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A hegemonia do discurso liberal sobre direitos homossexuais no STF

The hegemony of liberal discourse on homosexual rights at the STF

Resumo

O presente artigo realiza, por meio de dados documentais e de análise de discurso, a crítica dos votos dos Ministros do STF nas ações de controle de constitucionalidade sobre direitos homossexuais, tendo por hipótese que dada a tradição liberal do nosso sistema jurídico, as pautas de direitos homossexuais são absorvidas pela hegemonia liberal, colonizando e domesticando os discursos críticos e anulando as divergências e a pluralidade das pautas homossexuais.

Palavras-chave:
Hegemonia liberal; Direitos homossexuais; Supremo Tribunal Federal

Abstract

This article conducts, through documentary data and discourse analysis, the criticism of the votes of the STF Ministers in the actions of constitutionality control over homosexual rights, assuming that given the liberal tradition of our legal system, the guidelines of homosexual rights are absorbed by the liberal hegemony, colonizing and domesticating critical discourses and nullifying the divergences and plurality of homosexual agendas.

Keywords:
Liberal hegemony; Homosexual rights; Supremo Tribunal Federal

1. Introdução

Muito se debate sobre a oportunidade que têm os movimentos sociais de esquerda, geralmente críticos à estrutura liberal que marca o Estado moderno, de produzir mudanças radicais por ações internas ao próprio sistema estatal. Será que quando esses grupos realizam algum tipo de solicitação por mudanças político-jurídicas ao Estado, ainda conseguem guardar o viés crítico e promover mudanças para além do paradigma liberal ou são absorvidos por esse paradigma hegemônico? Partindo do pressuposto de que estamos efetivamente diante da hegemonia liberal, compreende-se que a maioria das ações por mudanças na estrutura do Estado, quando promovidas por intermédio de seus próprios instrumentos burocráticos, transitarão dentro das possibilidades concedidas pela própria hegemonia, já que, para ser hegemônico, precisa guardar intacto o seu núcleo fundante.

Para esse tipo de proposta de pesquisa, podemos realizar análises empíricas e documentais sobre vários temas, em diferentes instâncias das instituições do Estado. Entretanto, para fins do presente artigo, limitar-me-ei à análise de algumas ações de controle de constitucionalidade abstrato sobre direitos homossexuais que foram analisadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da metodologia de análise de discurso. Em que pese alguma impressão de que o movimento homossexual como um todo foi concorde com o conteúdo e o modo de operação desses pleitos judiciais, o fato é que existem muitas discordâncias internas ao movimento sobre o modo como essas ações são executadas e seus resultados práticos, principalmente em decorrência da centralidade da influência de homens homossexuais nas pautas do movimento LGBTQI+1 1 Utilizo aqui a sigla que julgo mais amplificada a respeito da diversidade de identidades dentro do universo não heterossexual. . Uso aqui o conceito de direitos homossexuais e não o de diversidade sexual justamente porque quero destacar que estamos diante de uma dinâmica centralizada nos discursos homossexuais, que são facilmente assimilados pelo padrão liberal e heterossexual de liberdade sexual, coadunando-se com o modo de produção capitalista.

Por isso, pergunto-me, desde antemão, se a estrutura do sistema jurídico, sedimentada na tradição liberal, permite outros sentidos políticos que não são compatíveis com o paradigma liberal, como a proposta de um “duplo fazer” do gênero e da sexualidade (VIANNA & LOWENKRON, 2017VIANNA, A.; LOWENKRON, L.. O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens. “Cadernos Pagu” . 2017, n.51, e175101.).Segundo as autoras, existe uma relação complementar e cooriginária entre Estado e gênero, desde que se compreenda o Estado como um campo de disputas, uma arena de debates e lutas atravessado por distintas polissemias e compreensões sobre os valores corretos a serem perseguidos. Desse modo, tanto o Estado seria generificado, quanto o gênero seria estatizado, dentro do “duplo fazer” operado entre os dois. Corroboro com a compreensão de que as discussões sobre gênero conseguem, em alguns sentidos, operar dentro desse “duplo fazer”. Mas quando estabelecemos distinção conceitual entre gênero e sexualidade2 2 Desenvolvo essa distinção entre gênero e sexualidade em um capítulo específico: MONICA, E. F.; MARTINS, Ana Paula. Conceitos para pensar sobre política sexual no Direito brasileiro. In: MONICA, E. F.; MARTINS, A. P. A. (Org.). Qual o futuro da sexualidade no Direito? 1ed.Rio de Janeiro: Bonecker/PPGSD-UFF, 2017, v. 1, p. 19-46. e passamos a encarar a sexualidade como uma categoria a parte, é possível chegarmos a conclusões divergentes e, como quero aqui apontar, até um caminho hegemônico que anula esse duplo fazer.

Também me questiono se a estrutura tradicionalmente liberal determina, necessariamente, as condições de produção do discurso jurídico, a tal ponto de ser inevitável o encontro com a hegemonia liberal jurídica. Portanto, o objetivo principal3 3 Como intenção global, que não será desenvolvida nesse artigo, busco contribuir com a produção alternativa de uma hermenêutica plural e agonística para os sentidos possíveis de liberdade sexual no Brasil e que não se restrinjam apenas àquelas que são fruto da tradição liberal. deste artigo é o de debater o modo como as pautas do movimento LGBTQI+, especificamente a dos direitos homossexuais, são recepcionadas e filtradas pela leitura hermenêutica dos Ministros a ponto de perderem sua potência crítica em relação ao paradigma liberal4 4 Poderíamos pensar se as pautas dos movimentos de esquerda, como um todo, são efetivamente críticas ao paradigma liberal. É provável que, dada a ausência de um debate profundo sobre o liberalismo e as pautas do novo liberalismo no Brasil, muitas pautas que a esquerda entende serem críticas ao liberalismo são, em verdade, pautas tipicamente liberais. , desativando o “duplo fazer” acima destacado. Na análise de discurso realizada, busco os sentidos do discurso liberal por intermédio de algumas categorias, que serão explicadas no próximo item.

Trabalho com a hipótese de que, dada a tradição liberal constitutiva do nosso sistema jurídico, a interpretação desenvolvida pelo STF nos casos específicos de direitos homossexuais, mesmo com nuances diversificadas, acaba colonizando os discursos dissidentes, alternativos ou contrários ao paradigma liberal sobre o modo de produção de políticas de gênero e sexualidade, produzindo uma normatividade especificamente homossexual, a “homonormatividade”5 5 Como apontado, outros grupos, como de mulheres, transexuais e outros precisam ser analisados em apartado, já que em muitos outros casos encontramos um “duplo fazer” que confirma a possibilidade de uma relação complementar e cooriginária entre Estado e gênero. Aqui a minha preocupação é justamente com as críticas já desenvolvidas por outros autores sobre o modo como os homossexuais se assimilam aos padrões comportamentais que antes eram a base de sua crítica, principalmente dentro da dinâmica liberal e capitalista, baseada em padrões heterossexuais de comportamento sexual. Conferir: DUGGAN, Lisa. The new Homonormativity: the sexual politics of neoliberalism. In: "Materializing Democracy". p. 175-194. Durham, NC: Duke University Press, 2002. . As consequências das ações operadas dentro desse sistema liberal seriam duas, a meu ver: a) assimilação do discurso tradicional sobre comportamentos e liberdades, em moldes específicos para uma liberdade sexual inteligível para o mercado capitalista, dentro de um amplo programa político internacional que pode ser resumido como projeto Global Gay6 6 Utilizo-me da expressão cunhada por Frédéric Martel e que está bem popularizada, principalmente no ocidente, do projeto Global Gay. É uma análise geopolítica a respeito de como está a questão homossexual no mundo, principalmente através de um mapeamento de conquista de direitos em uma perspectiva global. É possível perceber, a partir de um olhar crítico, que esse projeto está bem delineado a partir dos direitos liberais e da noção de igualdade jurídica formal. Conferir: MARTEL, Frédéric. “Global Gay: como la revolución gay está cambiando el mundo. Madrid: Taurus, 2013. ; b) esvaziamento do sentido radical dos discursos dissidentes e baixo impacto de transformação social em sentido não liberal, dada a hegemonia do paradigma liberal sobre liberdade sexual. Consequentemente, restam-me dúvidas sobre a possibilidade de ações potentes que promovam uma reforma - ou até a própria revolução - do sistema, para além dos limites do paradigma liberal, dentro da perspectiva e do recorte específico de análise.

2 Conceitos e Metodologias

Para analisar a questão, aproprio-me, com algumas adaptações, do conceito de hegemonia decorrente das análises de Gramsci (1999GRAMSCI, A. “Cadernos do cárcere”.1 vol. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999.), principalmente no seu aspecto crítico em relação ao modo de operação do sistema liberal capitalista. A hegemonia se faz a partir de mecanismos específicos de formação da vontade coletiva e da cultura, principalmente no seu âmbito intelectual e moral. Mais precisamente, é a forma como o poder é exercido no Estado burguês. Desse modo, a colonização da vida operada pelos sistemas de economia e poder hoje atua por intermédio da constante expansão de mercado de consumo produzida pelo capitalismo e pela reafirmação dos âmbitos de ação do poder, que promovem um controle do sistema através de constantes atualizações e reformas internas7 7 No caso do presente artigo, como estou trabalhando com movimentos sociais pautados na noção de identidade sexual, essa atualização se dá em relação aos sujeitos de direitos admissíveis pelo sistema jurídico. Importante destacar que noções como direitos de minorias e novos sujeitos de direitos nascem dentro da proposta liberal americana dos anos 1960 de atualizar o paradigma liberal, frente aos avanços do socialismo. Portanto, por meio dessa atualização, temos os conceitos liberais de minorias, direitos de minorias e novos sujeitos de direitos, mecanismos de leitura e captura dos anseios de mudança da sociedade segundo as possibilidades do próprio sistema. .

Como um dos principais núcleos de legitimidade do paradigma liberal é a sua busca por igualdade político-jurídica formal, a estrutura do grupo dominante está formatada para, por meio dos seus mecanismos de participação, possibilitar algumas reformas internas, mas sempre dentro dos quadros fundantes já existentes. Essa atualização do sentido de igualdade é mais potente entre aqueles que possuem mais poder econômico e político e menos potente para os grupos subordinados, que, para acessarem esse sistema de participação, devem se comunicar em uma linguagem inteligível pelo paradigma dominante, gerando sua integração e cooptação. É nesse momento que a hegemonia liberal opera seu efeito atualizador mais significativo: reafirma seu poder, irradiando-se também pelos campos sociais dissidentes e impondo, cada vez mais, unidade econômica, política, intelectual e moral. Sedimenta-se, assim, a hegemonia do grupo dominante, em que o Estado cumpre a função de mecanismo executante do seu poder. As instabilidades e dissonâncias, mesmo que justas em si, são reinterpretadas pelo poder hegemônico, que concede alguns espaços de liberdade de ação dentro dos limites possíveis do paradigma liberal.

Em síntese, hegemonia seria o próprio poder e o modo como esse poder, em mãos de um grupo dominante, exerce sua capacidade de liderar e cooptar os grupos subordinados, dentro de uma tríade de condições. Em primeiro lugar, as negociações políticas sempre levarão em conta os interesses fundamentais do grupo dominante; em segundo, os dominados acessam o sistema adquirindo a linguagem do grupo dominante e adaptam suas pretensões aos interesses fundamentais hegemônicos; por fim, uma vez que os interesses fundamentais e a gramática dominante estão preservados, os dominados têm liberdade para desenvolver algumas de suas pretensões, sempre limitadas e condicionadas. Portanto, o sujeito ativo da hegemonia tem por objetivo controlar e perpetuar as disposições fundamentais da ordem jurídica, bem como as limitadas liberdades concedidas a partir das demandas dos grupos dominados, os sujeitos passivos da hegemonia.

