Acessibilidade / Reportar erro

Uma revisão de Punição e Estrutura Social e Cárcere e Fábrica à luz da teoria crítica do valor

A review of Punishment and Social Structure and The Prison and The Factory in the light of the value criticism

Resumo

O artigo consiste na revisão de duas obras paradigmáticas da criminologia crítica que analisam o surgimento e o estabelecimento da prisão como modalidade punitiva típica da modernidade: Punição e Estrutura Social, de Rusche e Kirchheimer, e Cárcere e Fábrica, de Melossi e Pavarini. Em específico, escrutina-se, à luz da teoria crítica do valor, o tipo de sustentação no marco teórico materialista sobre o qual elas se desenvolvem.

Palavras-chave:
Criminologia crítica; Prisões; Teoria crítica do valor

Abstract

The research consists of a review of two paradigmatic works of the critical criminology that analyze the emergence and establishing of the prison as typical punitive form of the modernity: Punishment and Social Structure, of Rusche and Kirchheimer, and The Prison and The Factory, of Melossi and Pavarini. In particular I investigate, in the light of the value criticism, the type of materialistic theoretical basis over which their arguments are developed.

Keywords:
Critical criminology; Prisons; Value criticism

1) A pena privativa de liberdade e a fundação do modo de produção capitalista

Parte considerável da tradição criminológica marxista se dedica a investigar de modo aprofundado a relação entre a ascensão da prisão como modalidade punitiva principal, administrada pelo nascente Estado Moderno, e a assim chamada acumulação primitiva, tal como exposta por Marx no célebre capítulo 24 do Livro I de O Capital. Neste ponto de sua obra, Marx narra os processos que estão na base da gênese histórica do capital, com olhos postos, como é recorrente em seus escritos, no caso inglês, que considera clássico1 1 Classicismo é uma categoria em Marx que se refere ao maior ou menor desenvolvimento – no caso, de um tipo de sociedade regido por determinada lógica de acumulação. Não se trata de categoria de cunho moral, ou seja, não se afirma que o clássico ou o mais desenvolvido é algo valorativamente superior ao não clássico ou ao menos desenvolvido. A categoria do classicismo se revela fundamental no contexto do método marxiano, na medida em que a identificação (e análise) do estágio mais desenvolvido do ser deve iluminar os estágios menos desenvolvidos, como expressa a famosa analogia: “A anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por outro lado, os indícios de formas superiores nas espécies animais inferiores só podem ser compreendidos quanto a própria forma superior já é conhecida” (MARX, 2011, p. 58). . A investigação histórica testa aquilo que, em termos teóricos, Marx havia apresentado nos capítulos anteriores: em suma apertada, trata-se de verificar quais condições concretas tiveram de se fazer presentes para que a dinâmica atual, já compreendida em sua lógica mais abstrata (D-M-D’ ... D-M-D’... D-M-D’...)2 2 Vale notar que a exposição em O Capital segue, em linhas gerais, um percurso descendente no que toca ao nível de abstração com que se investiga o objeto, isto é, o modo de produção capitalista. Na primeira parte do Livro I, portanto, a exposição se desenvolve em nível ainda bastante elevado de abstração, e no citado capítulo 24 se apresenta um excurso que demonstra a conjugação dos fatores históricos que, reunidos, puderam desencadear uma lógica capitalista, como exporei no tópico seguinte, de auto-expansão quase objetiva. , pusesse-se em marcha inicial. No capítulo, há marcante destaque para o papel cumprido pela violência dirigida aos camponeses que, expropriados e expulsos dos campos cercados para o desenvolvimento sobretudo da manufatura de lã, foram tornados duplamente livres, isto é, livres do acesso aos meios de produção, e livres para vender apenas aquilo que lhes restou: sua força de trabalho, ora tornada mercadoria. É pelo fio da mencionada violência que a criminologia marxista aborda a temática da prisão que, deflagrada a dinâmica capitalista, converteu-se na forma legítima, sob monopólio estatal, de administrar o uso da força.

Não entrarei aqui na polêmica quanto a se a dinâmica da acumulação primitiva explica apenas os processos que operaram na gênese do modo de produção capitalista, ou se ela também deve ser referida a processos posteriores – inclusive contemporâneos – de expansão da lógica da acumulação para formações sociais não capitalistas e esferas da vida antes alheias às suas determinações3 3 Para uma exposição da discussão, com uma tomada de posição fundamentada, remetemos ao primeiro capítulo de FONTES, 2010. . Fato é que, de modo mais ou menos explícito, as teses criminológicas sobre a prisão esteiam-se na teorização marxiana a respeito da acumulação primitiva, muitas vezes atualizando-a para períodos históricos subsequentes à gênese propriamente dita do modo de produção capitalista, ou para contextos distintos do inglês, que foi privilegiado na análise marxiana. Entre os trabalhos mais antigos e célebres, que, porquanto paradigmáticos, mais abaixo serão especificamente abordados, Pavarini e Melossi (2006), em Cárcere e Fábrica, estudaram a maneira como a violência penal ínsita à acumulação primitiva se materializou na Itália e nos Estados Unidos. Já em Punição e Estrutura Social, Georg Rusche, em texto terminado por Otto Kirchheimer, havia antes demonstrado como a pena de prisão associou-se à dinâmica histórica no nascedouro do capitalismo na Europa e a este seguiu acoplada ao longo de seu desenvolvimento (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Revan, 2004.) 4 4 Outro exemplo, mais recente, consiste no trabalho de Valeria Vegh Weis (2017), que, inobstante não pretender focar a pena de prisão, parte da seletividade penal presente na acumulação primitiva para retraçar as transformações de tal seletividade ao longo do desenvolvimento do modo de produção capitalista. .

