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Inclusão da Interseccionalidade no âmbito dos Direitos Humanos

Resumo

O estudo aborda o conceito de interseccionalidade das opressões ou desigualdades interseccionais - cunhado em 1989, por Kimberlé Crenshaw - e seu potencial analítico para a concretização do acesso das mulheres aos Direitos Humanos. Por meio de revisão bibliográfica e documental, de aplicação do método hipotético-dedutivo, a pesquisa possui caráter descritivo e explicativo. Conclui-se que as discriminações de gênero interagem com outras categorias estruturais, como raça, produzindo processos de exclusão particulares que são barreiras no acesso a direitos, sendo a interseccionalidade uma ferramenta com grande potencial para melhor compreender esses processos e minimizá-los.

Palavras-chave:
Interseccionalidade; Feminismo Interseccional; Direitos Humanos

Abstract

The research is about the study of the concept of intersectionality of oppression or intersectional inequality - coined in 1989, by Kimberlé Crenshaw - and its analytical potential for the realization of women's access to Human Rights. Through bibliographical and documentary review, and the application of the hypothetical-deductive method, the research has a descriptive and explanatory character. It is concluded that gender discrimination interacts with other structural categories, such as race, producing particular exclusion processes that are barriers in accessing rights, with intersectionality being a tool with great potential to better understand these processes and minimize them.

Keywords:
Intersectionality; Intersectional Feminism; Human Rights

1. Introdução

A busca pela eficácia dos Direitos Humanos nasce na mesma ocasião em que se estipulam alguns direitos como sendo fundamentais e inalienáveis a todos os seres humanos. A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1949), em um cenário marcado pelas atrocidades cometidas durante as duas Grandes Guerras Mundiais, o discurso dos Direitos Humanos passa a ser incluído em grande parte dos ordenamentos jurídicos ocidentais. Junto com o aparecimento de tal discurso, emerge a busca por estratégias e ferramentas capazes de colocar em prática as garantias fundamentais que tais documentos pretendem assegurar.

A presente pesquisa surge, portanto, da necessidade constante de reflexão sobre as formas e estratégias para a efetivação dos Direitos Humanos, para isso perpassa algumas Convenções sobre Direitos Humanos dedicadas à proteção de grupos específicos como meninas e mulheres e pessoas negras. Desse modo, a investigação demonstra o potencial da categoria interseccionalidade, pois reconhece que existe na atualidade um complexo de estruturas de opressão (múltiplas e simultâneas) que precisam ser analisadas como um sistema de desempoderamento.

Isso posto, tem-se como problema de pesquisa identificar como o conceito da interseccionalidade pode contribuir ao debate sobre o acesso aos Direitos Humanos e de que modo isso tem se desenvolvido no cenário internacional. Assim, tem-se como objetivo principal demonstrar a relevância do conceito de interseccionalidade para a construção teórica e prática de mecanismos de superação de desigualdades partindo do reconhecimento da interseccionalidade das opressões (CRENSHAW, 1991CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, Vol. 43, No. 6, Jul., 1991. p. 1241-1299).

Quanto à natureza, trata-se de pesquisa pura, com abordagem do problema e avaliação de dados de maneira qualitativa. O método de abordagem utilizado foi o hipotético-dedutivo, conforme Marconi e Lakatos (2003MARCONI, Marina de Andrade. LAKATOS, Eva Maria. Metodologia Científica. São Paulo: Editora Atlas, 2003.). Os meios foram bibliográficos e documentais, com destaque para as obras de relevantes teóricos (as) e os textos da Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ICERD), bem como, as Recomendações que os respectivos Comitês produzem. A interpretação foi predominantemente teleológica. Quanto aos fins, a pesquisa apresentou-se de cunho descritivo e explicativo. Afinal, foi possível reconhecer que a interseccionalidade traz grandes contribuições para maior compreensão da complexidade do acesso igualitário das mulheres aos Direitos Humanos. Os resultados foram apresentados em forma de textos.

Em síntese, estimula-se uma reflexão sobre os sutis avanços identificáveis na inclusão da interseccionalidade no cenário internacional dos Direitos Humanos, para a efetivação de tais direitos. Tendo como marco teórico Kimberlé Crenshaw, Meghan Campbell, Michel Foucault e Joan Scott, almeja-se o avanço na compreensão das potencialidades da interseccionalidade na busca por tornar mais eficaz o acesso aos Direitos Humanos.

2. Raízes da Interseccionalidade: Gênero e Feminismos

A interseccionalidade pode ser compreendida como ferramenta analítica capaz de contribuir para a solução de problemas muitas vezes invisibilizados quando se trata do acesso aos Direitos Humanos: “A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação” (CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Revista Estudos Feministas. Ano 10 (1). Florianópolis, 2002. p.171-188, p. 177).

Esse conceito, surgido em 1989, quando a jurista estadunidense Kimberlé Crenshaw o nomeou e ainda é considerado historicamente recente no campo das pesquisas em ciências humanas e ciências sociais aplicadas. A produção inicial sobre interseccionalidade ocorreu principalmente nos Estados Unidos por meio de uma articulação entre conceitos como gênero, raça e classe. Isso não significa dizer, contudo, que no Brasil não ocorreram desde muito antes do surgimento do conceito da interseccionalidade debates e pesquisas que articulavam essas categorias.

Vale desde já destacar que gênero será aqui entendido como uma primeira forma de dar significado às relações de poder, tal qual conceituado pela historiadora estadunidense Joan Scott (1995), afinal, gênero permite revelar que não é coerente pensar nas diferenças entre homens e mulheres como algo atemporal e universal. Ou seja, o gênero promove inquietações cientificamente imprescindíveis sobre os modos como se interpretam as diferenças biológicas, pois são essas interpretações e construções sociais os elementos chaves para compreender as relações sociais entre homens e mulheres. Gênero é, portanto, como se percebem tais diferenças em uma dada sociedade, como se hierarquizam e se constroem como dicotômicas e binárias.

O conceito de Raça, por sua vez, não deve ser entendido como foi utilizado do século XVI ao XIX, para reproduzir ideias da colonialidade moderna que compreendiam a existência de uma hierarquia racial. Nesta pesquisa, assim como ocorre quando o conceito raça é utilizado nos Movimentos Negros e por alguns intelectuais das Ciências Sociais na atualidade, está se partindo de uma nova interpretação, tal qual apresentado por Nilma Lino Gomes (2005GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei federal nº 10.639/03. Brasília, MEC, Secretaria de educação continuada e alfabetização e diversidade, 2005. p. 39-62, p. 45), que se baseia na dimensão social e política do conceito de raça. A utilização do termo raça é uma escolha política adequada para o Brasil posto que a forma como se dá a discriminação racial no país, desenvolve-se não apenas a partir de elementos da identidade étnica de determinado grupo, mas, também em razão dos aspectos físicos possíveis de serem observados na estética corporal dos membros desse grupo (GOMES, 2005GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei federal nº 10.639/03. Brasília, MEC, Secretaria de educação continuada e alfabetização e diversidade, 2005. p. 39-62, p. 45). Ou seja, “raça ainda é o termo que consegue dar a dimensão mais próxima da verdadeira discriminação contra os negros, ou melhor, do que é o racismo que afeta as pessoas negras da nossa sociedade.” (GOMES, 2005, p. 45).

Interseccionalidade surge, portanto, da necessidade de construir uma ferramenta analítica adequada para as pesquisas que envolviam gênero e raça, bem como outras categorias que interagem e criam o que a Kimberlé Crenshaw denomina como rede de desempoderamento. Para melhor compreender a interseccionalidade faz-se imperativo entender o contexto no qual ela emergiu.

