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Habilitação econômica, gênero e mudança jurídica

Economic empowerment, gender and legal change

Resumo

A habilitação econômica para o consumo se correlaciona a mudanças jurídicas no reconhecimento de direitos ligados à igualdade de gênero no Brasil. O presente estudo parte de categorias afetas às relações entre capitalismo, gênero e mudanças jurídicas para pensar transformações em direitos das mulheres e direitos LGBT no Brasil, com ênfase para a relação entre empoderamento econômico e a reversão de hierarquias sociais arbitrárias herdadas.

Palavras-chave:
Direito e capitalismo; Direitos das mulheres; Direitos LGBT

Abstract

Economic empowerment and enhanced consumption correlate with changes in the legal recognition of gender equality in Brazil. This essay employs categories that link capitalism to gender and to legal change in order to think about legal change regarding women’s rights and LGBT rights in Brazil, emphasizing the relationship between economic empowerment and the reversal of arbitrary social hierarchies inherited from the past.

Keywords:
Law and capitalism; Women’s rights; LGBT rights

Introdução

O presente estudo sugere correlações entre o reconhecimento de direitos ligados a gênero e a habilitação econômica de indivíduos e grupos. Referidas correlações parecem expressivas quando a habilitação econômica da mulher, a partir do contexto de massificação de sua inclusão no mercado de trabalho, é levada em conta para refletir sobre as transformações jurídicas orientadas para o reconhecimento de direitos como sufrágio, capacidade civil, direitos ligados ao trabalho e o divórcio. A correlação também parece fazer sentido, ao menos em parte, para o fenômeno mais recente do reconhecimento de direitos LGBT como uniões, casamentos e adoções por casais do mesmo sexo, que o estudo conecta à ascensão do “pink money” na porção final do século XX. Nos dois casos, a habilitação econômica parece ter sido fator contextual relevante para conquistas jurídicas ligadas a gênero.

A análise da correlação entre gênero, habilitação econômica e reconhecimento de direitos é criticamente pautada no papel da afirmação da igualdade pelo liberalismo clássico. A afirmação da igualdade formal, na passagem das sociedades de tipo tradicional para sociedades modernas ou de mercado, permitiu legitimar a rejeição das hierarquias políticas herdadas da tradição. Porém, ao mesmo tempo, embalou nova hierarquização, dessa vez dinâmica, a ser dada pela habilitação econômica. Nesse sentido, a declaração de igualdade formal de direitos coexiste com a desigualdade material na possibilidade de acesso a referidos direitos. E nada impede que a declaração genérica de igualdade formal coexista com desigualdades também formais específicas.

Esse foi o caso das previsões legais do direito civil brasileiro, que por muito tempo estabeleceram a incapacidade civil das mulheres casadas, as quais precisavam de autorização marital para praticar certos atos da vida civil, como o exercício de uma profissão. Durante o século XX, mulheres conseguiram o reconhecimento de direitos como o sufrágio, direitos específicos na relação de trabalho, tais como a proteção à maternidade, o fim da incapacidade civil relativa da mulher casada e o direito ao divórcio. Muito embora o reconhecimento desses direitos possa ser associado à massificação do emprego de mulheres como força de trabalho, especial atenção precisa ser conferida ao aspecto de que a mulher negra, no Brasil, sempre teve sua força de trabalho explorada, sem que isso importasse o reconhecimento de direitos.

De modo semelhante, é possível correlacionar conquistas de direitos LGBT em anos mais recentes, como uniões, casamentos e adoções por casais do mesmo sexo, à percepção, por setores empresariais nos mercados, da diferenciação de seu poder de consumo - aspecto que a expressão “pink money”, desde o setor de publicidade e propaganda, captura. No entanto, assim como é necessário realizar um recorte entre a trajetória das mulheres em geral e das mulheres negras em particular, também é necessário diferenciar as pautas, conquistas e habilitação econômica de pessoas representadas pelas siglas LGB (lésbicas, gays e bissexuais) - esses sim comumente associados ao “pink money” - e a população T (transexuais, transgêneros e travestis), em geral empobrecida e marginalizada1 1 O texto “Pobreza e Gênero: a marginalização de Travestis e Transexuais pelo direito” corrobora com essa afirmação ao relatar que cerca de 90% dos travestis e transexuais sobrevivem de trabalhos informais e marginalizados, e vivem “em condições que não facilitam a inserção no mercado de trabalho ou, até mesmo, a possibilidade de frequentar cursos profissionalizantes, os transgêneros, muitas vezes, não têm opção, senão a de procurar meios de sustento na prostituição.” (PEREIRA; GOMES, 2017, p.215) . Muito embora conquistas recentes da população T estejam em curso no Brasil, como o direito ao nome social e à mudança do nome civil diretamente em cartórios, a temporalidade dessas conquistas é comparativamente posterior.

Em comum, tanto a trajetória dos direitos ligados à mulher quanto dos direitos LGBT leva a inquietações no seguinte eixo: a habilitação econômica, e em especial, a habilitação para o consumo social e economicamente relevante ou expressivo, parece estar ligada à ocorrência de pontos de virada no reconhecimento de direitos de gênero. Esta chave de compreensão permite distinguir as temporalidades de reconhecimento de direitos no interior de um extrato social aparentemente compartilhado, mas que em realidade tem diferenciais expressivos. Assim, não foi a exploração massificada do trabalho da mulher negra - historicamente precarizado e ligado a padrões de subconsumo - que se correlacionaram ao reconhecimento formal de direitos das mulheres, mas a massificação do trabalho que alcançou a mulher de classe média, inicialmente nas economias capitalistas avançadas e, posteriormente, no Brasil. De modo semelhante, a população referida pela sigla LGB está associada a padrões de habilitação para o consumo relevante, em contraste com a população T, associada ao subconsumo. E, novamente, as pautas LGB (ligadas à sexualidade) tiveram temporalidade de reconhecimento acelerado em relação às pautas da população T (ligadas à identidade de gênero).

Referida inquietação, com sua ênfase nas relações entre habilitação econômica, gênero e reconhecimento de direitos, não busca invisibilizar a importância da luta política e dos movimentos sociais para a conquista de titularidades jurídicas e a reversão de opressões. Não se trata, tampouco, de sugerir relações de causalidade. Mas de apontar a relevância de um fator que, ao que os elementos levantados nesse estudo sugerem, parece estar imbricado no reconhecimento de novas formas jurídicas ligadas à questão de gênero, ou seja, ao poder prático de reversão de hierarquias arbitrárias herdadas do passado.

Para tanto, a seção 1, a seguir, explora categorias envolvidas na transição das sociedades tradicionais e do modelo de hierarquias rígidas, e imobilidade social, para as sociedades modernas ou de mercado, conectando essa transição à emergência da perspectiva econômica e à afirmação - meramente formal - da igualdade como princípio jurídico. Em seguida, a seção 2 correlaciona a habilitação econômica das mulheres mediante inserção massificada como força de trabalho assalariada à temporalidade das mudanças mais significativas nos direitos das mulheres no Brasil. De forma análoga, a seção 3 focaliza a temática do “pink money”, e seu sentido de habilitação econômica para o consumo relevante, de modo associado à temporalidade do reconhecimento de direitos LGBT no Brasil. Referida seção é seguida das considerações finais.

1 Moeda, habilitação econômica e subversão de hierarquias sociais herdadas

No capítulo 3 do livro I do Capital, intitulado “O dinheiro ou a circulação de mercadorias”, Karl Marx retoma um ponto feito em Grundrisse: como a sociedade antiga denunciou o dinheiro como elemento de discórdia (MARX, 2011MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 166), ao passo que a sociedade moderna “saúda no Graal de ouro a encarnação resplandecente de seu princípio vital mais próprio.” (MARX, 2017, p. 206) A ideia de que na sociedade moderna o “próprio dinheiro é a comunidade, e não pode tolerar nenhuma outra superior a ele” (MARX, 2011, p. 166), enseja a noção de que a posse do dinheiro vem a ser a base para o poder social, para o poder de classe.

Como no dinheiro está apagada toda diferença qualitativa entre mercadorias, também ele, por sua vez, apaga, como leveller radical, todas as diferenças. Mas o dinheiro é, ele próprio, uma mercadoria, uma coisa externa, que pode se tornar a propriedade privada de qualquer um. Assim, a potência social torna-se potência privada da pessoa privada. (MARX, 2017MARX, K. O capital: crítica da economia política. Vol. 1. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 205-6)

A compreensão desse aspecto ligado ao lugar do dinheiro nas sociedades modernas para Marx parece derivar ao menos de outras duas considerações fundamentais.