A acumulação primitiva caracteriza, como a própria expressão revela e como já acima referido, a dinâmica histórica relacionada à gênese do modo de produção capitalista – ao menos para Marx5 5 Sem aprofundar a polêmica a respeito de como se deve interpretar a expressão ‘a assim chamada acumulação primitiva’ no título do Capítulo 24 do Livro I de O Capital, entendo que, nesse ponto da obra, Marx contrasta de maneira pungente a sua visão a respeito da origem do modo de produção capitalista com a explicação apresentada pelos economistas. Estes, tal como Marx já havia exposto no capítulo 22, apresentam uma narrativa idílica pela qual a acumulação original, localizada em nenhuma época específica, derivou da abstinência do capitalista num momento em que ele ainda era trabalhador. A essa fábula do esforço de poupança, Marx contrapõe no capítulo 24 sua explanação para o mesmo fenômeno, fincada na história e na violência concretamente praticada. Nesse sentido, o termo “assim chamada” pode ser compreendido como elemento que insere uma carga irônica no texto. . Como este constitui uma totalidade, é possível remeter à acumulação primitiva diversas determinações do capitalismo que, naquele momento, encontravam campo fértil para germinação: entre outras, trabalho abstrato, valor, dinheiro, Estado, mercadoria, e classes sociais6 6 Novamente não é o caso de descer à polêmica quanto a se poder falar em classes sociais em formações pré-capitalistas. Aqui, assumimos que elas só existem no modo de produção capitalista, pois devem ser conceituadas como posições sociais cujo antagonismo agora se baseia não mais em relações diretas e pessoais de dominação, mas é mediado pela forma valor, como se exporá no tópico 2 deste artigo. Assim, o conflito entre tais posições é dinamizado por um novo tipo de lógica, derivada em última instância das compulsões da mencionada forma valor. Antes disso, caberia falar em estamentos, grupamentos, castas, protoformas de classes, etc., com o que se expressaria um tipo de conflito social não automatizado por uma lógica quase objetiva, como no capitalismo. De acordo com tal linha de raciocínio, o famoso trecho no Manifesto de 1848, em que se assinala que “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes” (MARX; ENGELS, 2005, p. 40), deve ser tido como ultrapassado à luz da teoria (crítica) do valor desenvolvida posteriormente por Marx, sobretudo em O Capital. Aliás, como nota Heinrich (2014, p. 152), já em A Ideologia Alemã haviam Marx e Engels rejeitado a concepção de que a história tem um sujeito – seja o homem (genérico, como se assumia na filosofia da essência esposada pelo jovem Marx), sejam as classes –, o que aliás robustece a tese, defendida por exemplo por Andreas Fisahn (2017, p. 71–72) de que, em textos voltados mais à agitação política (como o Manifesto ou o Guerra Civil na França), o rigor teórico permanecia em segundo plano. .

É claro que, nos processos de acumulação primitiva, sem muito esforço visualiza-se a maneira como a violência cindiu a sociedade nos grupos fundamentais dos detentores dos meios de produção e dos que, por não os deterem, vendem “livremente” sua força de trabalho – em outras palavras, classes capitalista e trabalhadora. Por essa via, a criminologia marxista aborda a prisão como mecanismo necessário ao disciplinamento desta última, a fim que se a submetesse à lógica da exploração. Na célebre metáfora de Melossi e Pavarini, cuida-se de desvendar a associação entre cárcere e fábrica: aquela como modalidade punitiva central do capitalismo, e esta como sua unidade produtiva modelo, resultante do devir da manufatura em maquinaria e grande indústria. Já Georg Rusche tentou, no que toca à punição, expressar a tão mal-interpretada postulação marxiana sobre a prioridade do momento econômico para compreensão da totalidade social com a famosa colocação – que na verdade consta da introdução escrita por Kirchheimer – de que “todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Revan, 2004., p. 20). A partir daí, evidencia como alterações quantitativas (ampliação ou retração das taxas de encarceramento) e qualitativas (melhora ou piora das condições de vida intramuros, bem como o modo de utilização da força de trabalho encarcerada) no que toca ao aprisionamento conjugaram-se às intempéries do processo de acumulação capitalista até o início do século XX.

Sem dúvida, a senda tomada por tais autores é profícua sob diversos aspectos. Ambas as obras impressionam pela sofisticação e pelo volume de material histórico de que se valeram para demonstrar suas teses que, à parte diferenças de enfoque7 7 Rusche enfatiza a dinâmica da regulação dos salários por meio do aprisionamento, valendo-se da análise da dinâmica do mercado de trabalho (maior disponibilidade ou carência de força de trabalho em dado contexto sócio-histórico concreto) e, como premissa, do mecanismo da less elegibility, pelo qual as condições do cárcere devem ser piores do que aquelas vigentes entre a camada dos trabalhadores livres mais pauperizada. A dupla de italianos, por sua vez, sem abandonar a perspectiva ruscheana, dá atenção também ao disciplinamento da força de trabalho pela instituição carcerária no estabelecimento e no desenvolvimento do modo de produção capitalista. , podem ser resumidas sob a seguinte proposição: a violência perpetrada em forma de privação de liberdade na prisão exerceu papel fundamental na acumulação primitiva, como mecanismo de inculcação da disciplina do trabalho na classe trabalhadora e de regulação, em favor dos interesses da classe capitalista, da exploração da força de trabalho – seja pela extração direta de mais-trabalho da população encarcerada, seja como regulador do salário a ser pago à força de trabalho disponível extramuros por operar como mecanismo de manipulação do volume do exército industrial de reserva. Nos dois casos, portanto, a análise se sustenta no conflito entre as classes, o que revela uma adesão, em grande parte, à estrutura teórica do marxismo tradicional. Antes de avançarmos na demonstração de outros pontos que evidenciam referida adesão, é necessário expor brevemente em que consiste essa leitura tradicional do marxismo, indicar suas limitações, e delinear a posição que entendemos, por fazer jus ao sentido da crítica marxiana, superior em termos analíticos. Para tanto, adotarei como alicerce as formulações da teoria crítica do valor, sobretudo as de Moishe Postone em sua obra Tempo, Trabalho e Dominação Social (2014).

2) Marxismo tradicional e crítica do valor

Neste tópico sintetizarei, naquilo que importa para os fins do presente artigo, a interpretação do marxismo que pretende revitalizá-lo por meio da ênfase na crítica do valor, e contrastá-la com a leitura tradicional da obra de Marx. Como premissa, postula-se que a contradição presente na própria forma-mercadoria é aquela da qual se devem derivar as demais constatáveis na formação social capitalista – como por exemplo as de classe, incluindo as formas de violência praticadas no bojo dessa relação conflitiva.