Para abordar a história da interseccionalidade é preciso iniciar antes mesmo do conceito ser nomeado por Kimberlé Crenshaw. Esse é o entendimento de Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (2016COLLINS, Patricia Hill. BILGE, Sirma Bilge. Intersectionality. Cambridge: Polity Press, 2016.), assim como de Anna Carastathis (2016CARASTATHIS, Anna. Intersectionality - Origins, Contestations, Horizons. Nebraska: University of Nebraska Press, 2016.), para quem a interseccionalidade deve ser entendida como representando uma síntese entre os movimentos sociais e o conhecimento acadêmico crítico. É comum, no entanto, que os estudos históricos sobre a interseccionalidade ignorem que tal conceito se originou nos Estados Unidos, a partir da luta dos Movimentos Sociais, em especial, daqueles que tinham como protagonistas mulheres negras1 1 Sobre isso ver: “Uma Análise Crítica sobre os Antecedentes da Interseccionalidade” de Gabriela M. Kyrillos (2020). .

Minimizar tal origem tende a diminuir o potencial transformador e crítico da própria interseccionalidade2 2 No livro intitulado ‘Intersectionality’ (2016) de autoria das sociólogas Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (ainda sem tradução para o português), as autoras demonstram como a ausência sobre os movimentos sociais nos históricos sobre interseccionalidade não é apenas uma falha na contextualização do conceito mas, sobretudo, um equívoco ao assumir que a interseccionalidade se resume a mais um campo acadêmico (COLLINS; BILGE, 2016, p. 64), ignorando que a interseccionalidade parte da sinergia entre a pesquisa crítica (critical inquiry) e a práxis crítica (critical praxis). Enquanto o primeiro diz respeito ao desenvolvimento da interseccionalidade na academia, como ferramenta analítica para a construção de pesquisas e análises críticas; o segundo refere-se à forma como as pessoas, seja individualmente, seja enquanto coletivos, produzem e usam a estrutura da interseccionalidade no seu dia-a-dia (COLLINS; BILGE, 2016, p. 32). Um exemplo válido de como as discussões que articulam raça e gênero são muito anteriores ao surgimento do conceito da interseccionalidade e se desenvolveu fora do campo acadêmico é o discurso de Sojourner Truth ‘Não sou uma mulher?’. . Mesmo no campo acadêmico, é preciso destacar que discussões que articulavam gênero e raça foram predecessoras fundamentais para a construção do próprio conceito de interseccionalidade, tal qual enfatizado anteriormente quando se destacou a produção de pesquisadoras feministas negras brasileiras, como é possível identificar, por exemplo, nos textos de Sueli Carneiro (1995CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. Estudos Avançados. v. 17, nº 49, 1995, p. 117-132.; 2003) e de Lélia Gonzalez (1984).

O termo amplo ‘movimento feminista’ abriga vasta gama de interpretações, correntes, teorias e ações práticas distintas, todas possuindo como objetivo comum a melhoria da qualidade de vida das mulheres e a redução das desigualdades. Os caminhos para alcançar tal objetivo, como se sabe, são múltiplos e muitos deles utilizam o conceito de gênero enquanto elemento chave para pensar as diferenças socioculturais entre homens e mulheres. Tal conceito é derivado dos debates teóricos de meados do século XX, importante por ter sido capaz de, ao mesmo tempo em que revelou as assimetrias e hierarquias nas relações entre mulheres e homens, tornou visível que não é possível compreender a amplitude dos diferentes papéis atribuídos aos homens e às mulheres sem um estudo que seja relacional (PEDRO, 2005, p. 88-89).

Gênero, por conseguinte, irá se constituir como conceito altamente relevante na academia e no movimento feminista. Quando Joan Scott publica no fim da década de 1980 um texto que se tornou basilar para a popularização do conceito, ela se dedica a traçar uma distinção entre o sexo (aquilo que é o biológico) e o gênero (aquilo que é construído por relações socioculturais). A proposta de Scott diferenciou-se dos usos anteriores por dar grande relevância às relações sociais e se baseia na compreensão de que as diferenças percebidas entre homens e mulheres se constroem dentro de relações de poder (PEDRO, 2005, p. 86).

Dessa maneira, Scott irá destacar outra forma de compreender o gênero a partir do momento em que apresenta o poder de modo difuso. De acordo com a autora, faz-se necessário substituir a ideia de poder social como algo “[...] unificado, coerente e centralizado por alguma coisa que esteja próxima do conceito foucaultiano de poder, entendido como constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelo discurso nos ‘campos de forças’.” (SCOTT, 1995, p.78). Na busca por definir o conceito, Scott elucida que: “[...] o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder.” (SCOTT, 1995, p. 81)

Portanto, o que se produz como interpretação sobre o sexo ou o gênero, em outras palavras, as distinções tidas como verdadeiras entre homens e mulheres são frutos de relações de saber e poder. Nesse sentido, Michel Foucault é um dos mais relevantes autores que articulou saber, poder e corpo, em especial nos três volumes da série História da Sexualidade (2014a; 2014b; 2014c). O filósofo e teórico social francês, tornou-se conhecido por sua compreensão fragmentada e difusa de poder. Para, além disso, tornou o corpo o local privilegiado das relações de poder e saber - razão pela qual é uma referência importante para Joan Scott e outras (os) estudiosas (os) de gênero.

O entendimento de Michel Foucault (2014aFOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I - A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2014a.) a respeito do corpo e da sexualidade compreende que o poder não está associado exclusivamente ou prioritariamente com as fontes clássicas de poder como o Estado-nação ou o Direito. Poder é compreendido como algo difuso, múltiplo e complexo. Por essa razão, Foucault irá propor uma nova forma de análise das relações de poder, de modo histórico e sem apego às clássicas fontes do poder que por muito tempo foi o ponto de partida para esses estudos. Perceber como o autor trata essa temática é reconhecer que todo poder que se exerce por diferentes e difusos instrumentos e mecanismos tem um corpo, razão pela qual, a história dos corpos que ele produz, busca revelar como o corpo se torna percebido e valorizado na história (CIRINO, 2007CIRINO, Oscar. Os desejos, os corpos e os prazeres em Michel Foucault. Mental. Ano V, nº 8. Barcelona, 2007. p. 77-89, p. 79).

Na medida em que o poder se exerce sobre o corpo, distintos aspectos que formam essa corporalidade tornam-se relevantes. O gênero e a raça são alguns desses elementos que fazem com que as experiências não sejam idênticas em uma sociedade na qual o poder é difuso. Nesse sentido, as obras de Michel Foucault são de grande relevância para os estudos de gênero por destacar o caráter difuso do poder que se exerce sobre os corpos e sobre as sexualidades.

As teorizações de Foucault, em particular da sua coleção sobre história da sexualidade, ocorrem em momento no qual há uma diversidade de trabalhos, em distintas áreas do conhecimento, que buscam a dissolução da concepção de sujeito universal, priorizam a questão da linguagem e do discurso como práticas que interagem e são centrais para a compreensão da sociedade, especialmente ao perceberem a produção do saber como um ato de poder (PISCITELLI, 2008, p. 264).

Desse modo, os estudos da década de 1980 produzem sérios debates sobre igualdade e diferenças e questionam fortemente a distinção clássica entre gênero e sexo, enquanto categorias de ordem distintas - uma da cultura e a outra da natureza - ao ponto de serem estanques e admitirem a existência de apenas dois gêneros possíveis e opostos: o feminino e o masculino. Essa forma de compreender os gêneros complexifica largamente as discussões sobre as diferenças postas sobre os corpos sexualizados.