Nas sociedades modernas ocidentais, a atuação do poder hegemônico não se baseia essencialmente na força física, mas também e principalmente pelos mecanismos institucionalizados de geração de consenso. Por isso, não é suficiente a dominação do aparato estatal; é importante que se domine culturalmente a sociedade civil. Por isso, outras estratégias, para além do controle burocrático estatal, são desenvolvidas para a dominação cultural8 8 Nesse aspecto cultural, Bourdieu (2010) desenvolve o argumento de que a dominação simbólica exige dos dominados uma certa cumplicidade que não é necessariamente uma submissão absolutamente passiva a uma coerção externa, ou uma mera adesão livre e desimpedida a valores externos. Assim, a hegemonia opera a partir desse grande consenso em torno de alguns valores pertencentes aos dominantes e apropriados pelos dominados. Faz parecer que há um compartilhamento geral desse núcleo de valores, como no caso da aceitação de uma ordem jurídica que a todos tocaria, dada suas exigências de universalidade e acesso a todos, dentro do paradigma liberal de sujeito e direitos. . O caso dos direitos homossexuais exemplifica bem a situação, pois questões como afetividade, amor e felicidade, aliadas aos mecanismos capitalistas de construção de desejos, fazem com que a cultura homossexual, antes marcada por sua dissidência e diferenciação em relação à cultura dominante, tenha aspectos semelhantes aos desejos gerais de outros grupos: segurança, estabilidade, felicidade, metas transversais que anulariam diferenças por colonizarem as subjetividades. Em contrapartida, o Direito cumpre função essencial de gerar consenso e pacificação dos conflitos, mostrando-se como a síntese das divergências e disputas em torno de um assunto polêmico. Ele também é o instrumento mais importante para a identificação da hegemonia, dada sua natureza formal, explícita e objetiva. Em consequência, a dominação cultural opera como complementação, sendo controlada por meio de propagandas e atos públicos implícitos e explícitos de divulgação dos valores dominantes como mais sublimes ou mais adequados à vivência em sociedade9 9 Também podemos debater aqui o conceito de Weber (1964) sobre o poder, que é a probabilidade de imposição da sua própria vontade, ainda que com resistências. Por meio dos instrumentos da burocracia, o poder consegue impor sua própria vontade nas sociedades modernas ocidentais. Em continuidade, a dominação se expande ao se aceitar a legitimidade da vontade do poder. Nesse caso, o poder torna-se mais sofisticado, já que mascara sua hegemonia ao conceder certa margem de escolha aos dominados, desde que esses aceitem os elementos fundamentais propostos pelo poder dominante, aqueles elementos inegociáveis que mantêm o sentido profundo da hegemonia. .

Os agentes estatais e os intelectuais que trabalham com o sistema jurídico cumprem um papel essencial na justificação e legitimação da hegemonia. Mesmo que estejam bem-intencionados, atuam como “intelectuais orgânicos”, fundamentais para a organização da sociedade em favor dos valores dominantes, reduzindo a potência de eventuais estratégias contra o poder hegemônico. A força do discurso jurídico, muitas vezes envolto em tecnicismos ininteligíveis para o senso comum, geralmente silencia as vozes dissonantes em nome de uma suposta inevitabilidade da concepção de neutralidade universal liberal, elemento base para as ordens jurídicas modernas. Raramente se questiona a possibilidade de bens ou institutos jurídicos alternativos; espera-se apenas que os direitos consagrados e formatados pela hegemonia liberal sejam estendidos, ao menos potencial e formalmente, aos dominados. As críticas às estruturas do direito ou são inviabilizadas ou são deixadas para um segundo momento, com a promessa de que, para o agora, o mais importante é que o sistema seja reformado em favor da inclusão dos grupos minoritários. Assim, uma das principais consequências dessa atuação é o assimilacionismo10 10 Por assimilacionismo entendo aqui o modo como os sujeitos homossexuais precisam adaptar seus comportamentos aos moldes dos comportamentos heterossexuais aceitáveis. Assim, um arranjo de relacionamento entre pessoas do mesmo sexo se torna mais aceitável para o sistema quando trabalha com noções como monogamia, estabilidade, compartilhamento de funções domésticas e outros atributos que nem sempre são encontrados nas relações homossexuais, dadas as suas particularidades. O termo foi empregado nos debates sobre colonialismo, neocolonialismo e globalização. Conferir: FERNÁNDEZ, E. "¿Cómo conjugar universalidad de los derechos y diversidad cultural?" In: Persona y Derecho. n.49, 2003, pp. 393-444. , por parte dos dominados, dos valores, da linguagem e do modo de operar dos mecanismos da hegemonia.

Já por cultura liberal e hegemonia liberal no Direito brasileiro, ou, para usar a expressão de José Eduardo Faria (1988FARIA, J. E. “Ideologia e função do modelo liberal de direito e estado”. In: Lua Nova: Revista de Cultura e Política. N. 14, São Paulo, Jun. 1988, pp. 82-92.), a “função do modelo liberal de direito e estado”, vou me valer dos entendimentos já popularizados sobre a tradição liberal, importante, no seu contexto histórico, para a superação do Antigo Regime11 11 Para entender o conceito de Antigo Regime, Conferir: ROTELLI, Ettore. “Ancien Régime”. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfrancesco (Orgs.) Dicionário de Política, Volume 1. Brasília: Editora UnB, 1998. pp. 29-30. e sedimentação da modernidade jurídica12 12 Para um debate sobre a modernidade jurídica brasileira, conferir: WOLKMER, A. C. “Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito”. 3ª edição. Editora Alfa Omega: São Paulo, 2001. , baseada nos valores da igualdade e liberdade e operada por uma engenharia social que promove a igualdade jurídica necessária para que cada um busque realizar seu sentido pessoal de felicidade ou vida boa13 13 Para uma análise do conceito de liberalismo no Brasil antes da sedimentação da nossa modernidade jurídica, conferir: LYNCH, C. E. C. O conceito de Liberalismo no Brasil. In: “Araucária: Revista Iberoamericana de Filosofia, Politica y Humanidades. n. 17, Mai. 2007, pp. 212-234. . A percepção liberal de que todos os sujeitos deveriam ser tratados de igual modo, desde que abstratamente considerados, foi importante para a superação da estrutura patriarcal e feudal da sociedade pré-moderna. Assim, segundo as premissas liberais, todos são iguais perante a lei, dotados de certos direitos inalienáveis, como a vida, a liberdade e a propriedade - direitos necessários para a persecução da felicidade individual. Para isso, o Estado liberal assume para si a ideia de que é neutro e seus valores são passíveis de universalização, dado seu caráter abstrato e isonômico, ao menos no plano formal.

Para a promoção de sua universalidade, o paradigma liberal propõe alguns mecanismos de ação, que geralmente são mecanismos internos de reforma14 14 A tensão da esquerda entre reforma ou revolução, um clássico dilema no marxismo, ganhou destaque no clássico livro de Rosa Luxemburgo: LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou Revolução? São Paulo: Expressão Popular, 1999. da ordem estabelecida, dada sua compreensão de neutralidade valorativa. Assim, uma das principais ações de reforma é a alteração ou o ajuste de leis que negam ou não garantem satisfatoriamente a igualdade, ou que limitam os direitos com base em atributos particulares dos sujeitos - como no caso da homossexualidade. Essas ações são executadas a partir do próprio sistema, por meio de seus mecanismos internos de reformas. Aliado a isso, o Estado também é convocado para agir de modo mais ativo na criação de condições de equiparação para os sujeitos, principalmente por meio de políticas públicas ou ações afirmativas15 15 O próprio feminismo liberal entende o Estado como uma entidade neutra, que pode ser captado e influenciado por vários grupos de interesse, mas que não guarda em si nenhuma pretensão de hegemonia, pois o liberalismo, em si, seria neutro, não valorativo. Por isso, ele não poderia ser acusado de ser sexista, patriarcal, machista ou outros acusativos, já que estruturalmente é contrário aos tratos discriminatórios e desiguais. Portanto, essas feministas também investem em ações como leis antidiscriminatórias e políticas afirmativas, aliadas a ações de participação e de representação na esfera pública. Para uma introdução ao pensamento feminista e, especificamente, ao feminismo liberal, conferir: TONG, R. “Feminist Thought: a more comprehensive Introduction”. 3. ed. Boulder, Colorado: Westview Press. . De modo mais específico, como o artigo trabalha com liberdades sexuais e questões que tocam as esferas da privacidade e da domesticidade, é grande a influência do liberalismo enquanto promotor da compreensão moderna de separação entre público e privado e da tradição cristã ocidental, enquanto ideologia que sedimenta os valores específicos de liberdade sexual, matrimônio e felicidade privada16 16 Para um aprofundamento nesta discussão, conferir: CAENEGEM, R.C. Van. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo: Martins Fontes, 2006; GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001; GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003; GRINBERG, Keila. Código Civil e cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009; WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001; NOVAIS, Fernando A. (org.). História da vida privada no Brasil (vol. I a IV). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. .

As mais significativas críticas ao liberalismo17 17 Existe vasta bibliografia a respeito das insuficiências do liberalismo. Dentre elas, conferir: SANDEL, M. El liberalismo y los límites de la justicia. Barcelona: Gedisa, 2000. servirão também como categorias analíticas para a crítica dos discursos dos Ministros do STF nas ações envolvendo direitos homossexuais. É por intermédio dessas críticas que serão empreendidas as categorias de análise dos dados colhidos nos documentos do STF, no próximo item deste artigo. Como são críticas ao liberalismo, servem como elemento de diagnóstico dos sentidos hegemônicos que estou apontando como discursos liberais. A principal delas é sobre a preponderância dos direitos individuais e da noção de indivíduo como basilares a todo o sistema de direitos, aliada à compreensão de que a garantia das liberdades individuais é o fim último do sistema. Elas levam ao entendimento de que, uma vez que os indivíduos sejam livres e tenham condições materiais mínimas de vivência, poderão se desenvolver e atingir seus objetivos, segundo seus próprios méritos. Outra grande crítica é em relação ao viés a-histórico do liberalismo e sua suposta neutralidade, como se seus princípios fossem universais e aplicáveis a qualquer contexto, levando a uma base de ação estatal supostamente neutral, em que todos poderiam ser atendidos e tratados de maneira igualitária pelo Estado. Em conseguinte, as ações de reforma e atualização, quando identificadas as insuficiências do sistema, seriam executadas como reformas internas, segundo os parâmetros próprios do paradigma liberal. Essas ações estariam centradas em mudanças e reformas legislativas, em seu âmbito formal, e em políticas públicas ou ações afirmativas reparadoras das insuficiências materiais.

E o último conceito, o de direitos homossexuais18 18 O conceito de direitos homossexuais é pouco debatido na literatura acadêmica. Entretanto, o seu uso aqui é limitado para as questões que envolvem os sujeitos homossexuais. Não é a intenção desse artigo desenvolver com profundidade os sentidos possíveis para esse conceito. ,é utilizado em dois sentidos. Primeiro, apenas como recorte analítico das temáticas analisadas, dentro do universo dos direitos LGBTQI+. Seria difícil, para os limites do artigo, desenvolver uma análise profunda de todas as identidades possíveis dentro desse universo e de todas as questões envolvendo os marcadores sociais de diferença, que tocam a temática. Assim, centrei as análises apenas nos casos que explicitamente lidam com a identidade homossexual, mesmo sabendo das possíveis semelhanças em relação aos outros casos, já que a preocupação do artigo é mais com o discurso dos Ministros e suas nuances liberais. Como o Estado brasileiro desenvolveu políticas para a população LGBTQI+, de modo intensivo e objetivo, a partir do Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH 219 19 O PNDH 2 foi revogado pelo PNDH 3. Para conferir seu conteúdo, acessar: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4229.htm , quando, pela primeira vez, menciona explicitamente o compromisso do Estado com questões de gênero e sexualidade, pautei meu recorte temporal entre 2002 e janeiro de 2020, data de finalização do artigo. Além do recorte temático, as ações selecionadas são aquelas de repercussão geral ou de controle abstrato de constitucionalidade julgadas pelo STF, já que operam efeitos para todos e geram amplo debate na sociedade20 20 Atualmente, o STF tem cumprido papel significativo em dar fundamentação jurídica aos casos que envolvem gênero e sexualidade e muitas pesquisas acadêmicas voltaram seus olhares para esse papel institucional da Suprema Corte. . Portanto, os dados serão coletados a partir das ações sobre União Estável Homossexual, sobre Atos Libidinosos homossexuais no Código Penal Militar e sobre a Criminalização da Homofobia e Transfobia. São as únicas ações, em todo esse período, que tocam a temática específica dos direitos homossexuais. Existem outras ações versando sobre liberdades sexuais e diversidade sexual, mas para os fins do artigo estudarei apenas o debate sobre direitos homossexuais, já que parto da compreensão de que é justamente a centralidade na identidade homossexual que provoca essa tendência para uma dinâmica liberal dos discursos jurídicos sobre o tema.

