação enquanto “coletivo”, do qual “todo o mundo” participa.

2- Sistematização de Discursos, Crítica da Realidade e Perspectivação Teórica

As falas acima constituem narrativas sobre o processo de formação da Ocupação Chiquinha Gonzaga.

Eles revelam visão histórica segundo a qual a Ocupação se constitui e se reproduz como ação coletiva realizada sob o protagonismo de sujeitos coletivos - os organizadores e os ocupantes – que se constituem de forma igualmente coletiva de acordo com suas experiências e vivências no âmbito de relações tão complexas quão contraditórias que articulam instâncias do poder público, de partidos políticos e da sociedade civil.

Com fundamento na experiência e no conhecimento que organizam e que decorrem da militância política e de movimentos sociais de luta pela moradia no País com os quais estão relacionados, os organizadores da Ocupação constituem e organizam assembleias de conscientização e comissões de trabalho que definem etapas do “método de trabalho” quanto a momentos históricos diferentes da Ocupação, o da “pré-ocupação” e o da “pós-ocupação”.

Quanto aos ocupantes – potenciais e futuros moradores da Ocupação -, eles são duplamente constituídos de forma coletiva. Primeiro: através de suas experiências e vivências em ocupações anteriores. Segundo: através do trabalho de conscientização realizado pelos organizadores com a função de constituição e consolidação da Chiquinha Gonzaga enquanto “coletivo”. Assim, o caráter coletivo que define a ação dos ocupantes - e a existência da Ocupação - é explicado pelo processo da formação coletiva da consciência dos sujeitos.

De outro modo, ainda que por caminhos distintos, a “causa da habitação” - como resposta possível à pergunta “Por que participar da ocupação?” -, constitui a dimensão coletiva da consciência de organizadores e ocupantes enquanto sujeitos coletivos. Como consciência comum, é ela que explicaria a ocupação – na sua origem e no seu desenvolvimento - como movimento coletivo urbano consciente de seu papel ao mesmo tempo de emancipação e de resistência. Afinal, os relatos descrevem a ocupação segundo dois sentidos intimamente ligados: o de emancipação enquanto “produção” de habitação para os sem-teto e o de resistência enquanto “enfrentamento” do sistema que produz a condição dos sem-teto. Por outro lado, a resistência está referida ao processo de conservação dos resultados obtidos com a emancipação - frequentemente ameaçados pelas tentativas de remoção pelo poder público - na mesma medida em que o processo originário de emancipação é também processo originário de resistência contra a condição de sem-teto dos ocupantes.

De acordo com as narrativas de Orlando Costa, as “assembleias” constituem espaços e momentos tanto de conscientização para a fundação da ocupação quanto de socialização para a conservação do coletivo. Elas são conduzidas pelos organizadores da ocupação segundo a influência de “quadros teóricos” e “grupos políticos” distintos e diversos e exigem a tradução de temas e a abordagem de problemas para os ocupantes em “linguagem popular”. Considerando seus objetivos de conscientização e socialização, as reuniões são também espaços e momentos não apenas de aplicação e discussão das técnicas, estratégias e estilos de atuação dos sujeitos coletivos, mas também canais de revelação de ambiguidades e contradições, contrastes e conflitos entre organizadores e ocupantes, entre a cidade e a polícia, entre a “Sociedade” e o “Estado”, entre a ocupação “do centro” e a sociedade “do entorno”.

Ao revelar o caráter problemático da relação de natureza capitalista que articula “trabalho” e “habitação”, “Sociedade” e “Estado” no Brasil contemporâneo, a narrativa sobre a história da Ocupação Chiquinha Gonzaga traz ainda a crítica não apenas ao modelo político de administração da cidade do Rio de Janeiro, mas também aos “métodos de trabalho” utilizados por seus organizadores e aos “modos de pensar e de agir” dos ocupantes. Por outro lado, ela revela o problema da Ocupação quanto à tendência de reprodução da lógica do sistema político-social e do sistema sócio-econômico dos quais ela própria procurar emancipar-se e contra os quais ela própria procura resistir.

Com o objetivo de descrever da forma mais ampla possível a realidade concreta, histórico-social, “Chiquinha Gonzaga”, os relatos de Orlando Costa revelam a complexidade das relações que este “ocupante estratégico” – afinal, sua principal função é a de organizador da Ocupação – estabelece e mantem com os demais ocupantes através do “método de trabalho” na formação, consolidação e funcionamento da Chiquinha Gonzaga. A complexidade em questão revela a multiplicidade e a interligação de realidades - e de sentidos – que definem de forma histórica o caráter coletivo dos ocupantes e da Ocupação. Estas realidades - e seus sentidos - dizem respeito à relação histórica que articula de forma dinâmica “método de trabalho” e “sujeito coletivo” quanto às seguintes dimensões presentes na história da Chiquinha Gonzaga: produção de consciência, tradução de linguagem, formação da história de vida, concepção de história, produção de consenso, adoção de quadro político teórico-doutrinário, orientação política técnico-metodológica, relação entre interno e externo.

A complexidade que caracteriza o ocupante-organizador Orlando Costa através de seus próprios relatos define o problema real e concreto da Ocupação Chiquinha Gonzaga acerca da natureza da relação entre pensamento e ação, entre consciência crítica e ação política, problema esse que pode ser ilustrado pela surpresa de Orlando Costa diante do baixo número de ocupantes no momento histórico de fundação da Ocupação, quando comparado com o número de presentes nas assembleias de conscientização. Dupla é a perspectivação teórica deste problema. Em Antonio Gramsci, ela está referida à hipótese de que “a identificação de teoria e prática é um ato crítico” (GRAMSCI, CC, 1, 260). Em Paulo Freire, ela diz respeito ao reconhecimento de que “um método ativo [que] ajude o homem a se conscientizar (...) de sua problemática (...) se instrumentalizará para as suas opções” (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.: 136).

Quanto à rubrica “método de trabalho”, Orlando Costa não procede a distinções e oposições rígidas quanto às dimensões e sentidos da realidade com os quais ele se vê confrontado, o que é válido igualmente quanto à concepção de “sujeito coletivo” presente em sua narrativa. Quanto a estas realidades e sentidos, ele deixa antever a ideia de “imbricamento” na caracterização de processos reais que se relacionam de forma dinâmica na realidade histórica da Ocupação Chiquinha Gonzaga. Neste sentido, a expressão “método de trabalho” será aqui interpretada segundo a ideia que resulta da crítica que o autor de Cadernos do Cárcere faz à dicotomia “sociedade política-sociedade civil”. Considerando que estas realidades são momentos constitutivos do “Estado Integral”, Gramsci rejeita a ideia de “distinção metódica” e afirma a de “distinção orgânica” (GRAMSCI, CC, 3, 47) entre “sociedade política” e “sociedade civil”. Para ele, a distinção orgânica significa que sociedade política e sociedade civil constituem uma mesma realidade na vida histórica concreta. A natureza da relação que define a unidade orgânica entre os momentos do Estado Integral pode ser pensada segundo a definição gramsciana do conceito “dialética” para explicar a relação entre estrutura e superestrutura como “reciprocidade que é justamente o processo dialético real” (GRAMSCI, CC, 1, 250).