Inicialmente, coloca em xeque a própria distinção entre sexo e gênero, na medida em que a maneira como os seres humanos definem e separam o que é biológico e o que é cultural (ou, a distinção entre cultura e natureza) também é um processo que se constrói com base em relações sociais de poder. Assim, “[...] a ‘diferença sexual’ foi estabelecida não somente como um fato natural, mas também como uma base ontológica para diferenciação política e social.” (SCOTT, 2005, p. 21).

Quando os movimentos feministas começaram a utilizar o termo ‘mulher’ foi em uma tentativa de construir categoria que servisse de oposição a de homem, que se apresentava como universal, neutra e inclusiva (PEDRO, 2005). Era, em alguma medida, um modo de demonstrar que a categoria “homem” não era capaz de incluir toda a humanidade. Contudo, em seguida, foi possível perceber que a própria categoria mulher também parecia pretender uma universalidade que não era coerente com a vida cotidiana das diversas mulheres que buscavam no feminismo um movimento que representasse suas demandas e reivindicações. Mulheres lésbicas não se sentiam representadas dentro de um feminismo heteronormativo. Mulheres negras não se sentiam incluídas quando as bandeiras e as lutas promovidas pelo movimento eram quase que totalmente questões relevantes para as mulheres brancas, apenas. Mais do que isso, inúmeras vezes o próprio movimento feminista acabava sendo espaço de perpetuação da heteronormatividade e do racismo3 3 Sobre isso, ver Angela Davis (2016) e sua abordagem sobre as disputas em torno do direito das mulheres ao voto nos Estados Unidos. .

Desse modo, é possível perceber a justificativa e a importância da existência dos diversos feminismos que buscam dar conta da diversidade existente dentre as mulheres, bem como, a própria categoria mulher passa a ser gradativamente substituída pela categoria mulheres, ou ao menos, compreendida como categoria que abarca ampla gama de diversidade. Como bem sintetiza a indiana, feminista e militante do movimento antirracista Avtar Brah:

Nosso gênero é constituído e representado de maneira diferente segundo nossa localização dentro de relações globais de poder. Nossa inserção nessas relações globais de poder se realiza através de uma miríade de processos econômicos, políticos e ideológicos. Dentro dessas estruturas de relações sociais não existimos simplesmente como mulheres, mas como categorias diferenciadas, tais como “mulheres da classe trabalhadora”, “mulheres camponesas” ou “mulheres imigrantes”. Cada descrição está referida a uma condição social específica. Vidas reais são forjadas a partir de articulações complexas dessas dimensões. É agora axiomático na teoria e prática feministas que “mulher” não é uma categoria unitária. (BRAH, 2006BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu. n. 26, janeiro-junho de 2006. p. 329-376., p.341)

O conceito de interseccionalidade, portanto, pode ser um meio importante para análises não essencialistas das diferenças e das desigualdades sociais. Dessa forma, na seção seguinte, serão abordadas as características centrais do conceito para posteriormente considerar sua aproximação com o campo internacional dos Direitos Humanos.

3. Elementos Centrais para compreender a Interseccionalidade

No primeiro texto em que utiliza o termo interseccionalidade, Kimberlé Crenshaw (1989CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. The University of Chicago Legal Forum. n. 140 p.139-167, 1989.) buscou examinar a tendência de tratar raça e gênero enquanto categorias de análises e de experiências concretas mutuamente excludentes. Observou como essa tendência perpetua-se devido à forma de eixo-único que domina a produção das leis contra a discriminação racial e as teorias feministas e antirracistas. A autora sugere que esse modo de eixo-único invisibiliza as mulheres negras na conceitualização, identificação e na remediação quanto à discriminação de raça e gênero, sendo limitadas pelas experiências dos outros membros do grupo, mais privilegiados - no caso do movimento antirracista os privilegiados são os homens negros, e no caso da discriminação de gênero as privilegiadas são as mulheres brancas. Esse cenário cria, portanto, análises e estratégias distorcidas sobre racismo e discriminação de gênero (CRENSHAW, 1989CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. The University of Chicago Legal Forum. n. 140 p.139-167, 1989., p. 140). Tal distorção ocorre porque “[...] as concepções operativas de raça e sexo se tornam ancoradas em experiências que, na realidade, representam apenas um subconjunto de um fenômeno muito mais complexo” (CRENSHAW, 1989, p. 140).

É importante compreender que, de acordo com Crenshaw (1989CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. The University of Chicago Legal Forum. n. 140 p.139-167, 1989., p. 140), para resolver o problema da invisibilidade da mulher negra quanto aos processos de exclusão e marginalização não basta incluí-las em uma já estabelecida estrutura de análise. Isso ocorre porque a experiência interseccional é maior do que o racismo e o sexismo, consequentemente, uma análise que não tome em consideração a interseccionalidade não será suficientemente capaz de lidar com a situação particular de subordinação que é imposta às mulheres negras.

Dessa maneira, o conceito de interseccionalidade sofreu influência dos debates que vinham ocorrendo dentro do feminismo, enquanto movimento social, especialmente no âmbito dos feminismos negros. Isso se deu em razão dos questionamentos que os feminismos negros fazem sobre os propósitos de um movimento majoritariamente centrado em questões que afetavam mulheres brancas, heterossexuais e de classe média, momento no qual se proliferam as reinvindicações por um feminismo capaz de atender também as demandas de mulheres negras, homossexuais, transexuais, pobres, migrantes, entre outras.

Parte dos debates teóricos que ocorreram a partir da década de 1980, que contribuíram para reduzir a rigidez da distinção entre sexo e gênero, como já abordado anteriormente, também foram influenciados por essas reinvindicações no campo social. Contudo, como muito bem sintetiza Adriana Piscitelli (2008, p. 265):

[...] as reelaborações teóricas não incorporaram as exigências de prestar atenção a outras diferenças, para além da sexual, de maneira homogênea.”; ou seja, as análises acadêmicas acerca das desigualdades de gênero continuam sem incorporar outras categorias de opressão relevantes.

Por essa razão, o surgimento do conceito de interseccionalidade vem suprir uma lacuna analítica sobre as relações de opressão que surgem para além das relações de gênero e que com ela interage de forma indissociável. Nas palavras de Carla Akotirene (2018AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento, 2018., p. 13) “Tal conceito é uma sensibilidade analítica, pensada por feministas negras, cuja experiência e reivindicações intelectuais eram inobservadas tanto pelo feminismo branco quanto pelo movimento antirracista, a rigor, focado nos homens negros”.

Em função disso, interseccionalidade pode ser definida como uma ferramenta analítica, capaz de contribuir para a solução de problemas muitas vezes invisibilizados. Conforme Kimberlé Crenshaw (2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Revista Estudos Feministas. Ano 10 (1). Florianópolis, 2002. p.171-188, p.177): “A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação”, algo que a autora faz muito bem em sua análise acerca da violência contra as mulheres negras no texto intitulado: ‘Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color’ (1991). Nessa obra, a autora traça distinções conceituais fundamentais, além de relacionar sua teoria com situações concretas nas quais as mulheres negras estão mais propensas às violências, aos estupros, às desigualdades, e, principalmente, como essas experiências possuem características e consequências específicas.