A primeira delas é o destaque do caráter eminentemente social da mercadoria. Logo no capítulo 1 do Capital, Marx destaca o caráter fetichista da mercadoria, pelo qual “as relações entre os produtores, nas quais se efetivam aquelas determinações sociais de seu trabalho, assumem a forma de uma relação social entre os produtos do trabalho.” (MARX, 2017MARX, K. O capital: crítica da economia política. Vol. 1. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 147) Em outros termos, a mercadoria consubstancia relações que no fundo são entre pessoas e pessoas. Mais do que isso:

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais. (MARX, 2017MARX, K. O capital: crítica da economia política. Vol. 1. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 147)

A segunda consideração fundamental, complementar à primeira, é que o dinheiro também é uma mercadoria. Portanto, também ele - e de modo exponenciado - opera o fetiche de obscurecer como se fossem de coisas relações que primordialmente são sociais:

é justamente essa forma acabada - a forma-dinheiro - do mundo das mercadorias que vela materialmente [sachlich], em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos privados e, com isso, as relações sociais entre os trabalhadores privados. (MARX, 2017MARX, K. O capital: crítica da economia política. Vol. 1. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 150)

O caráter fetichista da mercadoria e especialmente do dinheiro reflete aquilo que, desde a antropologia, Louis Dumont apontou como traço distintivo da “ideologia moderna2 2 Dumont chama de ideologia o “conjunto de ideias e dos valores - ou representações - comuns em uma sociedade ou correntes em um dado meio social.” (DUMONT, 2000, p. 29) e do lugar que nela ocupa o pensamento econômico”:

nas sociedades tradicionais, as relações entre os homens são mais importantes, mais altamente valorizadas, do que as relações entre os homens e as coisas. Esta prioridade é invertida no tipo moderno de sociedade onde as relações entre os homens são, ao contrário, subordinadas às relações entre os homens e as coisas. (DUMONT, 2000DUMONT, L. Homo aequalis: gênese e plenitude da ideologia econômica. Bauru: Edusc, 2000., p. 16)

Referida inversão de prioridade seria apenas um dos traços distintivos das sociedades modernas em relação às sociedades tradicionais. Um outro aspecto se refere a que, nas sociedades tradicionais, há predomínio da concepção holista, em que as necessidades de cada um são “ignoradas ou subordinadas” a considerações relativas ao todo social, ao passo em que as sociedades modernas são caracterizadas pelo primado da concepção individualista que, “ao contrário, ignora ou subordina as necessidades da sociedade.” (DUMONT, 2000DUMONT, L. Homo aequalis: gênese e plenitude da ideologia econômica. Bauru: Edusc, 2000., p. 14)

Ainda outra distinção diz respeito à forma privilegiada de riqueza, ou a uma hierarquia dos tipos de riqueza. Nas sociedades tradicionais, a forma de riqueza priorizada é a imóvel, em contextos nos quais os “direitos sobre a terra estão, com efeito, imbricados na organização social: os direitos superiores sobre a terra acompanham o poder sobre os homens.” (DUMONT, 2000DUMONT, L. Homo aequalis: gênese e plenitude da ideologia econômica. Bauru: Edusc, 2000., p. 17) Além disso, a riqueza, de modo geral, não aparece como fim em si mesma nas sociedades tradicionais, mas como meio para outro fim, como o poder político. Já nas sociedades modernas:

o vínculo entre a riqueza imobiliária e o poder sobre os homens foi rompido, e a riqueza mobiliária adquiriu plena autonomia, não apenas em si mesma, mas como a forma superior da riqueza3 3 Um exemplo dessa reconfiguração na hierarquia da riqueza aparece em um trecho da Riqueza das Nações, de Adam Smith. No trecho seguinte, Smith ressalta o cuidado diferencial que o Estado deve ter em suas relações com proprietários de riquezas imóveis, de um lado, e móveis, de outro: “O proprietário de terra é inevitavelmente um cidadão do país em que está localizada sua propriedade. O proprietário de capital é propriamente um cidadão do mundo, não estando necessariamente ligado a algum país determinado. Ele facilmente deixaria o país no qual estivesse exposto a uma sindicância vexatória, visando onerá-lo com um imposto incômodo e transferiria seu capital a algum outro país em que pudesse continuar seu negócio ou desfrutar de sua fortuna mais à vontade. Ao retirar seu capital, ele poria fim a todo o trabalho que esse capital havia mantido no país que deixou. O capital cultiva a terra; o capital emprega a mão-de-obra. Sob esse aspecto, um imposto que tendesse a desviar capital de determinado país tenderia a fazer secar toda fonte de receita, quer para o soberano, quer para a sociedade. Com a retirada desse capital, inevitavelmente diminuiria, em grau maior ou menor, não somente o lucro do capital, mas também a renda da terra e os salários do trabalho.” (SMITH, 1996, p. 303) A passagem sugere, portanto, limitações do poder do Estado em função da riqueza móvel. em geral, ao mesmo tempo em que a riqueza imobiliária torna-se uma forma inferior, menos perfeita; em resumo, assistiu-se à emergência de uma categoria autônoma e relativamente unificada da riqueza. É a partir de então que uma clara distinção pode ser feita entre o que chamamos de ‘político’ e o que denominamos de ‘econômico’. Distinção que as sociedades tradicionais não conheciam. (DUMONT, 2000DUMONT, L. Homo aequalis: gênese e plenitude da ideologia econômica. Bauru: Edusc, 2000., p. 17)

Dumont associa, portanto, a hierarquização da riqueza móvel sobre a imóvel nas sociedades de tipo moderno à própria cisão entre política e economia, que emerge com uma normatividade própria, desaguando na “primazia do ponto de vista econômico no mundo moderno.” (DUMONT, 2000DUMONT, L. Homo aequalis: gênese e plenitude da ideologia econômica. Bauru: Edusc, 2000., p. 38) Esta é uma “inovação sem precedente: a separação radical dos aspectos econômicos do tecido social e da sua construção num domínio autônomo.” (DUMONT, 2000, p. 18).

A tese de Dumont recupera as afirmações principais de Karl Polanyi, em A Grande Transformação: mercados nem sempre foram vistos como “forças indomáveis”, mas sim como formados e contidos por estruturas sociais, ou seja, entranhados (embedded) nas sociedades. Somente no século XIX conformou-se um modelo de sociedade baseado na concepção de mercados capazes de “autorregulação”, ou seja, uma concepção de mercados desentranhados do tecido social (POLANYI, 2001POLANYI, K. The great transformation: the political and economic origins of our time. 2. ed. Boston: Beacon Press, 2001.). O fetiche da mercadoria, ao fazer passar como relações entre coisas aquilo que são verdadeiramente relações sociais, é, portanto, exponenciado na noção de “mercados autorregulados” e na autonomia econômica que ela implica.

A autonomia da perspectiva econômica, traço distintivo desse momento, enseja também a relevância da normatividade que dela emana:

a economia repousa sobre um julgamento de valor, uma hierarquia implícita; a categoria supõe a exclusão ou a subordinação de qualquer outra coisa. Em outros termos, aprendemos que tipo de ‘desvio’ realizamos quando cremos simplesmente ‘estudar a economia’. (DUMONT, 2000DUMONT, L. Homo aequalis: gênese e plenitude da ideologia econômica. Bauru: Edusc, 2000., p. 39-40)

Da autonomia da perspectiva econômica emergem as pretensões de reformar instituições políticas e jurídicas, segundo racionalidades e normatividades imbricadas nas relações econômicas, agora encaradas - em linha com o fetiche da mercadoria - como desentranhadas do tecido social. Do ponto de vista histórico, a valorização da autonomia e da normatividade emanadas da economia conciliava-se com a posição de uma classe economicamente ascendente, mas que não se encaixava no modelo rígido de compartimentalização das sociedades feudais europeias: a burguesia. Ou seja, o novo projeto foi fundamental para que a burguesia, detentora sobretudo de riqueza móvel (em contraposição, por exemplo, a classes sociais baseadas na riqueza imóvel ainda no contexto moderno, como a aristocracia rural ou os landed interests) pudesse convolar seu primado econômico em predomínio político (e jurídico). Essa mudança implicou, em primeiro lugar, a rejeição da coordenação de relações de produção, troca e consumo baseadas na hierarquia política, e herdadas do passado. Em substituição, a estruturação dessas relações passou a ser justificada segundo uma normatividade econômica interna, o que se deu com a ascensão do liberalismo econômico em finais do século XVIII e em especial a partir de sua consolidação no século XIX.

A noção de uma normatividade interna à economia é derivada do argumento da harmonia natural dos interesses. Para Adam Smith, haveria uma coordenação espontânea das vontades privadas dispersas nos mercados que, apesar de pautadas no autointeresse material de cada indivíduo, resultariam no benefício do todo social. Apesar de não deixar de ser um item de fé, o argumento, em todo caso, impulsiona a postura de aversão a mecanismos de coordenação política da produção, troca e consumo.4 4 Cabe ressalvar que a postura de Adam Smith, embora seja a base para argumentos que enxergam a atuação do Estado na economia com desconfiança e postulam o não intervencionismo, concebeu o Estado como ancilar ao adequado funcionamento dos mercados, prevendo papéis para a atuação estatal. “Segundo o sistema da liberdade natural, ao soberano cabem apenas três deveres [...]: primeiro, o dever de proteger a sociedade contra a violência e a invasão de outros países independentes; segundo, o dever de proteger, na medida do possível, cada membro da sociedade contra a injustiça e a opressão de qualquer outro membro da mesma, ou seja, o dever de implantar uma administração judicial exata; e, terceiro, o dever de criar e manter certas obras e instituições públicas que jamais algum indivíduo ou um pequeno contingente de indivíduos poderão ter interesse em criar e manter, já que o lucro jamais poderia compensar o gasto de um indivíduo ou de um pequeno contingente de indivíduos, embora muitas vezes ele possa até compensar em maior grau o gasto de uma grande sociedade.” (SMITH, 1996, p. 170) A chave para a compreensão desse ponto reside na concepção de um papel para o Estado e o direito que, embora deva existir, é limitado e condicionado pelo objetivo de favorecer a atividade econômica privada. Resultados ótimos para o bem-estar do todo social decorreriam dessa atuação privada espontânea nos mercados, e não de projetos de ordenação pública da esfera econômica.

