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Filhos, família e ambientes honestos: gênero, sexualidade e (des)criminalização do consumo de drogas

Children, family and honest environments: gender, sexuality and (de)criminalization of drug possession

Resumo

O presente artigo objetiva analisar diferentes modos como gênero e sexualidade operam nos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal acerca da (des)criminalizaçãodo porte pessoal de drogas, por ocasião do Recurso Extraordinário 635.659/2011. Para tanto, dedica-se especialmente à análise da mobilização das categorias “famílias” e “ambientes honestos”, manejadas nos votos dos ministros, correlacionando-as ainda às tomadas de posição de outros agentes de Estado atuantes na controvérsia pública acerca da “questão das drogas” no país.

Palavras-chave:
Drogas; Gênero; Sexualidade

Abstract

The following paper aims to analyze the different ways in which the terms gender and sexuality are operated in the decisions of the members of the Brazilian Supreme Court when it comes to the case of (de)criminalization of drug possession for personal use specifically in the "Recurso Extraordinário" 635.659/2011 (a special kind of appeal directed only to the Supreme Court). To reach this goal, we give special attention to the categories "family" and "honest environment", which are mentioned in the rulings of the members, and correlate this analysis with the positions of other State agents when it concerns the matter of drugs in Brazil.

Keywords:
Drugs; Gender; Sexuality

1. Introdução

Uma característica fundante da dogmática penal moderna encontra-se no princípio da legalidade: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Deste mandamento principiológico, destaca-se a obrigatoriedade não somente da adoção de leis objetivas definidoras das condutas que serão criminalizadas por determinado Estado, como também o dever de estrito cumprimento do texto designado pelas legislações de caráter penal no exercício do jus puniendi estatal. No entanto, as contribuições da virada linguística servem para nos darmos conta de que o sentido não é imanente ao objeto do discurso, dependendo primordialmente de práticas linguísticas que se dão no seio das relações sociais. Portanto, ainda que normas penais prevejam uma limitação da atividade estatal por meio da sua vinculação ao texto legal, essa é uma atividade epistemologicamente impossível, uma vez que o sentido somente pode emergir no seio das práticas concretas que circundam os processos de Estado1 1 Sobre o assunto, consultar Santoro (2005). .

Isso pode ser percebido nas dinâmicas que envolvem a produção do “traficante” e do “usuário”2 2 Aqui, os termos “traficante” e “usuário” só aparecerão entre aspas. Essas denominações surgem nos documentos oficiais e autos judiciais a que tivemos acesso. No entanto, seu emprego depende de inúmeros fatores, relações de poder e disputas argumentativas que nos impediram de transferir essas categorias para este texto sem as devidas ressalvas e rasuras. Importa notar que “traficante” e “tráfico de drogas” são categorias jurídicas que municiam práticas de crime/criminalização exercidas por agentes de Estado, da mídia e de setores conservadores. no contexto judiciário. Não podendo a lei 11.343/2006 definir intrinsecamente os limites objetivos de cada um desses enunciados para a concretização dos ideais de “cuidado” com uns e de “criminalização” de outros, cabe às práticas estatais produzir e atualizar os sentidos de cada um desses termos. Entretanto, devemos notar que tais enunciados não são colocados em circulação independentemente das relações de poder, como de gênero e sexualidade, uma vez que as práticas generificadas que compõem as relações sociais “não circulam ou existem ‘fora do Estado’, mas nele e por ele se tornam viáveis e compreensíveis” (VIANNA; LOWENKRON, 2017VIANNA, Adriana. LOWENKRON, Laura. O duplo fazer do gênero e do Estado. Interconexões, materialidades e linguagens. In: Cadernos pagu (51), 2017., p. 6).

Com o presente artigo, objetivamos analisar diferentes modos como gênero e sexualidade operam nos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal por ocasião do Recurso Extraordinário 635.659/2011, o qual demanda a declaração de inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11343/2006, dispositivo este que criminaliza o “usuário” de drogas no Brasil. Para tanto, dedicamo-nos especialmente à análise da mobilização das categorias “famílias” e “ambientes honestos”, manejadas nos votos dos ministros.

Partimos, pois, do seguinte questionamento principal: quais são as demarcações discursivas em gênero e sexualidade produzidas pelos(as) ministros(as) do Supremo Tribunal Federal na análise sobre a “questão das drogas” no país?

Na primeira parte do artigo, nós procuramos abordar as ambiguidades jurídicas em torno das categorias “traficantes” e “usuários”, bem como os caminhos institucionais do STF no debate sobre as drogas; na segunda seção, analisamos as relações existentes entre o enunciado “família” e os seus delineamentos na produção discursiva dos “ambientes honestos” nos votos dos ministros do STF no contexto de julgamento do Recurso Extraordinário 635.659/2011.

2. As ambiguidades jurídicas entre “traficantes” e “usuários”

Ao promulgar a lei 11.343/2006, o Estado brasileiro instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD). O fundamento do SISNAD, portanto, era o de produzir estratégias de controle que permitissem a redução do consumo e da venda de substâncias ilícitas. As medidas adotadas pela lei seguem o roteiro típico das leis penais brasileiras. No primeiro tomo, compreendido entre os artigos 1° e 26, as noções relativas aos “cuidados” pretensamente democráticos e constitucionais acerca dos fenômenos relativos às drogas preenchem os seus incisos. Nesse espaço-tempo do texto normativo, as expressões “consenso nacional”, “projeto pedagógico de prevenção” e “inclusão social” ilustram, dentre tantas outras, esforços políticos que objetivam demonstrar a preocupação do “Estado” com o bem-estar social. Em linhas gerais, a figura do “usuário”, prestes a ser recuperado pelas “políticas públicas sobre drogas”, aparece aí de forma mais contundente.