Kimberlé Crenshaw apresenta o conceito de interseccionalidade estrutural (1991CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, Vol. 43, No. 6, Jul., 1991. p. 1241-1299; 2002), utilizando dois eixos de violência contra as mulheres: a agressão física (battering) e o estupro. Quanto à agressão física, Crenshaw apresenta dados que obteve de um estudo no qual visitou alguns abrigos para mulheres agredidas de Los Angeles, destinado majoritariamente às mulheres negras e outro às mulheres asiáticas. Uma conclusão relevante de seu estudo é que, na maior parte dos casos, a violência física é a manifestação mais imediata que leva as mulheres aos abrigos, mas é, também, apenas uma parte de múltiplas experiências de subordinação às quais essas mulheres estão expostas, de modo que, grande parte delas, estão desempregadas ou em subempregos e são pobres (CRENSHAW, 1991CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, Vol. 43, No. 6, Jul., 1991. p. 1241-1299, p. 1245).

A autora aborda a forma como essa estrutura de discriminação contribui para que as mulheres negras se encontrem em uma situação particular de vulnerabilidade, na medida em que elas são as principais responsáveis pela criação das crianças, estão sobrecarregadas pela pobreza e lhes faltam certas habilidades de trabalho que são socialmente valorizadas. Esses encargos são resultados de combinação das estruturas de discriminação de gênero e de discriminação racial, de modo que o desproporcionalmente alto desemprego ao qual estão sujeitas pessoas negras faz com que essas mulheres tenham menores chances de conseguirem abrigar-se na casa de amigas(os) ou familiares quando são vítimas de violência doméstica (CRENSHAW, 1991CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, Vol. 43, No. 6, Jul., 1991. p. 1241-1299, p.1246). Desse modo, Crenshaw (1991CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, Vol. 43, No. 6, Jul., 1991. p. 1241-1299, p. 1246) destaca que o sistema de raça, gênero e classe convergem para as experiências que vivem as mulheres agredidas em seus lares e, consequentemente, estratégias de intervenção que se baseiam apenas nas experiências das mulheres que não compartilham de contextos socioculturais semelhantes - não possuem os mesmos backgrounds - de classe e raça, são limitadas na busca por ajudar mulheres que enfrentam obstáculos diferentes.

Para demonstrar isso, ela utiliza o exemplo da lei de imigração que definiu que para obter a cidadania estadunidense é necessário, não apenas, casar-se com um (a) cidadão ou cidadã, mas, também, que as pessoas permaneçam casadas por pelo menos dois anos. Diante de tal regra, muitas mulheres migrantes suportavam diversas formas de violência doméstica e agressões física, com medo de serem deportadas. Para coibir esse tipo de violência, a lei foi alterada e passou a permitir exceção à regra dos dois anos, caso se possa apresentar alguns documentos tais como boletim de ocorrência ou laudos médicos que atestem a violência sofrida pela mulher. Contudo, o que o legislador não percebeu é que para muitas dessas mulheres há dificuldades culturais e linguísticas que tornam extremamente difícil conseguir a documentação solicitada:

Tina Shum, uma conselheira familiar em uma agência de serviço social, aponta que "esta lei soa tão fácil de aplicar, mas existem complicações culturais na comunidade asiática que fazem com que até mesmo esses requerimentos sejam difíceis... Simplesmente encontrar a coragem e a oportunidade para nos ligar é uma realização para muitas." A esposa imigrante típica, ela sugere, talvez viva "em uma família estendida onde várias gerações vivem juntas, talvez sem nenhuma privacidade para usar o telefone, nenhuma oportunidade de sair da casa e nenhum conhecimento sobre telefones públicos." Como consequência, muitas mulheres imigrantes são completamente dependentes de seus maridos para adquirir informações concernentes ao seu status legal. Muitas mulheres que agora já são residentes permanentes continuam a sofrer abusos de seus maridos sob ameaça de deportação. Mesmo que as ameaças sejam infundadas, mulheres que não tem acesso independente a informações continuarão a se sentir intimidas por tais ameaças. [...] Barreiras linguísticas apresentam outro problema estrutural que frequentemente limita as oportunidades que mulheres não falantes de inglês têm para tirar vantagem dos serviços de apoio existentes. Tais barreiras não apenas limitam o acesso a informações a respeito de abrigos, mas também limitam o acesso a segurança que os abrigos oferecem. Alguns abrigos rejeitam mulheres não falantes de inglês por falta de pessoal bilíngue e de recursos. (CRENSHAW, 1991CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, Vol. 43, No. 6, Jul., 1991. p. 1241-1299, p.1248-1249)

Desse modo e partindo de situações reais, Crenshaw busca demostrar como os padrões de subordinação interagem nas experiências sobre a violência doméstica, de maneira que a subordinação interseccional não precisa ser intencionalmente produzida - comumente, ocorre de forma não intencional. De fato, costuma ser consequência de um fardo ou obrigação que interage com outras formas de subordinação pré-existentes (CRENSHAW, 1991CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, Vol. 43, No. 6, Jul., 1991. p. 1241-1299, p. 1249). No caso citado, o fardo é a obrigação legal de estar casada por dois anos (ou a possibilidade de não ficar casada em caso de violência doméstica, mas com a necessária comprovação do ocorrido) e a situação de subordinação já existente é o fato de se tratarem de mulheres migrantes, não-falantes da língua do país, muitas vezes pobres e negras. A união desses dois elementos (o fardo imposto estruturalmente e o local prévio de exclusão) torna as experiências dessas mulheres vítimas de violência doméstica completamente distintas daquelas mulheres vítimas de violência doméstica que são cidadãs no Estado onde estão, dominam o idioma e, portanto, acessam as informações sobre seus direitos e possuem algum recurso financeiro, bem como uma rede de amizades e/ou familiares vivendo no país.

O fato de que mulheres que fazem parte de minorias sofram dos efeitos de subordinações múltiplas, combinados com expectativas institucionais baseadas em contextos não-interseccionais inapropriados, modela e em última instância limita as oportunidades para intervenções significativas em prol delas. Reconhecer o fracasso ao considerar dinâmicas interseccionais pode favorecer muito a explicação dos altos níveis de falha, frustração e exaustão vivenciados por conselheiras que tentam atender às necessidades de mulheres que fazem parte de minorias. (CRENSHAW, 1991CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, Vol. 43, No. 6, Jul., 1991. p. 1241-1299, p. 1249)

Essas pesquisas de Crenshaw tornam evidente a importância da compreensão de que a subordinação interseccional é notoriamente um processo particular e complexo que resulta em barreiras abusivas no acesso aos direitos humanos. É possível compreender que, em grande parte, as políticas públicas para as mulheres fracassam em alcançar aquelas que não são brancas, nacionais ou classe média - tal como mulheres negras, latinas ou imigrantes - posto que existem diferenças qualitativas nas experiências dessas mulheres que não são percebidas no momento de elaboração e de execução das políticas públicas que buscam garantir a elas o acesso a direitos.