Para o autor de Educação como Prática da Liberdade, cabe à educação crítica tornar o homem “capaz de superar a captação mágica ou ingênua de sua realidade” (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005., 139). Em Pedagogia da Tolerância, Freire afirma o caráter “mágico” do processo de conscientização do homem que se orienta pelas perspectivas do “subjetivismo” idealista e do “objetivismo” mecanicista. “Ambas estas formas de entender a realidade pecam por sua antidialeticidade. (...) a Ação Cultural para a libertação (...) impõe, necessariamente uma ‘travessia’ que mediatiza a subjetividade e a objetividade, que jamais, por sua vez, podem ser dicotomizadas” (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005., 124-125). Assim, viver a realidade decorrente da oposição entre “sociedade política” e “sociedade civil” e compreender a realidade segundo a dicotomia que opõe subjetivistas e objetivistas seriam o resultado da “captação mágica ou ingênua” do homem produzido por uma educação tradicional e acrítica. Assim, o que é distinção orgânica para Gramsci é distinção crítica para Freire em torno da aceitação comum da categoria “dialética”.

O caráter orgânico e crítico das realidades e sentidos que se desenvolveram dialeticamente na história da Ocupação Chiquinha Gonzaga, em referência ao que Orlando Costa denominou “método de trabalho”, caracteriza igualmente as realidades e sentidos que se constituíram de forma dialética em referência ao “sujeito coletivo” quanto às relações históricas estabelecidas entre “organizadores dirigentes” e “ocupantes dirigidos” na história da Ocupação. Do ponto de vista orgânico e crítico, a relação dialética, histórica e concreta, entre “método” e “sujeito” – e suas realidades e sentidos específicos - na formação e consolidação da Ocupação, é expressão de “uma mesma coisa” e da superação da “captação mágica ou ingênua”, ao mesmo tempo. Na história da Ocupação Chiquinha Gonzaga, segundo a narrativa de Orlando Costa, a “identidade” entre “método de trabalho” e “sujeito coletivo”, referida à relação histórica entre “processo de conscientização” e “atuação política”, permite afirmar o papel de mediação que desempenha a “consciência crítica” na produção daquela “identidade”. A “consciência crítica” com caráter de mediação no mundo define a unidade de análise neste trabalho. Sua perspectivação teórica será feita segundo as categorias “intelectual”, de Antônio Gramsci, e “educador”, de Paulo Freire.

3- O Intelectual de Antonio Gramsci e o Processo de Conscientização

A metodologia gramsciana - na mesma linha da de Marx - exige a consideração materialista das condições históricas do contexto a ser analisado para que se compreenda e se justifique a aplicação de suas categorias teóricas.

Ao analisar o papel do intelectual no contexto italiano, o pensador Sardo destaca a importância dos sujeitos que participam da vida política na formação e reprodução de uma hegemonia no campo das ideias.

Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político: o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc, etc. (GRAMSCI, CC, 2, 15).

Com base nesta definição, o autor de Cadernos do Cárcere enfrenta seus próprios questionamentos quanto ao fato de saber se os intelectuais constituiriam grupo social autônomo e quanto ao fato de definir acerca dos limites máximos da compreensão de “intelectual”. A resposta de Gramsci a seus questionamentos é também forma de enfrentar a dificuldade de definir o intelectual segundo critério que procura apenas conhecer a natureza de sua atividade.

Considerando que a distinção entre intelectuais – orgânicos e tradicionais – fundamenta problemas distintos e pesquisas históricas diversas, o autor de Cadernos do Cárcere reconhece tratar-se de “erro metódico” a ser evitado o critério de definição de “intelectual” pela natureza de sua atividade (GRAMSCI, Q4, 49, 475 Apud LIGUORI e VOZA, 2017LIGUORI, Guido e VOZA Pasquale (orgs.). Dicionário Gramsciniano 1926-1937. São Paulo: Boitempo, 2017., 430). Ao privilegiar as funções de natureza organizativa e conectiva como critério de definição de “intelectual” em referências às classes sociais nas sociedades capitalistas, o pensador Sardo termina assim por definir o “intelectual orgânico”.

“O fato central é justamente a função internacional ou cosmopolita dos seus intelectuais [aqui, Gramsci fala dos intelectuais italianos], que é causa e efeito do estado de desagregação em que permanece a península desde a queda do Império Romano até 1870” (GRAMSCI, Q1, 49, 479 Apud LIGUORI e VOZA, 2017LIGUORI, Guido e VOZA Pasquale (orgs.). Dicionário Gramsciniano 1926-1937. São Paulo: Boitempo, 2017., 431). Articulando assim passado e presente, Gramsci reconhece na Itália de sua época a presença histórica de intelectuais do passado ao lado da emergência histórica de nova categoria de intelectuais. Estes definem a categoria “intelectual orgânico”; aqueles, a categoria “intelectual tradicional”. A ideia de “espírito de corpo” permite ao autor de Cadernos dos Cárcere compreender porque os intelectuais tradicionais se viam e eram vistos na sociedade como grupo social independente – ainda que relativamente – do grupo social dominante.

Tomando a sociedade burguesa em seu conjunto, Gramsci considera que traço marcante na formação social capitalista é sua divisão social e técnica no processo de trabalho. É ela que acarreta inúmeras exigências no tocante à administração e à organização da vida social. É ela que responde pela criação da sociedade de forma mais burocratizada e controlada. No entanto, Gramsci alerta para o fato de que os intelectuais não devem ser concebidos com base em relações diretas e imediatas com o sistema de produção. Afinal, tais relações são mediadas tanto pela sociedade civil quanto pelo Estado. Assim, o intelectual orgânico é definido segundo funções específicas, histórica e materialmente determinadas, e referidas à questão das relações de poder na sociedade capitalista.

Segundo Gramsci, os intelectuais tendem a ser ampliados e constituídos por membros oriundos de diversas modalidades de formação profissional e de diferentes classes sociais. Eles são economistas, administradores, gestores públicos, cientistas, pequenos burocratas, engenheiros, advogados, professores, assistentes sociais. Eles podem ser de origem burguesa, camponesa, pequeno burguesa, proletária. No plano político, a função do intelectual se consubstancia, geralmente, na manutenção e aprofundamento da hegemonia da classe social que domina através da combinação de interesses com consenso e coerção. Assim, os grupos de intelectuais interferem, com base em suas diversas origens sócio-profissionais, na produção e na formação do consenso social, inclusive na conscientização dos “subalternos”. No entanto, considerando a análise que Gramsci faz do ensino da filosofia, o papel de conscientização do intelectual não é de natureza determinante ou causal na “elaboração da consciência crítica” do oprimido ou subalterno. Para ele, o ensino da filosofia não deve ser orientado “a informar historicamente o aluno sobre o desenvolvimento da filosofia passada, mas a formá-lo culturalmente, para ajudá-lo a elaborar criticamente o próprio pensamento e assim participar de uma comunidade ideológica e cultural” (GRAMSCI, CC, 1, 119).