Na segunda parte da lei 11.343/2006, a versão “cuidadosa” do “Estado” desaparece. As ações se concentram em demonstrar o percurso legal de como o “usuário” se converte em “traficante”. Entre os artigos 27 e 75, as palavras-chave revelam a “repressão”, o “crime”, as “penas” e os “procedimentos penais” como instrumentos de controle. As condutas que indicam as possibilidades em que alguém será considerado “usuário” ou “traficante” não aparecem descritas de forma clara.

Essas ambiguidades legais vivenciadas pelos sujeitos submetidos ao processo de criminalização referem-se especialmente à quantidade e à qualidade das substâncias encontradas nas abordagens policiais. Se falamos de um consumidor contumaz de determinada substância, aquela poderá ser sua quantidade mensal (ou bimestral) de uso. Como também poderá ser uma quantidade comprada para ser repartida com outras pessoas. Não é possível compreender, pela legislação atual, quais critérios dessas condutas serão suficientes para tornar alguém um agente do “tráfico de drogas”.

Logo, “usuários” e “traficantes” resultam de dinâmicas de Estado, nas quais se dá a produção de seus sentidos. As decisões judiciais, como expressões de práticas discursivas da comunidade interpretativa, participam da demarcação da linha entre um enunciado e outro. Isso pode ser percebido pela atuação dos ministros do Supremo Tribunal Federal acerca do assunto.

O Supremo Tribunal Federal (STF) vem, nos últimos anos, recebendo ações judiciais que tratam sobre a temática das “drogas”. A Corte tem sido provocada a estabelecer as orientações jurisprudenciais que os diversos órgãos estatais, notadamente do Sistema de Justiça Criminal, deverão seguir ao lidar com os crimes previstos na Lei 11.343/2006. Em 2011, por exemplo, a Procuradoria Geral da República, representada por Deborah Duprat, ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 187 contra a proibição das manifestações a favor da legalização das drogas, em especial da maconha. Os ministros do STF, na ocasião, consideraram que a livre manifestação seria o pressuposto para que os sujeitos pudessem ir às ruas reivindicar do poder público um posicionamento sobre as drogas. Os(as) ministros(as) indicaram que o conteúdo das manifestações tinha caráter informativo, demonstrando, inclusive, os benefícios de uma possível legalização. A ADPF 187 foi emblemática para as discussões jurídicas sobre as drogas no Brasil. As “Marchas da Maconha” - como ficaram amplamente conhecidas - têm como pauta-base a legalização da maconha e a possibilidade de gestão pública de sua produção. Os movimentos que compõem as frentes antiproibicionistas defendem que o atual modelo legislativo incide diretamente na criminalização e no extermínio de jovens negros e pobres. A “guerra às drogas”, nas narrativas desses movimentos, assumiria o papel de “encarcerar” e “matar” os jovens, bem como oneraria os gastos do Estado com a pasta da Segurança Pública3 3 “A Marcha da Maconha Brasil é um movimento social, cultural e político, cujo objetivo é levantar a proibição hoje vigente em nosso país em relação ao plantio e consumo da cannabis, tanto para fins medicinais como recreativos. [...] Partilhamos do entendimento de que a política proibicionista radical hoje vigente no Brasil e na esmagadora maioria dos países do mundo é um completo fracasso, que cobra um alto preço em vidas humanas e recursos públicos desperdiçados” (MARCHA DA MACONHA, 2007). .

A legalização da maconha, nesse sentido, desafogaria o sistema penitenciário e permitiria que os sujeitos fossem tratados como usuários, garantindo o tratamento em saúde adequado aos que se interessassem. Ademais, a possibilidade de auferir recursos com tributos, através da taxação sobre a produção da maconha, encontra respaldo em parte dessas narrativas (MARTÍNEZ, 2019MARTÍNEZ, Guilherme Eleutério. Tributação da cannabis no Brasil: o imposto não se importa com o cheiro. o imposto não se importa com o cheiro. 2019. Disponível em: https://sechat.com.br/tributacao-da-cannabis-no-brasil-o-tributo-nao-se-importa-com-o-cheiro/. Acesso em: 20 abr. 2020.
https://sechat.com.br/tributacao-da-cann...
). A escolha da maconha como bandeira de reivindicação é defendida pelas organizações antiproibicionistas por ser ela uma planta de pequeno custo de produção e com níveis baixos de dependência. Os exemplos de países que já promoveram a legalização apenas da maconha são utilizados como plataforma para garantir a legitimidade da defesa pública da substância.

Entretanto, a ADPF 187 representa apenas uma das camadas dos processos judiciais com que os servidores do STF lidam. O comércio de outras substâncias, como o crack e a cocaína, tem ocupado a agenda jurisdicional do tribunal. Diferentemente da discussão aberta, plural e unânime que os ministros do STF intentaram transparecer no julgamento da ação a respeito das marchas, os processos relativos ao “tráfico de drogas” têm demonstrado acirramentos ideológicos que merecem destaque. Ministros têm relativizado questões que antes eram consideradas absolutas, afetando diretamente os sujeitos que enfrentam processos judiciais que impõem sanções a fatos relacionados ao mercado de drogas ilícitas.