Em segundo lugar, o conceito de direitos homossexuais tem relação com a preponderância, dentro do grupo LGBTQI+, dos homossexuais enquanto atores mais destacados dentro das instituições políticas. Ela aponta para um essencialismo, por trabalhar com a identificação precisa de um grupo, afastando-se do uso que muitos fazem da categoria de diversidade sexual. Como o objetivo é apontar os elos entre os discursos liberais e um determinado modo de se compreender a homossexualidade, aproximo-me das críticas às alianças do movimento LGBTQI+, principalmente do grupo dos homossexuais, com os padrões heteronormativos da sociedade21 21 Há um amplo debate, principalmente no cenário europeu e dos Estados Unidos, sobre a adaptação das pautas libertárias do movimento LGBTQI+ aos modelos próprios do capitalismo liberal e do padrão heterossexual de vida. Para maiores debates, conferir os conceitos de “capitalismo rosa”, “pink money”, “negócio rosa”, “homonormativismo”, “homonacionalismo”, e os textos: LILY, Shangay. "Adiós, Chueca: memorias del gaycapitalismo: creando la marca gay". Ediciones Akal, Madrid: 2016; BORD, Brot. “Somewhere under the rainbow: mercantilización y asimilación de la disidencia sexual”. In: Transfeminismos: epistemes, fricciones y flujos. Txalaparta, Tafalla, 2013; VÉLEZ-PELLIGRINI, Laurentino. Minorías sexuales y sociología de la diferencia: gays, lesbianas y transexuales ante el debate identitario. Montesinos, Madrid: 2008; CLAVEL, Pau López. Tres debates sobre la homonormativización de las identidades gay y lesbiana. In: Asparkía, 26, 2015, p. 144; Guasch, Oscar. La sociedad rosa. Anagrama, Barcelona, 2006; DUGGAN, Lisa. The new Homonormativity: the sexual politics of neoliberalism. In: "Materializing Democracy". p. 175-194. Durham, NC: Duke University Press, 2002. .

Para a coleta de dados documentais, o artigo se restringirá aos votos dos Ministros nas ações abstratas sobre direitos homossexuais, cotejando os discursos com as categorias de insuficiências do paradigma liberal, que foram apresentadas logo acima, e os caracteres que mantêm a sua hegemonia no Direito. Para isso, faço uso da estratégia de análise de discurso22 22 Entendo discurso, para fins do presente artigo, como um conjunto de práticas linguísticas que formam, sustentam e estimulam as relações sociais e as condições de inteligibilidade comunicacional. Podemos realizar uma análise interna dos discursos, preocupando-nos com aquilo que ele está dizendo, e também uma análise externa, perguntando-nos sobre as motivações e destinações do texto. que, mesmo diante da polifonia dos variados votos, tenta encontrar similitudes e analogias que desvendariam os valores hegemônicos do liberalismo. Como os votos dos Ministros são importantíssimos para a formação da jurisprudência e da interpretação adequada sobre o sistema jurídico, entendo que a análise dos seus discursos, quando debatidas à luz de teorias críticas23 23 Segundo Possenti (1993), as condições gerais de uma enunciação não são suficientes para as explicações sobre as ideologias acobertadas pelos discursos, sendo importante e necessário que a análise seja acompanhada por uma explícita teoria crítica para além da linguística, como é o caso do apoio que encontramos em teorias sociológicas, filosóficas, políticas e outras. , pode contribuir para entendermos as possibilidades e limitações das pautas que chegam ao Supremo, principalmente com a preocupação de verificar as oportunidades de superação dessa hegemonia por dentro do próprio sistema estatal. Também procuro uma certa continuidade discursiva24 24 Conforme Orlani (1999), há uma memória discursiva pela qual o sujeito busca, no modo de executar seu próprio discurso, as palavras de um outro, a continuidade a partir de um discurso já proferido e aceito como legítimo no seu campo de atuação. entre os votos, marcando a noção de que a jurisprudência se sustenta dentro de uma certa racionalidade interpretativa25 25 Um dos casos mais exemplificativos dessa continuidade é o voto do Ministro Ayres Britto (BRASIL, 2011) que, ao desenvolver, de modo longo e profundo, os sentidos possíveis para a identidade homossexual, sedimenta no imaginário jurídico a sua vinculação com noções como afetividade e amor. Esse voto é repetido nas demais ações, constituindo-se como paradigmático para o entendimento da jurisprudência sobre o que seja o sujeito jurídico homossexual. .

Além da continuidade discursiva, também trabalho com a hipótese de que a linguagem é uma prática social, não se resolvendo apenas como uma atividade meramente individual, circunscrita ao seu enunciador. Tal qual compreende Fairclough (2001), a linguagem é um modo de ação, uma maneira de exercer uma performance que produz sentidos para o mundo26 26 No caso aqui debatido, tanto pode produzir sentidos para o sujeito social e os vários tipos de “eu”, as identidades sociais e as posições que o sujeito assume, quanto pode contribuir para a produção de relações sociais e até para a produção de sistemas de conhecimento e de crença. Tal produção de sentidos é interessante para o debate, já que um dos mecanismos de preservação da hegemonia é sua capacidade de se perpetuar pelos mais variados mecanismos, principalmente pela cultura de uma sociedade. . No caso, aproveito-me do deslocamento produzido por Fairclough, que sai da noção de poder em Foucault, para a noção de hegemonia de Gramsci, pois julgo que esse deslocamento é o mais apropriado para os sentidos procedimentais operados no sistema jurídico de controle de constitucionalidade, já que trabalha com um sofisticado sistema de uniformização das compreensões hermenêuticas, necessário para a exigência de univocidade do sistema jurídico.

Assim, não importam tanto os sentidos particulares dos votos dos Ministros, mas sim as similitudes e interconexões que produzem o sentido de uniformidade das interpretações judiciais. A linguagem é algo que "está no mundo", que está para além da descrição e compreensão que fazemos de nós mesmos e de nossas intencionalidades. Por isso, não é tão suficiente e importante conhecermos as intencionalidades dos atores envolvidos nos discursos, mas o modo como esse discurso é vivenciado no mundo em que habitamos e que tipo de sentidos estruturais ele provoca. Assim, avança-se no sentido de compreender o voto como um texto independente em si, produtor de sentidos que estão desvinculados de seu emissor material, repercutindo dentro do sistema jurídico a partir dos mecanismos de irradiação hierárquica das decisões de controle de constitucionalidade. A preocupação é mais com aqueles aos quais são dirigidas a enunciação; e os efeitos estruturais que se operam no sistema jurídico, principalmente com a perpetuação do sentido hegemônico de liberalismo, tal qual se postula na hipótese dessa investigação.

Como objetivo e etapas metodológicas, busco verificar os sentidos que transitam pelos enunciados dos votos dos Ministros do STF nas ações de controle de constitucionalidade abstrato que têm, como foco principal, os direitos homossexuais, identificando termos e expressões que podem ser definidos como parâmetros para um pensamento liberal sobre a sexualidade humana. Essa identificação se faz por um processo de busca das marcas que estão espalhadas pelos enunciados, anunciando os valores sobre os quais o texto se assenta. Em consequência, tento detectar se, no contexto das decisões, está presente a hegemonia do pensamento liberal na sedimentação dos direitos homossexuais. Com isso, avanço na proposta ao analisar as projeções da enunciação, os recursos de persuasão para consolidação dos sentidos unívocos de uma jurisprudência, criadora de similitudes de "verdade" para o campo jurídico. A análise se faz através de uma proposta crítica, pretendendo identificar como as práticas discursivas estão relacionadas com as estruturas sociopolíticas da tradição liberal no Direito brasileiro, desnudando a opacidade dos discursos jurídicos que, com seu tecnicismo, ocultam o poder e a hegemonia de uma determinada ideologia. Essa proposta crítica é estabelecida de modo aberto, como uma provocação, um meio de reler os sentidos possíveis dos discursos jurídicos, a ponto de permitir um senso crítico a respeito da apropriação que a sociedade faz desses elementos decisionais da nossa vida política. Está aberta a negociações e debates, principalmente porque visa a repensar as estratégias políticas de ação do movimento LGBTQI+.

3. Análise dos discursos de fundamentação nas ações envolvendo direitos homossexuais27 27 Utilizando-me de consultas no banco de dados do STF com palavras-chave (homossexualidade, direitos homossexuais, homoafetividade, homoafetivo, homoerótico) e consultando a agenda de julgamento e contrastando com os debates públicos mais relevantes, cheguei a essas três ações aqui debatidas: ADO 26, ADPF 132 e ADPF 291. Outras ações tramitam no STF, mas ainda não foram julgadas e, por isso, não foram incluídas na análise.

Começo a análise dos votos dos Ministros a partir da ação que ficou popularmente conhecida como “união estável homoafetiva”. Dada a sua ampla repercussão e também o debate explícito sobre a temática homossexual no Supremo Tribunal Federal, essa ação se tornou significativa para a pauta do movimento LGBTQI+ no Brasil, como um dos marcos mais importantes sobre os embates político-jurídicos do movimento. O principal voto, o do Ministro-relator Carlos Ayres Britto, continua, até hoje, sendo citado como paradigma para outras ações que tocam a temática LGBTQI+, principalmente por ter sido exaustivo na sua compreensão sobre a identidade homossexual e a sua recepção pelo ordenamento jurídico brasileiro enquanto um novo sujeito de direito, uma minoria que deveria ser reconhecida pelo seu pleito de igualdade perante os heterossexuais. Em uma tradição jurídica liberal, em que a noção de sujeito de direitos é primordial para a sedimentação de toda a ordem jurídica decorrente, torna-se significativo o fato de que a primeira grande ação a ser julgada no STF sobre direitos homossexuais tenha-se debruçado fortemente sobre o que é ser homossexual e como o sujeito homossexual é reconhecido pelo sistema jurídico como um portador de direitos, singularizado pelo exercício de sua sexualidade.

Opera-se aqui a lógica liberal atual dos direitos de minoria e dos novos sujeitos de direitos, em que o sistema volta seus olhares para determinado grupo compreendido como vulnerável. Na análise dos discursos de fundamentação das decisões, percebe-se que o sistema opera no sentido expansivo: de atualização de seus institutos para inclusão de sujeitos, ou totalmente excluídos, ou parcialmente atendidos pelo Direito. O núcleo liberal permanece incólume, garantindo a hegemonia desse paradigma político. Concede-se às minorias a oportunidade de acesso aos bens jurídicos supostamente universais, de acesso geral, desde que se mantenha o seu sentido e a sua estrutura. Pouco se debate a respeito de alternativas que estejam para além dos limites hegemônicos já consolidados.