O argumento da harmonia natural dos interesses permitiu formular um ataque ao papel das estruturas herdadas do passado na ordenação das relações econômicas e sociais. No direito, a consequência desse argumento é o primado da formalidade (cf. CASTRO, 2012CASTRO, M. F. Formas jurídicas e mudança social: Interações entre o direito, a filosofia, a política e a economia. São Paulo: Saraiva, 2012., p. 211). O direito é concebido em termos de provedor das “regras do jogo” da atividade econômica - “especialmente pela defesa da propriedade e dos contratos”, mas não como meio de atuação positiva do Estado para a igualdade material (SALLY, 1998SALLY, R. Classical liberalism and international economic order: studies in theory and intellectual history. London: Routledge, 1998., p. 185). A ordem seria obtida espontaneamente, e não por construção deliberada.

Esse aspecto mais geral é acompanhado pela afirmação da igualdade formal entre as pessoas, desaguando numa concepção procedimental (ou negativa, em contraposição a concepções substanciais, materiais ou positivas) do direito e da justiça. Não é a tradição que deve hierarquizar a sociedade. Compreende-se, aqui, o relato de Marx de que os antigos temiam o caráter dissolvedor do dinheiro para o tecido social, mencionado anteriormente. De fato, no lugar das antigas hierarquias, a afirmação (inclusive jurídica) da igualdade formal permite a ascensão de novas hierarquias. Desta vez, dadas pela riqueza, num contexto em que a posse de moeda é a sua grande expressão. Em outros termos, a afirmação jurídica da igualdade formal é o veículo para a institucionalização de hierarquias pautadas desde aspectos econômicos, e não políticos, no sentido tradicional (além de ser um expediente que permite a legitimação da persistência de desigualdades materiais). Como sugerido anteriormente, essa nova forma de conceber hierarquias sociais - possível somente a partir da autonomização da economia - permite a mobilidade social que a burguesia, anteriormente não encaixada nos estamentos da sociedade feudal em crise, revolucionariamente fez prevalecer.5 5 A alusão ao caráter revolucionário da burguesia é feita por Marx e Engels no Manifesto Comunista, em passagem que evidencia as rupturas anteriormente mencionadas: “A burguesia desempenhou na História um papel iminentemente revolucionário. Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas. Rasgou todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus 'superiores naturais', para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do pagamento à vista. Afogou os fervores sagrados da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistas duramente, por uma única liberdade sem escrúpulos: a do comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração dissimulada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, direta, despudorada e brutal.” (MARX; ENGELS, 2005, p. 42)

Assim, conforme ressalta Marcus Faro de Castro, o liberalismo dá ênfase à ideia de que a ordem social não deva resultar da obediência às tradições ou de comportamentos provenientes de papéis sociais herdados. “Ao contrário, na visão liberal, a ordem social deve resultar de deliberações consubstanciadas em contratos celebrados livremente entre os indivíduos.” A partir disso, a própria noção de liberdade é vinculada ao “poder prático de inverter ou reformar hierarquias herdadas, isto é, não negociadas.” (CASTRO, 2003CASTRO, M. F. DE. Cultura, Economia e Cidadania: algumas reflexões preliminares. Anuário Antropológico, v. 2000/2001, p. 263-277, 2003., p. 267) Tem-se, novamente, uma marca da passagem de um modelo tradicional para outro, moderno, de sociedade, em que “o poder de inversão de hierarquias se transformou de preponderantemente ‘político’ em primordialmente ‘econômico’, conservando apenas secundariamente o caráter político.” (CASTRO, 2003, p. 268)

O poder de subversão de hierarquias atrelou-se ao aspecto econômico, e na perspectiva econômica, típica das sociedades modernas, a forma de apresentação da riqueza6 6 Diz-se, aqui, “forma de apresentação da riqueza” para aludir ao aspecto binário riqueza móvel e imóvel e evitar, com isso, confusões com o trabalho humano como fonte da produção do valor (cf. MARX, 2017). mais valorizada é a móvel, de que a moeda é a expressão por excelência. Nessa chave de leitura, portanto:

a moeda, vista como instituição social complexa, é, na sociedade de mercado, elemento de mobilização de interesses orientados para inovações e redefinições da ordem social. A moeda, institucionalmente organizada na sociedade de mercado, incluindo suas combinações com contratos, é entendida como meio de coordenação cooperativa de interesses compatível com o exercício da liberdade, diante da possibilidade de conservação de ordens não negociadas no presente, mas ‘arbitrariamente’ herdadas do passado. (CASTRO, 2009CASTRO, M. F. Análise Jurídica da Política Econômica. Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central, v. 3, n. 1, p. 17-71, 2009., p. 22)

Há que se notar que a afirmação da moeda como elemento para a fruição da liberdade também implica a afirmação da carência de moeda como elemento que conduzirá à ausência (concreta) da liberdade.7 7 Basta pensar nos contratos marcados por relações de hipossuficiência dadas por diferenciais extremados de poderio econômico, como o contrato de trabalho. Nesses contratos, a “coordenação cooperativa de interesses” é obtida a partir de uma negociação apenas “formal” no presente, mas não corresponde ao exercício da liberdade, visto que a carência material passa a ser um elemento condicionador da vontade de contratar, para a parte hipossuficiente. Assim, a ordem ‘arbitraria’ não é herdada do passado, mas dada pelos diferenciais de habilitação econômica das partes “negociantes”. “O escravo romano estava preso por grilhões a seu proprietário; o assalariado o está por fios invisíveis. Sua aparência de independência é mantida pela mudança constante dos patrões individuais e pela fictio juris do contrato.” (MARX, 2017, p. 648) Nisso, não há contradição nem choque com a ideia de igualdade ou justiça formal pretendida pelo liberalismo clássico para o direito. Marcus Faro de Castro propõe encarar o grau diferenciado de acesso à fruição de direitos variados por indivíduos e grupos numa sociedade em termos das posições em estes se encontram. Tais posições correspondem, por sua vez, a graus diferenciados de inserção ou habilitação econômica (CASTRO, 2010CASTRO, M. F. DE. Jurisdição, Economia e Mudança Social. Revista da Escola da Magistratura Regional Federal, Tribunal Regional Federal da 2a Região, v. Cadernos Temáticos - Justiça Constitucional no Brasil: Política e Direito, p. 143-173, 2010., p. 160-1). Nesta chave de leitura, a habilitação econômica corresponde à melhoria posicional, ao passo que a inabilitação econômica refere-se à piora ou bloqueio da fruição de direitos, implicando a permanência ou “‘congelamento’ de indivíduos ou grupos em posições por eles indesejadas” (CASTRO, 2014, p. 48).

Tem-se, portanto, que a habilitação econômica de indivíduos e grupos pode ser encarada como elemento que provê o conteúdo que a concepção formal de igualdade ou justiça minimizou. Esta é uma outra forma de dizer que, nas sociedades de mercado, a fruição de direitos ou a experiência da liberdade passa a estar condicionada pelo grau de habilitação econômica de indivíduos e grupos, ou seja, por sua posição, num contexto em que a mobilidade social substitui a estratificação social em estamentos rígidos e configurados por papéis tradicionais. E num contexto do primado da riqueza móvel, em que a moeda é expressão privilegiada da riqueza, e portanto da habilitação econômica, a posse de moeda exprimirá novas hierarquias e sua institucionalização.

As categorias levantadas acima permitem posicionar a habilitação econômica como fator relevante para compreensão da habilitação jurídica de indivíduos e grupos. Assim, sugere-se que o poder prático de transformar hierarquias herdadas do passado não é de todos, senão condicionado pelo grau de inserção econômica. A declaração de igualdade formal de direitos coexiste com a desigualdade material na possibilidade de acesso a referidos direitos. A valorização do papel do dinheiro, como expressão dessa inserção, retoma o fetiche da mercadoria (e do próprio dinheiro) alertado por Marx. Na linha argumentativa lançada por Marx, e que Dumont recupera, nas sociedades tradicionais as coisas medeiam relações entre pessoas, mas nas sociedades modernas as relações entre pessoas e coisas assumem o primeiro plano e subordinam relações entre pessoas. Pensar o dinheiro como elemento habilitante da reversão de hierarquias sociais e transformações jurídicas é, no fundo, dar consequência ao “caráter misterioso” das mercadorias - e portanto do dinheiro - alertado por Marx.