Marx, após anunciar já na primeira oração do livro que o objeto de sua análise (e crítica) é o modo de produção capitalista, inicia O Capital debruçando-se sobre a mercadoria, que constitui o elemento fundamental do tipo de formação social a ser investigada, e a partir do qual as demais categorias necessárias para a compreensão da totalidade dinâmica do modo de produção são dialeticamente desdobradas (dinheiro, capital, preço, lucro, etc.)8 8 Por imperativo de lealdade, devo advertir o leitor que a descrição que ofereço sobre a razão de Marx ter optado por esse modo de exposição já exprime um juízo de interpretação. Como se sabe, Marx desenvolveu a pesquisa necessária à sua crítica da economia política por muitos anos, e também planejou minuciosamente o modo de exposição a ser adotado em O Capital. A redação desta obra, mesmo quando já publicado o Livro I, sofreu significativas mudanças. Na impossibilidade de aqui alongar-me sem fugir ao escopo do artigo, remeto o leitor à obra incontornável quando se trata da temática: ROSDOLSKY, 2001. Também em HEINRICH, 2014 encontram-se fundadas digressões sobre o ponto, que em grande parte compatibilizam-se com as premissas teóricas adotadas no presente artigo. . De saída, Marx identifica os dois fatores da mercadoria responsáveis pela contradição presente em seu bojo: valor e valor de uso. Enquanto todo produto do trabalho humano se reveste de valor de uso – isto é, possui qualidades sensíveis (materiais ou não) que satisfaçam algum tipo de necessidade (do estômago ou da imaginação [MARX, 2013, p. 113]) –, as mercadorias – ou seja, a forma assumida pelos produtos do trabalho humano nessa formação social historicamente específica – contêm valor, que consiste em fator exclusivamente social. Isso deriva de que, diversamente de em outros tipos de sociedade, os diversos e infinitos tipos de trabalho concreto, no capitalismo, são realizados privadamente, e apenas a posteriori é que se confirma o seu caráter social, ou seja, quando da troca efetuada no mercado (daí tratar-se de mercadoria)9 9 Como informei ao final do item anterior, baseio a exposição do artigo, no presente tópico, nas formulações de Moishe Postone, sobretudo as consolidadas em sua principal obra, Tempo, Trabalho e Dominação Social. Todavia, devo assinalar uma dissonância entre o que fiz constar de meu texto e o que o historiador canadense defende (cf. POSTONE, 2014, p. 64 e ss.). Embora ele reconheça, obviamente, a existência da generalização da dinâmica acima exposta – que os trabalhadores isolados e privados devem levar seus produtos ao mercado para realizar a troca e assim satisfazer suas próprias necessidades mediante aquisição das mercadorias de outros produtores –, ele sustenta, argutamente, que o trabalho no capitalismo é, já na origem, imediatamente social e por isso oprime e anula a esfera individual (e não que, como afirmei acima com base p. ex. em HEINRICH, 2014, p. 206–207, ele se realiza privadamente e apenas na troca se confirma sua participação no trabalho social geral, pois, diz Postone, tal posição estaria associada a uma ênfase indevida nas relações de mercado). Como aqui importa mais a descrição da dinâmica e menos a interpretação que dela se faz, deve-se apenas registrar a polêmica teórica. . É nesse momento que o produtor isolado e privado conseguirá – ou não – satisfazer suas próprias necessidades, que não são de regra satisfeitas com o consumo do produto de seu próprio trabalho.

Para que se viabilize sejam os infinitos tipos de produtos das variadas modalidades concretas de trabalho humano trocados entre si, porém, é necessário que eles sejam tornados homogêneos e, assim, diferenciados apenas quantitativamente. Assim é que os produtos têm de ser abstraídos de todas as suas particularidades e ser tidos apenas como cristalização de atividade laborativa (“geleia de trabalho humano indiferenciado”, na imagem de Marx [2013, p. 116]). Para isso, o próprio trabalho que confere às mercadorias tal indiferenciação deve ser também objeto de abstração de suas particularidades concretas. Desse modo, o trabalho abstrato é o responsável pelo valor das mercadorias, com o que estas podem ser trocadas umas pelas outras: como trabalho humano em si, as atividades são diferenciáveis e comparáveis apenas no que tange ao tempo em que realizadas. As mercadorias podem, com isso, ser também comparadas no que toca ao tempo de trabalho (abstrato) despendido para produzi-las.

As formações anteriores ao capitalismo têm como tipo de riqueza social predominante a riqueza material. Em outras palavras, o critério de riqueza se define pela extensão em que os bens materiais ou imateriais, incluindo o produto do trabalho, satisfazem necessidades humanas. Já no capitalismo, o tipo de riqueza predominante é o valor, que subordina o valor de uso: estes são produzidos apenas como meio para o fim de valorização do valor, e a satisfação de necessidades, se ocorre, deve ser considerada apenas um efeito colateral desse movimento que deve obrigatoriamente, por sua própria lógica interna, repetir-se e ampliar-se. Valor, como acima destacado, é trabalho humano (abstrato). A formação capitalista, logo, é a única em que a expansão do trabalho constitui um fim em si mesmo, numa dinâmica compulsiva que se impõe a todos de uma maneira quase objetiva: a necessidade de trabalhar, e cada vez mais, se apresenta como natural. A obra de Marx, assim, enquanto crítica do valor, é uma crítica do trabalho.

Na contramão disso, porém, são as formulações do marxismo tradicional, que tecem uma crítica do ponto de vista do trabalho. O trabalho é considerado via de emancipação, e o trabalhador é tido como sujeito revolucionário quase messiânico, cuja predestinação e potência salvadora10 10 A fundamentação teoricamente mais acabada (e influente) dessa orientação encontra-se, sem dúvida, no Lukács de História e Consciência de Classe (2003). A mais vulgarizada pode ser identificada nas propostas de Stálin. Não sendo o caso de expor aqui em detalhes em que consistem a sofisticação em Lukács e o caráter rudimentar dos escritos de Stálin – bem como abordar os diversos autores que se situam entre tais extremos, incluindo o relevante Lênin –, remeto o leitor a ELBE, 2010, onde se encontra, em relação a inúmeras obras e teóricos, uma categorização bem fundamentada conforme aproximem-se ou distanciem-se de um marxismo que se pode ter como tradicional (no sentido da distorção, consciente ou não, do pensamento marxiano em prol de sua acomodação às dinâmicas estatais-partidárias típicas do socialismo realmente existente). são, contudo, anuladas pela atuação da classe dos capitalistas, que se valem da defesa da lógica de mercado, das determinações jurídicas de propriedade privada e do Estado como instrumento para perpetuar e aprofundar a relação de exploração que mantêm com a classe trabalhadora. São essas, logo, as frentes de análise e de crítica do marxismo tradicional: a liberdade de mercado na esfera da circulação de mercadorias, a propriedade privada no âmbito das definições jurídicas, a disputa pelo controle do aparelho estatal e, no que toca à produção econômica, a luta de classes em torno da exploração.