No segundo momento, analiso duas outras ações de repercussão geral. A primeira é sobre a gramática dos atos libidinosos no Código Penal Militar, em que se discutiu a discriminação aos homossexuais na criminalização de atos libidinosos praticados por militares. Pouco se falou sobre as instituições militares em si, seus valores masculinistas e viris, sua estrutura baseada numa compreensão patriarcal de sociedade; o que se buscou foi quase que exclusivamente a reforma gramatical do Código para eliminar qualquer viés discriminatório. Assim, todos, independentemente de suas orientações sexuais, seriam tratados de igual modo, formalmente falando. Já a segunda ação, de maior impacto na esfera pública, foi a que debateu a criminalização da homofobia e transfobia. Mais uma vez o cerne do debate foi em torno da isonomia de tratamento pelas políticas de combate à discriminação e ao preconceito por parte do Estado. Mantem-se intocável o sistema penal liberal, reforçando-se a legitimidade da política punitiva, em que os problemas sociais são resolvidos como questões penais que a todos atingiria, mesmo com toda uma complexa situação de seletividade penal, na qual pobres e negros são os principais afetados pela política de segurança pública brasileira.

3.1 O plano civil dos direitos homossexuais no STF

O relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de número 132-RJ foi o Ministro Carlos Ayres Britto, à época presidente da Corte Suprema. Seu voto de relatoria foi um dos mais significativos sobre o reconhecimento dos direitos homossexuais, por explicitamente trabalhar os conceitos de dignidade e valorização da orientação homossexual. Tornou-se comum citar as poéticas e longas análises de Ayres Britto nas decisões do STF. Entretanto, como todo e qualquer voto, está permeado de sentidos tendenciosos a respeito da sociabilidade humana. Seu voto é um dos que mais expressa o sentido liberal que aqui estamos debatendo, abrindo sua argumentação com termos como “discriminação odiosa”, “equiparação de direitos subjetivos”, “liberdade de inclinação sexual das pessoas”. Esses conceitos normativos são importantes para o projeto liberal conseguir preservar o sentido de neutralidade estatal frente aos costumes e à tradição. Tanto é assim que Ayres Britto usa tais conceitos para imprimir sua crítica ao conservadorismo dos costumes:

Nada incomoda mais as pessoas do que a preferência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade. É a velha postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado coração (BRASIL, 2011: 20).

A afetividade e o amor são os instrumentos de legitimação do reconhecimento dos sujeitos homossexuais pelo direito. Já que a função do Estado liberal é a de proporcionar as condições para que todos possam perseguir seus projetos pessoais de felicidade, nada seria mais interessante para esse argumento do que o postulado do amor e da afetividade como seus entes legitimadores28 28 Ao mesmo tempo que isso é uma perda de radicalidade do movimento LGBTQI+, já que a inteligibilidade do sistema somente reconhece os homossexuais como sujeitos de direitos por intermédio da higienização e do assimilacionismo comportamental, coisa que não se exige para os sujeitos heterossexuais, pois não são lidos pelo sistema como afetivos ou amorosos; são apenas sujeitos de direitos. . É nesse mesmo sentido que Cármen Lúcia (BRASIL, 2011) defende que a união de pessoas do mesmo sexo deve ser respeitada para atender aos preceitos constitucionais da liberdade, intimidade, igualdade e proibição de discriminação. Sua argumentação traz uma fala da personagem Diadorim, de Guimarães Rosa, para justificar que o direito serve à vida e essa servidão é feita em nome do amor. Nesse sentido, a Constituição não poderia ser interpretada como intolerante com a “união homoafetiva”, pois o princípio da dignidade impõe a tolerância. Na literatura liberal, o conceito de tolerância é um dos elementos básicos para a sedimentação da neutralidade estatal29 29 Para um debate a respeito do conceito de tolerância, pluralidade e multiculturalismo, dentro das discussões sobre políticas de reconhecimento e pluralismo, conferir: MONICA, Eder Fernandes. O desafio do multiculturalismo e a proposta de uma identidade constitucional. In: Cadernos UNDB, v. III, p. 25-46, 2010; MONICA, Eder Fernandes. Entre direitos fundamentais e democracia: superando a dicotomia no direito brasileiro. 1. ed. Niterói: EDUFF, 2016. , pois historicamente foi importante para o liberalismo inglês equalizar as relações entre o protestantismo e o catolicismo. As principais críticas feitas a essa noção de tolerância envolvem o aspecto pouco material dessa política, pois não verifica, em cada caso, as particularidades e necessidades dos grupos dominados, restringindo-se à proposta de igual tratamento formal do Estado em relação aos grupos de interesse.

Cármen Lúcia, sem se adentrar nas diferenciações teóricas entre tolerância e pluralismo, destaca que não assegurar a união estável aos homossexuais é tolher a liberdade e impedir o exercício da livre escolha do modo de viver. Para ela, "o pluralismo social compõe-se da manifestação de todas as opções livres dos indivíduos, que podem viver segundo suas tendências, vocações e opções"(BRASIL, 2011: 96). Há aqui uma noção neutra e ampla sobre tolerância, em que a única exigência é que as escolhas estejam de acordo com a ordem estabelecida: "as escolhas pessoais livres e legítimas, segundo o sistema jurídico vigente, são plurais na sociedade e, assim, terão de ser entendidas como válidas" (BRASIL, 2011: 97). Assim, a hegemonia liberal se faz presente ao garantir que o núcleo fundamental de sua política seja respeitado, dando algumas margens de liberdade para que os grupos possam exercer seu limitado direito de escolha.

A pequena dissidência está no voto do Ministro Lewandowski (BRASIL, 2011), quando diz que o Estado deve proteger as uniões entre os homossexuais, mas em termos diferenciados. Ele destaca a impossibilidade de se equiparar a união entre pessoas do mesmo sexo com a união estável entre homens e mulheres, já que os textos legais repetem exaustivamente a intencionalidade primária do legislador: a de reconhecer apenas as uniões entre pessoas de sexo diferentes. Como diz o Ministro, apesar das semelhanças, as situações não podem ser confundidas. Enquanto sociedade, precisaríamos preservar esse núcleo tradicional, já que ainda não foi vontade do legislador o reconhecimento explícito das uniões homossexuais. Assim, toleraríamos os arranjos entre pessoas do mesmo sexo, desde que, pacientemente, esperemos a mudança no âmbito legislativo:

Estão surgindo, entre nós e em diversos países do mundo, ao lado da tradicional família patriarcal, de base patrimonial e constituída, predominantemente, para os fins de procriação, outras formas de convivência familiar, fundadas no afeto e nas quais se valoriza, de forma particular, a busca da felicidade, o bem estar, o respeito e o desenvolvimento pessoal de seus integrantes (BRASIL, 2011: 110).

Assume-se, explicitamente, o sentido de família burguesa, central em nossa ordem jurídica. Mas, como temos um número considerável de famílias homossexuais no Brasil, se levarmos em conta um conceito mais “ampliado” de famílias, é tarefa do Estado dar algum tipo de proteção, em sua função de protetor das “minorias”. Por isso, o Ministro reconhece o direito, com a devida tolerância para a situação, sem reconhecê-lo como “união estável homossexual”, mas dando a ele outro nome, o de “união homossexual estável”. Desse modo, o Estado atuaria como um protetor dos grupos minoritários colocando “sob seu amparo relações afetivas públicas e duradouras que se formam entre pessoas do mesmo sexo”. Essa alternativa interpretativa seria a saída, “até que sobrevenham disposições normativas específicas que regulem tais relações” (BRASIL, 2011: 112). A centralidade da concepção tradicional de união estável admite, na análise, pequenos ajustes e margens de atuação. Não se proíbe e nem se rejeita a união de pessoas do mesmo sexo; entretanto, no voto de Lewandowski, a margem de liberdade para os grupos dominados é mais estrita ainda.

O único Ministro que parece anunciar um cuidado com os limites do conceito de tolerância liberal é o Ministro Fux. Em seu voto, cita a autora Nancy Fraser, conhecida por suas críticas ao liberalismo e sua filiação às correntes marxistas e de esquerda. Sua discussão sobre “política de reconhecimento”30 30 Para acesso direto aos argumentos da autora, conferir: FRASER, Nancy. Redistribuição, Reconhecimento e Participação: Por uma concepção Integrada de Justiça. In SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia. Igualdade, Diferença e direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010. é citada diretamente no voto do Ministro, principalmente quando fala sobre as insuficiências do mero reconhecimento formal da igualdade: "um tão-só argumento de igualdade poderia gerar a falsa conclusão de que a mera ausência de vedações legais seria suficiente para assegurar o tratamento justo e materialmente igualitário" (BRASIL, 2011: 69). Para o Ministro, o reconhecimento jurídico da união estável deve ir além, ser sensível ao seu contexto particular:

O silêncio legislativo sobre as uniões afetivas nada mais é do que um juízo moral sobre a realização individual pela expressão de sua orientação sexual. É a falsa insensibilidade aos projetos pessoais de felicidade dos parceiros homoafetivos que decidem unir suas vidas e perspectivas de futuro (BRASIL, 2011: 67-8).

Em que pese esse avanço crítico, a apropriação prática sobre a teoria de Fraser, dentro dos limites do discurso liberal, torna-se notória, principalmente quando o Ministro passa a falar dos elementos comuns que devem validar a união estável homossexual: comprovação da existência de convivência contínua, duradoura e estabelecida com o propósito de constituição de entidade familiar, e a publicidade da relação. Apenas nesse último caso é feita uma ressalva: "evidentemente, o requisito da publicidade da relação também é relevante, mas merecerá algum temperamento, pois é compreensível que muitos relacionamentos tenham sido mantidos em segredo, com vistas à preservação dos envolvidos do preconceito e da intolerância" (BRASIL, 2011: 74-5). Há uma pequena sensibilidade às particularidades, mas também um reconhecimento de que essa sensibilidade não pode fugir demasiadamente dos limites do núcleo hegemônico liberal.

Há um aspecto muito interessante dessa recepção limitada dos interesses dos grupos dominados. Eles são aceitos, mas dentro de determinada inteligibilidade coerente com os pressupostos hegemônicos liberais. Os arranjos familiares homossexuais são lidos como aceitáveis através de uma filtragem romantizada da noção de afeto e amor. Para os arranjos heterossexuais, a noção de afeto ou amor é tardia enquanto princípio jurídico e, acima de tudo, desnecessária para o reconhecimento da validade jurídica de seus interesses. Entretanto, para o caso dos interesses de casais homossexuais, a filtragem do afeto e do amor se faz presente, como um instrumento de “purificação” e higienização das relações aceitáveis. Nenhuma crítica ao monogâmico sentido do casamento burguês; apenas uma reforma pontual em que o afeto e o amor, guias higienizantes, passam a mapear quais relações homossexuais seriam aceitáveis pelo sistema, questão essa nunca antes ponderada para as relações homossexuais31 31 Importante destacar que os arranjos familiares homossexuais não são, na maioria das vezes, passíveis de serem igualados aos arranjos heterossexuais. Particularidades que não se coadunam com o sentido tradicional de relações afetivas acabam sendo deixadas de lado, em favor de uma certa minoria de arranjos afetivos entre pessoas do mesmo sexo, que são semelhantes aos arranjos tradicionais. Assim, percebemos que o mero reconhecimento da igualdade de direitos no reconhecimento das uniões estáveis, mesmo que importante e necessário, é insuficiente para lidar com a complexidade da questão. .