Na literatura marxista, o pensamento de Gramsci se notabiliza por se esquivar do determinismo econômico e desponta, desta forma, como uma das principais referências para a compreensão do processo de educação e conscientização dos subalternos orientado para a ação política de transformação, do homem e do mundo.

Por um lado, a política configura-se como elemento vital na formação e conscientização do homem. Concebido “como um bloco histórico de elementos puramente subjetivos e individuais e de elementos de massa e objetivos ou materiais, com os quais o indivíduo está em relação ativa”, o homem é definido por Gramsci como sendo ser político. “Transformar o mundo exterior, as relações gerais, significa fortalecer a si mesmo, desenvolver a si mesmo. (...) Por isso, é possível dizer que o homem é essencialmente ‘político’, já que a atividade para transformar e dirigir conscientemente os outros homens realiza a sua ‘humanidade’, a sua ‘natureza humana’ (GRAMSCI, CC, 1, 406). Por outro lado, a atividade que transforma e dirige conscientemente o homem como ser político depende tanto da definição do “mundo exterior” a ser transformado quanto do modo pelo qual a transformação deste mundo será realizada. “Partir do ‘senso comum’, em primeiro lugar, da religião, em segundo, e, só numa terceira etapa, dos sistemas filosóficos elaborados [pelos] grupos intelectuais tradicionais (GRAMSCI, CC, 1, 119). Esta é a metodologia que, como “consciência crítica”, define uma das fases do processo de conscientização, o “inventário” (GRAMSCI, CC, 1, 93). Ele está referido ao “conhecimento” adquirido de forma acrítica e supõe que o homem precisa conhecer-se a si próprio (GRAMSCI, CC, 1, 94). Porém, “a compreensão crítica de si mesmo é obtida, portanto, através de uma luta de ‘hegemonias’ políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior da própria concepção do real” (GRAMSCI, CC, 1, 103).

Assim, como o questionamento da realidade decorre da emergência do “novo indivíduo” constituído na consciência crítica e por ela, a passagem da “necessidade” à “liberdade” não se faz sem “a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens” (GRAMSCI, CC, 1, 314). O autor de Cadernos do Cárcere denominou esta fase no processo de conscientização de “catarse”. É por meio dela que a consciência é elevada à “forma ético-política”, isto é, indo da necessidade à liberdade.

Para Gramsci, não se pode perder de vista que a natureza humana pode ser utilizada como ponto de partida e motivação para o desenvolvimento de processo de conscientização “desalienante”: reforma moral e cultural da sociedade.

É neste ponto que o conceito do homem deve ser reformado. Ou seja, deve-se conceber o homem como uma série de relações ativas (um processo), no qual se a individualidade tem a máxima importância, não é, todavia, o único elemento a ser considerado. A humanidade que se reflete em cada individualidade é composta de diversos elementos: 1) o indivíduo; 2) os outros homens; 3) a natureza. Mas o segundo e o terceiro elementos não são simples quanto poderia parecer. O indivíduo não entra em relação com os outros homens por justaposição, mas organicamente, isto é, na medida em que passa a fazer parte de organismos, dos mais simples aos mais complexos. Desta forma, o homem não entra em relações com a natureza simplesmente pelo fato de ser ele mesmo natureza, mas ativamente, por meio do trabalho e da técnica. E mais: estas relações não são mecânicas. São ativas e conscientes, ou seja, correspondem a um grau maior ou menor de inteligibilidade que delas tenha o homem individual. Daí ser possível dizer que cada um transforma a si mesmo, modifica-se, na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o centro estruturante. Neste sentido, o verdadeiro filósofo é — e não pode deixar de ser — nada mais do que o político, isto é, o homem ativo que modifica o ambiente, entendido por ambiente o conjunto das relações de que todo indivíduo faz parte (GRAMSCI, CC, 1, 413).

A partir da perspectiva gramsciana, a conscientização é vista como imprescindível para que o “subalterno”, o “oprimido” possa mudar sua situação de explorado. Assim, a articulação entre a educação e o político é evidente. O trabalho de educação permite que o sujeito construa o caminho a partir do senso comum na direção da visão crítica da realidade.

Se a própria individualidade é o conjunto destas relações, construir uma personalidade significa adquirir consciência destas relações; modificar a própria personalidade significa modificar o conjunto destas relações. Mas estas relações, como vimos, não são simples. Enquanto algumas delas são necessárias, outras são voluntárias. Além disso, ter consciência mais ou menos profunda delas (isto é, conhecer mais ou menos o modo pelo qual elas podem ser modificadas) já as modifica. As próprias relações necessárias, na medida em que são conhecidas em sua necessidade, mudam de aspecto e de importância. Neste sentido, o conhecimento é poder. Mas o problema é complexo também por um outro aspecto: não é suficiente conhecer o conjunto das relações enquanto existem em um dado momento como um dado sistema, mas importa conhecê-los geneticamente, em seu movimento de formação, já que todo indivíduo é não somente a síntese das relações existentes, mas também da história destas relações, isto é, o resumo de todo o passado (GRAMSCI,CC, 1, 413-414).

Esta relação que articula passado e presente quanto às relações sociais revela o problema da diversidade e da contrariedade destas relações e, consequentemente, o problema da existência de consciências diversas e contraditórias. Daí o problema da produção da síntese como processo de unificação progressivo e o da “consciência histórica autônoma [dos subalternos]” (GRAMSCI, CC, 4, 52). O autor de Cadernos do Cárcere reconhece que os subalternos possuem duas consciências: “uma explícita” e “uma implícita” (GRAMSCI, CC 1, 93). A primeira corresponde ao grupo dominante que influencia os subalternos quanto a seu comportamento; a segunda, ao pensamento dos subalternos que é capaz de agregar seus simpatizantes com o objetivo de mudar efetivamente a realidade.

Desta forma, o intelectual orgânico desempenha relevante papel social, cujas funções teórico-científicas, diretivas, organizativas e educativas, quando vinculadas organicamente a um dos aparelhos privados de hegemonia, possibilitam a uma classe organizar-se e constituir-se em diferentes níveis na luta por seus interesses em planos variados. Assim, para Gramsci, o processo de conscientização abre espaço para que grupos sociais que não detêm o controle do Estado possam interferir e modificar aspectos do mesmo sem integrarem a sua estrutura. Seria assim possível produzir novos modos de pensar e atuar, criar novas demandas e garantir o cumprimento de reinvindicações, produzir novas normas jurídicas, enfim, realizar novas disputas para além do campo tradicional da sociedade política.