A observação deste último enfoque – a luta de classes e a exploração – talvez permita a visualização mais clara de como o marxismo tradicional desconsidera o valor enquanto forma de riqueza historicamente específica do capitalismo para, tal como a economia política clássica, hipostasiá-lo numa forma trans-histórica: se a crítica se dirige à abolição da exploração de uma classe por outra, a direção tomada é a proposição da abolição das classes, mas no sentido da transformação de todos em trabalhadores. Afinal, a produção de mercadorias – dotadas de valor porque, repita-se, produzidas sob a lógica do trabalho abstrato – não é objeto da crítica. Para tal posição tradicional, emancipar-se das determinações do modo de produção capitalista significaria assumir a premissa lassalliana de que ‘se a classe trabalhadora tudo produz, a ela tudo pertence’, criticada com veemência por Marx na Crítica ao Programa de Gotha (MARX, 21211 11 Nesse texto, aliás, Marx expressamente estipula, na linha do que expusemos acima com base em Postone, que riqueza material é um tipo de riqueza distinta daquela que predomina no modo de produção capitalista. A riqueza material, consistente em valores de uso, é fruto não exclusivo do trabalho (como é o valor, no capitalismo), mas também da natureza. Marx ainda observa que o próprio trabalho produtor de valores de uso é, sob certo ponto de vista, uma força natural. Essa visão não é equivocada, pois o ser humano é, obviamente, um ser natural, mas ela pode ser pormenorizada e sofisticada pelas construções teóricas do velho Lukács de Para a Ontologia do Ser Social. , p. 27-34). Todos tornados trabalhadores, não haveria exploração de uma classe por outra; não havendo exploração, todos se apropriariam do ”fruto integral do trabalho”, que, contudo, ainda consistiria em mercadorias portadoras de valor, cujo caráter problemático se diagnosticaria apenas na forma de distribuição injusta vigente no capitalismo. Se a esse quadro se soma um aparato oficial que, dominado pela classe trabalhadora, teria a função de substituir por um planejamento consciente as forças concorrentes no livre mercado, acusadas da referida injustiça, não estaremos distantes da experiência do dito socialismo real – que, à parte considerações acerca do mérito ou qualquer tipo de avaliação moral das intenções dos revolucionários, somente os ingênuos ou interessados afirmarão ter conduzido a humanidade no sentido da emancipação da lógica do valor.

Na verdade, o valor, além de riqueza material predominante no capitalismo, também se traduz em elemento principal de mediação social nessa formação. Se em sociedades anteriores o vínculo social se estabelecia relações abertas, imediatas (clã, parentesco, dominação pessoal, etc.) 12 12 Atentar para que a comparação, sob esse aspecto, entre formações pré-capitalistas e capitalistas não quer sugerir, obviamente, uma proposta de tipo romântico ou saudosista de contextos em que tais relações imediatas, não mediadas pelo valor, eram na verdade essencialmente fundadas na violência aberta, como no caso do escravismo. Inclusive, nada indica que a superação das determinações do valor, na quadra atual, conduzirá necessariamente a uma sociedade pós-capitalista de tipo comunista. Ao revés, as indicações conjunturais do presente dão conta de que, no contexto de desgaste da sociabilidade mediada pelo valor, é a violência – inclusive no trato com a natureza – que retorna à cena na tentativa de reconstituir os laços sociais em processo de ruptura. A inauguração de uma etapa civilizatória superior dependeria da construção efetiva de uma nova figuração de mundo baseada numa ética comunista. É evidente, porém, que os limites deste trabalho impedem que me aprofunde nessas reflexões. , hoje os laços sociais são estabelecidos pelo valor. Se recordarmos que, como acima pontuado, valor é em última instância trabalho (abstrato), e que portanto o trabalho no capitalismo assume centralidade (na qualidade de único produtor de valor, tipo aqui predominante de riqueza social), fica facilitada a constatação de que a efetiva integração nesse tipo de sociedade depende da condição de trabalhador. Enquanto não superada essa lógica compulsiva que a todos domina abstratamente – i. e., dinamizada não necessariamente pela luta de classes, mas pelo Estado ou por qualquer tipo de personificação do capital –, o indivíduo só pode ser tido como membro da sociedade enquanto portador de mercadorias (no mínimo sua força de trabalho), pois essa condição é o único pressuposto possível para o estabelecimento da relação com os demais integrantes dessa formação. Porquanto a mercadoria é, como produto de trabalho abstrato, portadora de valor, é o trabalho que constitui e estabelece a mediação dessa sociabilidade13 13 Reconheço que, ao leitor que não tenha tido contato prévio com a obra de Postone, muito dificilmente terei, com a inevitável concisão que tive de observar, conseguido transmitir de maneira clara o cerne de sua leitura da obra de Marx. Portanto, optei por pontualmente elencar, sem maiores aprofundamentos, unicamente aquilo que me interessa ao desenvolvimento de meu argumento, sem que se dispense a remissão aos escritos do próprio historiador. Além de sua principal obra, já citada, há diversos outros artigos que, mais sucintamente do que no livro, mas menos do que aqui, desenvolvem os temas que abordei: cf. p. ex. POSTONE, 1998, 2004, 2017. Ademais disso, consigno que o Grupo de Estudos e Pesquisa em Ontologia Crítica (GEPOC-UFF) planeja organizar e publicar, em futuro próximo, uma publicação com textos que possam servir como uma primeira aproximação à obra do autor. .

São diversos os pontos que, a partir desses novos caminhos propostos para a leitura da obra de Marx, podem ser objeto de desdobramentos inovadores para a compreensão do modo de produção capitalista e seu desenvolvimento, inclusive contemporâneo. Por exemplo, a predominância do valor enquanto forma de riqueza conduz a que, pelo mecanismo da concorrência, persigam-se constantemente novos patamares de produtividade, mediante os quais, reduzido o valor do produto individual que se logra produzir em maior massa14 14 Por esse mecanismo se percebe como a pletora de valores de uso no capitalismo é subordinada ao imperativo de valorização do valor. em determinado período de tempo (abstrato – uma hora, por exemplo), introduz-se no capitalismo também uma temporalidade compulsiva e opressora, que se denomina tempo concreto. Por essa noção, explica-se como somos também dominados pelo tempo, porquanto,

com o aumento da produtividade, a unidade de tempo torna-se ‘mais densa’, em termos de produção de bens. No entanto, essa densidade não se manifesta na esfera da temporalidade abstrata, a esfera do valor: a unidade temporal abstrata — a hora – e o valor total produzido [nesta unidade – A.V.] permanecem constantes.” (POSTONE, 2014, p. 336)15 15 A compulsão temporal é expressa por Postone pela imagem de uma esteira (treadmill effect): à medida que a técnica indutora de novos níveis de produtividade se generaliza, um novo padrão se estabelece, a partir do qual se reconstitui o que conta como hora de trabalho social. Para explorar a alegoria proposta pelo autor, é como se a esteira fosse reprogramada, e só a corrida na nova velocidade, superior à anterior, possa contar como corrida durante o período do treino – embora se trate de movimento que não leva a lugar algum, mas apenas a que a mesma dinâmica (corrida no mesmo equipamento com velocidades opressiva e sucessivamente ascendentes) se perpetue.