Nesse sentido, é quase inquestionável nos votos dos Ministros o uso do termo homoafetividade, recebido com total naturalidade e repetido constantemente em outros votos. Não se trata apenas de uma equiparação de interesses de grupos; trata-se de uma seleção do tipo específico de relação homossexual aceita pelo grupo majoritário: ela é possível, desde que não seja contrária aos padrões dominantes. Ou, conforme o jargão: “seja homossexual, mas seja discreto!”. Consequentemente, opera-se um assimilacionismo de padrões comportamentais, em que muitos outros arranjos ficam de fora, pois não cumprem com os tradicionais elementos que definem as relações afetivas burguesas: “durabilidade”, “conhecimento do público e continuidade”, além do “propósito ou verdadeiro anseio de constituição de uma família”. Em raríssimos momentos, avança-se no sentido de perceber as particularidades dos arranjos familiares homossexuais. Com isso, mesmo com essas sensíveis reformas, o sentido nuclear dos arranjos familiares continua estável. Segundo Ayres Britto:

Cabe perguntar se a Constituição Federal sonega aos parceiros homoafetivos, em estado de prolongada ou estabilizada união, o mesmo regime jurídico-protetivo que dela se desprende para favorecer os casais heteroafetivos em situação de voluntário enlace igualmente caracterizado pela estabilidade. Que, no fundo, é o móvel da propositura . (BRASIL, 2011: 36)

No próprio voto do relator há longa passagem sobre a necessidade de usar a afetividade como designativo dos arranjos. Com base nos escritos de Maria Berenice Dias32 32 Os neologismos união homoafetiva e homoafetividade foram cunhados por Maria Berenice Dias. Conferir: DIAS, M.B. União homossexual: o preconceito e a justiça. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. , o Ministro atualiza o uso dos termos e passa a trabalhar com a equiparação entre homoafetivos e heteroafetivos, trazendo para o conceito de união estável percepções romantizadas sobre as relações familiares. Mais uma vez, Ayres Britto (BRASIL, 2011:22) volta a ressaltar: destacam-se “as semelhanças com a união estável heterossexual: durabilidade, conhecimento do público e continuidade, além do propósito ou verdadeiro anseio de constituição de uma família”. Novamente, vence o sentido tradicional de arranjos familiares.

Essa reafirmação do núcleo hegemônico é explícita quando há também necessária vinculação do interesse do grupo minoritário com outra tradicional compreensão da sociologia liberal de que a família é uma instituição privada e é o núcleo da sociedade. O próprio Ayres Britto (BRASIL, 2011: 39), após elencar vários direitos individuais privados como necessários para a proteção da família, resgata uma afirmação de Rui Barbosa de que a família é a “Pátria amplificada”. Como muito já se debateu nos estudos feministas (BELTRÁN, 1994; ABOIM, 2012ABOIM, S. “Do público e do privado: uma perspectiva de gênero sobre uma dicotomia moderna”. In: Estudos Feministas, Florianópolis, n. 20. Jan-Abr, 2012, pp. 95-117.; OKIN, 2008OKIN, S. M. “Gênero, o público e o privado”. In: Estudos Feministas, Florianópolis, n. 16. Mai-Ago, 2008, pp. 305-332.), a compreensão liberal sobre a privacidade da família não permite sua politização e, consequentemente, o debate público sobre suas insuficiências e problemas.

O voto do Ministro Lewandowski (BRASIL, 2011) se inicia com a afirmação de que a família, enquanto base da sociedade, conta com especial proteção do Estado. Então, o ministro realiza um apanhado das nossas anteriores Constituições e destaca a constante afirmação de que a família é a base da sociedade e merece a proteção estatal, como se esse argumento se legitimasse por esse método comparativo, dada a repetição normativa de seu sentido. O Ministro Fux (BRASIL, 2011), também confirmando a tradição liberal cristã de entender a família como base da sociedade, acrescenta a essa base elementos como amor, comunhão e laços de identidade. Se essas características são encontradas e se o objetivo do Estado é dar proteção a esse seu núcleo basilar, a única alternativa interpretativa, segundo o Ministro, é a extensão dessa proteção aos casais homossexuais. Por isso, afirma, de modo simplório e acrítico: "inexistindo razão suficiente para o tratamento jurídico diferenciado, impõe-se o tratamento idêntico" (BRASIL, 2011: 65).

Outro conceito que é amplamente utilizado nos votos é o de direito de minorias33 33 Para uma crítica das limitações do conceito de minorias, conferir: FARRELL, M. “El alcance (limitado) del multiculturalismo”. Universalismo y multiculturalismo. Comp. Bertomeu, M. J., Gaeta R., y Vidiella, G. Buenos Aires: Eudeba, 2000. 211-228. , tradicional instrumento de afirmação da centralidade da ordem liberal. Como o liberalismo cunhou a noção de sujeito abstrato e universal, em sua tentativa de superação da sociedade de castas do Antigo Regime, essa noção passa a representar também a concepção do sujeito moderno de direitos. Praticamente todo o ordenamento jurídico moderno ocidental parte da compreensão de que todos são sujeitos de direitos perante a ordem jurídica, desde que considerados em sua abstratividade e generalidade. Mas, principalmente com a influência dos desenvolvimentos da noção de direitos humanos e da atualização do liberalismo americano na década de 1960, resgatando as teorizações de Alexis de Tocqueville e reconfigurando o sentido de contrato social em John Locke, o conceito de direitos de minorias serviu e ainda serve como mecanismo de reforma do sistema jurídico para recepcionar os novos sujeitos de direitos, que, de certa forma, são mapeados pelo sistema por intermédio da tensão entre maioria e minoria. Ao serem identificados, desde antemão, como minorias ou como novos sujeitos de direitos, já acessam o sistema com a marca da subordinação e da diferenciação.

Nesse sentido, a Ministra Cármen Lúcia (BRASIL, 2011) inicia seu voto falando das lutas das minorias e das persistentes discriminações que as atingem. Também o Ministro Fux (BRASIL, 2011: 58) afirma: "trata-se de questão concernente à violação de direitos fundamentais inerentes à personalidade dos indivíduos que vivem sob orientação sexual minoritária". E ainda ressalta que um dos principais papéis do STF é o de agir contramajoritariamente, protegendo as minorias contra as investidas injustificadas por parte das maiorias34 34 Mais uma vez estamos diante da hegemonia liberal que, segundo seus próprios instrumentos e valores, concede alguma margem de liberdade de atuação para os grupos minoritários. .

Um ponto que é muito característico da compreensão liberal é a naturalização do biológico, dentro da percepção de que existe um material bruto sobre o qual se constrói a nossa identidade e a nossa sociabilidade. Muitas feministas35 35 Como representantes dessas críticas, conferir: FAUSTO-STERLING, A. Myths of Gender: biological theories about women and men. New York: Basic Books,1992; FOX-KELLER, Evelyn. “Qual foi o impacto do feminismo na ciência?”. Cadernos Pagu, v. 27, p. 13-34, jul./dez. 2006. provocam o debate a respeito dessa naturalização do biológico, como se recebêssemos um conjunto de informações da natureza que não seriam fruto da nossa própria gramática construída culturalmente; de nosso modo de olhar determinadas matérias e denominá-las de natural ou social. Aplicando ao caso em questão, o voto do Ministro Ayres Britto (BRASIL, 2011: 30) desenvolveu de modo profundo essa tensão entre natureza e sociedade. Todo o seu voto está permeado do uso de noções popularizadas de sexo biológico, como o espaço em que o instinto e a libido predominam: "nesse movediço terreno da sexualidade humana é impossível negar que a presença da natureza se faz particularmente forte". Rebuscando sua argumentação com uma retórica poética, o Ministro trabalha com a naturalização de determinadas características pessoais, dando-lhes o viés da inquestionabilidade, já que existiria uma biologia humana da sexualidade que a todos tocaria: "sendo o Direito uma técnica de controle social (a mais engenhosa de todas), busca submeter, nos limites da razoabilidade e da proporcionalidade, as relações deflagradas a partir dos sentimentos e dos próprios instintos humanos às normas que lhe servem de repertório e essência" (BRASIL, 2011: 27).

Reafirmando a compreensão liberal de que a sexualidade é matéria privada, que não precisa e não deve ser profundamente debatida dentro da política, dado o fato de ser biologicamente natural, Ayres Britto (BRASIL, 2011: 27) entende que as funções de estimulação erótica, conjunção carnal e reprodução biológica são operadas por um “intencional silêncio” do Direito, já que devem estar restritas ao âmbito da liberdade privada das pessoas: "o silêncio normativo atua como absoluto respeito a algo que, nos animais em geral e nos seres humanos em particular, se define como instintivo ou da própria natureza das coisas". Podemos afirmar que estamos diante da clássica separação liberal entre o que é privado e o que é público, pois, segundo o Ministro, "nada mais íntimo e mais privado para os indivíduos do que a prática da sua própria sexualidade" e "nada é de maior intimidade ou de mais estranha privacidade do que o factual emprego da sexualidade humana" (BRASIL, 2011: 32).

Com essa naturalização da sexualidade humana, Ayres Britto (BRASIL, 2011: 24) afirma que o sexo não se prestaria para fator de “desigualação jurídica”, pois estaríamos trabalhando com a noção abstrata e universal de indivíduo. Consequentemente, os direitos individuais de proteção do sujeito reafirmariam a proibição de tratamento discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo. Assim, o uso da sexualidade "faz parte da autonomia de vontade das pessoas naturais, constituindo-se em direito subjetivo ou situação jurídica ativa” (BRASIL, 2011: 32). O uso do sistema de direitos individuais levaria a uma interpretação específica da Constituição: "cuida-se da proteção constitucional que faz da livre disposição da sexualidade do indivíduoalgo já transposto ou catapultado para a inviolável esfera da autonomia de vontade” (BRASIL, 2011: 29). O Ministro Fux (BRASIL, 2011: 59-60), em uma linguagem um pouco mais objetiva, mas com definições redundantes, afirma que a homossexualidade é uma “característica da personalidade do indivíduo”, que um indivíduo é “homossexual simplesmente porque o é”, sendo a homossexualidade um “elemento integrante da personalidade do indivíduo”.

Por fim, dentro ainda da compreensão de que o sistema precisa de ajustes internos para aperfeiçoar o alcance de sua proteção, Ayres Britto (BRASIL, 2011: 94) chega a pontuar a necessidade de algumas políticas públicas afirmativas para a “igualdade cívico-moral”. A própria noção de ações afirmativas, nascida dentro da reforma liberal dos Estados Unidos nos anos 1960, traz em seu conceito essa dimensão de atualização da ordem jurídica, a ponto de incorporar os sujeitos desprivilegiados ou dominados, as minorias ou os novos sujeitos de direitos. Essas políticas afirmativas, para o Ministro, fariam do Estado o promotor do “bem de todos”, por intermédio de ações que eliminariam os preconceitos de sexo. Entretanto, não desenvolve de modo mais substancioso o modo como essa política pública se daria, o que nos leva a perceber que a mera equiparação formal parece ser suficiente para atingir os objetivos de igual tratamento.

3.2 O plano penal dos direitos homossexuais no STF

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de número 291 debateu a manutenção de termos discriminatórios aos homossexuais no capítulo referente aos atos libidinosos no Código Penal Militar. A grande questão era se a Constituição de 1988 havia recepcionado os termos “pederastia ou outro” e “homossexual ou não”, na criminalização de atos libidinosos praticados por militares em ambientes sujeitos à administração militar, enquanto expressões pejorativas e discriminatórias, ante o reconhecimento do direito à liberdade de orientação sexual como liberdade existencial do indivíduo. Nas palavras do Ministro Barroso (BRASIL, 2015: 1), trata-se de uma "manifestação inadmissível de intolerância que atinge grupos tradicionalmente marginalizados".

Essa ação não possui um desenvolvimento conceitual profundo, pois os efeitos práticos da discussão estão mais no plano da gramática do Direito, do uso de expressões que conotam discriminação no tratamento dos sujeitos. De certo modo, repete-se o lugar-comum em entender os homossexuais como minoria, como grupo marginalizado, e a ideia de que a reforma em alguns aspectos da estrutura do sistema sanaria o problema da sua discriminação. Tanto Barroso (BRASIL, 2015), quanto Lewandowski (BRASIL, 2015) e Celso de Mello (BRASIL, 2015) tratam o caso como uma situação de sensibilização frente a uma minoria homossexual, ou seja, um direito personalíssimo à orientação sexual, que deveria ser levado em consideração. Celso de Mello (BRASIL, 2015: 8) chega a afirmar que “homossexuais também têm direitos”, numa tentativa retórica de enfatizar a igualdade de direitos, mas em uma tácita afirmação que carrega em si as cargas da discriminação.