4- O Educador de Paulo Freire e o Processo de Conscientização

“A pedagogia do oprimido que, no fundo, é a pedagogia dos homens empenhando-se na luta por sua libertação, tem suas raízes aí. E tem que ter nos próprios oprimidos, que se saibam ou comecem criticamente a saber-se oprimidos, um dos seus sujeitos” (FREIRE, 1970-----------------. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970., 40). Com base nesta pedagogia humanista e libertadora, o Método de Educação Paulo Freire – de natureza dialética e crítica - busca propiciar alfabetização de forma rápida e consciente de jovens e adultos em contraponto aos métodos que não empregam as experiências dos educandos. Ativo e dialógico, o método de Paulo Freire tem por fundamento a politização e a educação do educando-oprimido.

Este método possibilitou a alfabetização de 300 trabalhadores e trabalhadoras no sertão norte rio-grandense em apenas 40 horas, no ano de 1964. Para além de terem aprendido a ler e a escrever, estes trabalhadores e trabalhadoras conheceram a Constituição do Brasil e seus direitos, aprenderam a diferença entre “povo” e “massa”, “cultura” e “natureza”, “voto consciente” e “voto com nome ferrado”. Daí a natureza revolucionária do método de educação e da pedagogia do oprimido de Paulo Freire.

Para o pedagogo revolucionário, seria equivocado imaginar que o processo de conscientização não passaria de etapa preliminar do processo de aprendizado. Assim, a alfabetização não sucederia à conscientização nem a conscientização sucederia à alfabetização. Afinal, Freire considera que o processo de educação como processo de conscientização supõe que o processo de aprendizado já traduza tomada de consciência do real pelo educando. A consciência que adquire o homem da realidade concreta em que ele se encontra - como momento de superação da “ingenuidade” e “da sensibilidade” de sua situação de classe e de afirmação de sua consciência de classe - constitui o processo de aprendizado deste homem como condição do processo de educação conduzido pelo educador.

Desde logo, afastávamos qualquer hipótese de uma alfabetização puramente mecânica. Desde logo, pensávamos a alfabetização do homem brasileiro, em posição de tomada de consciência, na emersão que fizera no processo de nossa realidade. Num trabalho com que tentássemos a promoção da ingenuidade em criticidade, ao mesmo tempo em que alfabetizássemos (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005., 136).

O reconhecimento que faz Freire da simultaneidade da formação da consciência crítica do educando e do processo de educação pelo educador se fundamenta na rejeição da explicação da relação que articula “educação pelo educador” e “conscientização do educando” de acordo com a perspectiva mecanicista ou finalista, instrumental ou causal. Ele é afirmado com base na compreensão de que esta relação é de natureza dialética e crítica. Considerando que a conscientização do educando como afirmação de consciência de classe se faz através da articulação simultânea entre a realidade e experiência do aprendizado pelo educador e do educando no mundo e que ela constitui condição fundamental para a mudança revolucionária deste mundo, o autor de Pedagogia da Tolerância afirma que “a educação é um ato político (...) [e que] o educador é um político” (FREIRE, 2004, 34). Como político, o educador deixa de ser considerado apenas como técnico que se serve de técnicos e da ciência. Por outro lado, a relação dialética e crítica entre “educação”, “consciência” e “aprendizado” deixa claro que o papel de conscientizar dos educadores não significa “ideologizar” ou propor aos educandos – oprimidos no mundo – “palavras de ordem” como se eles fossem uma tábua rasa na qual seriam inscritas doutrinas diversas. Afinal, a conscientização que abre caminhos para a expressão das insatisfações sociais - componentes reais da realidade da opressão – e para a mudança revolucionária do mundo dos educandos resulta da colaboração – e não da determinação causal ou funcional - com tipo muito particular de educação.

O que teríamos de fazer, numa sociedade em transição como a nossa, inserida no processo de democratização fundamental, com o povo em grande parte emergindo, era tentar uma educação que fosse capaz de colaborar com ele na indispensável organização reflexiva de seu pensamento. Educação que pusesse à disposição meios com os quais fosse capaz de superar a captação mágica ou ingênua de sua realidade, por uma dominantemente crítica (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.,139).

Dito de outra forma, para Freire, o processo de educação só existe como processo de conscientização na hipótese em que ele está comprometido com o homem concreto e na medida em que ele prepara este homem para a crítica das alternativas apresentadas pelas elites e lhe possibilita a escolha do melhor caminho a seguir.

Daí, à medida que um método ativo ajude o homem a se conscientizar em torno de sua problemática, em torno de sua condição de pessoa, por isso de sujeito, [ele] se instrumentalizará para as suas opções. Aí, então, ele mesmo se politizará. Quando um ex-analfabeto de Angicos, discursando diante do presidente Goulart, que sempre nos apoiou com entusiasmo, e de sua comitiva, declarou que já não era massa, mas povo, [ele] disse mais do que uma frase: afirmou-se conscientemente numa opção. Escolheu a participação decisória, que só o povo tem, e renunciou à demissão emocional das massas. Politizou-se (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005., 157).

Articulando dialética e criticamente “processos” e “produtos”, “sínteses” e “mediações” entre “educandos” e “educadores”, a conscientização do educando-oprimido revela o papel de “colaborador” da educação e do educador no processo de conscientização enquanto processo de politização do educando. Afinal, a tomada de consciência e de decisão para a ação é momento no processo de conscientização e politização realizado pelo educando. A problemática que suscita a conscientização é a sua. A condição de pessoa no mundo é a sua. O discurso como forma de afirmação de sua subjetividade crítica é o seu. A decisão de participar de ato político é a sua. Em suma, de acordo com Freire, o educando não é politizado pelo educador. Ele simplesmente se politiza. Ele não é constituído como ser político pelo educador. Ele se constitui como sujeito político com a ajuda e colaboração do educador para agir politicamente. Assim, para o autor de Pedagogia da Tolerância, a conscientização é sempre ato político do oprimido que se educa para libertar-se da situação de opressão em que ele vive. Neste sentido, ela é sempre “um ato de conhecimento e um método de ação transformadora da realidade através do qual as massas populares são desafiadas a exercer uma reflexão crítica sobre sua própria forma de estarem sendo” (FREIRE, 2004, 121-122). Se, em Educação e Mudança (1979-----------------. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.), Paulo Freire afirmou a hipótese do educador como agente da transformação social, ele assim procedeu de modo a combater a visão tradicional e pessimista da sociologia que identifica na educação processo de reprodução mecânica da sociedade.