Outro exemplo de possível desdobramento, que também interessa aos fins de meu artigo, refere-se a que a releitura de Postone, em sua própria visão,

fornece a base para analisar a relação intrínseca entre o capital e a produção industrial, bem como para investigar a possível relação entre o desenvolvimento do capital e a natureza e desenvolvimento de outras grandes instituições burocráticas e organizações da sociedade capitalista pós-liberal. (Uma investigação com base nessa interpretação fundamentaria socialmente e especificaria historicamente essas instituições e organizações, e, com isso, forneceria a base para a distinção entre mecanismos econômicos e administrativos vinculados ou relacionados à forma capital, e aqueles que continuariam necessários mesmo após a abolição do capital.) (POSTONE, 2014, p. 330)

O trecho em itálico, por mim grifado, assinala como o estabelecimento e o desenvolvimento da burocracia e das instituições estatais – inclusive, evidentemente, a prisão – podem receber uma chave explicativa superior a partir das novas premissas hermenêuticas oferecidas pela crítica do valor16 16 Os pontos não destacados na passagem copiada revelam, ainda, sendas instigantes de investigação: em que medida instituições de controle social de tipo análogo às que são efetivas no capitalismo devem exercer algum papel numa sociedade emancipada? Essa via de elucubração, por mais atrativa que se apresente, excederia em muito o modesto escopo de meu trabalho, e por isso deve ser aqui apenas registrada para que seu rumo possa ser tomado em outra oportunidade. .

3) A criminologia marxista e sua análise da prisão: Cárcere e Fábrica e Punição e Estrutura Social

Com o escorço teórico apresentado no tópico anterior, podemos retomar as indicações dos pontos em que a criminologia marxista que toma a prisão como objeto de investigação, representada aqui pelas influentes obras das duplas Rusche e Kirchheimer e Melossi e Pavarini, converge com as premissas do marxismo tradicional e, por isso, tem seu potencial crítico-analítico mitigado. Deve-se repisar aqui que as ditas investigações criminológicas representam, sem qualquer dúvida, valorosas contribuições para a compreensão das formas de punição historicamente específicas do modo de produção capitalista. Como já se pontuou, nos trabalhos se empreende pesquisa histórica sólida e confiável.

Além disso, é também evidente que o conflito de classes deve exercer papel de peso em qualquer análise que se pretenda marxista, já que se traduz em dinâmica social realmente existente e necessariamente vinculada às determinações do capital. Seu estudo, portanto, é necessário, e nmomentos – sobretudo quando eventualmente os autores ora revisados dela partem para tangenciar níveis mais abstratos de determinação da totalidade capitalista (como a mediação pelo valor), podem ser identificados momentos ‘esotéricos’ nas obras em questão17 17 Valemo-nos da terminologia do próprio Marx que, no Teorias do Mais-Valor, ao analisar a economia política clássica, sobretudo a de Smith, nela identifica momentos esotéricos – ou seja, que caminham na direção de apreender o movimento real da dinâmica capitalista – e exotéricos – i.e. que se rendem às suas mistificações da dinâmica capitalista. Veja-se passagem em que Marx se refere a esses últimos momentos: “Cabe criticá-lo [Smith], por um lado, por não avançar nem ser consequente bastante na abstração, e assim, por exemplo, ao interpretar o valor da mercadoria, logo se deixa influenciar por considerações relativas a condições concretas de toda espécie; por outro lado, por conceber a forma fenomenal, de maneira imediata e direta, como prova ou representação das leis gerais, sem explicá-la.” (MARX, 1980, p. 537). Pontuo que a submissão de construções teóricas a tal tipo de escrutínio, tal como agora procedemos relativamente à criminologia marxista, não representa qualquer tipo de desprestígio, visto até mesmo a obra de Marx foi assim lida, de modo instigante, pela chamada Neue Marx-Lektüre (cf. ELBE, 2019, p. 189). . Porém, é certo também que a luta entre as classes, que sem dúvida é sublinhada por Marx de maneira variada ao longo não só dos três livros de O Capital mas em diversos outros escritos (sobretudo os políticos), deve ser interpretada “no contexto da ideia central de sua argumentação”, ou seja, ela não constitui “a relação social mais fundamental do capitalismo”, mas “é constituída (...) pela forma-mercadoria de mediação social”. Ela tem importância no “desenvolvimento espacial e temporal do capital” enquanto “elemento propulsor do desenvolvimento histórico da sociedade capitalista” – daí a relevância dos estudos criminológicos ora abordados –, mas “não cria a totalidade nem dá origem à sua trajetória”. Na verdade, as lutas só assumem o papel propulsor da dinâmica dialética do capital “por causa de formas de mediação específicas desta sociedade (...)[,] porque está estruturada e incorporada nas formas sociais da mercadoria e do capital” (todas as citações deste parágrafo copiadas de POSTONE, 2014, p. 364–370).

Em linha similar deve ser tida a concorrência no âmbito da totalidade da dinâmica capitalista. Como mapeia Heinrich (2014HEINRICH, Michael. Die Wissenschaft vom Wert. Münster: Westfälisches Dampfboot, 2014., p. 181), no Marx da década de 1840, predominavam as análises econômicas orientadas por processos de mercado, em que a concorrência era vista como o mecanismo decisivo para a explicação dos diversos fenômenos, tais como o movimento dos salários e desenvolvimento das forças produtivas. Quando da esquematização de seu pensamento nos Grundrisse, já se compreende a concorrência de maneira distinta: ela é o motor da economia burguesa, mas não estabelece suas regras. A concorrência somente executa tais regras. Em outros termos, competição ilimitada é não o pressuposto das leis econômicas, mas a consequência.