Barroso (BRASIL, 2015), que desenvolve uma fundamentação mais substanciosa, chega a trazer algumas questões críticas à estrutura dos ambientes militares, entendendo-os como espaços de exagerada masculinidade e virilidade, com um viés historicamente anti-plural e pouco aberto às diferenças. Entretanto, apesar do anúncio dessas questões, que poderiam levar a uma análise mais estrutural dos ambientes militares e sua relação com a democracia atual, o Ministro volta ao ponto formal da ação, enfatizando a necessidade de reforma do sistema por intermédio da alteração da gramática excludente:

Não se pode permitir que a lei faça uso de expressões pejorativas e discriminatórias, ante o reconhecimento do direito à liberdade de orientação sexual como liberdade existencial do indivíduo. Manifestação inadmissível de intolerância que atinge grupos tradicionalmente marginalizados (BRASIL, 2015: 1).

Em que pese a importância da discussão sobre o igual tratamento e uma gramática que seja adequada ao sentido de igualdade para todos, os valores de virilidade e masculinidade exacerbadas, típicos dos ambientes militares, passaram incólumes pela discussão, sendo que, por trás dessa gramática excludente, estão os valores de uma cultura machista e heterossexista, alicerces para o modo como o Estado opera o seu legítimo exercício da força. Assim, mantêm-se os valores basilares da instituição militar, deixando de lado a discussão sobre práticas sexuais como atos corriqueiros e aceitáveis do comportamento humano. Exacerba-se o olhar sobre a sexualidade, a ponto de tratá-la como uma infração gravíssima, regulada pelo âmbito penal. A sexualidade continua privatizada e vista com olhos severos; ao mesmo tempo, os espaços militares continuam sustentados pelos valores masculinos da virilidade, desatualizados perante uma compreensão democrática e moderna da sociedade. Mais uma vez, sustenta-se a estrutura de um sistema que formalmente aperfeiçoa um sentido de liberdade formal, mesmo que se saiba das dificuldades que pessoas homossexuais terão diante de um ambiente marcadamente masculinizado e sustentado por noções de virilidade, que reforçam e sustentam a hegemonia heterossexual nas instituições estatais.

O segundo caso penal, e terceira ação aqui analisada, é a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão número 26, julgada em 2019. Por ela, postulou-se a equiparação a crime de racismo dos casos de homofobia e transfobia, garantindo um tratamento isonômico para a população LGBTQI+ em relação aos demais casos de preconceito e discriminação. Da análise dos votos dos Ministros, extrai-se também a percepção de que o sistema penal liberal continua incólume, como se outra alternativa não fosse possível para o tratamento das situações gravosas de nossa sociedade. Muito já se discutiu na nossa literatura sobre a ênfase penalista da nossa política, a busca incessante por instrumentos punitivos como soluções aos nossos problemas. Por outro lado, também já se debateu sobre a seletividade do nosso sistema penal que, mesmo estando formatado normativamente para tratar a todos de igual maneira, acaba atingindo majoritariamente a população negra e pobre do Brasil36 36 Para os debates sobre a ênfase penalista e sobre a seletividade penal, conferir: BARATTA, A. “Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à Sociologia do Direito Penal”. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. ZAFFARONI, E. R. “O inimigo no Direito Penal”. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007; ALAGIA, A. “Fazer sofrer: imagens do homem e da sociedade no Direito Penal”. Rio de Janeiro, Revan, 2000; HULSMAN, L; CELIS, J. B. “Penas Perdidas: o sistema penal em questão”. Niterói: Luam, 1993; DÍEZ R., J. L. “El abuso del Sistema Penal”. In: Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología. N. 19, Granada, 2017. .

Obviamente que a extensão dos mecanismos estatais de proibição de atos discriminatórios à população LGBTQI+ é algo a ser levado a sério. E os votos dos Ministros levam em consideração, em sua fundamentação, os deveres do Estado brasileiro perante a sociedade internacional. Elencam vários tratados e convenções internacionais que expressam a necessidade de o Estado adotar políticas públicas antidiscriminatórias, o que é um passo importantíssimo para alcançarmos níveis aceitáveis de dignidade humana. Entretanto, para a hipótese aqui trabalhada, estamos mais uma vez diante da hegemonia liberal, pois nessa ação não houve debate sobre os elementos estruturantes do sistema penal, o que pode levar, mais uma vez, a reforçar o racismo e a desigualdade em decorrência da sua seletividade penal. Também nada se falou sobre alternativas ao punitivismo ou escalas diferenciadas de tratamento entre a imensidão de clivagens possíveis na população LGBTQI+, que vai desde pessoas em situação de rua e vulnerabilidade extrema, até homossexuais brancos bem-sucedidos economicamente. Desse modo, entendo mais uma vez que a permissão para a atualização do sistema liberal está dada, única e exclusivamente, para pequenos ajustes nos seus aspectos formais e simbólicos; mas não para seus elementos fundantes.

Em síntese dos principais votos - Alexandre de Moraes, Celso de Mello, Fachin, Gilmar Mendes e Lewandowski (BRASIL, 2019) -, as principais etapas de discussão envolvem: a noção de sujeito homossexual enquanto minoria vulnerável; a equiparação com o racismo para fins de extensão da proteção estatal; e a tensão com a liberdade de manifestação de pensamento religioso, principalmente nos casos que envolvem líderes religiosos cristãos na manifestação da compreensão de que a homossexualidade e a transexualidade são situações pecaminosas e que não deveriam ser “incentivadas” pela ordem político-jurídica do país. Em suma, pequenos ajustes na atualização da hegemonia liberal em nossas instituições jurídicas.

Trabalhando com a noção do sujeito homossexual, central na discussão, mesmo em se tratando de uma ação que visa à criminalização de todas as situações discriminatórias contra a população LGBTQI+, busca-se legitimar a noção de que temos novos sujeitos de direitos, compostos por uma minoria sexual da sociedade, pleiteando a igualdade formal de tratamento. Nas palavras de Lewandowski (BRASIL, 2019: 5), "igualdade como reconhecimento é uma das principais reivindicações de grupos minoritários e de direitos humanos em todo o mundo”. Como estaríamos tratando de grupos minoritários, o debate inicial gira em torno da falta de medidas protetivas suficientes para atender a essa população. Como expressou Gilmar Mendes (BRASIL, 2019: 5), "a orientação sexual e a identidade de gênero devem ser consideradas como manifestações do exercício de uma liberdade fundamental, de livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo, a qual deve ser protegida, livre de preconceito ou de qualquer outra forma de discriminação".

Quem mais se aprofunda na discussão é o Ministro Celso Mello (BRASIL, 2019), com amplo debate sobre o reconhecimento dos sujeitos homossexuais como minorias a serem protegidas satisfatoriamente pelo Estado. Em sentido comum, Lewandowski (BRASIL, 2019) traz Nancy Fraser e Axel Honneth como teóricos da “luta pelo reconhecimento”, em contraste com a mera tolerância ou reconhecimento formal dos liberais. Todavia, mesmo que continue a discussão com outros autores, indiretamente citados, como Simone de Beauvoir, Judith Butler e Michel Foucault, não desenvolve uma noção mais crítica a ponto de superar o ponto de vista liberal a respeito do sujeito. O Ministro Celso de Mello (BRASIL, 2019) faz recorrente menção ao termo “homoerótico”, reforçando o estigma de que os sujeitos homossexuais são reconhecidos, desde antemão, pelas suas atividades sexuais. É a marca que define o estado eternamente subalternizado de quem adentra ao sistema como uma minoria, um vulnerável. A sua marca distintiva é reafirmada em diferentes sentidos. Mas, no caso da homossexualidade, inevitavelmente recai sobre o exercício sexual, como se outras características e situações da identidade da pessoa não fossem tão relevantes. E, como já visto na análise do voto de Ayres Britto (BRASIL, 2011) no caso da união estável homossexual, há uma referência constante às noções de amor, afetividade e felicidade, elementos que tornam a homossexualidade mais palatável, já que tocam em questões sensíveis da nossa existência, numa suposta tentativa de “humanização” daqueles sujeitos hiperssexualizados e erotizados em sua identidade.

Nas palavras de Celso de Mello (BRASIL, 2019: 5-6), “os integrantes do grupo LGBTQI+, como qualquer outra pessoa, nascem iguais em dignidade e direitos e possuem igual capacidade de autodeterminação quanto às suas escolhas pessoais em matéria afetiva e amorosa, especialmente no que concerne à sua vivência homoerótica”. Mais adiante, volta ao conceito de homoerotismo: "registros históricos e das práticas sociais contemporâneas, que revelam o tratamento preconceituoso, excludente e discriminatório que tem sido dispensado à vivência homoerótica em nosso País". E outra vez mais: "os exemplos de nosso passado colonial e o registro de práticas sociais menos antigas revelam o tratamento preconceituoso, excludente e discriminatório que tem sido dispensado à vivência homoerótica em nosso País". Um dos grandes problemas da forma liberal de recepcionar os sujeitos como minorias é que a sua identificação será sempre marcada pela sua diferença, tornando inatingível a promessa de igualdade de tratamento pretendida. Ao mesmo tempo, isso acaba perpetuando os sujeitos majoritários como hegemônicos do sistema. No próprio voto do Ministro, há um item específico sobre a temática: "Democracia constitucional, proteção dos grupos vulneráveis e função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal no exercício de sua jurisdição constitucional". A grande questão que nos resta é saber sobre a possibilidade de superação desse momento inicial de identificação de uma população minoritária por sua marca diferencial em relação ao grupo majoritário. Em que pese todo o esforço de uma literatura sobre direitos humanos e proteção de minorias em tentar justificar esse momento como um passo inicial necessário para a reforma do sistema, não se visualizam alternativas contra essa forma estigmatizante de conceber os sujeitos, perpetuando indefinidamente a marca da diferença.

Apesar desse viés liberal em relação ao reconhecimento dos homossexuais como sujeito de direitos, Celso de Mello (BRASIL, 2019) desenvolve uma ampla discussão sobre as identidades LGBTQI+, trazendo ampla bibliografia acadêmica sobre gênero e sexualidade, enfrentando até discussões sobre “ideologia de gênero”. O Ministro foca sua atenção na noção de autodeterminação identitária, resgatando historicamente o tratamento jurídico dado à homossexualidade, desde as Ordenações portuguesas, até os tempos atuais. Em que pese esse esforço sobre teorias da identidade, usa os termos “homossexual”, “homoerótico” e “homoafetivo” como se fossem sinônimos. E, como em outros votos, a centralidade da homossexualidade ofusca as demais identidades, tidas como acessórias ou dependentes de uma grande identidade homossexual, pecando com os avanços das discussões sobre gênero e sexualidade. Isso fica explícito em várias passagens, como a seguinte: "isso significa que também os homossexuais (e também, os integrantes da comunidade LGBT) têm o direito de receber a igual proteção das leis e do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República". Esses “demais integrantes” acabam operando como minorias dentro das minorias, demonstrando, mais uma vez, o grande problema de se debater as identidades a partir de suas diferenças: há uma contínua reprodução das diferenças, dependências e superioridades, insuficientes para um tratamento efetivamente igualitário entre todos.