Para Freire, a colaboração da educação no processo de conscientização do educando consiste na possibilidade de “produção política” pelo educador de categorias práticas capazes de superar no processo de educação o efeito inibidor e ideológico de conceitos abstratos “com certa força mágica, como se, [por exemplo], quando a palavra cidadania fosse pronunciada, automaticamente todos a ganhassem” (FREIRE, 2004, 127). Como conceito abstrato e genérico, a cidadania não é uma produção política. Para tanto, ela depende de que “o educador tem de partir da compreensão crítica de sua própria experiência e a do educando. Sem o conhecimento da experiência do educando, o educador falha” (FREIRE, 2004, 129), e a democracia não se realiza no mundo. Além disto, a experiência em questão está referida à classe social a que pertencem educador e educando.

“Houve quem pensasse que, por defender o diálogo, eu negasse o conflito. O conflito está aí e é fundamental no processo de desenvolvimento, no processo histórico” (FREIRE, 2004, 187). Como pedagogo da tolerância, Freire é também o educador da revolução. “Falo da tolerância como virtude da convivência humana. (...) de sua significação ética – a qualidade de conviver com o diferente. Com o diferente, não com o inferior” (FREIRE, 2004, 24). Assim, a “tolerância virtuosa” não se confunde com a compreensão alienada e alienante da tolerância como condescendência ou indulgência absoluta entre os homens. Para o autor de Pedagogia da Tolerância, a “tolerância genuína”, ou a “tolerância legítima”, que demanda o respeito do outro em sua diferença, não exclui a luta. A luta constitui e forma o sujeito; ela é pedagógica, reconhece Freire. E, como processo histórico, ela exige que o sujeito da luta invente sempre novas maneiras de lutar.

5- Construção e Utilização do Instrumento de Análise do Processo de Conscientização na Ocupação Chiquinha Gonzaga

No campo da produção e circulação das ideias e conhecimentos, ponto de convergência entre Gramsci e Freire pode ser definido quanto à compreensão que eles possuíam da atuação alienante dos intelectuais e dos educadores tradicionais em suas sociedades. Para o filósofo brasileiro, a educação tradicional ignora as experiências e vivências de educandos e educadores no mundo social concreto. Para o filósofo italiano, o intelectual tradicional se considera e é considerado como grupo social independente do grupo social dominante real. Do ponto de vista tradicional, a educação é pensada como processo de reprodução mecânica da sociedade, e o intelectual se considera e age como “espírito de corpo” autônomo em relação ao mundo. As categorias “educação tradicional” e “intelectual tradicional” permitem identificar através dos relatos referentes à preparação da Ocupação Chiquinha Gonzaga o caráter conservador da visão que orienta a prática do processo de conscientização dos ocupantes quanto à distinção mecânica que consagra a oposição entre um “nós” e um “eles”. Para além da classificação dos ocupantes em “capazes” e “incapazes” quanto ao “planejamento” e à “teorização” da própria Ocupação, a distinção revelada por Orlando Costa importa o reconhecimento de que “ato político” e “método ativo” - práticas políticas pensadas respectivamente por Gramsci e Freire - são produzidas apenas pelo “nós”, com a exclusão do “eles”.

Por outro lado, a história da Ocupação Chiquinha Gonzaga permite identificar nos conflitos e contradições sociais o fundamento e o objetivo do “método de trabalho” pensado e adotado pelos organizadores da Ocupação. Aqui a tradição é superada pela modernidade. “O intelectual moderno que sucedeu ao escolástico não pretende reconciliar ou ignorar as visões na ordem de coisas ao seu redor, mas procurar identificar as tensões e participar das polaridades de sua sociedade” (MANNHEIM, 1974-----------------. Sociologia da Cultura. São Paulo: Perspectiva, 1974., 92). Esta é a definição do “intelectual moderno” de Karl Mannheim. Opondo-se ao monopólio intelectual e pedagógico da Igreja, o intelectual moderno de Mannheim parece ser tão crítico da tradição quanto o são o intelectual de Gramsci e o educador de Freire. Afinal, ele se afasta do intelectual escolástico quanto às tarefas tradicionais que não o caracteriza. Porém, o intelectual gramsciano e o educador freiriano realizam funções de organização e de conexão que não se confundem com as tarefas de identificação e participação das tensões na sociedade que caracterizam o intelectual de Mannheim. Eles se caracterizam por participar do processo de constituição crítica do homem como sujeito crítico de conhecimentos e ideias recebidos de forma acrítica - isto é, por realizar o que Gramsci chamou de “inventário” – como condição e objetivo de decidir e agir de forma política, produzindo mudanças no mundo e transformações em sua condição de homem no mundo. Como espaços e momentos do processo de conscientização conduzido pelos fundadores da Chiquinha Gonzaga, as reuniões públicas revelam a distinção dos ocupantes potenciais e futuros entre “sujeitos coletivos” e “sujeitos individuais” segundo possuam ou não, por exemplo, experiências e vivências quanto a ocupações e remoções anteriores. Com fundamento na história de vida dos participantes das reuniões, a distinção entre os sujeitos permite pensar a distinção entre os níveis ou momentos da consciência dos sujeitos e assim reconhecer a superação do “senso comum” pelos “sujeitos coletivos”. Não obstante o conhecimento da diferenciação interna da categoria “eles” (sujeitos coletivos e sujeitos individuais) por parte dos organizadores, os relatos de Orlando Costa revelaram que a preocupação deles em transmitir a consciência do “nós” através do método da tradução da linguagem produziu ruptura com a consciência dos sujeitos coletivos e se afastou do que Gramsci denominou de “consciência crítica” e do que Freire chamou de “educação crítica”. A afirmação de atitudes mecanicistas e a negação da dialeticidade revelam a presença de elementos da “tradição” na história de resistência e contestação da Ocupação Chiquinha Gonzaga.

“Como atingir e levar a cabo decisões incondicionais em face de uma existência condicionada?” (MANNHEIM, 1974, 70). A resposta a esta pergunta permite ao autor de Ideologia e Utopia definir a “identidade missionária” do intelectual moderno como sendo o “estrato médio relativamente desvinculado [grifo nosso] que se encontra aberto ao ingresso constante de indivíduos das mais diversas classes e grupos sociais, com todos os pontos de vista possíveis” ((MANNHEIM, 1986-----------------. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986., 186). Para Mannheim, a produção de “síntese incessantemente nova e ampla” na vida pública constitui a missão do intelectual moderno, e a condição para que ele realize sua missão é que ele seja “relativamente independente”. Não constituindo classe social determinada, o grupo social específico que é o novo intelectual é definido segundo a influência da concepção de “intelligentsia socialmente desvinculada” ou “intelligentsia livremente flutuante” de Alfred Weber (MANNHEIM, 1956, 143). Para o autor de Sociologia da Cultura, “um exame mais próximo da base social destes estratos mostrará que são menos claramente identificados no processo econômico” (MANNHEIM, 1974, 76). Como organizador com “a missão” de “conscientizar” os “sujeitos individuais” antes e depois da Ocupação, Orlando Costa possuía moradia formal e trabalho formal. Ele poderia, então, ser considerado como “relativamente independente” em relação à própria Ocupação. Mesmo que não traduza a imagem e a condição reais de todos os organizadores, Orlando Costa, ao se pensar como um “nós”, ele se pensa e pensa os demais organizadores como possuindo um estatuto especial, o da consciência crítica, que define espécie de identidade e missão para o “nós” que eles pretendem personificar e que lembra a ideia gramsciana de “espírito de corpo”. No entanto, o nível do engajamento do “nós” – e de Orlando Costa - nos diversos momentos da história da Ocupação Chiquinha Gonzaga questiona o caráter precário e temporário do intelectual “livremente flutuante” ou “relativamente independente” de Mannheim.