3.1) Punição e Estrutura Social, de Rusche (e Kirchheimer)

A partir dessas considerações, é possível uma apreciação da obra de Rusche e de Kirchheimer – este apenas complementador de uma obra que é verdadeiramente daquele. O cerne da construção teórica, como pontuado no primeiro item deste artigo e na nota de rodapé nº 7, busca fiar-se no papel desempenhado pelo aprisionamento na regulação do preço da força de trabalho. Sua investigação desvela uma correlação sem dúvida sustentável e apreensível no campo do empírico, como demonstra a pesquisa histórica e estatística em que baseia suas considerações. Todavia, não se pode deixar de notar, primeiramente, que a análise opera num nível reduzido de abstração, pois capta o movimento dos salários, que consistem no preço da força de trabalho (definido numa luta [de classes] em torno de direitos iguais, onde “quem decide é a força” [(MARX, 2013, p. 309)]). É claro que análises que se aproximam do concreto são de interesse para a compreensão, a explicação e a crítica do objeto da pesquisa, bem como para o teste daquilo que se apreende em níveis mais abstratos – tanto que o próprio Marx, seja em O Capital, seja em diversos outros escritos, frequentemente apresenta análises de fôlego nessa linha. A questão é que, mais uma vez conforme advertência de Postone, elas devem ser sempre remetidas ao e interpretadas no contexto da argumentação central de Marx. Por isso é que Rusche, embora tente aferrar-se à lei geral da acumulação capitalista desenvolvida por Marx no Capítulo 23 do Livro I de O Capital, em especial quanto à dinâmica entre os exércitos ativo e industrial de reserva, não se vale de um conceito de acumulação e de outras categorias marxianas abstratas relevantes, tal como o valor, ou, menos ainda, a mediação social por ele operada. Como o próprio Melossi corretamente denuncia, a chave explicativa central de Rusche cinge-se a uma vaga e problemática noção de mercado de trabalho (MELOSSI, 2014) e ao princípio da less elegibility.

Em complemento a Melossi, eu acrescentaria que a noção de mercado de trabalho com que se trabalha na obra faz com que o fundamento de seu argumento se aproxime de uma doutrina do fundo de salários de corte ricardiano. De acordo com esta, há um fundo de riqueza social limitado para o pagamento dos salários, de modo que o aumento dos salários deve levar à redução do número de trabalhadores ocupados (cf. HEINRICH, 2014HEINRICH, Michael. Die Wissenschaft vom Wert. Münster: Westfälisches Dampfboot, 2014., p. 63). Assumida essa premissa, a ênfase recai na forma como a punição incide sobre a massa desocupada, que varia ao sabor desse mecanismo18 18 Um exemplo desse tipo de ênfase que remete à construção ricardiana encontra-se no capítulo 9 do livro e,, assim, fica em segundo plano uma série de outras determinações que, segundo Marx, entram decisivamente em jogo na lei geral da acumulação (em especial a tendência geral ao aumento da composição orgânica dos capitais, que por sua vez consiste, novamente, em desdobramento da contradição, presente na forma-mercadoria, entre valor e valor de uso)19 19 Exemplo de uma visão de tal tipo – que, para ser exato, é esposada de modo mais claro e direto por Kirchheimer – encontra-se no capítulo 9 do livro: ali, assume-se que as “condições de vida das classes subalternas na Europa melhoraram consideravelmente (...) especialmente no último quartel do século XIX”, já que integradas no ciclo de produção e consumo em massa; isso provocou um “incremento dos níveis de remuneração”, o que também foi favorecido por fatores que reduziram “taxa de natalidade e o consequente decréscimo de oferta de mão-de-obra”. Com a absorção máxima da força de trabalho, o resultado foi que “o número de delitos e condenações decresceu em toda parte” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 193–194). .

Essa direção ‘exotérica’ de Rusche se deve à concentração na esfera da concorrência, que nada mais é do que o mecanismo pelo qual se entrecruzam as personificações polares pelas quais a lógica do capital se impõe: trabalhadores e capitalistas, capitalistas entre si, e trabalhadores entre si. A tônica da análise de Rusche recai no primeiro e no terceiro entrecruzamentos, na medida em que, por um lado, destaca a submissão de trabalhadores, encarcerados e livres, aos capitalistas com vistas a potencializar a relação de exploração e, por outro, esclarece como a competição entre trabalhadores livres e encarcerados favorece aquela exploração, no quadro da relação entre oferta e demanda da mercadoria força de trabalho. Todavia, o aspecto problemático é que, retomando a imagem de Heinrich acima exposta, a compreensão do motor da economia capitalista, por mais que se apresente como tarefa necessária e complexa, torna-se empreitada de alcance limitado se dissociada daquilo que, captado por um nível de abstração mais elevado, põe as regras de funcionamento do dito motor: as determinações e mediações sociais impostas pela forma-valor.

3.2) Cárcere e Fábrica, de Melossi e Pavarini

A obra de Melossi e Pavarini se apresenta como mais complexa que a de Rusche e Kirchheimer por alguns fatores. Em primeiro lugar, é relevante a questão cronológica: os italianos desenvolveram suas pesquisas décadas após Punição e Estrutura Social, e por isso tiveram a oportunidade de basear-se amplamente não só nesta obra – e o fazem em grande medida –, como em diversas outras que no interregno vieram a público. Em segundo lugar, os autores, além de aceitarem a premissa de Rusche, cujo livro é reiteradamente citado (em especial na parte escrita por Melossi), pretendem alargar seu horizonte da investigação: como já referido, Melossi (2014) detectou na obra do intelectual alemão uma insuficiência, consistente no menosprezo à análise do disciplinamento da força de trabalho por meio da instituição carcerária, e portanto dedicou-se a também enfatizar esse aspecto que considera relevante na exposição do lugar da prisão no modo de produção capitalista20 20 Outro fator, de ordem prática, poderia consistir na diferença entre as condições – materiais e mesmo pessoais – em que as pesquisas foram desenvolvidas. Enquanto Melossi e Pavarini gozaram de estrutura e fomento para empreender suas (apesar de nossas críticas, repise-se, brilhantes) pesquisas, a biografia de Georg Rusche foi marcada pela tragédia e pela morte prematura, de modo que sua obra teve de ser concluída – de maneira teoricamente inferior – por Otto Horkheimer, por cuja pessoa Max Horkheimer, diretor do IPS em Nova Iorque, parecia nutrir mais simpatia. Cf., a respeito, a breve pesquisa de Melossi (1980) sobre a vida de Rusche. . A análise dos italianos, contudo, ainda permanece, sob vários aspectos, presa às amarras do marxismo tradicional.