Quando Celso de Mello avança para falar da transexualidade, o faz por meio de dados e estatísticas a respeito da transfobia, destacando seus elevados índices no Brasil. Assim como em outras situações, o reconhecimento do estado de vulnerabilidade da população transexual é geralmente destacado por meio dos altos índices de mortandade, baixa expectativa de vida e outras situações que pouco têm a ver com o amor, com a afetividade e com a busca pela felicidade, marcantes para o reconhecimento legal do sujeito homossexual. Faço esse destaque justamente porque entendo que o modo como o sistema liberal encara o sujeito de direito trabalha muito mais com aquilo que nos diferenciado que com aquilo que nos une, apesar de se basear na concepção de igualdade para todos. Além disso, não rompe a tensão entre maiorias e minorias, fazendo com que o sistema trabalhe com base em uma pirâmide de privilégios, sempre identificando as pessoas pelas suas diferenças ou pelos seus estigmas e tratando os grupos minoritários, possuidores de muitas clivagens e diferenças internas, como blocos monolíticos e uniformes. Logo, indaga-se: que alternativas temos perante a hegemonia liberal no Direito? Que outras alternativas podemos encontrar?

Em continuidade, Celso de Mello traz o Estado como o agente ativo para resolver o problema da discriminação, com medidas protetivas e ações positivas para o seu aperfeiçoamento. Entretanto, enfoca na inevitabilidade do sistema punitivo como meio eficaz para resolver problemas graves de nossa sociedade:

A cláusula inscrita no art. 5º, inciso XLI, da Constituição da República - para além de consagrar o repúdio estatal a todas as modalidades de preconceito e de intolerância - consubstancia verdadeiro mandamento constitucional de criminalização que, dirigido ao Poder Público, tem por finalidade vinculá-lo ao compromisso de instituir, por meio de normas penais, um sistema protetivo dos direitos e das liberdades fundamentais ameaçados ou expostos a risco em decorrência de quaisquer atos de discriminação que, por suas diversas formas de manifestação, desrespeitarem a essencial dignidade das pessoas (BRASIL, 2019: 17).

No mesmo sentido, o Ministro Fachin (BRASIL, 2019: 15-6) destaca que o Direito Penal “é o instrumento adequado para a proteção de bens jurídicos expressamente indicados pelo texto constitucional". E também é esse o entendimento do Ministro Gilmar Mendes, ao defender uma “teoria constitucional da tolerância”, pedagogicamente incentivada pelo Direito Penal:

Os mandados constitucionais de criminalização ao racismo e a todas as formas de discriminação não se restringem a demandar uma formulação de políticas públicas voltadas a essa finalidade; consagram verdadeiros postulados do reconhecimento do direito de minorias, de direitos básicos de liberdade e igualdade. Tais direitos dizem respeito à liberdade de orientação sexual, de desenvolvimento da personalidade e de reconhecimento da união homoafetiva como relação jurídica legítima, e exigem um correspondente dever de proteção do Estado, por intermédio de um modelo mínimo de proteção institucional, como meio de se evitar uma caracterização continuada de discriminação (BRASIL, 2019: 16-7).

Lewandowski chega a avançar na discussão sobre a importância dos mecanismos penais nessa política antidiscriminatória, afirmando sua potência em gerar mudança cultural na sociedade:

Ao adicionar as categorias de orientação sexual e identidade de gênero para crimes de ódio, a lei transmite a mensagem da inaceitabilidade da violência contra esses grupos, voltando-se claramente à mudança cultural. A incorporação dessa proteção em leis penais modifica o status dos grupos minoritários, tornando-os legalmente protegidos. a tutela legal também é igualmente desejável por meio de leis contrárias à intimidação sistemática (Bullying), que também podem legitimar importantes demandas por reconhecimento, sobretudo relacionadas a questões de gênero (BRASIL, 2019: 15-16).

Além dessas questões, os dois principais embates na ação foram em relação à equiparação ao racismo e às tensões com a liberdade religiosa. No caso da equiparação, ela foi feita em um sentido geral, como se tivéssemos um grande grupo, em que todas as minorias seriam agrupadas, tratadas igualitariamente, com a garantia de que isso resolveria o problema das desigualdades:

Isso significa que os homossexuais, os transgêneros e demais integrantes do grupo LGBT têm a prerrogativa, como pessoas livres e iguais em dignidade e direitos, de receber a igual proteção das leis e do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero (BRASIL, 2019: 32).

Todavia, mais uma vez estamos diante da homogeneização de situações diferenciadas. Negros, índios, ciganos, mulheres, judeus, religiões minoritárias e outros grupos possuem particularidades e singularidades que não se resolvem apenas com a criminalização em geral de atos discriminatórios e preconceituosos, como se o temor à criminalização fosse instrumento eficiente para romper uma estrutura formada com base no privilégio de grupos majoritários. Quais seriam as outras ações possíveis para efetivamente se conseguir a devida proteção à dignidade de todos?

Por fim, no suposto embate entre os princípios de liberdade de manifestação de pensamento - no caso, liberdade religiosa para expressar suas crenças - e o da dignidade, não preconceito e autodeterminação identitária, os Ministros chegaram à conclusão, principalmente após o longo desenvolvimento sobre o assunto no voto do Ministro Celso de Mello, de que a liberdade religiosa em se manifestar em relação às identidades LGBTQI+ está garantida, desde que não configurem discurso de ódio, "para que as ideias, especialmente as de natureza religiosa, possam florescer, sem indevidas restrições, em um ambiente de plena tolerância" (BRASIL, 2019: 4). Valendo-se da noção liberal de tolerância, resgatam a tradição liberal americana sobre liberdade de expressão e discurso de ódio, justificando a decisão, mais uma vez, dentro dos parâmetros liberais do sistema, sem muito avançar em outras possíveis leituras sobre liberdade, religiosidade, dignidade e preconceito.

Notas conclusivas

Retomando a hipótese da investigação, a análise discursiva dos votos dos Ministros consegue demonstrar que dentro da tradição liberal do Direito brasileiro restam poucas alternativas para atuação das pautas críticas ao liberalismo. Na leitura feita a respeito dos direitos homossexuais, podemos entender que nitidamente o modo como a interpretação jurídica no controle de constitucionalidade absorveu e engendrou as discussões sobre tais direitos fez com que o próprio sistema liberal se atualizasse, garantindo a hegemonia liberal e instaurando um novo padrão modelo de comportamento: o homonormativismo, aquele estilo de exercício da sexualidade que não é heterossexual, mas que se baseia nela para ser aceita como válida dentro do sistema. Pragmaticamente, os pleitos se resolveram a partir da assimilação do discurso tradicional sobre padrões de comportamento afetivo e sexual e respeito à identidade homossexual, dentro de uma roupagem inteligível para o mercado e para a política liberal, semelhante ao processo que ocorre no programa Global Gay, de atualização do sentido de igualdade e liberdade, segundo os direitos de cunho liberal. Isso se confirma por intermédio do uso de expressões assimilacionistas e da recepção das demandas por meio da categoria de direitos de minorias ou de novos sujeitos de direitos, vulneráveis e marcados pela diferença da homossexualidade. Além disso, também é possível afirmar que há um esvaziamento de sentidos mais radicais dos discursos contrários ou críticos ao liberalismo, com baixo impacto de transformação ou de construção de outras alternativas a esse paradigma. Neste ponto, destaco que o “duplo fazer”, a relação complementar e cooriginária entre Estado e gênero fica comprometida, dada a hegemonia do discurso liberal, agora adaptado ao contexto LGBTQI+.

Consequentemente, parece-me falha, dentro do tema analisado, a compreensão de que é possível operar, através dos mecanismos internos da burocracia estatal, os pleitos radicais do movimento LGBTQI+, especificamente no caso dos direitos homossexuais. Além de apenas reconhecer o sujeito de direitos homossexuais a partir de uma noção liberal, implicitamente, revalida o conservadorismo dos institutos tradicionais dos costumes e valores hegemônicos da ordem jurídica e social, com pequenas atualizações que são plenamente inteligíveis dentro do marco liberal mais atual, como as propostas de atualização desenvolvidas pelos teóricos liberais nos anos 1960. Nos votos analisados, quase não houve elementos que pudessem demonstrar a preocupação com críticas estruturais ao sistema, pois o núcleo hegemônico dos institutos e bens jurídicos foi preservado. A ideia marxista de Mackinnon (1995MACKINNON, C. A. “Hacia una teoría feminista del Estado”. Madrid: Cátedra, 1995.) de que é quase impossível transformar as relações de desigualdade a partir de políticas estatais ou centradas no Estado, por acabarem sempre incorporando os interesses dominantes, é bem ilustrativa para essa conclusão.