A “identidade missionária” do intelectual moderno de Mannheim não interpela a “identidade” do intelectual de Gramsci e a do educador de Freire. A ideia de “intelectual relativamente desvinculado” presente em Ideologia e Utopia não se compatibiliza com as figuras “absolutamente engajadas” do filósofo italiano e do educador brasileiro. A crítica de Gramsci à articulação entre intelectual e sistema produção é diferente da de Mannheim a este tipo de relação. Para o autor de Cadernos do Cárcere, o caráter problemático desta relação consiste em concebê-la de modo direto e mecânico, independente das mediações feitas pela sociedade civil e pela sociedade política. O distanciamento - relativo - e o engajamento - absoluto – dos intelectuais podem ser compreendidos segundo a perspectiva histórica e o enquadramento sociológico de Gramsci e Freire e de suas obras. Esta afirmação é igualmente válida quanto à história e às “obras” dos organizadores da Ocupação Chiquinha Gonzaga. Os relatos de Orlando Costa permitem compreender o engajamento dos organizadores na chave de múltiplas mediações, das quais fazem parte os movimentos sociais de contestação às formas de violência praticadas pelo Estado. Por um lado, o esquema classificatório em questão possui a vantagem de problematizar a postura epistemológica dos referidos “filósofos” segundo visões de ruptura ou conexão em relação à realidade concreta, histórica e social. Por outro lado, o caráter problemático da disjuntiva distanciamento-engajamento reside no “sentido absoluto” que elas atribuem ao comportamento e ao pensamento de afastamento ou de distanciamento das pessoas. “Normalmente, o comportamento dos adultos se situa dentro de uma escala que oscila entre estes dois extremos” (ELIAS, 1990ELIAS, Norbert. Compromisso y Distanciamiento; ensayos de sociologia del conocimiento. Barcelona: Ediciones Península, 1990.: 11. Tradução livre). Como que tendo cumprido sua “missão”, Orlando Costa deixa a Ocupação três anos depois de sua fundação.

Para o autor de Compromisso y Distanciamiento, apenas as “crianças pequenas” e os “adultos dementes” poderiam comprometer-se e abandonar-se de forma absoluta às suas atitudes e experiências e apenas entre estes últimos é possível identificar um “distanciamento absoluto”. “Em geral, o que observamos são pessoas e suas manifestações – isto é, formas de falar, pensar e outras atividades -, algumas das quais revelam um maior distanciamento, outras um maior compromisso” (ELIAS, 1990ELIAS, Norbert. Compromisso y Distanciamiento; ensayos de sociologia del conocimiento. Barcelona: Ediciones Península, 1990.: 12. Tradução livre). De acordo com Elias em seus ensaios de sociologia do conhecimento, o caráter problemático do “contínuo” reside na questão de saber acerca da possibilidade de definir critérios capazes de determinar com precisão os diversos graus de compromisso e distanciamento. Aqui, então, a questão consiste em saber se a “qualidade” que define o organizador da Ocupação pelo método que opera com a disjuntiva nós-eles constitui critério possível para definir o “grau” de compromisso de Orlando Costa e de seus pares na história da Chiquinha Gonzaga.

No entanto, afirmar a realidade geral do “contínuo” como condição de validação geral das categorias “compromisso” e “distanciamento” no âmbito de uma disciplina científica – a sociologia geral - implica proceder de forma abstrata e abstraída quanto a contextos históricos e sociais histórica e materialmente determinados. O intelectual de Gramsci e o educador de Freire são críticos e revolucionários em relação aos métodos tradicionais de produção e circulação de ideias e conhecimentos no contexto do desenvolvimento histórico de seus mundos, com a produção de riqueza e miséria, liberdade e prisão, libertação e opressão a um só tempo. Freire reconhece que a produção de categorias práticas para enfrentar os efeitos inibidores e ideológicos das categorias abstratas dos métodos tradicionais constitui condição da compreensão crítica da realidade tanto do educando como do educador, sem o que nenhuma revolução poderá feita. Para Lukács, “o que separa o filósofo importante [assim como o intelectual de Gramsci e o educador de Freire] do eclético inteligente é a irrelevância histórica da síntese puramente acadêmica do segundo, quando comparada à máxima importância prática do primeiro” (Apud Mészáros, 2013, 35). Os relatos de Orlando Costa não descrevem nem fazem referências a categorias práticas produzidas por “setores” dos “dirigidos” (“eles”) – tal como o “núcleo originário” - como condição de enfrentamento da metodologia adotada pelos organizadores nas reuniões públicas. Eles apenas revelam a “surpresa” quanto à diferença entre o número de pessoas que define o “eles” nas reuniões e o número de pessoas presentes no dia da Ocupação.

Na modernidade, a emergência da sociologia como “saber total e universal” define a missão única do intelectual de Mannheim como sendo a de produzir “a síntese” das múltiplas, diversas e legítimas formas de pensar de grupos sociais que se confrontam na vida pública. O problema desta definição de intelectual – se comparada com a de Gramsci e a de Freire - consiste em reconhecer a possibilidade de elementos da antítese serem incorporados à síntese como totalidade social cognitiva. Referidos a insatisfações sociais de realidade históricas caracterizadas por contradições cultural e politicamente naturalizadas, os elementos da antítese em questão constituem o “objeto real” da crítica do intelectual de Gramsci e do educador de Freire. Por outro lado, o problema da síntese é também o problema da totalidade, se esta é pensada sem mediação. O problema da síntese que consagra elementos da antítese e o problema da totalidade sem mediação aparecem nos relatos de Orlando Costa como referência às discussões sobre o papel das “assembleias” – se “educar” ou “punir” - na fase histórica da consolidação da Ocupação da Chiquinha Gonzaga, considerada “a mãe das ocupações”. As discussões trazem a polêmica acerca da reprodução da estrutura social punitiva e excludente por um movimento de protesto que se constitui como movimento de resistência a esta mesma estrutura e revelam a coexistência conflituosa entre o interesse particular e a lógica do lucro individual e o interesse coletivo e a lógica da Ocupação.