No que tange àquilo que constitui extensão da pesquisa de Rusche – i. e., sob praticamente as mesmas premissas teóricas – para contextos distintos daqueles a que se limitou o alemão, devem valer as mesmas anotações que teci no tópico anterior. Já quanto àquilo em que Melossi e Pavarini pretenderam ir além, ou seja, a análise da disciplina, a investigação de fato, tal como pretenderam, avançou em direção a novos âmbitos, em grande medida ‘esotericamente’. Entretanto, mais uma vez se verifica que o foco na disputa classista aparece como elemento a manietar o alcance da crítica.

Embora o objetivo aqui não seja, nem possa ser, uma análise minuciosa, i.e., argumento-a-argumento do livro em questão, vale destacar alguns trechos que fundamentam minha leitura da obra. Da parte do livro que contém a pesquisa de Melossi, por exemplo, colhe-se que, para ele, a função da casa de trabalho é “mais complexa do que simplesmente tabelar o trabalho livre” (como enfatiza Rusche), pois essa função deve ser entendida “na plenitude de seu significado, que é o do controle da força de trabalho, da educação e domesticação desta” (MELOSSI; PAVARINI, 2006MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica. Rio de Janeiro: Revan, 2006., p. 40–41, grifo no original). Já mais à frente, assinala como a segregação institucional visa à “contenção da luta de classes” e como a exploração do trabalho carcerário foi objeto de disputa entre trabalhadores livres (nos termos dele, “operários”) e capitalistas excluídos da possibilidade de explorar essa força de trabalho interna (ibid., p. 44-45). Também destaca que, ainda no alvorecer do modo de produção capitalista, o tipo de trabalho compulsório, de modelo manufatureiro, imposto nas Rasp-suis holandesas, era escolhido com vistas, tendencialmente, a docilizar o “operário”, tolhendo-o de saberes próprios que o munissem de capacidade de resistência (i. e., na luta de classes) (MELOSSI; PAVARINI, 2006MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica. Rio de Janeiro: Revan, 2006., p. 45). Já na construção da imagem que dá título à obra, refere Melossi a maneira pela qual o princípio da autoridade nas prisões mimetiza aquele que, no capitalismo, vige dentro da fábrica e submete o trabalhador ao capitalista na relação de exploração (ibid., p. 51-52). Esse raciocínio se torna mais alegórico quando, ao analisar o modelo do panóptico, assume que as instituições da sociedade burguesa projetadas de acordo com esse princípio arquitetônico visam ao controle do proletariado nascente, e que rebater para todas as instituições segregadoras o olho do patrão na fábrica, que pretende a extração da maior quota possível de mais-valor, constituía a utopia do controle de Bentham (ibid., p. 73). Sua adesão ao marxismo tradicional fica, logo em seguida, cristalina quando sublinha a extração de mais-valia (isto é, a exploração) como questão de vida ou morte para o capital e, mais ainda, quando a isso associa ser também para o capitalista decisiva “sua autoridade no processo de produção, sua autoridade na fábrica”. Arremata seu raciocínio, então, pela afirmação de que “a história da relação entre capital e trabalho, a história tout court, (...) é a história da luta de classes” (ibid., p. 75-76), em citação aos jovens Marx e Engels do Manifesto de 1848 – isto é, quando ainda não tinham uma teoria do valor madura21 21 Ver observação na nota de rodapé nº 6. .

Também não é despiciendo notar que Melossi, recorrentemente, invoca a obra de Maurice Dobb para sustentar diversos pontos de seu raciocínio. Em que pese a importância e o valor da obra do economista britânico, na citada obra de Postone encontram-se diversas demonstrações de como ele subscreve os postulados do marxismo tradicional22 22 Vale ainda assinalar, como informado por Melossi nas notas biográficas que teceu sobre Georg Rusche (MELOSSI, 1980), que este invocava o professor Dobb como referência a fim de, após retornar à Europa em 1939 de seu auto-exílio trienal na Palestina, tentar (em vão) obter uma posição de pesquisador no Reino Unido. Como também anota Melossi, Maurice Dobb, por sua vez, cita Rusche em uma de suas principais obras, o que denota uma proximidade entre ambos (cf. DOBB, 1983, p. 19 e 169). .

Massimo Pavarini, na segunda parte do livro, apresenta um discurso em bases similares, com validade para o contexto estadunidense. Nele, é evidente que o modo de produção capitalista não emergiu da dissolução da sociabilidade de tipo feudal, como se deu na Europa. Assim, o autor basicamente expõe a maneira como, lá, o controle social moldou-se a partir do afastamento gradual do modelo puritano colonial, de corte assistencialista e familiar – que de toda maneira nunca deixou de ter alguma influência (MELOSSI; PAVARINI, 2006MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica. Rio de Janeiro: Revan, 2006., p. 177–184). Com os processos de industrialização, urbanização e acumulação, o controle veio a se consolidar nos moldes penitenciários, com influência também do debate europeu em torno da instituição carcerária (ibid., p. 184-191). No mais, segue recaindo a tônica na disputa entre classe capitalista e trabalhadora (livre) em torno da prisão como mecanismo de regulação do nível dos salários; na exploração de força de trabalho encarcerada em contexto de escassez de força de trabalho livre (modelo penitenciário de Auburn); na utilização predominante do trabalho como meio de incrementar o caráter punitivo do aprisionamento à medida que se superava dita escassez (modelo da Filadélfia); no disciplinamento de presos nos moldes da disciplina dos empregados perante o capitalista; na concorrência intra-classe entre trabalhadores livres e presos; na intensificação da exploração em determinados modelos de utilização da força de trabalho privada de liberdade etc. (ibid., p. 192-207). Na parte final de seu ensaio, Pavarini dedica-se a uma digressão de cunho mais teórico-abstrato e menos historiográfico-analítico e, em boa medida sustentado no Foucault de Vigiar e Punir, dá-lhe roupagens classistas na defesa da tese de que o cárcere representa o “’lugar concentrado’ no qual a hegemonia de classe (...) pode desenvolver-se racionalmente numa teia de relações disciplinares”. Com isso, o cárcere é visto como o mecanismo que visa à “reafirmação da ordem social burguesa”, tida como “a distinção nítida entre o universo dos proprietários e o universo dos não-proprietários” (ambas as passagens em ibidem, p. 215-216). Em suma, fecha-se a obra com o ciclo de transformação no qual exerce a instituição carcerária papel central: do “não proprietário homogêneo ao criminoso, [d]o criminoso homogêneo ao preso, [d]o preso homogêneo ao proletário” (ibidem, p. 232).