Referências bibliográficas

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Documentos jurisprudenciais

  • 1
    Utilizo aqui a sigla que julgo mais amplificada a respeito da diversidade de identidades dentro do universo não heterossexual.
  • 2
    Desenvolvo essa distinção entre gênero e sexualidade em um capítulo específico: MONICA, E. F.; MARTINS, Ana Paula. Conceitos para pensar sobre política sexual no Direito brasileiro. In: MONICA, E. F.; MARTINS, A. P. A. (Org.). Qual o futuro da sexualidade no Direito? 1ed.Rio de Janeiro: Bonecker/PPGSD-UFF, 2017, v. 1, p. 19-46.
  • 3
    Como intenção global, que não será desenvolvida nesse artigo, busco contribuir com a produção alternativa de uma hermenêutica plural e agonística para os sentidos possíveis de liberdade sexual no Brasil e que não se restrinjam apenas àquelas que são fruto da tradição liberal.
  • 4
    Poderíamos pensar se as pautas dos movimentos de esquerda, como um todo, são efetivamente críticas ao paradigma liberal. É provável que, dada a ausência de um debate profundo sobre o liberalismo e as pautas do novo liberalismo no Brasil, muitas pautas que a esquerda entende serem críticas ao liberalismo são, em verdade, pautas tipicamente liberais.
  • 5
    Como apontado, outros grupos, como de mulheres, transexuais e outros precisam ser analisados em apartado, já que em muitos outros casos encontramos um “duplo fazer” que confirma a possibilidade de uma relação complementar e cooriginária entre Estado e gênero. Aqui a minha preocupação é justamente com as críticas já desenvolvidas por outros autores sobre o modo como os homossexuais se assimilam aos padrões comportamentais que antes eram a base de sua crítica, principalmente dentro da dinâmica liberal e capitalista, baseada em padrões heterossexuais de comportamento sexual. Conferir: DUGGAN, Lisa. The new Homonormativity: the sexual politics of neoliberalism. In: "Materializing Democracy". p. 175-194. Durham, NC: Duke University Press, 2002.
  • 6
    Utilizo-me da expressão cunhada por Frédéric Martel e que está bem popularizada, principalmente no ocidente, do projeto Global Gay. É uma análise geopolítica a respeito de como está a questão homossexual no mundo, principalmente através de um mapeamento de conquista de direitos em uma perspectiva global. É possível perceber, a partir de um olhar crítico, que esse projeto está bem delineado a partir dos direitos liberais e da noção de igualdade jurídica formal. Conferir: MARTEL, Frédéric. “Global Gay: como la revolución gay está cambiando el mundo. Madrid: Taurus, 2013.
  • 7
    No caso do presente artigo, como estou trabalhando com movimentos sociais pautados na noção de identidade sexual, essa atualização se dá em relação aos sujeitos de direitos admissíveis pelo sistema jurídico. Importante destacar que noções como direitos de minorias e novos sujeitos de direitos nascem dentro da proposta liberal americana dos anos 1960 de atualizar o paradigma liberal, frente aos avanços do socialismo. Portanto, por meio dessa atualização, temos os conceitos liberais de minorias, direitos de minorias e novos sujeitos de direitos, mecanismos de leitura e captura dos anseios de mudança da sociedade segundo as possibilidades do próprio sistema.
  • 8
    Nesse aspecto cultural, Bourdieu (2010) desenvolve o argumento de que a dominação simbólica exige dos dominados uma certa cumplicidade que não é necessariamente uma submissão absolutamente passiva a uma coerção externa, ou uma mera adesão livre e desimpedida a valores externos. Assim, a hegemonia opera a partir desse grande consenso em torno de alguns valores pertencentes aos dominantes e apropriados pelos dominados. Faz parecer que há um compartilhamento geral desse núcleo de valores, como no caso da aceitação de uma ordem jurídica que a todos tocaria, dada suas exigências de universalidade e acesso a todos, dentro do paradigma liberal de sujeito e direitos.
  • 9
    Também podemos debater aqui o conceito de Weber (1964) sobre o poder, que é a probabilidade de imposição da sua própria vontade, ainda que com resistências. Por meio dos instrumentos da burocracia, o poder consegue impor sua própria vontade nas sociedades modernas ocidentais. Em continuidade, a dominação se expande ao se aceitar a legitimidade da vontade do poder. Nesse caso, o poder torna-se mais sofisticado, já que mascara sua hegemonia ao conceder certa margem de escolha aos dominados, desde que esses aceitem os elementos fundamentais propostos pelo poder dominante, aqueles elementos inegociáveis que mantêm o sentido profundo da hegemonia.
  • 10
    Por assimilacionismo entendo aqui o modo como os sujeitos homossexuais precisam adaptar seus comportamentos aos moldes dos comportamentos heterossexuais aceitáveis. Assim, um arranjo de relacionamento entre pessoas do mesmo sexo se torna mais aceitável para o sistema quando trabalha com noções como monogamia, estabilidade, compartilhamento de funções domésticas e outros atributos que nem sempre são encontrados nas relações homossexuais, dadas as suas particularidades. O termo foi empregado nos debates sobre colonialismo, neocolonialismo e globalização. Conferir: FERNÁNDEZ, E. "¿Cómo conjugar universalidad de los derechos y diversidad cultural?" In: Persona y Derecho. n.49, 2003, pp. 393-444.
  • 11
    Para entender o conceito de Antigo Regime, Conferir: ROTELLI, Ettore. “Ancien Régime”. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfrancesco (Orgs.) Dicionário de Política, Volume 1. Brasília: Editora UnB, 1998. pp. 29-30.
  • 12
    Para um debate sobre a modernidade jurídica brasileira, conferir: WOLKMER, A. C. “Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito”. 3ª edição. Editora Alfa Omega: São Paulo, 2001.
  • 13
    Para uma análise do conceito de liberalismo no Brasil antes da sedimentação da nossa modernidade jurídica, conferir: LYNCH, C. E. C. O conceito de Liberalismo no Brasil. In: “Araucária: Revista Iberoamericana de Filosofia, Politica y Humanidades. n. 17, Mai. 2007, pp. 212-234.
  • 14
    A tensão da esquerda entre reforma ou revolução, um clássico dilema no marxismo, ganhou destaque no clássico livro de Rosa Luxemburgo: LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou Revolução? São Paulo: Expressão Popular, 1999.
  • 15
    O próprio feminismo liberal entende o Estado como uma entidade neutra, que pode ser captado e influenciado por vários grupos de interesse, mas que não guarda em si nenhuma pretensão de hegemonia, pois o liberalismo, em si, seria neutro, não valorativo. Por isso, ele não poderia ser acusado de ser sexista, patriarcal, machista ou outros acusativos, já que estruturalmente é contrário aos tratos discriminatórios e desiguais. Portanto, essas feministas também investem em ações como leis antidiscriminatórias e políticas afirmativas, aliadas a ações de participação e de representação na esfera pública. Para uma introdução ao pensamento feminista e, especificamente, ao feminismo liberal, conferir: TONG, R. “Feminist Thought: a more comprehensive Introduction”. 3. ed. Boulder, Colorado: Westview Press.
  • 16
    Para um aprofundamento nesta discussão, conferir: CAENEGEM, R.C. Van. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo: Martins Fontes, 2006; GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001; GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003; GRINBERG, Keila. Código Civil e cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009; WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001; NOVAIS, Fernando A. (org.). História da vida privada no Brasil (vol. I a IV). São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • 17
    Existe vasta bibliografia a respeito das insuficiências do liberalismo. Dentre elas, conferir: SANDEL, M. El liberalismo y los límites de la justicia. Barcelona: Gedisa, 2000.
  • 18
    O conceito de direitos homossexuais é pouco debatido na literatura acadêmica. Entretanto, o seu uso aqui é limitado para as questões que envolvem os sujeitos homossexuais. Não é a intenção desse artigo desenvolver com profundidade os sentidos possíveis para esse conceito.
  • 19
    O PNDH 2 foi revogado pelo PNDH 3. Para conferir seu conteúdo, acessar: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4229.htm
  • 20
    Atualmente, o STF tem cumprido papel significativo em dar fundamentação jurídica aos casos que envolvem gênero e sexualidade e muitas pesquisas acadêmicas voltaram seus olhares para esse papel institucional da Suprema Corte.
  • 21
    Há um amplo debate, principalmente no cenário europeu e dos Estados Unidos, sobre a adaptação das pautas libertárias do movimento LGBTQI+ aos modelos próprios do capitalismo liberal e do padrão heterossexual de vida. Para maiores debates, conferir os conceitos de “capitalismo rosa”, “pink money”, “negócio rosa”, “homonormativismo”, “homonacionalismo”, e os textos: LILY, Shangay. "Adiós, Chueca: memorias del gaycapitalismo: creando la marca gay". Ediciones Akal, Madrid: 2016; BORD, Brot. “Somewhere under the rainbow: mercantilización y asimilación de la disidencia sexual”. In: Transfeminismos: epistemes, fricciones y flujos. Txalaparta, Tafalla, 2013; VÉLEZ-PELLIGRINI, Laurentino. Minorías sexuales y sociología de la diferencia: gays, lesbianas y transexuales ante el debate identitario. Montesinos, Madrid: 2008; CLAVEL, Pau López. Tres debates sobre la homonormativización de las identidades gay y lesbiana. In: Asparkía, 26, 2015, p. 144; Guasch, Oscar. La sociedad rosa. Anagrama, Barcelona, 2006; DUGGAN, Lisa. The new Homonormativity: the sexual politics of neoliberalism. In: "Materializing Democracy". p. 175-194. Durham, NC: Duke University Press, 2002.
  • 22
    Entendo discurso, para fins do presente artigo, como um conjunto de práticas linguísticas que formam, sustentam e estimulam as relações sociais e as condições de inteligibilidade comunicacional. Podemos realizar uma análise interna dos discursos, preocupando-nos com aquilo que ele está dizendo, e também uma análise externa, perguntando-nos sobre as motivações e destinações do texto.
  • 23
    Segundo Possenti (1993), as condições gerais de uma enunciação não são suficientes para as explicações sobre as ideologias acobertadas pelos discursos, sendo importante e necessário que a análise seja acompanhada por uma explícita teoria crítica para além da linguística, como é o caso do apoio que encontramos em teorias sociológicas, filosóficas, políticas e outras.
  • 24
    Conforme Orlani (1999), há uma memória discursiva pela qual o sujeito busca, no modo de executar seu próprio discurso, as palavras de um outro, a continuidade a partir de um discurso já proferido e aceito como legítimo no seu campo de atuação.
  • 25
    Um dos casos mais exemplificativos dessa continuidade é o voto do Ministro Ayres Britto (BRASIL, 2011) que, ao desenvolver, de modo longo e profundo, os sentidos possíveis para a identidade homossexual, sedimenta no imaginário jurídico a sua vinculação com noções como afetividade e amor. Esse voto é repetido nas demais ações, constituindo-se como paradigmático para o entendimento da jurisprudência sobre o que seja o sujeito jurídico homossexual.
  • 26
    No caso aqui debatido, tanto pode produzir sentidos para o sujeito social e os vários tipos de “eu”, as identidades sociais e as posições que o sujeito assume, quanto pode contribuir para a produção de relações sociais e até para a produção de sistemas de conhecimento e de crença. Tal produção de sentidos é interessante para o debate, já que um dos mecanismos de preservação da hegemonia é sua capacidade de se perpetuar pelos mais variados mecanismos, principalmente pela cultura de uma sociedade.
  • 27
    Utilizando-me de consultas no banco de dados do STF com palavras-chave (homossexualidade, direitos homossexuais, homoafetividade, homoafetivo, homoerótico) e consultando a agenda de julgamento e contrastando com os debates públicos mais relevantes, cheguei a essas três ações aqui debatidas: ADO 26, ADPF 132 e ADPF 291. Outras ações tramitam no STF, mas ainda não foram julgadas e, por isso, não foram incluídas na análise.
  • 28
    Ao mesmo tempo que isso é uma perda de radicalidade do movimento LGBTQI+, já que a inteligibilidade do sistema somente reconhece os homossexuais como sujeitos de direitos por intermédio da higienização e do assimilacionismo comportamental, coisa que não se exige para os sujeitos heterossexuais, pois não são lidos pelo sistema como afetivos ou amorosos; são apenas sujeitos de direitos.
  • 29
    Para um debate a respeito do conceito de tolerância, pluralidade e multiculturalismo, dentro das discussões sobre políticas de reconhecimento e pluralismo, conferir: MONICA, Eder Fernandes. O desafio do multiculturalismo e a proposta de uma identidade constitucional. In: Cadernos UNDB, v. III, p. 25-46, 2010; MONICA, Eder Fernandes. Entre direitos fundamentais e democracia: superando a dicotomia no direito brasileiro. 1. ed. Niterói: EDUFF, 2016.
  • 30
    Para acesso direto aos argumentos da autora, conferir: FRASER, Nancy. Redistribuição, Reconhecimento e Participação: Por uma concepção Integrada de Justiça. In SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia. Igualdade, Diferença e direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010.
  • 31
    Importante destacar que os arranjos familiares homossexuais não são, na maioria das vezes, passíveis de serem igualados aos arranjos heterossexuais. Particularidades que não se coadunam com o sentido tradicional de relações afetivas acabam sendo deixadas de lado, em favor de uma certa minoria de arranjos afetivos entre pessoas do mesmo sexo, que são semelhantes aos arranjos tradicionais. Assim, percebemos que o mero reconhecimento da igualdade de direitos no reconhecimento das uniões estáveis, mesmo que importante e necessário, é insuficiente para lidar com a complexidade da questão.
  • 32
    Os neologismos união homoafetiva e homoafetividade foram cunhados por Maria Berenice Dias. Conferir: DIAS, M.B. União homossexual: o preconceito e a justiça. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
  • 33
    Para uma crítica das limitações do conceito de minorias, conferir: FARRELL, M. “El alcance (limitado) del multiculturalismo”. Universalismo y multiculturalismo. Comp. Bertomeu, M. J., Gaeta R., y Vidiella, G. Buenos Aires: Eudeba, 2000. 211-228.
  • 34
    Mais uma vez estamos diante da hegemonia liberal que, segundo seus próprios instrumentos e valores, concede alguma margem de liberdade de atuação para os grupos minoritários.
  • 35
    Como representantes dessas críticas, conferir: FAUSTO-STERLING, A. Myths of Gender: biological theories about women and men. New York: Basic Books,1992; FOX-KELLER, Evelyn. “Qual foi o impacto do feminismo na ciência?”. Cadernos Pagu, v. 27, p. 13-34, jul./dez. 2006.
  • 36
    Para os debates sobre a ênfase penalista e sobre a seletividade penal, conferir: BARATTA, A. “Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à Sociologia do Direito Penal”. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. ZAFFARONI, E. R. “O inimigo no Direito Penal”. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007; ALAGIA, A. “Fazer sofrer: imagens do homem e da sociedade no Direito Penal”. Rio de Janeiro, Revan, 2000; HULSMAN, L; CELIS, J. B. “Penas Perdidas: o sistema penal em questão”. Niterói: Luam, 1993; DÍEZ R., J. L. “El abuso del Sistema Penal”. In: Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología. N. 19, Granada, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2020
  • Aceito
    20 Abr 2020
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