2 Capitalismo e gênero: mulheres, trabalho e reconhecimento de direitos

A discussão sobre capitalismo e gênero remete aos discursos limitantes acerca do papel da mulher na sociedade no passado. Uma característica marcante é a marginalização da mulher, com atribuição de papéis subalternos e posicionamento social à sombra de seus maridos como parte da instituição do casamento. Nesse sentido, Heleieth Saffioti assinala que:

[…] a mulher sempre foi considerada menor e incapaz, necessitando da tutela de um homem, marido ou não. A felicidade pessoal da mulher, tal como era então entendida, incluía necessariamente o casamento. Através dele é que se consolidava sua posição social e se garantia sua estabilidade ou prosperidade econômica. Isto equivale a dizer que, afora as que permaneciam solteiras e as que se dedicavam às atividades comerciais, as mulheres, dada sua incapacidade civil, levavam uma existência dependente de seus maridos. (SAFFIOTI, 1979SAFFIOTI, H. I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1979., p. 33)

Durante muito tempo predominou a concepção de uma divisão natural do trabalho, na qual os homens estariam prioritariamente destinados à produção e as mulheres à reprodução e ao trabalho doméstico. Essa divisão era considerada adequada pois era decorrente de um destino biológico o qual condicionava o homem a ocupar o âmbito público enquanto as mulheres se limitavam ao âmbito privado. Todavia, essa ideia de que a divisão sexual do trabalho seria naturalmente determinada passou a ser questionada pelos movimentos feministas, conforme aponta Helena Hirata:

Foram necessárias as interpelações do feminismo para que essas certezas fossem abaladas. Ao longo desses anos, os papéis no assalariamento e na família apareceram como o que são, isto é, não como o produto de um destino biológico, mas como um ‘constructo social’, resultado de relações sociais; o trabalho também foi requestionado, através da recusa de limitá-lo exclusivamente ao trabalho assalariado e profissional, levando-se em conta, simultaneamente, tanto o trabalho doméstico quanto o trabalho assalariado. (HIRATA, 1989HIRATA, H. Divisão capitalista do trabalho. Tempo Social, v. 1, n. 2, p. 73-103, 1989., p. 89)

A passagem acima ilustra o aspecto marcante da desigualdade entre os gêneros nas formas de inserção não só social, mas também econômica. Cumpre reforçar que referidas desigualdades entre os gêneros se dão por construção histórico-social:

Concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído: consequentemente, não é nem resultado casual do sexo, nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo. (BUTLER, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 24)

Em vista disso, a absorção da força de trabalho da mulher, no passado, tendia a se limitar a funções cujas atribuições eram vistas como exclusividade feminina, e nas quais as mulheres eram maioria, como serviços domésticos, indústria de vestuário e magistério, com forte presença também na indústria têxtil. Nesse sentido, Teresa Marques observa que, no Brasil:

É notável que, no Censo de 1940, em comparação com os 889 mil homens empregados na indústria de transformação, havia apenas 188.50 (17,5%) mulheres. Já no serviço doméstico, os recenseadores registraram 468.955 mulheres em todo o país, ou 85,23% do setor. Logo, pelos dados do Censo de 1940, as mulheres ocupadas no serviço doméstico tinham uma participação semelhante à dos homens no trabalho industrial. (MARQUES, 2016MARQUES, T. C. N. A regulação do trabalho feminino em um sistema político masculino, Brasil: 1932-1943. Revista Estudos Históricos, v. 29, n. 59, p. 667-686, 2016., p. 668)

A historiografia mais tradicional costuma apontar o pós-Segunda Guerra Mundial como momento em que a mulher se consolidou no mercado de trabalho, em vista da substituição da força de trabalho masculina empenhada no período de guerra, nas economias capitalistas avançadas. Contudo, salienta-se que a mulher sempre esteve presente no mundo do trabalho, até mesmo naqueles momentos denominados por alguns autores como pré-capitalistas. Saffioti (1979SAFFIOTI, H. I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1979., p. 32) discorre que “a mulher das camadas sociais diretamente ocupadas na produção de bens e serviços nunca foi alheia ao trabalho. Em todas as épocas e lugares tem ela contribuído para a subsistência de sua família e para criar a riqueza social.”

A análise da inserção da mulher no mundo do trabalho extradoméstico e assalariado necessita, portanto, do recorte de classe. A temporalidade, as consequências em termos de habilitação econômica (sobretudo para o consumo) e as repercussões jurídicas são diversas para a inserção da mulher segundo sua classe social. A necessidade desse recorte é reforçada pela constatação trazida por Saffioti:

O primeiro contingente feminino que o capitalismo marginaliza do sistema produtivo é constituído pelas esposas dos prósperos membros da burguesia ascendente. A sociedade não prescinde, entretanto, do trabalho das mulheres das camadas inferiores. Muito pelo contrário, a inferiorização social de que tinha sido alvo a mulher desde séculos vai oferecer o aproveitamento de imensas massas femininas no trabalho industrial. (SAFFIOTI, 1979SAFFIOTI, H. I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1979., p. 36)

É a partir desse recorte que se podem compreender as primeiras movimentações na luta por direitos da mulher no Brasil, correlatas à questão do sufrágio. Na Assembleia Constituinte de 1891 o sufrágio feminino foi colocado em discussão, mas resultou na menção a que “cidadãos brasileiros” poderiam votar, o que resultou, na prática, na denegação do alistamento eleitoral para mulheres. Em resposta, em 1917, Leonilda Daltro, primeira mulher brasileira a formalizar sua reivindicação do direito de votar por meio de requerimento de alistamento eleitoral, organizou passeata em prol do sufrágio feminino.

Pouco tempo depois, Bertha Lutz, em 1919, criou a “Liga para Emancipação Intelectual da Mulher”, responsável por promover uma luta pelo reconhecimento de direitos da mulher e a ampliação de sua participação na vida pública. Por meio dessa organização,

começam, Bertha e suas companheiras, a exercer a citada tática de movimentar a opinião pública e a fazer pressão direta sobre os membros do Congresso. Aproveitam-se dos laços de amizade existentes entre seus familiares e muitos dos grupos que ocupavam posição de poder para obter simpatia para sua causa e fazer avançar o debate acerca da causa sufragista (SOIHET, 2000SOIHET, R. A pedagogia da conquista do espaço público pelas mulheres e a militância feminista de Bertha Lutz. Revista Brasileira de Educação, v. 15, p. 97-117, 2000., p. 101)

A partir dos anos 1920, percebe-se uma identificação do movimento feminista brasileiro com o norte-americano, principalmente após a participação de Bertha Lutz na Primeira Conferência Interamericana de Mulheres, realizada nos EUA. Depois dessa aproximação, foi criada no Brasil, em 1922, a Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF), em substituição à antiga Liga para Emancipação Intelectual da Mulher. A FBPF assumia, dentre seus objetivos, o de “estimular e garantir o exercício do trabalho para as mulheres, inclusive através de medidas legislativas”, além da luta pelo sufrágio feminino e pela proteção da maternidade e da infância (SOIHET, 2000SOIHET, R. A pedagogia da conquista do espaço público pelas mulheres e a militância feminista de Bertha Lutz. Revista Brasileira de Educação, v. 15, p. 97-117, 2000., p. 102).

Em 1927, o Rio Grande do Norte reconheceu o direito ao alistamento eleitoral feminino, e foi seguido de uma dezena de outros Estados nos anos seguintes. Em 1932, o sufrágio feminino foi instituído por decreto, em âmbito nacional, durante o governo de Getúlio Vargas. Quanto aos desdobramentos desse período, Marques (2016MARQUES, T. C. N. A regulação do trabalho feminino em um sistema político masculino, Brasil: 1932-1943. Revista Estudos Históricos, v. 29, n. 59, p. 667-686, 2016.) aponta que nos trabalhos constituintes de 1933-34, o movimento feminista se organizou e pressionou o governo e a assembleia para assegurar a proteção da mulher trabalhadora no que tangia a questões de maternidade, como a licença pós-parto, a garantia de emprego após a gestação, a isonomia salarial entre gêneros, a igualdade de acesso a carreiras públicas e o fim das restrições ao trabalho de mulheres casadas. Houve, em particular, um debate em torno das restrições ao trabalho noturno feminino. O texto da Constituição de 1934 acolheu as teses feministas e derrubou as restrições ao trabalho feminino noturno, limitando apenas o trabalho em indústria insalubre. No entanto, antes de a Constituição entrar em vigor, Vargas ratificou Convenção da Organização Internacional do Trabalho em que prevalecia a proibição do trabalho noturno feminino, contrariando a Carta de 1934. À essa vedação, a versão final da Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, acrescentou a proibição do trabalho da mulher na mineração e em construções. Como Teresa Cristina Marques aponta, o sentido assumido pelo regime jurídico do trabalho da mulher confirmava “a diferenciação de gênero no âmbito das relações de trabalho ao se admitir que mulheres exercessem preferencialmente trabalhos que constituíssem extensões dos papéis sociais femininos convencionais.” (MARQUES, 2016MARQUES, T. C. N. A regulação do trabalho feminino em um sistema político masculino, Brasil: 1932-1943. Revista Estudos Históricos, v. 29, n. 59, p. 667-686, 2016., p. 676)

Nota-se, assim, certa hierarquia social, juridicamente amparada, a reforçar o direcionamento/congelamento do trabalho feminino em funções que não possuíam o mesmo status social ou a mesma inserção econômica que aquelas exercidas tipicamente por homens. Ao que parece, esse aspecto se correlaciona à percepção de que o reconhecimento e regulamentação das profissões exercidas majoritariamente por mulheres demorou a ocorrer no âmbito jurídico. Até mesmo a oferta de empregos para as mulheres era afetada pelo pensamento predominante de que as mulheres deveriam ficar no ambiente privado, segundo uma divisão “natural” do trabalho:

A falta de oportunidades profissionais representava uma grande dificuldade para as mulheres alcançarem maior autonomia econômica, especialmente as que estivessem formalmente vinculadas a um homem pelo matrimônio. As restrições impostas pela instituição do casamento as impediam de se beneficiar dos avanços dos direitos sociais, quer dizer, da legislação trabalhista, uma vez que as mulheres casadas não eram consideradas capazes de acionar a Justiça sem anuência do marido. Na hipótese extrema, o próprio exercício de atividade profissional remunerada estava submetido ao arbítrio do cônjuge, capaz, legalmente, de impedir a mulher de atuar profissionalmente. (MARQUES, 2016MARQUES, T. C. N. A regulação do trabalho feminino em um sistema político masculino, Brasil: 1932-1943. Revista Estudos Históricos, v. 29, n. 59, p. 667-686, 2016., p. 683)

Nota-se, portanto, que o tratamento jurídico do trabalho da mulher está ligado não somente à questão da massificação do trabalho feminino, mas também ao tratamento jurídico da condição civil da mulher. Ao passo que a massificação do trabalho feminino em economias capitalistas avançadas se deu mais precocemente, no Brasil, embora crescente, a participação das mulheres no mundo do trabalho assalariado foi inexpressiva até os anos 1970 (MARQUES; MELO, 2008MARQUES, T. C. DE N.; MELO, H. P. DE. Os direitos civis das mulheres casadas no Brasil entre 1916 e 1962: ou como são feitas as leis. Estudos feministas, v. 16, n. 2, p. 463-488, 2008., p. 467). Assim, no Brasil:

[…] a participação das mulheres no mercado de trabalho não era significativa no início do século XX e permaneceu assim por um longo período. Ainda que se ressalve que os dados censitários no Brasil não são perfeitamente comparáveis, é possível visualizar que houve uma mudança nos padrões de ocupação da população ativa feminina, mas a expressão econômica dessa parcela da força de trabalho manteve-se muito pequena, especialmente no período de crescimento industrial mais acelerado - da década de 1940 aos anos 1970. (MARQUES; MELO, 2008MARQUES, T. C. DE N.; MELO, H. P. DE. Os direitos civis das mulheres casadas no Brasil entre 1916 e 1962: ou como são feitas as leis. Estudos feministas, v. 16, n. 2, p. 463-488, 2008., p. 468)

Marques e Melo observam, assim, que o ingresso massivo das mulheres brasileiras no mercado de trabalho foi tardio, assim como a própria industrialização no país. Esse é um dos elementos que permitem o embasamento de sua tese de que fatores políticos, mais do que econômicos, estiveram na base das transformações jurídicas relacionadas às mulheres no Brasil:

Enquanto a sociedade se modificava lentamente, surgiram grupos de mulheres originadas na classe média com o propósito de lutar por direitos. É ampla a historiografia sobre essa fase do movimento feminista brasileiro, e nela é razoavelmente assente que a emergência de grupos políticos femininos organizados não corresponde à entrada maciça dessas mulheres no mercado de trabalho. Insatisfeitas com a inferioridade legal e política das mulheres na sociedade brasileira, muitas delas se motivaram para participar da esfera política. (MARQUES; MELO, 2008MARQUES, T. C. DE N.; MELO, H. P. DE. Os direitos civis das mulheres casadas no Brasil entre 1916 e 1962: ou como são feitas as leis. Estudos feministas, v. 16, n. 2, p. 463-488, 2008., p. 468)

Ainda assim, como apontado anteriormente, as conexões entre a massificação do trabalho feminino e o tratamento jurídico da condição civil da mulher permitem outra leitura. Afinal, a temporalidade das mudanças no regime de subordinação jurídica da mulher pelo direito civil aponta que o impulso para transformações formais se inicia na década de 1960, com o Estatuto da Mulher Casada, e ganha corpo na década de 1970, com a Lei do Divórcio. Anteriormente, o regime do Código Civil de 1916 posicionava o homem como chefe de família, e relegava à mulher a condição de incapacidade civil relativa:

Cabia a ele determinar o lugar de residência da esposa e filhos, administrar o patrimônio do casal e, acima de tudo, autorizar sua mulher a exercer uma atividade profissional fora do lar. Por conta disso, a legislação concedeu ao homem amplos poderes para limitar as oportunidades abertas à mulher para alcançar autonomia pessoal (MARQUES; MELO, 2008MARQUES, T. C. DE N.; MELO, H. P. DE. Os direitos civis das mulheres casadas no Brasil entre 1916 e 1962: ou como são feitas as leis. Estudos feministas, v. 16, n. 2, p. 463-488, 2008., p. 468-9).

Para Marques e Melo, referidas restrições financeiras e na autonomia pessoal podem ter sido um fator de influência na limitação da força política das mulheres no cenário público na reivindicação de direitos. Em 1962, o governo João Goulart promulgou o Estatuto da Mulher Casada, que, apesar de manter o “homem como chefe do lar” e a responsabilidade exclusiva masculina pela administração dos bens comuns, tinha como ponto positivo a liberação da mulher que desejasse exercer uma profissão em relação à tutela do marido (MARQUES; MELO, 2008MARQUES, T. C. DE N.; MELO, H. P. DE. Os direitos civis das mulheres casadas no Brasil entre 1916 e 1962: ou como são feitas as leis. Estudos feministas, v. 16, n. 2, p. 463-488, 2008.). A principal relevância de referido Estatuto foi o fim da incapacidade civil relativa das mulheres casadas.

Mais abrangentes foram as mudanças da Lei do Divórcio, de 1977, num momento em que a participação feminina no mercado de trabalho brasileiro já contava com expressividade. Além de prever a possibilidade de dissolução do casamento, a nova legislação alterou o Código Civil então vigente, para introduzir que, na ausência de convenção em contrário, o regime de bens entre os cônjuges seria o da comunhão parcial, e não mais universal. A Lei do Divórcio também reformou a anterior obrigatoriedade de a mulher adotar o sobrenome do marido. Na nova legislação, esta se tornou uma faculdade, não uma imposição legal. Apesar dessas transformações, a Lei do Divórcio ainda manteve o homem como chefe de família. Ainda assim, conforme observa Thaís Melo:

Nota-se uma mudança de paradigmas na proteção do patrimônio e na sua conservação no seio familiar, não apenas por deixar de unificar os bens que os cônjuges tinham antes de casar e possibilitar a conservação na individualidade de seu respectivo proprietário, como também o próprio instituto do divórcio, que permite a dissolução do vínculo conjugal, facilita uma dispersão patrimonial que antes se objetivava concentrar na unidade familiar. (MELO, 2013MELO, T. R. DE. O que há por trás da norma: uma análise do tratamento da mulher no direito de família do código civil de 1916 ao de 2002. Dissertação. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.-Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2013., p. 125)

Cumpre relembrar, nesse ponto, a proposta interpretativa deste estudo a respeito dos fenômenos referidos acima: o reconhecimento de novas formas jurídicas formalizadoras de direitos das mulheres está correlacionada à sua habilitação econômica, que por sua vez guarda relação com sua inserção no mundo do trabalho assalariado. Nesse aspecto, parece relevante que as mulheres de classe baixa, e marcadamente mulheres negras, tinham sua inserção no mercado de trabalho correlata ao subconsumo8 8 A expressão “subconsumo” é entendida, aqui, como referida a padrões de consumo direcionados direta e exclusivamente à mera reprodução do trabalhador ou da trabalhadora enquanto força de trabalho, ou seja, à aquisição precarizada dos elementos necessários à sua sobrevivência. e não propriamente à habilitação econômica, ao mesmo tempo em que, conforme Nathalie Itaboraí constata, vivenciaram conformações familiares não tradicionais antes das mulheres de classes mais altas.

As classes altas tiveram acesso primeiro à contracepção moderna, para o que contribuiu seu poder de compra, visto que a contracepção surge como um bem privado adquirido no mercado. Já as classes baixas têm há mais tempo liberdade de entrar e sair em uniões, para o que contribuiu a forma não institucionalizada das suas uniões, implicando, até 1994-6, o custo da ausência da garantia de direitos. Já as classes altas tinham direitos resguardados através do casamento civil, mas à custa da subordinação legal das mulheres casadas, que vigorou pelo menos até o Estatuto da Mulher Casada, de 1962, e da lei do Divórcio de 1977. (ITABORAÍ, 2017ITABORAÍ, N. R. Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): uma perspectiva de classe e gênero. Rio de Janeiro: Garamond, 2017., p. 426)

A colocação de Itaboraí provoca a percepção de que conformações familiares não tradicionais e dissolúveis já eram vivenciadas pelas mulheres de classe baixa, até o momento em que as mulheres de classes mais altas passaram também a experimentálas, o que é sugestivo de que as transformações nas formas jurídicas ligadas à direitos das mulheres é correlata às vivências das mulheres economicamente habilitadas a partir de sua inserção significativa no mundo do trabalho assalariado, e não das mulheres ligadas a padrões de subconsumo, cuja força de trabalho já era explorada há mais tempo.