Nos anos subsequentes a 2011, porém, o universo de argumentações e teses defendidas sobre o comércio e o consumo de drogas ilícitas passou a se adensar após a interposição do Recurso Extraordinário 635.659/SP no Supremo Tribunal Federal. O recurso trata do caso de Francisco Benedito de Souza, preso na detenção provisória do município de Diadema, São Paulo. Após uma inspeção feita pelos agentes penitenciários no pavilhão em que Francisco morava, foram encontrados cerca de três gramas de maconha que estavam escondidos na cela. Ao identificarem a substância, Francisco foi encaminhado para a direção prisional e à Vara de Execuções Penais para que fosse iniciado o procedimento de sindicância. Após a constatação das propriedades químicas e a confirmação pelo laudo pericial da Polícia Civil de São Paulo, Francisco foi condenado a cinco meses de prestação de serviços comunitários, conforme o artigo 28 da lei 11.343/2006, tendo sua condenação mantida pelo Tribunal de Justiça do estado de São Paulo. A Defensoria do Estado de São Paulo recorreu da decisão junto ao STF, indicando que a condenação criminal por porte pessoal de drogas constrangia o direito à intimidade e à vida privada. Os defensores requereram dos ministros do STF a decretação da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006.

O ministro relator Gilmar Mendes, ao receber o Recurso Extraordinário 635.659/2011, reconheceu que o conteúdo da ação possuía “repercussão geral”, significando que a importância da matéria discutida estava demonstrada pela sua relevância política, econômica e cultural. Mendes proferiu seu voto em 20 de agosto de 2015, sendo favorável ao réu e decidindo sobre a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. Logo em seguida, no dia 10 de setembro de 2015, os Ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso defenderam seus posicionamentos por meio devotos apresentados à Corte. Seguindo o entendimento do relator do processo, os ministros assinalaram que a criminalização do porte pessoal de drogas era inconstitucional, mas restringiram a possibilidade de descriminalização apenas à maconha4 4 Após a morte do Ministro Teori Zavaski, em Janeiro de 2017, os ministros aguardaram a colocação do recurso em pauta novamente. Em março de 2017, o Ministro Alexandre Morais assumiu a vaga deixada por Teori Zavaski e devolveu os autos. A presidência da Corte agendou o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659/2011 para julho de 2019, entretanto houve sucessivos pedidos de adiamento. Atualmente, o STF aguarda a intimação do Procurador Geral e da Defensoria do estado de São Paulo, conforme movimentação processual no sítio eletrônico da Corte. .

Os três votos evidenciaram questões que preenchem a pauta dos movimentos sociais e organizações não governamentais que defendem a legalização das drogas ou, tão somente, da maconha. Porém, o posicionamento antecipado de outro ministro colocou sob rasura alguns elementos que poderão passar despercebidos numa leitura mais apressada dos votos. Num congresso jurídico a que foi convidado, em agosto de 2015, o Ministro Luiz Fux declarou ser contrário ao entendimento do relator e dos votos divulgados até aquela data. Para explicar sua posição, o Ministro Fux apresentou a seguinte questão: “Como vou falar para o meu filho não usar drogas se ele vai rebater: ‘Então por que você votou pela descriminalização?’”. Ao articular sua reputação familiar perante seu filho aos fundamentos do seu futuro voto junto ao plenário do Supremo, Luiz Fux nos fez retornar aos votos já proferidos pelos outros três ministros e perceber a relevância das relações de gênero e de sexualidade também ali constantes.

A “família” esteve presente em todos os pronunciamentos judiciais dos Ministros, inclusive em ocasiões extraoficiais em que os ministros estiveram presentes e se manifestaram acerca do caso. Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso a tratavam como um bem social e jurídico a ser “tutelado”, protegido da “tragédia moral” que as drogas haviam inaugurado. Além disso, a conversão do “usuário de drogas” em “vítima” sustentaria a necessidade de garantir às famílias um ambiente seguro para a criação pacífica dos seus filhos e a recuperação dos que estavam em estágio de dependência. A partir dessa percepção, nós nos concentraremos em analisar a seguinte questão: a gestão da “família” como vetor de direitos no STF.

3. Entre “famílias” e “ambientes honestos”

A “família” vem sendo, frequentemente, palco de disputas na rotina institucional do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. A princípio, as noções sobre formato, direitos, limites e objetivos abrangem questões fundamentais que cercam os embates sobre a legitimidade de cada entidade familiar. Os recursos jurídicos para tratar do tema transitam entre projetos de leis, processos judiciais, editais de financiamento e ações de Estado. O STF tem sido provocado em diversas ocasiões para fixar qual o entendimento jurisprudencial que os tribunais e instituições deveriam adotar sobre as possibilidades de existência de outros perfis familiares. As “uniões homoafetivas”, a equiparação de direitos entre o casamento civil e as uniões estáveis e outros processos judiciais são exemplos de como a pauta da Corte foi sendo preenchida. A luta por direitos acerca da família passou a instituir estratégias de acesso a garantias constitucionais acionadas historicamente tanto pela argumentação institucional do STF quanto pelos sujeitos que expuseram as suas demandas ao tribunal.