Uma mulher negra pertence a, de acordo com Crenshaw (1991CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, Vol. 43, No. 6, Jul., 1991. p. 1241-1299, p. 1252), pelo menos, dois grupos que são subordinados na sociedade e que, além disso, possuem muitas vezes agendas conflitantes. A autora destaca que a agenda do movimento antirracista é pautada em virtude das experiências e demandas dos homens negros, enquanto a agenda do movimento feminista é pautada pelas demandas e experiências das mulheres brancas. Em função disso, ambos os movimentos não apenas fracassam em incluir as questões que dizem respeito às mulheres negras, como também fracassam ao não perceber que muitas vezes o racismo que uma mulher negra sofre não é idêntico ao racismo que um homem negro sofre, bem como, que o sexismo que afeta mulheres negras em diversos momentos não é uma experiência equivalente ao sexismo que agride as mulheres brancas. Ou seja, as lutas antirracistas e o movimento feminista são limitados mesmo considerando seus próprios termos e objetivos, de modo que:

O fracasso do feminismo em confrontar-se com a questão da raça significa que as estratégias de resistência do feminismo frequentemente reproduzem e reforçam a subordinação das pessoas de cor4 4 O termo "pessoas de cor" possui uma conotação antirracista em inglês, por contraposição ao termo "colored". Isso faz parte de uma tendência mais geral dos movimentos sociais em países anglófonos de empregar algo que costuma ser chamado de "people-first language" (da mesma forma, prefere-se "pessoa com deficiência" a "deficiente" por exemplo). É importante destacar este ponto, pois a expressão "pessoas de cor" pode parecer racista a leitores e leitoras lusófonos. , e o fracasso do antirracismo em interpelar o patriarcado significa que o antirracismo frequentemente reproduzirá a subordinação das mulheres. Essas elisões mútuas apresentam um dilema político particularmente difícil para mulheres de cor. Adotar qualquer uma das duas análises constitui-se em uma negação de uma dimensão fundamental de nossa subordinação5 5 "Nossa subordinação" refere-se à subordinação das mulheres negras. Esta é uma das muitas ocasiões em que Crenshaw desafia a norma formal que aconselha o não-uso da primeira pessoa. Essa não é uma mera idiossincrasia do texto, mas uma escolha deliberada, haja vista a importância da questão do lugar de fala quando se discutem questões relativas à interseccionalidade das opressões. e impede o desenvolvimento de um discurso político que empodere mais plenamente as mulheres de cor. (CRENSHAW, 1991CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, Vol. 43, No. 6, Jul., 1991. p. 1241-1299, p. 1252)

É possível, a partir dessas considerações, compreender dois conceitos que Crenshaw utiliza para destacar como as questões que afetam mulheres negras podem ser totalmente invisibilizadas ou estar pouco representadas quando se trata das lutas dos movimentos sociais antirracista e feminista, assim como, no campo da produção do conhecimento sobre gênero e raça. Trata-se dos conceitos de superinclusão e subinclusão, que significam observar que “nas abordagens subinclusivas da discriminação, a diferença torna invisível um conjunto de problemas; enquanto que, em abordagens superinclusivas, a própria diferença é invisível” (CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Revista Estudos Feministas. Ano 10 (1). Florianópolis, 2002. p.171-188, p. 176).

Quando se aborda a superinclusão, lida-se com um problema ou condição que é desproporcionalmente imposta de modo particular e específico a um subgrupo de mulheres e, no momento de abordar essa questão, ele é tratado apenas como um problema de mulheres.

A superinclusão ocorre na medida em que os aspectos que o tornam um problema interseccional são absorvidos pela estrutura de gênero, sem qualquer tentativa de reconhecer o papel do racismo ou alguma outra forma de discriminação possa ter exercido em tal circunstância. (CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Revista Estudos Feministas. Ano 10 (1). Florianópolis, 2002. p.171-188, p. 174).

Em outras palavras, significa invisibilizar um problema que afeta especificamente um subgrupo de mulheres supondo que a questão será abordada ao pensar na totalidade das mulheres o que acaba gerando um processo de abandono daquele subgrupo em detrimento de um discurso dominado majoritariamente por mulheres em condições de poder no grupo (por exemplo: mulheres brancas, heterossexuais, não-pobres, dentre outras). Crenshaw (2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Revista Estudos Feministas. Ano 10 (1). Florianópolis, 2002. p.171-188, p. 175) utiliza como exemplo o discurso em torno do tráfico de mulheres e como é comumente ignorada a marginalização racial e social que se relacionam diretamente com a maior probabilidade de que certas mulheres sejam traficadas e outras não.

De forma paralela e igualmente prejudicial, as abordagens subinclusivas ignoram quando um subgrupo de mulheres enfrenta determinados problemas dentre várias razões, também pelo fato de que são mulheres. Contudo, isso não é tido como um problema de gênero, simplesmente porque isso não afeta outras mulheres que pertencem especialmente aos grupos dominantes. O mesmo tende a ocorrer quando um problema é direcionado às mulheres negras e, na medida em que não afeta diretamente os homens negros, isso não é visto como um problema do movimento antirracista, não é entendido como uma questão de discriminação étnico-racial, supondo tratar-se, exclusivamente, de um problema de gênero.

Assim sendo, é importante considerar que esses dois problemas recorrentes nas análises e elaborações de políticas para acesso a direitos podem ser minimizados com a adequada utilização da perspectiva interseccional. Na medida em que essas são questões já postas no campo feminista há quase duas décadas, compreende-se melhor a afirmação da socióloga estadunidense Leslie McCall de que as/os feministas talvez sejam as únicas pessoas que abraçaram o desafio de lidar com a interseccionalidade, ou seja, “as relações entre múltiplas dimensões e modalidades de relações sociais e formações de sujeitos” (McCALL, 2005McCALL, Leslie. The Complecity of Intersecconality. Journal of Women in Culture and Society. Vol. 30 nº. 3, 2005. p. 1771-1800., p. 1771).

McCall (2005) acredita ser a interseccionalidade a maior contribuição teórica feita pelos estudos de gênero e áreas afins, até o momento. Em grande medida, essa constatação decorre do fato de que a maior parte dos esforços por compreender, instrumentalizar e melhor aplicar o conceito tem ocorrido no campo teórico dos estudos de gênero. O potencial transformador dessa categoria de análise ainda está sendo descoberto, mas, sem dúvida, já demonstra que para lidar com as questões que afetam as mulheres negras e/ou as mulheres indígenas, não basta incluí-las no discurso sem que se faça uma revisão das próprias categorias de análises e metodologias. A importância disso não se limita à produção de conhecimento em si mesma, mas, também, reflete-se na busca por efetivar o acesso aos direitos humanos:

A garantia de que todas as mulheres sejam beneficiadas pela ampliação da proteção dos direitos humanos baseados no gênero exige que se dê atenção às várias formas pelas quais o gênero intersecta-se com uma gama de outras identidades e ao modo pelo qual essas intersecções contribuem para a vulnerabilidade particular de diferentes grupos de mulheres. Como as experiências específicas de mulheres de grupos étnicos ou raciais definidos são muitas vezes obscurecidas dentro de categorias mais amplas de raça e gênero, a extensão total da sua vulnerabilidade interseccional ainda permanece desconhecida e precisa, em última análise, ser construída a partir do zero. (CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Revista Estudos Feministas. Ano 10 (1). Florianópolis, 2002. p.171-188, p.174)

A proposta de Crenshaw, em seu texto, é justamente ajudar a compreender como as experiências particulares das mulheres não-brancas são invisibilizadas nos discursos sobre direitos, “Onde os contornos específicos da discriminação de gênero não são bem compreendidos, as intervenções para tratar de abusos aos direitos humanos das mulheres serão provavelmente menos efetivas.” (CRENSAHW, 2002, p. 174). Por essa razão, analisa-se na seção seguinte de que modo a interseccionalidade tem sido inserida no âmbito internacional dos Direitos Humanos, utilizando como exemplares os textos e os Comitês de duas Convenções Internacionais dedicadas à proteção das mulheres e das pessoas negras.

4. A inclusão da Interseccionalidade no âmbito Internacionais dos Direitos Humanos

Um dos textos de Kimberlé Crenshaw mais popularizados no Brasil foi aquele destinado à Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, que ocorreu em Durban, África do Sul, em 2001. Sua popularização no país, em grande medida, ocorreu por ter sido traduzido para o português em 2002 pelo importante periódico da Revista Estudos Feministas. Além disso, esse ainda é um dos poucos materiais de Crenshaw com tradução para o português. Esse texto de Crenshaw é também um marco no que diz respeito à inclusão da interseccionalidade no âmbito internacional dos Direitos Humanos.