A perspectiva de Itaboraí, com a qual o presente estudo se alinha, não ignora o ativismo de grupos feministas organizados, mas valoriza a relevância da habilitação econômica como fator correlato às transformações jurídicas nos direitos das mulheres:

Os direitos femininos foram conquistados frequentemente em resposta ao ativismo social, em especial do movimento feminista e do movimento de mulheres - que se mobilizaram por direitos reprodutivos, pelas creches e contra a violência. O protagonismo feminino nas mudanças no processo de formação de família beneficiou-se também de mudanças no mercado, já que a expansão das oportunidades de trabalho permitiu novos espaços de identidade feminina que competem com a formação de família ou garantem a autonomia das mulheres quando da dissolução dos vínculos. O aproveitamento de tais oportunidades vem sendo favorecido pela crescente escolarização feminina, aspecto no qual a reversão da desigualdade em benefício das mulheres vem aos poucos se consolidando. (ITABORAÍ, 2017ITABORAÍ, N. R. Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): uma perspectiva de classe e gênero. Rio de Janeiro: Garamond, 2017., p. 429-30)

Assim, parece plausível a interpretação de que, no Brasil, as mulheres que tinham voz e certa influência para participar dos debates que pleiteavam mudanças jurídicas favoráveis ao trabalho feminino eram de classe média e alta ou trabalhadoras que já haviam ingressado em postos de trabalho assalariado, ou seja, mulheres que já tinham algum grau de habilitação econômica para o consumo relevante, em contraste com outros extratos sociais de mulheres que, a exemplo da caracterização típica da mulher negra, embora estivessem também inseridas no trabalho extradoméstico, estavam associadas a padrões subconsumo, isto é, à pobreza, e não a padrões de habilitação econômica para o consumo relevante.

No mesmo sentido aponta Angela Davis (2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 1.ed. - São Paulo: Boitempo, 2016.) em seu livro “Mulheres, Raça e Classe” ao demonstrar um panorama histórico das mulheres negras desde o legado da escravidão até apontamentos a respeito do movimento sufragista. Ao realizar tal esforço, Davis consegue apontar as contradições dentro do movimento sufragista e a luta das mulheres trabalhadoras e como as questões de “gênero”, “classe” e “raça” permeavam intrinsicamente todas as discussões sobre direitos das mulheres naquele período. A autora evidencia que, enquanto as mulheres brancas se sentiam oprimidas, principalmente, por questões de gênero e a desigualdade com os homens, as mulheres negras concentraram esforços, em um primeiro momento, na luta por direitos trabalhistas tendo em vista que a questão de classe lhes atingia mais por estarem em locais de trabalho insalubres e péssimas jornadas de trabalho. Dessa forma, as mulheres negras e as mulheres brancas da classe trabalhadora, ao contrário das mulheres brancas de classe média e alta, sabiam que

Embora o comportamento sexista de seus companheiros precisasse, sem dúvida, ser contestado, o inimigo real - o inimigo comum - era o patrão, o capitalista ou quem quer que fosse responsável pelos salários miseráveis, pelas insuportáveis condições de trabalho e pela discriminação racista e sexista no trabalho (DAVIS, 2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 1.ed. - São Paulo: Boitempo, 2016., p. 147-8)

As considerações de Angela Davis (2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 1.ed. - São Paulo: Boitempo, 2016.) reforçam as diferenças das mulheres negras e mulheres brancas trabalhadoras com as mulheres brancas de classe média e alta e como essas diferenças, pautadas por “classe” e “raça”, impulsionaram as disputas políticas dos movimento das mulheres pela conquista de direitos, favorecendo as mulheres brancas de classe média e alta.

Pink money: habilitação econômica e reconhecimento de direitos LGBT

O termo “pink money” faz referência ao poder de compra da comunidade LGBT e emergiu atrelado a percepções de empoderamento econômico de homens gays no Ocidente por setores nos mercados. Segundo o relato de Adriana Nunan (2003NUNAN, A. Homossexualidade: do preconceito aos padrões de consumo. Rio de Janeiro: Caravansarai, 2003.), a partir da década de 1990, pesquisas ligadas aos campos de publicidade e propaganda e que correlacionam consumo a sexualidade apontaram poder de compra superior em casais homossexuais na comparação com casais heterossexuais. No Brasil, dados do censo que o IBGE realizou em 2010, relatados por Santos e Nalon (2011SANTOS, D.; NALON, T. Casais gays ganham mais que casais heterossexuais, mostra IBGE. G1, 16 nov. 2011.), apontaram diferenças significativas nos rendimentos mensais de famílias brasileiras, no sentido de que, para faixas de renda mais elevadas, o percentual de casais do mesmo sexo aumenta em comparação com os casais heterossexuais, conforme se pode observar pela tabela abaixo9 9 As faixas de renda foram definidas segundo o salário-mínimo vigente à época no Brasil, de R$ 510 (SANTOS; NALON, 2011). :

Tabela 1
Faixas de renda no censo demográfico de 2010 do IBGE

Segundo Nunan, seriam dois os principais fatores associados aos diferenciais de renda entre casais homossexuais e heterossexuais sinalizados por dados como os acima levantados:

Os elevados salários desta parcela da população se justificariam basicamente por duas razões: a maioria não possuiria filhos e, ao que parece, os homossexuais seriam mais escolarizados do que a população geral. A partir deste momento os homossexuais ficaram conhecidos como DINKS (double income, no kids), isto é, casais de profissionais sem filhos que, por este motivo, podem gastar considerável parte de sua renda em artigos supérfluos ou de luxo. (NUNAN, 2003NUNAN, A. Homossexualidade: do preconceito aos padrões de consumo. Rio de Janeiro: Caravansarai, 2003., p. 86)

Além disso, a noção de pink money é atrelada ao engajamento de pessoas LGBT em padrões de consumo diferenciados:

Com relação a padrões de consumo, gays e lésbicas gastariam maiores quantias do que heterossexuais em viagens, carros, cartões de crédito, cigarros, serviços de telefone, livros, música, bebidas (alcoólicas ou não), restaurantes, cinema, teatro, roupas, perfumes, produtos eletrônicos, academias de ginástica, artigos esportivos e objetos de luxo em geral. Estes consumidores também seriam mais jovens, preocupados com moda, fiéis a determinadas marcas e bem informados social e politicamente, se comparados com a população heterossexual.10 10 As informações acima são trazidas por Nunan com a ressalva de que há críticas metodológicas aos estudos que estimam padrões de consumo como os relatados em sua pesquisa, sobretudo dirigidas à forma de amostragem, não se podendo generalizar que “todos os gays são homens ricos e sem filhos que podem gastar seus elevados salários em artigos de luxo e viagens pelo mundo.” (NUNAN, 2003, p. 87) (NUNAN, 2003NUNAN, A. Homossexualidade: do preconceito aos padrões de consumo. Rio de Janeiro: Caravansarai, 2003., p. 86).

Os apontamentos acima contribuem para explicar que setores empresariais tenham passado a procurar maneiras de atrair esse segmento da população para o consumo de seus produtos e serviços, ou seja, na atração daquilo que foi chamado de pink money. Parece seguro afirmar que certo grupo dentro da população LGBT chama atenção dos mercados e é percebido e atraído por empresas para o consumo. No entanto, a composição da população LGBT é diversa, e nem todos os extratos são marcados pelo poder de consumo superior, em média, ao da população heterossexual.

Em um primeiro momento, o movimento era conhecido pela sigla GLS (Gays, lésbicas e simpatizantes). Somente mais tarde o movimento passou a ser denominado GLBT para contemplar pautas de pessoas transexuais e bissexuais. Muitas discussões a respeito das condições das mulheres lésbicas foram feitas no âmbito do movimento, já que é um grupo que recebe preconceitos tanto pela sexualidade quanto pelo gênero. Para dar mais visibilidade às mulheres lésbicas, o movimento passou a ser denominado LGBT, e este é o nome mais conhecido e utilizado contemporaneamente, apesar de discussões que propuseram as siglas LGBTT, LBGTI e LGBTQIA, para acolher também as pessoas intersex, assexuais e queer.

Considerando, porém, a sigla consolidada como LGBT, cumpre distinguir entre as pautas que se relacionam, de um lado, com direitos ligados à sexualidade e, de outro, com a identidade de gênero11 11 Considera-se, a esse respeito, que sexo é determinado biologicamente e geneticamente. Sexualidade diz respeito à atração física e/ou emocional que os indivíduos sentem, podendo ser direcionada ao mesmo gênero, a gênero diferente, ou a ambos os gêneros. Por sua vez, gênero diz respeito a uma construção social do que é ser homem e mulher, abrangendo papéis socialmente atribuídos a cada um dos gêneros (cf. BUTLER, 2003). . Esse recorte permite perceber diferenças no tratamento jurídico da população T, cujas pautas ligam-se ao eixo da identidade de gênero, ao passo que a população LGB tem sua luta por reconhecimento jurídico no eixo dos direitos correlatos à sexualidade.

A partir do início da década de 1990, como aponta Thiago Coacci (2015COACCI, T. Do homossexualismo à homoafetividade: discursos judiciais brasileiros sobre homossexualidades, 1889-2012. Revista Latinoamericana: Sexualidad, Salud Y Sociedad, v. 21, p. 54-84, 2015.), ampliou-se tanto a visibilidade dos sujeitos LGBT e suas demandas, como também “o diálogo do movimento com o Estado e com o mercado”. As reivindicações de direitos correlatos à sexualidade deram-se no eixo de tratamento igualitário para as uniões civis e casamentos, adoções, melhor e maior representatividade na mídia, criminalização da homofobia12 12 A criminalização da homofobia é um tema controverso e gera diversas discussões, inclusive dentro do próprio movimento LGBT. Por um lado existe o desejo pela criminalização da homofobia como medida para o combate à violência e preconceito contra a comunidade LGBT, já tendo sido propostos projetos nesse sentido como o Projeto de Lei nº 122 de 2006 (PL 122/2006), também conhecido lei anti-homofobia, o qual foi arquivado após tramitar por oito anos no Senado sem obter aprovação. Entretanto outros debates são feitos por grupos mais próximos da corrente abolicionista do sistema penal que acreditam que a criminalização de condutas em nada contribui para o combate de um sistema inerentemente homofóbico e, assim sendo, a superação das opressões deveria ser pautada por outras medidas que não a criminalização. , entre outros. O principal locus de reconhecimento de parte dessas pautas como diretos subjetivos foi o judiciário.