Controvérsias, travadas em gênero e sexualidade, sobre a “família” percorreram os posicionamentos públicos dosministro sem alguns dos mais emblemáticos julgamentos5 5 Para a compreensão de parte dos posicionamentos dos (as) ministros (as) sobre “família”, sugerimos a leitura dos votos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, bem como do texto em que Roberto Efrem Filho (2014) procede à análise desses votos a respeito da constitucionalidade do que se convencionou chamar de “uniões homoafetivas”. ocorridos no STF. Contudo, no RE 635.659/2011, as narrativas judiciais seguiram o esquema retórico reproduzido nas faculdades de direito. Primeiro, os ministros demonstraram que a discussão sobre a posse de drogas para consumo pessoal era uma questão que não poderia ser atingida pela moral. “É preciso não confundir moral com direito”, disse Luís Roberto Barroso ao proferir seu voto (BRASIL, 2015, p. 7). Ao estabelecer essa questão como tópico preliminar, Barroso indicou a partir de alguns exemplos que, embora a “sociedade” reprove moralmente determinadas condutas, não caberia aos membros do Judiciário absorver esses posicionamentos interferindo na vida privada dos sujeitos. Edson Fachin, na mesma linha argumentativa, antevê qualquer intenção moralizante que prejudique a proteção dos direitos. “Os ideais de excelência humana que integram preciso sistema moral individual não devem ser impostos pelo Estado, mas devem ser produto de escolha de cada indivíduo” (BRASIL, 2015, p. 4). O afastamento da “moral” oferece, para os ministros, uma espécie de possibilidade de decidir sem que outros fatores influenciem a construção dos seus votos. Muito embora a tarefa seja a de garantir a certeza nas decisões, o movimento que sustenta essa atividade parece ser outro. Ao afugentarem - tão somente no plano retórico - a “moral”, os ministros buscam demonstrar que conflitos sociais e relações de poder considerados externos à Corte, como relações de classe, de gênero, de sexualidade e de raça, não provocariam nenhuma interferência na decisão final.

Entretanto, como explicado anteriormente, esses esforços empregados por Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso ganharam nossas primeiras desconfianças quando Luiz Fux resolveu antecipar a fundamentação de sua posição que será, em algum momento posterior, defendida no plenário do Supremo. Como dito, Luiz Fux afirmou que não poderia votar em favor do porte pessoal de drogas porque poderia ver-se constrangido diante do seu filho que, proibido pelo pai de consumir drogas ilícitas, contestá-lo-ia acionando retoricamente o voto do pai no Supremo para justificar sua própria ação. “Como vou falar para o meu filho não usar drogas se ele vai rebater: ‘Então por que você votou pela descriminalização?’”. Com menos pudores, Luiz Fux trata abertamente de colocar sob suspeição a “neutralidade” e a “certeza” científica dos métodos decisórios. Agora, diferentemente dos três primeiros ministros que proferiram os votos no plenário, Fux se investe da condição de pai. Do pai que decide, que admoesta. Do pai que ama e cuida.

Os vestígios deixados por Fux confirmam algumas questões da dinâmica das conversões entre “usuários” e “traficantes” de que tratamos anteriormente, quando falamos sobre a Lei 11.343/2006. Ao alegar que seu filho o questionaria sobre seu voto, Fux atravessa a fronteira do papel aparentemente público do juiz. É o pai que está decidindo sobre o futuro do seu filho, que o protege das possibilidades nefastas que o consumo de drogas poderia causar em sua vida. O pai protege. As convenções masculinizadas da heroificação da figura do “pai” expressam as nuances do que estamos pretendendo argumentar sobre como as performances de gênero e sexualidade ocupam a centralidade dos conflitos. A postura do pai em resguardar seu filho e a necessidade inquebrantável de demonstrar a sua coerência entre a vida pública e a condição paterna desenham as primeiras linhas de composição dos embates.

Acreditamos que as análises de Veena Das (2011DAS, Veena. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. In: Cadernos Pagu, v. 37. Campinas: 2011, pp. 09 - 41., p. 12) sobre o conflito dramático entre Antígona e Creonte6 6 Antígona, Polinices, Éteocles e Creonte representam personagens nas tragédias de Sófocles. Polinices e Éteocles foram mortos mutuamente num duelo pelo governo de Tebas. Creonte, ao assumir a direção política de Tebas, outorga uma ordem que impede o sepultamento de Polinices, considerado inimigo do governo. Polinices, irmão de Antígona, deveria ser largado às ruas sem qualquer funeral. Antígona, ao descobrir a existência daproibição do sepultamento do seu irmão, desafia Creonte e se coloca na linha de frente para garantir o sepultamento do seu irmão, mesmo que essa ação possa resultar em sua morte. podem nos ajudar a empreender uma leitura do quadro inaugurado por Luiz Fux. Segundo o que se aprende logo nos primeiros meses nas faculdades de direito, Antígona representaria o “direito natural”. Seria ela quem carregaria a sensibilidade, o amor fraterno e os ideais de justiça inscritos no coração dos seres humanos (ou das mulheres). Creonte, por sua vez, representaria o direito positivo, a força e a racionalidade do direito posto, legislado. As conclusões de grande parte dos juristas sobre o conflito entre Antígona e Creonte - as de que os desejos de Antígona, por mais que moralmente compreensíveis, não se podem realizar diante da autoridade e da legitimidade da norma, representada por Creonte - recorrem a convenções feminizadas do afeto e do cuidado como característica fundamental do que é natural e juridicamente apropriável pelo ordenamento. Nas discursividades tradicionais do direito, Antígona carregaria a instituição familiar - ou “o instintivo amor familiar”, nas palavras de Hegel (1920, p. 210) -e Creonte seria o responsável por impor o direito e, com ele, o interesse público. De acordo com as discussões de Das (2011, p. 14), entretanto, ao enfrentar Creonte, Antígona se coloca na “zona entre as duas mortes”: a morte do seu irmão e a sua própria morte ao descumprir as ordens de Creonte. Ao desafiar a representação do Estado, Antígona registra a sua capacidade de agenciar o conflito, argumentando sobre a singularidade da vida do seu irmão. A “zona entre duas mortes”, no que lhe concerne, também representaria o espaço-tempo em que o público e o privado disputam seu alcance (EFREM FILHO, 2017EFREM FILHO, Roberto. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2017.).