Como muito bem identificaram Collins e Bilge (2016COLLINS, Patricia Hill. BILGE, Sirma Bilge. Intersectionality. Cambridge: Polity Press, 2016.) a partir do convite do Comitê de preparação para a Conferência a Crenshaw e a apresentação de seu position paper, as referências ao conceito da interseccionalidade (mesmo que com outras nomenclaturas) tornou-se cada vez mais comum no âmbito internacional dos Direitos Humanos. Em sentido semelhante, Maylei Blackwell e Nadine Naber (2002BLACKWELL, Maylei. NABER, Nadine. Interseccionalidade em uma era de globalização: as implicações da Conferência Mundial contra o Racismo para práticas feministas transnacionais. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, jan 2002. p. 189-198) destacam como a interseccionalidade influenciou a referida Conferência e como a compreensão da existência de “intolerâncias correlatas” passou a integrar as análises sobre os processos discriminatórios que experienciam as diversas mulheres no mundo.

Nesse sentido, a compreensão de Carla Akotirene em diálogo com a definição apresentada por Crenshaw reforça que “a interseccionalidade é, antes de tudo, lente analítica sobre interação estrutural em seus efeitos políticos e legais.” (AKOTIRENE, 2018AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento, 2018., p. 58). Portanto, a aproximação do conceito com o campo dos Direitos Humanos tem se expandido em distintos espaços.

Aqui optou-se por analisar, em particular, as questões de gênero e para isso, vale iniciar com a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher - CEDAW (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1979). Ela tem como principal objetivo sistematizar os direitos humanos destinados às mulheres - rompendo com a visão pretensamente universalista dos direitos do homem, que, ao acenar com a falsa promessa de que o termo era neutro com relação a sexo e gênero, expurgava a possibilidade de se discutir sobre os direitos das mulheres. A Convenção foi promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979 e ratificada pelo Brasil em 1984.

A partir disso, há o compromisso do Brasil de realizar relatórios acerca da implementação das diretrizes da Convenção no país, assim como a respeito dos avanços e retrocessos no acesso das mulheres aos Direitos Humanos. O Comitê da CEDAW analisa, então, os relatórios e produz sugestões diretamente ao país, bem como, recomendações gerais para todos os Estados signatários. A perspectiva de gênero incorporada ao discurso dos Direitos Humanos, que se fortaleceu com o surgimento da CEDAW, está relacionada com o período recente da história dos direitos humanos.

Ao longo da última década, em consequência do ativismo das mulheres, tanto em várias conferências mundiais como no campo das organizações de direitos humanos, desenvolveu-se um consenso de que os direitos humanos das mulheres não deveriam ser limitados apenas às situações nas quais seus problemas, suas dificuldades e vulnerabilidades se assemelhassem aos sofridos pelos homens. A ampliação dos direitos humanos das mulheres nunca esteve tão evidente como nas determinações referentes à incorporação da perspectiva de gênero (gender mainstreaming) das conferências mundiais de Viena e de Beijing. [...] Assim, enquanto no passado a diferença entre mulheres e homens serviu como justificativa para marginalizar os direitos das mulheres e, de forma mais geral, para justificar a desigualdade de gênero, atualmente a diferença das mulheres indica a responsabilidade que qualquer instituição de direitos humanos tem de incorporar uma análise de gênero em suas práticas. (CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Revista Estudos Feministas. Ano 10 (1). Florianópolis, 2002. p.171-188, p. 172).

Partindo dessa perspectiva, gênero torna-se um elemento que deve ser transversalmente incluído nos tratados e convenções sobre Direitos Humanos. Um bom exemplo de como isso tem se dado é a inclusão da discussão de gênero feita pelo Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD) em sua Recomendação nº. 25, na qual passa a reconhecer a incorporação da análise de gênero em seu campo de ação (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2000).

A Recomendação nº. 25, que aborda as questões de gênero relacionadas à discriminação étnico-racial, destaca desde o princípio que o CERD reconhece que a discriminação racial não afeta mulheres e homens em igual escala nem do mesmo modo. A Recomendação traz grande contribuição quando reconhece que há circunstâncias em que a discriminação racial afeta apenas ou, sobretudo as mulheres ou as atinge de forma diferenciada, ou ainda, com um grau diferente de impacto em suas vidas. Ao tomar essas questões em consideração, o CERD reconhece que, muitas vezes, tais processos discriminatórios escapam à detecção ao não haver um reconhecimento explícito das diferentes experiências de vida de homens e mulheres, tanto na esfera pública quanto privada (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2000).

Ao abordar a interseccionalidade das violações de direitos sofridas pelas mulheres, o CERD apresentou uma estratégia para incluir as questões de gênero nas análises sobre o combate à discriminação racial, destacando quatro eixos a partir dos quais as questões de gênero serão incorporadas nas análises: (a) formas e manifestações da discriminação racial; (b) as circunstâncias nas quais ocorre a discriminação racial; (c) as consequências da discriminação racial, e; (d) a disponibilidade e a acessibilidade aos recursos e mecanismos de reclamação e denúncia da discriminação racial. Além disso, o Comitê expressou seu interesse de que os relatórios dos países signatários da ICERD (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1965) busquem evitar a comum lacuna sobre a discriminação racial sofrida pelas mulheres, convidando-os a descrever os fatores quantitativos e qualitativos que afetam e dificultam a garantia e o gozo dos direitos das mulheres de viverem livres da discriminação racial (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2000).

Em nível doméstico, poucos países cumpriram a tarefa de garantir que os danos interseccionais pudessem ser efetivamente remediados. Apesar disso, relevantes tratados sobre a discriminação exigem que os países signatários proponham uma legislação nacional que aborde tanto a discriminação racial quanto a de gênero. Se os mecanismos nacionais não são capazes de tratar desses problemas interseccionais, as mulheres marginalizadas não podem receber toda a proteção a que teriam direito. Portanto, países que não fornecem soluções para a discriminação interseccional não cumprem totalmente suas obrigações. A fim de preencher essa lacuna, é essencial não apenas que o gênero seja incorporado aos relatórios e revisões dos países por meio da CERD, mas também que a raça seja similarmente incorporada ao funcionamento de todas as instituições e órgãos da ONU, incluindo a CEDAW, a DAW e a Comissão sobre a Condição da Mulher (Commission on the Status of Women/CSW). (CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Revista Estudos Feministas. Ano 10 (1). Florianópolis, 2002. p.171-188, p.186)

Nesse sentido, Kimberlé Crenshaw (2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Revista Estudos Feministas. Ano 10 (1). Florianópolis, 2002. p.171-188) já demonstrava desde o início dos anos 2000, tal qual posto no início dessa seção, a importância da incorporação do elemento étnico-racial nas discussões em torno dos Direitos Humanos das mulheres, tanto no campo do direito internacional quanto na produção legislativa e jurisprudencial dos países signatários das CEDAW, bem como das demais convenções internacionais de direitos humanos.