[...] como a consolidação do movimento LGBT, sua maior visibilidade e articulação com o Estado e com a esquerda brasileira, bem como o início das políticas públicas para a população LGBT, houve um aprendizado social sobre os direitos sexuais de pessoas LGBT. Com isso, algumas pessoas homossexuais se empoderaram de forma a ingressar na Justiça buscando algo que consideravam um direito seu e que percebiam como factível de ser conseguido. (COACCI, 2015COACCI, T. Do homossexualismo à homoafetividade: discursos judiciais brasileiros sobre homossexualidades, 1889-2012. Revista Latinoamericana: Sexualidad, Salud Y Sociedad, v. 21, p. 54-84, 2015., p. 64)

O reconhecimento da igualdade no tratamento de uniões e casamentos entre pessoas do mesmo sexo sempre foi importante pauta do movimento LGBT, pois está vinculado não somente a questões patrimoniais, mas também à fruição de outros direitos, como destacado por Coacci:

Para acessar o direito a saúde, uma pessoa busca o reconhecimento da sua relação com o parceiro homossexual para ser inserido no Plano de Saúde deste parceiro. Para acessar o direito a nacionalidade, ou mais criteriosamente a residência permanente no Brasil, busca-se reconhecer a união estável havida entre dois homens. Para conseguir estabilidade financeira, ou impedir depreciação em seu patrimônio, busca-se reconhecer a união estável havida entre os(as) parceiros(as) e, talvez, sua dissolução pela separação ou morte. (COACCI, 2015COACCI, T. Do homossexualismo à homoafetividade: discursos judiciais brasileiros sobre homossexualidades, 1889-2012. Revista Latinoamericana: Sexualidad, Salud Y Sociedad, v. 21, p. 54-84, 2015., p. 68)

Antes de 2011, uniões estáveis de casais do mesmo sexo não eram totalmente reconhecidas pelo Estado brasileiro, apesar de já haver, à época, decisões judiciais favoráveis ao reconhecimento. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal julgou ações que contestavam o não reconhecimento formal das uniões homossexuais (as ações foram agrupadas para um mesmo julgamento: ADPF 132, ADI 4277). Posteriormente à decisão do STF, o Superior Tribunal de Justiça, ainda em 2011, julgou (em grau de recurso) um caso específico em que um casal homossexual pleiteava a conversão de sua união em casamento, e deferiu o pedido (RESP 1.183.378/RS). Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça emitiu resolução que determinou aos cartórios a realização de casamento entre pessoas do mesmo sexo (Resolução 175/2013, Art. 1º). Com isso, criou a forma jurídica que reconheceu o direito ao casamento homossexual direto no Brasil. Ao passo que em outros países a mudança na instituição da união estável ou casamento entre pessoas do mesmo sexo se deu no âmbito legislativo, no Brasil a mudança institucional se deu no âmbito do Poder Judiciário.

A legislação brasileira no que tange a adoção, estabeleceu no artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que “podem adotar os maiores de 18 anos, independentemente de seu estado civil", desde que apresentem reais vantagens para o adotando. Dessa forma, nota-se que a referida norma não estabeleceu ressalvas quanto à orientação sexual dos adotantes, nem trouxe proibições quanto a adoção por casais de pessoas do mesmo sexo. Apesar de não existir uma norma específica protegendo o direito das pessoas LGBT de adotar, a jurisprudência e a doutrina têm tido entendimento majoritário no sentido de conceder adoção à pessoas e casais LGBT nos casos em que os adotantes representem reais vantagens para a criança e adolescente adotado. (DIAS, 2016DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016., p.681).

A luta por direitos correlatos à população T (pessoas transexuais, transgêneros e travestis) assume caracteres específicos no movimento, por ser focalizada nos direitos ligados à identidade de gênero. No caso das pessoas T, o gênero não coincide com o sexo biológico. Uma pauta específica é, portanto, o reconhecimento da legitimidade de sua existência, em contraposição à abordagem da “disforia de gênero”, termo médico utilizado para se referir às pessoas cujo gênero de identificação própria não corresponde ao sexo biológico designado no momento do nascimento. Nesse sentido, é uma disputa pela superação da patologização da transexualidade, abrigada nas Classificações Internacionais de Doenças e Transtornos Mentais13 13 No dia 18 de junho de 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a CID - 11, uma atualização da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, na qual a transexualidade deixou de figurar como um transtorno mental e entrou no rol de “comportamentos sexuais”. Trata-se de uma conquista do movimento T, que há muito reivindicava pela retirada da classificação da transexualidade do rol das doenças mentais na OMS. Resta agora saber como o direito responderá as implicações dessa mudança significativa de paradigma. e nas Resoluções do Conselho Federal de Medicina. Nesse sentido, a Resolução 1.955/2010 do CFM, que aborda transexualidade com o sufixo patologizante “ismo”, dispõe:

Art. 3º Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios enumerados:

1) Desconforto com o sexo anatômico natural;

2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;

3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;

4) Ausência de outros transtornos mentais.

Para a Teoria Queer, transexualidade não é transtorno psicológico, e por essa razão entende a identidade gênero como uma vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente (BUTLER, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.). No entanto, em demandas judiciais, o direito à readequação do nome civil vinha sendo atrelado a exigências, por parte de magistrados, de laudos médicos que comprovassem a disforia de gênero, provas de que a pessoa tivesse passado por cirurgia de readequação de gênero ou por tratamento hormonal. Nesse sentido, a readequação do nome civil é feita sob a tônica da abordagem patologizante.

Subverter essa hierarquia herdada do passado significaria, para o direito, reconhecer o espaço daqueles que não se encaixam nas concepções patologizantes da identidade de gênero. Existem pessoas transexuais que não se sentem desconfortáveis com o próprio corpo e, assim sendo, não querem passar por tratamento hormonal ou cirurgias, mas querem, por outro lado, mudar o registro civil.

O projeto de Lei 5.002/2013, também conhecido como Lei João W. Nery, estabelecia que toda pessoa poderia solicitar a retificação registral de sexo e a mudança do prenome e da imagem registradas na documentação pessoal, sempre que não coincidam com a sua identidade de gênero autopercebida. De acordo com o Art. 4º, parágrafo único, desta PL, a mudança se daria através de uma requisição em cartório, sem a necessidade de intervenção cirúrgica de transexualização total ou parcial; terapias hormonais; qualquer outro tipo de tratamento ou diagnóstico psicológico ou médico; ou autorização judicial. Em fevereiro de 2018, por meio do julgamento da ADI 4275, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, o STF decidiu, em conformidade com os anseios da referida PL 5.002/2013, que a mudança do registro civil das pessoas trans para constar o nome social utilizado deveria ser feita por requisição em cartório, sem maiores óbices legais.

Desse modo, importantes pautas correspondentes ao ativismo da população T - o direito ao nome social e à mudança do nome civil - têm encontrado reconhecimento jurídico, o que denota transformações em hierarquias arbitrárias herdadas e associadas a gênero. Ainda assim, permanece a diferença de temporalidade no reconhecimento de direitos, no sentido de que o processo de subversão de hierarquias arbitrárias pela população LGB, ao qual associa-se, embora não de modo uniforme, o “pink money”, é correlato ao reconhecimento de seu empoderamento para o consumo. Ocorreram, portanto, antes do reconhecimento de direitos ligados a pautas da população T, por sua vez associada a padrões de subconsumo e marginalização. Embora o fator econômico não se relacione com o reconhecimento de direitos na modalidade de “tudo ou nada”, referidos desdobramentos são sugestivos de sua importância para entender temporalidades nas transformações jurídicas.

Considerações finais

A passagem para as sociedades modernas ou de mercado se deu com o rompimento de algumas características das sociedades tradicionais como a estratificação social rígida que preservava hierarquias atreladas à propriedade da terra. A emergência da perspectiva econômica como campo autônomo incorporou a valorização do indivíduo em contraposição a hierarquias fixas, e afirmou a igualdade como princípio jurídico engajado na negação de hierarquias tradicionais. No entanto, a afirmação formal da igualdade implicou que as novas hierarquias seriam moduladas pelo acesso à riqueza, sobretudo móvel, a partir do que se pode compreender o papel da moeda tanto como elemento de subversão de hierarquias tradicionais quanto de preservação - no caso de sua carência - de desigualdades materiais em meio a afirmações discursivas (inclusive jurídicas) de igualdade formal.

Diante desses elementos, a habilitação econômica de casais homossexuais, que a expressão “pink money” captura, pode ser apresentada como fator relevante para a compreensão de transformações jurídicas que abrigaram os interesses e pautas dessa comunidade específica, mudando hierarquias arbitrariamente herdadas e que implicavam opressões de gênero, do mesmo modo que certos elementos da habilitação econômica das mulheres pela inserção no mercado de trabalho parece também indicar.