Luiz Fux ocupa um local ambíguo nessa metáfora, um pouco na linha do que argumentou Butler (2014BUTLER, Judith. O clamor de Antígona: parentesco entre vida e morte. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.) ao afirmar que Antígona e Creonte estão muito mais implicados um no outro do que dispostos em uma oposição simples. De um lado, o Ministro ocupa a posição de Creonte, pois decide em nome do direito. No entanto, de outro lado, ao indicar que decide por razões familiares - “como vou falar para o meu filho não usar drogas [...]” -, ele se aproxima de Antígona eliminando, portanto, as fronteiras retoricamente defendidas entre o público e o privado, entre a moral e o direito.

Contraditoriamente, Antígona questiona o poder de Creonte em dizer o direito, pois de acordo com Das, apenas aqueles que se situam na “zona entre as duas mortes” podem afirmar a verdade indizível sobre a “natureza criminosa” do direito: “a questão [...] não é a de um direito contra o outro, mas se o direito de Creonte pode subsumir tudo” (DAS, 2011DAS, Veena. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. In: Cadernos Pagu, v. 37. Campinas: 2011, pp. 09 - 41., p. 13). Logo, Antígona parece nos sinalizar a existência de relações de poder e relações familiares que possibilitam que o direito seja dito desta e daquela forma. Fux performatiza ao mesmo tempo o papel de pai e de representante do Estado borrando os limites que parecem separar um espaço do outro, entretanto, o que se torna perceptível é o fato de que o ministro fala em nome de um ideal específico de família: a família afetiva que possibilita a criação de seus filhos em “ambientes de honestidade".

Ao analisar as narrativas dos ministros do STF na decisão relacionada à constitucionalidadedas “uniões homoafetivas”, Roberto Efrem Filho (2014) percebe um movimento de “afetualização jurídica” da identidade homossexual naqueles votos. Segundo Efrem Filho, esse movimento objetivaria a negação discursiva do “sexo” (e do exercício da sexualidade) e a afirmação do “afeto” como uma categoria mais aceitável entre as dinâmicas do direito. Homossexualidade, nesse caminho, converter-se-ia em homoafetividade. Respeitadas as diferenças contextuais, acreditamos que, seguindo as pistas deixadas por Efrem Filho (2014), podemos dizer que a “afetualização jurídica” promove “meu filho” à imagem do usuário palatável.

Paralelamente, a “zona entre duas mortes” qualifica “meu filho” no sujeito passível de recuperação. Ele carregaria a bandeira da vida, tornando-se uma espécie de corpo etéreo, eleito imageticamente como menos “matável” e potencialmente menos delinquenciável.

O movimento de sublimar o corpo do “meu filho”, de torná-lo exemplo, só é possível nos lugares familiares legítimos que propiciariam o desenvolvimento de jovens honrados e honestos, que necessariamente ouviriam os conselhos coerentes de seus pais sobre o não uso de drogas. Tais lugares familiares compreendem as famílias dos ministros do Supremo, mas não, ao que parece, as “famílias pobres”, de que fala Barroso, as quais são obrigadas a lidar com a “tragédia moral” de não poderem criar seus filhos em um “ambiente de honestidade”.

Entre nós, o maior problema é o poder do tráfico, um poder que advém da ilegalidade da droga. E este poder se exerce oprimindo as comunidades mais pobres, ditando a lei e cooptando a juventude. O tráfico desempenha uma concorrência desleal com qualquer atividade lícita, pelas somas que manipula e os pagamentos que oferece. A consequência é uma tragédia moral brasileira: a de impedir as famílias pobres de criarem os seus filhos em um ambiente de honestidade (BRASIL, 2015)

A priori, os posicionamentos de Barroso e Fux apenas parecem indicar ilustrações que são utilizadas para matizar didaticamente os argumentos. Decerto, compreendemos que Barroso atravessa anos-luz à frente de Luiz Fux na arguição sobre o porte pessoal de drogas, indicando medidas, promovendo soluções e questões relevantes sobre a necessidade urgente de legalização das drogas. Porém, ao dissecar as chaves de ativação das declarações de cada um, a “família” apareceu como um vetor de direitos e de regulação.

Os programas policiais de televisão, por exemplo, que fazem a cobertura das prisões e das ações da polícia no enfretamento ao mercado de drogas ilícitas, trazem comumente a “família” como o “problema” e a “solução” para a criminalidade. Não à toa, os apresentadores costumam falar às famílias, direcionando suas performances de palco em instruir as “famílias brasileiras” a educarem seus filhos e libertá-los do “mundo das drogas”. A “família brasileira” se tornou um projeto de gestão de Estado, levando em seu seio múltiplas convenções morais sobre as definições de “honestidade”. Diversos setores sociais e de Estado têm dedicado tempo e esforços políticos em colocar a família no patamar em que as transformações acontecerão. É nas circunscrições familiares que os ideais de trabalho, de educação e escolarização, de respeito e de prevenção ao crime ganham destaque.