“No entanto, ‘totalidade social’ sem ‘mediação’ é como ‘liberdade sem igualdade’: um postulado abstrato – e vazio. A ‘totalidade social’ existe por nessas mediações multiformes, por meio das quais os complexos específicos – isto é, as ‘totalidades parciais – se ligam uns aos outros em um complexo dinâmico geral que se altera e modifica o tempo todo” (MÉSZÁROS, 2013-----------------. O Conceito de Dialética em Lukács. São Paulo: Boitempo, 2013., 58). Esta passagem do autor de O Conceito de Dialética em Lukács permite pensar a medida em que a “síntese nova” em Freire não constitui “um postulado abstrato”. Ao definir a tomada de consciência do real pelo educando e pelo educador como condição do próprio processo de conscientização e de aprendizado voltado para ação política de transformação do homem e do mundo, o método dialético e crítico de Freire supõe a “produção de categorias concretas”. Os relatos de Orlando Costa não fazem alusão a estas categorias, nem tampouco às insatisfações reais enquanto componentes reais da realidade. No entanto, o modo como são “apresentadas” e “descritas” as relações entre organizadores, ocupantes e núcleo original – sem a prática da “colaboração” - justifica questionar não apenas a natureza dialética, mas também os resultados do “processo de conscientização” quanto à transformação das referidas personagens.

Do ponto de vista da dialética em Lukács, a questão é saber se a “síntese nova” em Freire traduz “a unidade entre continuidade e descontinuidade” (Apud Mészáros, 2013, 33) e se a originalidade, ou a mudança qualitativa, no pensamento com as categorias práticas se constitui em oposição à “ruptura radical”. “Esta [a mudança qualitativa] pode caracterizar a totalidade do desenvolvimento do sujeito, enquanto aquela [a ruptura radical] está confinada a certos aspectos desse desenvolvimento, por mais importantes que sejam em alguns pontos – por exemplo, sociologicamente” (Apud Mészáros, 2013, 34). O autor de História e Consciência de Classe define o problema da totalidade nos seguintes termos: “A totalidade só pode ser determinada se o sujeito que a determina é ele mesmo uma totalidade” (LUKÁCS, 2003-----------------. História e Consciência de Classe; estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2003., 107). Este é igualmente o problema na caracterização do intelectual de Gramsci e do educador de Freire. Este é igualmente o problema revelado nos relatos de Orlando Costa. Neles, os organizadores figuram como pensando e agindo de forma mecânica quando atuam como “educadores” ou “intelectuais” tradicionais. “O concreto é concreto porque ele é a síntese de múltiplas determinações, donde unidade na diversidade. É daí porque ele aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora ele seja o verdadeiro ponto de partida e, por conseguinte, igualmente, o ponto da visão imediata e da representação” (MARX, 1982MARX, Karl. Introdução à crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1982.: 10). Para o autor de Introdução à crítica da economia política, este é o método correto para pensar, para produzir a síntese, para pensar o concreto. O problema para Freire consiste em saber se suas “categorias práticas” – com a função crítica da tradição e ao mesmo tempo com a função política de mudança do homem e do mundo – constituem “unidade na diversidade” como “ser” no pensamento e como “dever ser” no mundo. O problema levantado por Freire talvez possa ajudar a compreender a surpresa dos organizadores da Chiquinha Gonzaga quanto à ausência da “massa” no momento inaugural da Ocupação e à necessidade de realização de assembleias permanentes e contínuas como condição de consolidação e preservação da Ocupação.

Em Diagnóstico de Nosso Tempo, interessado pelo desenvolvimento do método capaz de promover a democracia quando referida a “grandes massas”, Mannheim propõe “estratégia educacional” segundo a distinção entre “pessoas simples” e “pessoas cultas”, distinção essa presente no “sistema planejado da Igreja Católica” (MANNHEIM, 1961MANNHEIM, Karl. Diagnóstico de Nosso Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1961., 27-8). Para Gramsci, o processo de conscientização pelo intelectual supõe processo de “desalienação” através do “inventário”, e não processo de reprodução de esquemas dos intelectuais tradicionais, que impedem conhecer o papel do conhecimento e da cultura na hegemonia de classe. Para Freire, o processo de conscientização pelo educador não se faz sem o processo de conscientização tanto do educando quanto do educador. Nos dois filósofos, as etapas do processo de conscientização não correspondem à oposição simples entre “educadores” e “educandos”, e sim à concepção dialética que aproxima e identifica “educadores” e “educandos” quanto a interesses e objetivos específicos. Neste sentido, com sua distinção mecânica entre “nós” e “eles”, Orlando Costa revela modo de pensar e realizar o processo de conscientização sem dialeticidade. Sem eliminar as “tensões” existentes no mundo, a dialética como reciprocidade em Gramsci e como simultaneidade em Freire permite pensar o processo de conscientização segundo a concepção de Lukács quanto ao processo de autoconhecimento do homem como “peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo”:

O processo (...) é a peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro na realidade simplesmente existente, em si heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoconhecimento. Depois da conquista desse autoconhecimento, o ideal encontrado irradia-se como sentido vital na imanência da vida, mas a discrepância entre ser e dever-ser não é superada (...) (LUKÁCS, 2000LUKÁCS, G. A Teoria do Romance. São Paulo: Editora 34/Duas Cidades, 2000., 25).

O problema da superação da disjuntiva ser/dever-ser em Lukács lembra o mesmo problema da discrepância em Freire quanto à produção e ao uso de suas categorias práticas. Com sua antidialeticidade através da relação de ruptura entre “nós” e “eles”, Orlando Costa – e talvez mesmo os demais organizadores como ele – não revelou condições de pensar o homem quanto a seu auto-conhecimento.

Mannheim concebe os problemas sociais tais como “o desemprego, a desnutrição ou a carência educacional” como sendo meros “obstáculos ambientais” (Lukács Apud Mészáros, 2013, 34). Ele pensa a eliminação destes obstáculos através dos “métodos de investigação empírica que em tantos outros campos indicaram soluções para a deterioração institucional” (Lukács Apud Mészáros, 2013, 34). Em suma, Mannheim – diferentemente de Gramsci e de Freire - concebe os problemas sociais de forma independente – ainda que relativamente – do sistema econômico de produção que é o capitalismo. Neste sentido, ele se afasta da concepção de intelectual como “homem significativo”, tal como concebido por Lukács. “Contudo, independente dos limites de adaptabilidade do filósofo individual, o fato é que ele [assim como Gramsci e Freire] não aprende nos livros as questões importantes de sua época, mas as vive, isto é, se for um homem significativo” (Lukács Apud Mészáros, 2013, 34). Neste sentido, como acadêmico, pesquisador ou cientista que não aprende “as questões importantes de sua época” senão através dos “livros”, Mannheim se constitui e constitui o “intelectual” como não sendo “homem significativo”, e sim como “homem formal”. A preocupação de Orlando Costa – e certamente dos demais organizadores – em relacionar movimentos sociais de ocupação urbana e o desenvolvimento do sistema capitalista como condição de explicar a formação da Ocupação Chiquinha Gonzaga mostra que ele é também “um homem significativo”.