A CEDAW, por sua vez, possui em sua origem uma proposta fundamental de não discriminação com base nas diferenças entre os sexos e é possível identificar a partir da Recomendação nº. 28 a incorporação da preocupação com a discriminação com base nas diferenças de gênero (CAMPBELL, 2015CAMPBELL, Meghan. CEDAW and Women’s Intersecting Identities: a Pioneering New Approach to Intersectional Discrimination. Revista Direito GV. n. 11 [2], jul-dez, 2015. p. 479-504, p. 486). Através do estudo desenvolvido por Meghan Campbell (2015CAMPBELL, Meghan. CEDAW and Women’s Intersecting Identities: a Pioneering New Approach to Intersectional Discrimination. Revista Direito GV. n. 11 [2], jul-dez, 2015. p. 479-504, p. 483), é possível identificar alguns avanços na inclusão da interseccionalidade nas análises e propostas do Comitê CEDAW. A autora afirma que os textos da CEDAW e do Comitê CEDAW foram capazes de compreender de modo sofisticado a discriminação interseccional, razão pela qual, as discriminações com base nas diferenças de sexo e de gênero não são analisadas de maneira isolada das demais formas de discriminação (CAMPBELL, 2015, p. 490). É interessante que a única menção no texto da CEDAW à pobreza e à etnia está em seu preâmbulo. Contudo, como observou Campbell (2015, p. 494), as recomendações do Comitê CEDAW têm reforçado a importância dessas categorias e a própria desigualdade interseccional.

Vale destacar que a interseccionalidade não se confunde com o princípio da transversalidade que foi introduzido em 1995, pela Conferência de Beijing e, posteriormente, incluído nas propostas da União Europeia. A transversalidade parte:

[…] da consideração de que as ações, as políticas e os programas têm resultados diferentes para homens e mulheres. Por esse motivo, a perspectiva das mulheres deve ser considerada no desenho, na implementação, no surgimento e na avaliação das políticas e dos programas em todos os âmbitos, com o objetivo de que homens e mulheres sejam beneficiados igualmente e que a desigualdade não se perpetue. Incluindo atividades específicas e ações positivas porque as posições de largada para homens e mulheres não são iguais. (MOLINA, 2012MOLINA, Carmen Expositó. ¿Qué es eso de la interseccionalidade? Aproximación al tratamiento de la diversidad desde la perspectiva de género em España. Investigaciones Feministas. vol. 3, 2012. p. 203-222, p. 205).

A transversalidade, portanto, é um importante princípio do campo do direito internacional, pois contribuiu para se pensar além do discurso pretensamente universalizante que acabava por excluir as mulheres. Porém, a transversalidade não se confunde com a interseccionalidade, visto que essa remete a qualquer processo de marginalização que interage com outras categorias excludentes, para além do gênero, criando uma situação específica de vulnerabilidade. Como muito bem destacado pela professora espanhola Carmen Molina (2012MOLINA, Carmen Expositó. ¿Qué es eso de la interseccionalidade? Aproximación al tratamiento de la diversidad desde la perspectiva de género em España. Investigaciones Feministas. vol. 3, 2012. p. 203-222, p. 205), os dois conceitos são ferramentas complementares na busca pela superação das desigualdades de gênero, na medida em que a interseccionalidade contribui para tornar visíveis as diferentes realidades nas quais se encontram as mulheres, podendo, assim, melhorar a própria estratégia política.

Na pesquisa de Marília Ortiz (2013ORTIZ, Marilia. Desvendando Sentidos e Usos para a Perspectiva de Interseccionalidade nas Políticas Públicas Brasileiras. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos). Florianópolis, 2013. p. 1-15) é possível perceber como a interseccionalidade tem se aproximado do campo das políticas públicas no Brasil, em especial a partir das Secretarias que lidavam com conceitos como raça e gênero de modo transversal. A conclusão apresentada pela autora é de que, predomina no Brasil, apenas uma superinclusão de termos e a permanência de uma estrutura pensada para lidar com categorias monolíticas de discriminação.

Tal constatação é semelhante à conclusão do estudo de Emanuela Lombardo e Mieke Verloo (2009LOMBARDO, Emanuela. VERLO, Mieke. Institutionalizing Intersectionality in the European Union? International Feminist Journal of Politics. n. 11 v. 4 dez, 2009. p. 478-495) sobre a possível institucionalização da interseccionalidade na União Europeia. Nessa pesquisa, as autoras concluíram que os marcos legais da União Europeia não estão de fato usando a interseccionalidade em sua complexa e transformadora concepção, mas sim, justapondo categorias de desigualdades sem, de fato, intersectá-las.

Essas pesquisas demonstram que é bastante coerente a preocupação de Crenshaw de que não se confunda interseccionalidade com a mera adição de conceitos (CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Revista Estudos Feministas. Ano 10 (1). Florianópolis, 2002. p.171-188, p. 175). Por essa razão, Akotirene reforça que:

“A interseccionalidade impede aforismos matemáticos hierarquizantes ou comparativos. Em vez de somar identidades, analisa-se quais condições estruturais atravessam corpos, quais posicionalidades reorientam significados subjetivos desses corpos [...]” (AKOTIRENE, 2018AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento, 2018., p. 39).

Por essa razão, vale retomar a crítica apresentada por Collins e Bilge (2016COLLINS, Patricia Hill. BILGE, Sirma Bilge. Intersectionality. Cambridge: Polity Press, 2016., p. 86), segundo a qual as interpretações existentes na academia sobre interseccionalidade, após sua institucionalização, minou parte do potencial crítico do conceito. Anna Carastathis também identifica esse mesmo problema na forma como a interseccionalidade foi incorporada pela academia e no campo político:

Inicialmente, a interseccionalidade objetivava explicitamente contestar essas dinâmicas representativas, discursivas e intersubjetivas dentro dos movimentos antirracistas e feministas que buscavam transformar as relações sociais. No entanto, muito do que a análise de Crenshaw revelou sobre identidades, opressões e luta política foi esquecida - alguns dizem sistematicamente (Bilge 2013) - à medida que a interseção tornou-se integrada como um projeto intelectual institucionalizado. Embora a interseccionalidade tenha se tornado um axioma da teoria e da pesquisa feministas e tenha sido "institucionalizada" (Nash 2008) em discursos acadêmicos e, cada vez mais, em discursos sobre direitos humanos e na estrutura política, abundantes ou vagas referências à "interseccionalidade" se proliferaram e podem obscurecer uma crítica sólida dos hábitos cognitivos profundamente enraizados que informam o pensamento feminista e antirracista sobre opressão e privilégio. Em outras palavras, paradoxalmente, o sucesso da interseccionalidade pode marcar seu fracasso, a ampla viagem do conceito se dá por sua apreensão superficial. (CARASTATHIS, 2016CARASTATHIS, Anna. Intersectionality - Origins, Contestations, Horizons. Nebraska: University of Nebraska Press, 2016., p. 42).

Desse modo, é preciso que se construam análises críticas sobre a ampliação do uso da interseccionalidade na academia, no campo das políticas públicas e do acesso aos Direitos Humanos, inclusive focado na realidade brasileira. Carla Akotirene (2018AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento, 2018.) é um notório exemplo desse tipo de análise. A autora também reforça a importância de perceber com atenção esses processos de incorporação do conceito no campo do Direito, para que não perverta a proposta inicial de uma compreensão crítica e acabe reforçando o status quo. A autora indica, portanto, os perigos de uma apropriação violenta da interseccionalidade que sirva para reforçar estruturas racistas de poder, tal qual o próprio discurso punitivista do Estado (AKOTIRENE, 2018AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento, 2018., p. 47).