No entanto, o vetor de direitos em que a família se tornou restringe os seus limites em gênero e sexualidade. Apenas alguns modelos de família puderam angariar a legitimidade de ingresso na luta por direitos. Isso se dá em virtude da forma como o parentesco ocupa as narrativas de gestão que disputam os limites da reprodução, da vida e da morte (BUTLER, 2003BUTLER, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual?.Cad. Pagu [online]. 2003, n.21, pp.219-260. ISSN 0104-8333.). As convenções sobre o parentesco não emergem para além do Estado e suas instituições. Elas fundamentam as posições estatais sobre as políticas públicas de governo, as decisões judiciais e a formulação de direitos. Ser juridicamente reconhecível exige, nos quadros protagonizados pelo STF no RE 635.659/2011, que apenas “formas estáveis” de famílias possam recuperar e converter os jovens usuários de drogas. Ao investigar o parentesco, Judith Butler (2003BUTLER, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual?.Cad. Pagu [online]. 2003, n.21, pp.219-260. ISSN 0104-8333.) argumenta que a variabilidade das relações provoca “efeitos perturbadores” nos projetos de nação que sustentam o Estado. Os apelos utilizados, cada um a seu modo, ao “meu filho” e aos “ambientes honestos” demonstram as facetas de gestão da sexualidade e do gênero tendo o casamento como fio condutor. A validade garantida a determinadas formas de relacionamento está intimamente ligada à extensão da atuação estatal. Nos espaços em que as famílias exercem performances sexualmente legítimas, as discursividades sobre as experiências de criminalização se arrefecem.

Butler (2003BUTLER, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual?.Cad. Pagu [online]. 2003, n.21, pp.219-260. ISSN 0104-8333., p. 234) nota como o Estado é atravessado pelas malhas das relações de gênero e de sexualidade, confirmando os ajustamentos históricos que produzem discursos universais sobre geração, casamento e estabilidade sexual.

O Estado se torna o meio pelo qual uma fantasia se torna literal; desejo e sexualidade são ratificados, justificadas, conhecidas, declaradas publicamente instaladas, imaginadas como permanentes, duradouras. E, nesse mesmo momento, desejo e sexualidade são despossuídos e deslocados, de modo que o que alguém “é” e o que o relacionamento desse alguém “é” não são mais assuntos privados; de fato, ironicamente, poder-se-ia dizer que, através do casamento, o desejo pessoal adquire certo anonimato e intercambialidade, torna-se mediado publicamente e, nesse sentido, um tipo de sexo público legitimado. Mais do que isso, o casamento conduz, pelo menos logicamente, ao reconhecimento universal: todos devem deixá-lo adentrar a porta do hospital, todos devem honrar sua reivindicação de pesar; todos respeitarão seus direitos naturais sobre um bebê; todos considerarão sua relação como elevada para a eternidade. Dessa maneira, o desejo por reconhecimento universal é um desejo de se tornar universal, de se tornar intercambiável na própria universalidade, de esvaziar a particularidade solitária da relação não-ratificada e, talvez, acima de tudo, de ganhar tanto o lugar como a santificação naquela relação imaginada com o Estado (BUTLER, 2003BUTLER, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual?.Cad. Pagu [online]. 2003, n.21, pp.219-260. ISSN 0104-8333., p. 234).

Entretanto, o espaço-tempo em que os “ambientes honestos” são produzidos não se limita apenas à retórica dos tribunais superiores. O caminho percorrido por esse argumento esbarra em muitas experiências das comunidades periféricas localizadas nos grandes centros urbanos. Ao analisar a experiência do crime e da criminalização nas periferias em São Paulo, Gabriel Feltran (2008) apresentou alguns sinais de como os limites do público e do privado se comportavam. Os seus interlocutores de pesquisa se esforçavam em demonstrar que o crime estaria fora do espaço doméstico. O movimento narrativo, portanto, se concentrava em defender a “casa” como um “ambiente honesto”, afastando a possibilidade de que as experiências criminosas influenciássemos valores familiares. Contudo, ao aprofundar a análise dessas narrativas, Feltran (2008) passou a compreender que a demarcação público/privado - estabelecida para afastar o crime - se diluía na própria experiência cotidiana. A renda, por exemplo, de algumas dessas famílias tinha participação direta dos ganhos auferidos em práticas criminosas. Esse quadro analítico, produzido por Feltran (2008), auxilia na compreensão de como os sujeitos e os “ambientes honestos” transitam nas fronteiras incertas do legal e do ilegal.

As declarações públicas sobre o espaço familiar também produzem zonas de legitimidade e ilegitimidade na compreensão sobre a questão das drogas. As “famílias desestruturadas”, às quais se referem os jornalistas comumente, as “famílias pobres” do voto de Barroso se tornaram uma das justificativas que estabelecem os pontos de origem em que possíveis usuários de drogas surgiriam com maior prevalência. As imagens desses lugares foram tonificadas em diversas audiências judiciais, espaços de discussão e eventos acadêmicos que tratam sobre o assunto. Por meio delas, as narrativas vão-se encadeando na produção de estratégias de criminalização em diferentes níveis.