István Mészáros define a tendência que gera o formalismo como sendo “a necessidade de extinguir os conflitos no plano da teoria, deixando seus elementos materiais intocados no mundo prático (...) [com a consequente negação da] racionalidade dos conflitos de valor (MÉSZÁROS, 2009MÉSZÁROS, István. Estrutura Social e Formas de Consciência. São Paulo: Boitempo, 2009., 43). Para o autor de Estrutura Social e Formas de Consciência, os conflitos e antagonismos são assim declarados como sendo ‘ontologicamente insuperáveis, tornando-os assim estranhamente ‘não existentes’ do ponto de vista das estratégias factíveis na prática para atacar as raízes do conflito historicamente determinado” (MÉSZÁROS, 2009MÉSZÁROS, István. Estrutura Social e Formas de Consciência. São Paulo: Boitempo, 2009., 43-44). O problema em Mannheim – que definiu o intelectual moderno (laico e público) como sendo aquele que rompeu e usurpou o monopólio sacerdotal da interpretação pública do mundo – consiste precisamente no fato de que seu modo de pensar os problemas no mundo implica soluções por métodos científicos em disciplinas cujos problemas são definidos de forma independente das “raízes do conflito historicamente [e materialmente] determinado”. A forma como Mannheim pensa problemas e soluções corresponde à sua preocupação com o desenvolvimento e consolidação da Sociologia do Conhecimento como disciplina científica. Por outro lado, é com base em condições histórico-sociais singulares na história da humanidade - a ascensão das classes médias e a mentalidade e a cultura democráticas no início dos tempos modernos - que Mannheim define o intelectual moderno como “homem formal”. Como “homem formal”, Orlando Costa se distingue do intelectual de Mannheim e do formalismo definido por Mészáros. Porém, como “educador”, ele é formal quanto ao modo como procede em relação a seus “educandos”, sem consciência crítica e sem dialeticidade, ainda que ele possa ser considerado como “homem significativo” ao relacionar o movimento de ocupação que ele organiza com o sistema capitalista que ele procura “traduzir e explicar” para aqueles que ele busca “conscientizar”.

Princípios e categorias universalistas e anti-aristocráticos, abstratos e genéricos que orientavam o intelectual moderno tinham por objetivo garantir a comunicação num mundo – moderno e democrático – caracterizado pela presença de grupos sociais tão distintos quanto diversos no espaço público. “A necessidade de abstração e análise não é imposta pelas coisas; sua origem é social; (...) é mais provável que relações abstratas sejam descobertas em sociedades democráticas do que aristocráticas” (MANNHEIM, 1974, 156). Neste contexto, “(...) fator que favorece a consciência de grupo é a moderna prática de educar uma pessoa numa atmosfera socialmente neutra cuja inexistência no tipo tradicional de educação inibia o surgimento de uma orientação grupal nova e independente” (MANNHEIN, 1974, 76). Para o autor de Sociologia da Cultura, não sendo a ausência absoluta de interesses de classe, é a presença da educação na formação do indivíduo que constitui o critério sociológico mais importante para a investigação da formação do novo intelectual. Tanto em Gramsci quanto em Freire, o processo de conscientização – do indivíduo ou do grupo – é sempre processo de “educação” de pessoas numa “realidade” - e em relação a uma “realidade” - que não é nunca “neutra”, e sim histórica e materialmente determinadas. Como visto através dos relatos de Orlando Costa, o problema do formalismo do organizador não está tanto referido ao problema de comunicação com os “conscientizados”, e sim à ausência da consciência crítica do “conscientizador” que não se transforma no próprio processo de conscientização e que não percebe que não é a distinção entre “nós” e “eles” neste processo que constitui o “conscientizado” como sujeito político, de ação e de transformação.

6- Conclusão

A narrativa de Orlando Costa revela a existência de problemas reais (político-jurídicos, sócio-econômicos) na história da Ocupação Chiquinha Gonzaga. No entanto, foi a linguagem da narrativa deste organizador que revelou problemas de outra ordem na história da Ocupação. A expressão mais significativa deste problema foi identificada com a afirmação da existência de um “método de trabalho” que tinha a função de “conscientizar” os ocupantes. Possuindo duas etapas distintas, porém complementares, este método foi adotado nos dois momentos históricos da Ocupação referidos por Orlando Costa: as “reuniões” que preparavam a “formação” da Ocupação e as “assembleias” que se destinavam à consolidação da Chiquinha Gonzaga.

O caráter problemático das etapas do método foi reconhecido através da linguagem que traduzia oposição mecânica entre os “organizadores” e os “ocupantes” enquanto expressão de relação formal que opunha “nós que sabemos” a “eles que não sabem”. A natureza antidialética desta linguagem foi considerada como a materialidade capaz de definir a história da Ocupação segundo situações específicas em momentos determinados na vida da Chiquinha Gonzaga: na formação, a ausência “massiva” das pessoas, e na consolidação, a presença “significativa” dos conflitos.

Descrito o problema deste trabalho nos termos de como foi percebida a articulação entre “conscientizador” e “conscientizado”, isto é, como relação capaz de explicar a produção do sujeito político como sujeito da transformação social, as categorias teórico-práticas “educador” e “intelectual” foram mobilizadas com o objetivo operacional de compreender o problema tal como ele foi construído em sua relação com elementos históricos de sua realidade que apareceram na narrativa de Orlando Costa. O modo como o problema existe pensado no pensamento de Freire e de Gramsci e o modo como ele foi articulado com categorias e problemas de outros pensadores (Mannheim, Lukács, Mészáros) não possuíram assim como objetivo a construção de instrumento de análise teórica voltado para o “enquadramento” da realidade histórica definida pelo discurso de um morador da Ocupação Chiquinha Gonzaga.

Ao permitir pensar a existência de momentos, níveis e tipos de consciência como condição do pensamento sobre a produção do sujeito político e do ato político, o problema definido neste trabalho, com base na linguagem do discurso do “oprimido” que desempenha função “organizativa” do “movimento” capaz de produzir antagonismo às estruturas capitalistas e burguesas e engajamento de seus membros na luta cotidiana por reivindicações, supõe seu confronto com outros discursos de Orlando Costa e/ou de outros organizadores e moradores como condição de compreensão de outros sentidos e de conhecimento de outros fatos que fazem parte da história da Chiquinha Gonzaga. Daí a importância do conhecimento da dinâmica das reuniões e das assembleias conduzidas pelos organizadores da referida Ocupação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2018
  • Aceito
    20 Fev 2019
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