Notar os graus diferenciados de habilitação econômica no interior de um mesmo agrupamento social parece reforçar esta associação. Afinal, o envolvimento precedente da mulher negra, porém empobrecida, com o trabalho para além do âmbito privado não representou reversão de hierarquias juridicamente consolidadas nessa temporalidade, e isso pode ser lido com o auxílio de que referido engajamento não foi “empoderador”, mas mero reprodutor de suas condições de subsistência. No caso das mulheres, as alterações jurídicas mais relevantes parecem se dar, no Brasil, em temporalidades próximas à inserção massificada e expressiva das mulheres no trabalho assalariado e que abrangeu classes mais altas.

De modo semelhante, a população T, que tende a estar empobrecida e marginalizada, tem uma temporalidade diferenciada quanto ao reconhecimento jurídico de suas pautas, em especial na comparação com os extratos associados ao “pink money” bastante mais habilitados ao engajamento expressivo com o consumo relevante. Nesse sentido, no Brasil, o reconhecimento de direitos no sentido da isonomia quanto à sexualidade é significativamente anterior ao eixo da identidade de gênero.

O elemento de habilitação econômica, aqui enfatizado, não deve, no entanto, ser compreendido de maneira simplista ou isolada. Não se pode minimizar a importância do ativismo político, da atuação de movimentos sociais, de influências transfronteiriças e de outros elementos de conjuntura. No entanto, o fator econômico não pode ser descartado na compreensão do poder prático de reversão de hierarquias arbitrariamente herdadas do passado.

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  • SOIHET, R. A pedagogia da conquista do espaço público pelas mulheres e a militância feminista de Bertha Lutz. Revista Brasileira de Educação, v. 15, p. 97-117, 2000.
  • 1
    O texto “Pobreza e Gênero: a marginalização de Travestis e Transexuais pelo direito” corrobora com essa afirmação ao relatar que cerca de 90% dos travestis e transexuais sobrevivem de trabalhos informais e marginalizados, e vivem “em condições que não facilitam a inserção no mercado de trabalho ou, até mesmo, a possibilidade de frequentar cursos profissionalizantes, os transgêneros, muitas vezes, não têm opção, senão a de procurar meios de sustento na prostituição.” (PEREIRA; GOMES, 2017, p.215)
  • 2
    Dumont chama de ideologia o “conjunto de ideias e dos valores - ou representações - comuns em uma sociedade ou correntes em um dado meio social.” (DUMONT, 2000, p. 29)
  • 3
    Um exemplo dessa reconfiguração na hierarquia da riqueza aparece em um trecho da Riqueza das Nações, de Adam Smith. No trecho seguinte, Smith ressalta o cuidado diferencial que o Estado deve ter em suas relações com proprietários de riquezas imóveis, de um lado, e móveis, de outro: “O proprietário de terra é inevitavelmente um cidadão do país em que está localizada sua propriedade. O proprietário de capital é propriamente um cidadão do mundo, não estando necessariamente ligado a algum país determinado. Ele facilmente deixaria o país no qual estivesse exposto a uma sindicância vexatória, visando onerá-lo com um imposto incômodo e transferiria seu capital a algum outro país em que pudesse continuar seu negócio ou desfrutar de sua fortuna mais à vontade. Ao retirar seu capital, ele poria fim a todo o trabalho que esse capital havia mantido no país que deixou. O capital cultiva a terra; o capital emprega a mão-de-obra. Sob esse aspecto, um imposto que tendesse a desviar capital de determinado país tenderia a fazer secar toda fonte de receita, quer para o soberano, quer para a sociedade. Com a retirada desse capital, inevitavelmente diminuiria, em grau maior ou menor, não somente o lucro do capital, mas também a renda da terra e os salários do trabalho.” (SMITH, 1996, p. 303) A passagem sugere, portanto, limitações do poder do Estado em função da riqueza móvel.
  • 4
    Cabe ressalvar que a postura de Adam Smith, embora seja a base para argumentos que enxergam a atuação do Estado na economia com desconfiança e postulam o não intervencionismo, concebeu o Estado como ancilar ao adequado funcionamento dos mercados, prevendo papéis para a atuação estatal. “Segundo o sistema da liberdade natural, ao soberano cabem apenas três deveres [...]: primeiro, o dever de proteger a sociedade contra a violência e a invasão de outros países independentes; segundo, o dever de proteger, na medida do possível, cada membro da sociedade contra a injustiça e a opressão de qualquer outro membro da mesma, ou seja, o dever de implantar uma administração judicial exata; e, terceiro, o dever de criar e manter certas obras e instituições públicas que jamais algum indivíduo ou um pequeno contingente de indivíduos poderão ter interesse em criar e manter, já que o lucro jamais poderia compensar o gasto de um indivíduo ou de um pequeno contingente de indivíduos, embora muitas vezes ele possa até compensar em maior grau o gasto de uma grande sociedade.” (SMITH, 1996, p. 170) A chave para a compreensão desse ponto reside na concepção de um papel para o Estado e o direito que, embora deva existir, é limitado e condicionado pelo objetivo de favorecer a atividade econômica privada.
  • 5
    A alusão ao caráter revolucionário da burguesia é feita por Marx e Engels no Manifesto Comunista, em passagem que evidencia as rupturas anteriormente mencionadas: “A burguesia desempenhou na História um papel iminentemente revolucionário. Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia destruiu as relações feudais, patriarcais e idílicas. Rasgou todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus 'superiores naturais', para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do pagamento à vista. Afogou os fervores sagrados da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistas duramente, por uma única liberdade sem escrúpulos: a do comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração dissimulada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, direta, despudorada e brutal.” (MARX; ENGELS, 2005, p. 42)
  • 6
    Diz-se, aqui, “forma de apresentação da riqueza” para aludir ao aspecto binário riqueza móvel e imóvel e evitar, com isso, confusões com o trabalho humano como fonte da produção do valor (cf. MARX, 2017).
  • 7
    Basta pensar nos contratos marcados por relações de hipossuficiência dadas por diferenciais extremados de poderio econômico, como o contrato de trabalho. Nesses contratos, a “coordenação cooperativa de interesses” é obtida a partir de uma negociação apenas “formal” no presente, mas não corresponde ao exercício da liberdade, visto que a carência material passa a ser um elemento condicionador da vontade de contratar, para a parte hipossuficiente. Assim, a ordem ‘arbitraria’ não é herdada do passado, mas dada pelos diferenciais de habilitação econômica das partes “negociantes”. “O escravo romano estava preso por grilhões a seu proprietário; o assalariado o está por fios invisíveis. Sua aparência de independência é mantida pela mudança constante dos patrões individuais e pela fictio juris do contrato.” (MARX, 2017, p. 648)
  • 8
    A expressão “subconsumo” é entendida, aqui, como referida a padrões de consumo direcionados direta e exclusivamente à mera reprodução do trabalhador ou da trabalhadora enquanto força de trabalho, ou seja, à aquisição precarizada dos elementos necessários à sua sobrevivência.
  • 9
    As faixas de renda foram definidas segundo o salário-mínimo vigente à época no Brasil, de R$ 510 (SANTOS; NALON, 2011).
  • 10
    As informações acima são trazidas por Nunan com a ressalva de que há críticas metodológicas aos estudos que estimam padrões de consumo como os relatados em sua pesquisa, sobretudo dirigidas à forma de amostragem, não se podendo generalizar que “todos os gays são homens ricos e sem filhos que podem gastar seus elevados salários em artigos de luxo e viagens pelo mundo.” (NUNAN, 2003, p. 87)
  • 11
    Considera-se, a esse respeito, que sexo é determinado biologicamente e geneticamente. Sexualidade diz respeito à atração física e/ou emocional que os indivíduos sentem, podendo ser direcionada ao mesmo gênero, a gênero diferente, ou a ambos os gêneros. Por sua vez, gênero diz respeito a uma construção social do que é ser homem e mulher, abrangendo papéis socialmente atribuídos a cada um dos gêneros (cf. BUTLER, 2003).
  • 12
    A criminalização da homofobia é um tema controverso e gera diversas discussões, inclusive dentro do próprio movimento LGBT. Por um lado existe o desejo pela criminalização da homofobia como medida para o combate à violência e preconceito contra a comunidade LGBT, já tendo sido propostos projetos nesse sentido como o Projeto de Lei nº 122 de 2006 (PL 122/2006), também conhecido lei anti-homofobia, o qual foi arquivado após tramitar por oito anos no Senado sem obter aprovação. Entretanto outros debates são feitos por grupos mais próximos da corrente abolicionista do sistema penal que acreditam que a criminalização de condutas em nada contribui para o combate de um sistema inerentemente homofóbico e, assim sendo, a superação das opressões deveria ser pautada por outras medidas que não a criminalização.
  • 13
    No dia 18 de junho de 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a CID - 11, uma atualização da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, na qual a transexualidade deixou de figurar como um transtorno mental e entrou no rol de “comportamentos sexuais”. Trata-se de uma conquista do movimento T, que há muito reivindicava pela retirada da classificação da transexualidade do rol das doenças mentais na OMS. Resta agora saber como o direito responderá as implicações dessa mudança significativa de paradigma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2018
  • Aceito
    10 Abr 2019
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