Um desses níveis retoma as imagens entre “usuários” e “traficantes” manejadas no cerne das ambiguidades jurídicas. Nas rupturas entre as seções da lei 11.343/2006, que estabelece alguns padrões na diferenciação entre as pessoas que serão consideradas “usuárias” e “traficantes”, é possível perceber que o “cuidado” é destinado aos sujeitos usuários. O movimento normativo indica que a “repressão” deverá ser destinada às pessoas que se dedicam a comercializar as substâncias entorpecentes. Muito embora, no cotidiano das periferias, essa “repressão” atinja os dois sujeitos, as mobilizações retóricas dos ministros ao redor do uso e da venda produzem imagens e resultados diferentes.

A demonstração do caminho dessas mobilizações pode ser observada no voto do Ministro Edson Fachin. Ao proferir o seu voto, Fachin alega que algumas questões relacionadas ao processo devem ser sopesadas. A primeira delas tem a ver com o papel dos “usuários” e “traficantes” na questão das drogas. “A dependência é o calabouço da liberdade mantida em cárcere privado pelo traficante. Repito: A dependência é o calabouço da liberdade mantida em cárcere privado pelo traficante”. A frase repetida duas vezes pelo ministro inicia um intenso jogo de argumentações em que “dominador” e “dominado” - “traficante” e “usuário dependente” - possuem comportamentos distintos. Maria Filomena Gregori (1993GREGORI, Maria Filomena. As desventuras do vitimismo. Revista Estudos Feministas, São Carlos, v. 01, n. 01, p.143-149, jan. 1993. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/15998/14498>. Acesso em: 13 jan. 2018.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref...
, p. 4), ao tratar sobre o papel da vítima nos contextos de violência doméstica, registrou que a díade agressor/ativo e agredido/passivo generalizava situações em que as possibilidades de ação eram subsumidas por situações que eram do início ao fim violentas. As fundamentações utilizadas por Fachin (BRASIL, 2015, p. 2) produzem imagens de vítimas que dialogam com as dimensões de criminalização e conversão do “usuário” em “traficante”.

É no traficante, portanto, que os ministros concentram as ações de repressão. Entretanto, na “gestão diferencial das ilegalidades”, de que tratou Foucault (2007FOUCAULT, Michel. 2007. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Trad. Raquel Ramalhete. 35ª ed. Petrópolis: Vozes., p. 75), usuários também poderão ser considerados traficantes em variadas situações que se pautam nas assimetrias das relações de poder. O “cuidado” e a “proteção” são criações torcidas em gênero e sexualidade, raça e classe em que usuários são convertidos em traficantes. São chaves analíticas que podem fazer surgir corpos passíveis, feminizados, carentes de atenção que merecem os olhares especiais do poder público. Do mesmo modo que as experiências delinquenciais dos sujeitos do mercado de drogas ilícitas são masculinizadas na figura do carrasco que mantém os usuários em seu domínio. “Chega-se aqui a um ponto nodal: o dependente é vítima e não um criminoso germinal”, disse Edson Fachin nas proximidades do fim do seu voto (BRASIL, 2015, p. 12).

A construção da “vítima” no voto do Ministro Edson Fachin transita, mesmo que de outro modo, nas falas do Ministro Luís Fux e de Luís Roberto Barroso. Quando Fux admite que “meu filho” é a justificativa para seu voto contrário ele retoma as imagens do “usuário palatável”, de que tratamos anteriormente, mas também do sujeito que deverá receber os cuidados necessários para uma possível “cura”. Fux está partindo de um ideal estável de família em que “criminosos germinais” não passam pela sua concepção.

Os Ministros Luís R. Barroso e Edson Fachin estão tratando do mesmo ambiente familiar. Muito embora Fachin não tenha expressamente feito essa afirmação sobre de qual tipo de família ele estaria tratando, um dado precisa ser considerado. O Ministro Edson Fachin utiliza dados da realidade carcerária no Brasil, a partir do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), realizado em 2014. O magistrado se concentra em demonstrar numericamente como o “tráfico” tem ocupado de maneira contundente o ambiente prisional. Ao apresentar os números alarmantes da superpopulação carcerária, Fachin traz para o voto não só uma justificação quantitativa para a descriminalização do porte pessoal de drogas. Ele qualifica quem são os “criminosos germinais” e de quais famílias eles são oriundos, mesmo que nas entrelinhas do voto. Sobretudo porque, partindo dos mesmos dados do INFOPEN/2016, vê-se que 64% das pessoas privadas de liberdades são negras e 62% da população carcerária está presa pelo crime de “tráfico de drogas”.

O movimento narrativo dos dois ministros, Edson Fachin e Barroso, caminha na mesma esteira argumentativa. É na gestão, política e jurídica, das “famílias pobres” e na constituição de “ambientes honestos” que possíveis “criminosos germinais” poderão ser evitados. Mas é também por esse caminho que as convenções de raça, classe, gênero e sexualidade apresentam os ambientes familiares de que cada magistrado está tratando. Percebemos isso sobretudo se, retomando a discussão de Butler (2003BUTLER, Judith. O parentesco é sempre tido como heterossexual?.Cad. Pagu [online]. 2003, n.21, pp.219-260. ISSN 0104-8333.) sobre o reconhecimento universal de alguns fenômenos a partir do Estado, detemo-nos sobre como Fachin reconhece, mesmo que de forma silenciosa, de onde vem a figura do “meu filho” e demonstra, com os dados trazidos no seu voto, como as suas narrativas diferenciam esse filho dos “criminosos germinais”.