Sendo assim, é válido destacar que o uso de termos como interseccionalidade ou de outras categorias para além do gênero em documentos sobre Direitos Humanos das mulheres não caracteriza, por si só, a presença de uma visão interseccional. É preciso que se reconheça que apesar dos documentos internacionais sobre Direitos Humanos não prescreverem qualquer desigualdade formal no acesso a direitos, esse ainda se dá de forma desigual. Eis um aspecto importante da inclusão da interseccionalidade no campo normativo internacional, dar visibilidade a essas desigualdades de acesso e demonstrar de que forma ela se constitui. Nesse sentido:

A despeito dos direitos humanos permitirem acesso irrestrito, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição, as mulheres negras se veem diante dos expedientes racistas e sexistas das instituições públicas e privadas por lhes negarem primeiro trabalho e, depois, o direito humano de serem reclamantes da discriminação sofrida. A interseccionalidade instrumentaliza os movimentos antirracistas, feministas e instâncias protetivas dos direitos humanos a lidarem com as pautas das mulheres negras. (AKOTIRENE, 2018AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento, 2018., p. 57).

É possível perceber, portanto, que não se trata apenas de incluir dentre as recomendações - seja por parte do Comitê CEDAW ou do CERD - que se reduza as desigualdades entre mulheres brancas e mulheres negras e indígenas. Tal inclusão pode ser considerada um primeiro passo, mas ela não contempla a reformulação estrutural ou a inclusão de novas ferramentas analíticas que se faz indispensável para uma política de acesso a direitos conseguir romper com as desigualdades interseccionalmente construídas.

Os avanços quanto à inclusão da interseccionalidade nas recomendações do Comitê CEDAW possuem inconsistências relevantes, de acordo com o estudo desenvolvido por Meghan Campbell (2015CAMPBELL, Meghan. CEDAW and Women’s Intersecting Identities: a Pioneering New Approach to Intersectional Discrimination. Revista Direito GV. n. 11 [2], jul-dez, 2015. p. 479-504, p. 498). Apesar disso, demonstram o potencial do conceito na busca por novas formas de lidar com os problemas no acesso aos Direitos Humanos, partindo da compreensão da desigualdade interseccional. Seria, portanto, relevante não apenas melhorias na inclusão da interseccionalidade do cenário internacional dos Direitos Humanos, como também, a inclusão do conceito no cenário nacional, aprofundando o debate e contribuindo para a melhoria das estratégias que visam à concretização no acesso aos Direitos Humanos.

5. Conclusão

Ao promover o debate acerca do conceito de interseccionalidade das opressões e desigualdades interseccionais, desenvolveu-se brevemente alguns elementos essenciais para a ampliação e inclusão do tema na agenda dos Direitos Humanos. Foi possível verificar que, por meio da revisão bibliográfica realizada, aliar a interseccionalidade aos discursos e práticas sobre os Direitos Humanos é imprescindível para consolidar e ampliar o acesso a tais Direitos.

Não se trata da inclusão de um termo a mais no momento de elaboração das estratégias que visam à concretização dos Direitos Humanos, mas sim, uma nova forma de compreender a importância que distintos aspectos possuem na limitação do acesso a tais direitos. Essa compreensão possibilita novas estratégias que estarão mais aptas a lidar com a realidade de significativa parcela da população.

O acesso das mulheres aos Direitos Humanos é, há algumas décadas, o fundamento e o objetivo de diversas legislações, inclusive no cenário internacional, sendo a CEDAW um dos mais relevantes documentos. A interseccionalidade tem um potencial significativo na busca por sanar lacunas que comumente tornam ineficazes tais mecanismos de promoção dos Direitos Humanos para uma significativa parcela de suas destinatárias. Observar como a interseccionalidade tem progressivamente ganhado espaço no cenário internacional de proteção dos Direitos Humanos desde o início dos anos 2000, bem como de que modo isso tem surgido em propostas específicas do Comitê CEDAW e do CERD é relevante para acompanhar como esse conceito, que surge nos movimentos sociais de mulheres negras chega na academia com um caráter crítico, está sendo apropriado nos discursos de organizações internacionais e Estados.

Desse modo, aproxima-se das críticas sobre o modo como a institucionalização da interseccionalidade tem recorrentemente minado seu potencial crítico, assim como, o fato de que têm sido limitadas as estratégias que buscam abandonar a compreensão monolítica de conceitos como gênero e raça. Dessa forma, reconhece-se como indispensável à ampliação acerca da complexidade da interseccionalidade, bem como, a importância da construção de estratégias capazes de lidar com as desigualdades interseccionalmente estruturadas.

Apesar das preocupações com o esvaziamento do conceito, não há como negar que a interseccionalidade possui grande potencial na busca por concretizar o acesso aos Direitos Humanos em um país historicamente desigual e marcado pela exclusão social baseada em elementos como a raça, a classe, a orientação sexual e a identidade de gênero. Ampliar a compreensão sobre a interseccionalidade das desigualdades sociais no país, é uma forma de promover mecanismos mais adequados para saná-las. Busca-se romper, assim, com o discurso que inclui apenas uma parcela específica e minoritária das mulheres brasileiras - brancas, heterossexuais e classe média ou alta - a partir da compreensão de que elementos estruturais como a raça, produzem processos de exclusão particulares e que, portanto, demandam ferramentas particulares para solucioná-los. Sem tal reconhecimento, corre-se o risco de que se continue perpetuando exclusões com base em um discurso que apenas formalmente defende o acesso de todas as pessoas aos Direitos Humanos.

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  • 1
    Sobre isso ver: “Uma Análise Crítica sobre os Antecedentes da Interseccionalidade” de Gabriela M. Kyrillos (2020).
  • 2
    No livro intitulado ‘Intersectionality’ (2016) de autoria das sociólogas Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (ainda sem tradução para o português), as autoras demonstram como a ausência sobre os movimentos sociais nos históricos sobre interseccionalidade não é apenas uma falha na contextualização do conceito mas, sobretudo, um equívoco ao assumir que a interseccionalidade se resume a mais um campo acadêmico (COLLINS; BILGE, 2016, p. 64), ignorando que a interseccionalidade parte da sinergia entre a pesquisa crítica (critical inquiry) e a práxis crítica (critical praxis). Enquanto o primeiro diz respeito ao desenvolvimento da interseccionalidade na academia, como ferramenta analítica para a construção de pesquisas e análises críticas; o segundo refere-se à forma como as pessoas, seja individualmente, seja enquanto coletivos, produzem e usam a estrutura da interseccionalidade no seu dia-a-dia (COLLINS; BILGE, 2016, p. 32). Um exemplo válido de como as discussões que articulam raça e gênero são muito anteriores ao surgimento do conceito da interseccionalidade e se desenvolveu fora do campo acadêmico é o discurso de Sojourner Truth ‘Não sou uma mulher?’.
  • 3
    Sobre isso, ver Angela Davis (2016) e sua abordagem sobre as disputas em torno do direito das mulheres ao voto nos Estados Unidos.
  • 4
    O termo "pessoas de cor" possui uma conotação antirracista em inglês, por contraposição ao termo "colored". Isso faz parte de uma tendência mais geral dos movimentos sociais em países anglófonos de empregar algo que costuma ser chamado de "people-first language" (da mesma forma, prefere-se "pessoa com deficiência" a "deficiente" por exemplo). É importante destacar este ponto, pois a expressão "pessoas de cor" pode parecer racista a leitores e leitoras lusófonos.
  • 5
    "Nossa subordinação" refere-se à subordinação das mulheres negras. Esta é uma das muitas ocasiões em que Crenshaw desafia a norma formal que aconselha o não-uso da primeira pessoa. Essa não é uma mera idiossincrasia do texto, mas uma escolha deliberada, haja vista a importância da questão do lugar de fala quando se discutem questões relativas à interseccionalidade das opressões.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2019
  • Aceito
    13 Abr 2020
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