4. Considerações finais

Objetivamos, com o presente trabalho, analisar diferentes modos como gênero e sexualidade operam nos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal acerca da (des)criminalização do porte pessoal de drogas.Para isso, trabalhamos com a pesquisa de caráter qualitativo e documental, elegendo como documentos de análise os votos dos ministros juntoao Recurso Extraordinário Nº 6.35.659.

Na primeira seção, notamos a existência de uma “ambiguidade” na diferenciação legal das figuradas “usuário” e “traficante”. Diante disso, partimos da ideia de que os sentidos desses termos, para fins de “proteção” ou “punição” no âmbito de aplicação da lei 11.343/2006, vêm sendo definidos e atualizados em meio às dinâmicas estatais, especialmente nos julgados do STF. Além disso, revisitando os documentos e reportagens sobre o caso, percebemos que alguns elementos consolidariam a centralidade do gênero e da sexualidade nesses documentos e nos conflitos sociais que eles materializam. A “família” é um enunciado central nos pronunciamentos dos ministros.

Partindo dessa afirmação, na segunda seção, passamos a perceber nos votos dos ministros as tramas existentes entre família, cuidado e afeto, especialmente na afirmativa paternal de Fux sobre convencer seu filho a não usar drogas, despertando as convenções de heroificação da figura do “pai” e demonstrando a centralidade das performances de gênero e sexualidade na resolução dos conflitos. Nesse caso específico, a família se apresenta como o local do afeto necessário para a criação dos filhos em “ambientes saudáveis” de forma a torná-los “menos matáveis” ao propiciar o desenvolvimento de jovens honráveis e honestos. Essas declarações servem para produzir zonas de legitimidade e ilegitimidade na compreensão sobre a “questão da droga”.

A fala de Barroso, por outro lado, nos remete às múltiplas convenções morais que participam das definições de honestidade que circunscrevem os ideais de família e os espaços de legitimidade e ilegitimidade na compreensão da questão da droga. Nesse sentido, tais discursos fazem parte da produção do local ocupado pelas “famílias pobres” no processo de fabricação dos possíveis usuários de drogas.

São através dessas narrativas que são tecidas as estratégias de criminalização em diferentes níveis, seja na reprodução das ideias de cuidado com o sujeito “usuário”, ou na “repressão” àqueles que comercializam as substâncias entorpecentes. As falas dos Ministros, portanto, atuam para a produção e cristalização dessas imagens.

  • ERRATA

    No artigo Filhos, família e ambientes honestos: gênero, sexualidade e (des)criminalização do consumo de drogas, com número de DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2020/50447, publicado no periódico Revista Direito e Práxis, 11(2):1312-1331, nas páginas 1312 e 1331, e no rodapé das páginas 1312-1331:
    Onde se lia:
    “Tuanny Soeiro Souza”
    Leia-se:
    “Tuanny Soeiro Sousa”

Referências bibliográficas

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  • 1
    Sobre o assunto, consultar Santoro (2005).
  • 2
    Aqui, os termos “traficante” e “usuário” só aparecerão entre aspas. Essas denominações surgem nos documentos oficiais e autos judiciais a que tivemos acesso. No entanto, seu emprego depende de inúmeros fatores, relações de poder e disputas argumentativas que nos impediram de transferir essas categorias para este texto sem as devidas ressalvas e rasuras. Importa notar que “traficante” e “tráfico de drogas” são categorias jurídicas que municiam práticas de crime/criminalização exercidas por agentes de Estado, da mídia e de setores conservadores.
  • 3
    “A Marcha da Maconha Brasil é um movimento social, cultural e político, cujo objetivo é levantar a proibição hoje vigente em nosso país em relação ao plantio e consumo da cannabis, tanto para fins medicinais como recreativos. [...] Partilhamos do entendimento de que a política proibicionista radical hoje vigente no Brasil e na esmagadora maioria dos países do mundo é um completo fracasso, que cobra um alto preço em vidas humanas e recursos públicos desperdiçados” (MARCHA DA MACONHA, 2007).
  • 4
    Após a morte do Ministro Teori Zavaski, em Janeiro de 2017, os ministros aguardaram a colocação do recurso em pauta novamente. Em março de 2017, o Ministro Alexandre Morais assumiu a vaga deixada por Teori Zavaski e devolveu os autos. A presidência da Corte agendou o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659/2011 para julho de 2019, entretanto houve sucessivos pedidos de adiamento. Atualmente, o STF aguarda a intimação do Procurador Geral e da Defensoria do estado de São Paulo, conforme movimentação processual no sítio eletrônico da Corte.
  • 5
    Para a compreensão de parte dos posicionamentos dos (as) ministros (as) sobre “família”, sugerimos a leitura dos votos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, bem como do texto em que Roberto Efrem Filho (2014) procede à análise desses votos a respeito da constitucionalidade do que se convencionou chamar de “uniões homoafetivas”.
  • 6
    Antígona, Polinices, Éteocles e Creonte representam personagens nas tragédias de Sófocles. Polinices e Éteocles foram mortos mutuamente num duelo pelo governo de Tebas. Creonte, ao assumir a direção política de Tebas, outorga uma ordem que impede o sepultamento de Polinices, considerado inimigo do governo. Polinices, irmão de Antígona, deveria ser largado às ruas sem qualquer funeral. Antígona, ao descobrir a existência daproibição do sepultamento do seu irmão, desafia Creonte e se coloca na linha de frente para garantir o sepultamento do seu irmão, mesmo que essa ação possa resultar em sua morte.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2020
  • Aceito
    25 Abr 2020
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