Tanto no ensaio de Melossi quanto no de Pavarini, as determinações do valor são mencionadas apenas rápida e lateralmente. Por exemplo, no primeiro, faz-se em nota de rodapé uma referência à diferenciação entre “valor de uso” e “valor de troca”23 23 Ignorando-se que este último consiste apenas na forma de manifestação do valor. , no contexto de uma explanação da relação entre a visão da Reforma Protestante acerca da pobreza e produção voltada para o mercado (MELOSSI; PAVARINI, 2006MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica. Rio de Janeiro: Revan, 2006., p. 54). Já Pavarini, na conclusão de seu texto, tangencia a temática num momento em que expõe o paralelo traçado pelo jurista soviético Evguiéni Pachukanis entre a medição das penas em unidades de tempo e o princípio da equivalência que está na base do modelo contratual das trocas (op. cit., p. 262-263).

4) Conclusões e indicações de rota

No tópico anterior, pude demonstrar, mediante destaque dos argumentos centrais e de passagens das obras a que nos dispusemos revisar criticamente, a maneira pela qual se aproximam da leitura tradicional da obra de Marx, uma vez que há um foco exagerado na luta de classes e na relação de exploração, ademais de em considerações de mercado na análise da regulação do preço da força de trabalho, cuja variação ao sabor da oferta e da procura é influenciada pela dinâmica do encarceramento.

Novamente, é preciso reafirmar que a investigação empreendida pelos autores não se desgarra do movimento real da formação social capitalista, e descreve diversos aspectos que de fato nela se verificam. Todavia, também não se pode deixar de assinalar, por outro lado, que a análise tem seu potencial crítico restringido, ademais de afastar-se do cerne da teoria social de Marx, na medida em que deixa atacar o objeto de estudo – no caso, o fenômeno do encarceramento no quadro do modo de produção capitalista – também por meio de formulações dotadas de nível mais elevado de abstração.

Obviamente não se trata, aqui, de construir um estudo em que se supram as insuficiências ora constatadas nos escritos das duplas alemã e italiana, o que se traduziria em empreitada a ser desenvolvida, no mínimo, em livro tão volumoso quanto as referidas obras. O objetivo, bem mais modesto, consiste na indicação de pontos em que a abordagem poderia ser fertilizada pela adoção de premissas da teoria crítica do valor.

Por exemplo, na análise da disciplina laboral inegavelmente imposta na história do regime carcerário, um foco passível de ser relacionado com a mediação dos laços sociais pela forma-valor residiria na formulação do seguinte raciocínio: um espaço de segregação projetado para que o indivíduo regresse ao seio social apenas quando se logra que internalize a obrigação ao trabalho deve ser lido como uma estrutura burocrática e organizacional de potencialização da socialização nestes moldes. Em outros termos, a ascensão, no modo de produção capitalista, do valor (i.e., trabalho abstrato) enquanto forma predominante de riqueza social conduz, necessariamente, a que a naturalização – pela força naquele momento incipiente – da compulsão ao trabalho seja bem-sucedida.

É evidente que esse tipo de leitura pode não parecer tão facilmente, à primeira vista, diferenciável da chave interpretativa de Melossi e Pavarini, na qual prepondera a internalização da submissão ao poder de mando do capitalista sobre a força de trabalho. Todavia, sua superioridade explicativa pode ser verificada na medida em que, por um lado, ela conseguiria dar conta também da internalização desse tipo de socialização mediada pelo valor – através do cárcere, que é o objeto do estudo, mas não só por ele – por parte dos capitalistas, que apenas preenchem um dos polos necessários para que a relação capitalista se ponha em movimento numa lógica de dominação abstrata24 24 É preciso chamar aqui atenção para que não se pretende descrever os capitalistas “com cores róseas”, seja como se vítimas fossem de um sistema que se põe a si mesmo (quase como a materialização necessária de um Espírito hegeliano), seja como se não se reconhecesse que o polo por eles ocupado na relação lhes assegura exposição muito menos brutal à violência ínsita à lógica de valorização do valor, se comparados aos trabalhadores. A intenção é apenas reforçar o que o próprio Marx, no prefácio à primeira edição de O Capital, quis deixar claro: sua teoria não versa sobre relações pessoais, mas sobre posições sociais que ativam determinada lógica (MARX, 2013, p. 80). Há, assim, personificações do capital, que podem consistir em capitalistas-empresários, Estado, sociedades anônimas, etc. . Além disso, a interpretação conseguiria dar conta mais comodamente, por outro lado, de como a instituição carcerária floresceu em todo tipo de sociedade produtora de mercadorias25 25 Terminologia preferida por Robert Kurz, por exemplo em O Colapso da Modernização (1993). , ainda que, como no caso do socialismo realmente existente, nela não se verifique a figura do “olho do patrão”.

Do mesmo modo, a análise, privilegiada por Rusche, da regulação dos salários através da extensão e do grau de degradação do encarceramento poderia ser entendida como um mecanismo efetivamente operante nas sociedades produtoras de mercadorias que contam com um efetivo e, a depender das conjunturas históricas, mais ou menos livre mercado – ou seja, nas sociedades em que, de novo, diversamente do caso do dito socialismo real, a lógica de valorização do valor não foi castrada desse elemento de dinamização e substituída por um rígido planejamento estatal. Assim, seria possível vislumbrar que, mais do que as considerações de mercado, a categoria prioritária na compreensão da formação da estrutura burocrática carcerária e penitenciária é a imposição da mediação social pela forma valor e pelo trabalho abstrato. Com isso se consegue compreender por que um padrão de encarceramento, similar em quantidade e qualidade ao modelo ocidental, impôs-se por exemplo na União Soviética, onde não havia que se falar em concorrência, no mercado, entre força de trabalho livre e encarcerada26 26 Sobre a relação entre punição e valorização do valor no contexto soviético, teci algumas considerações na forma de artigo em VAZ, 2017.. .

Finalmente, a dimensão temporal da dominação verificada no capitalismo também seria passível de inclusão na análise em termos menos concretos do que se apresentou nas obras em questão. Pavarini, como mencionei, roça essa determinação, mas o faz apenas ao descrever, muito sucintamente, uma formulação de Pachukanis trazida num livro que, apesar de brilhante em muitos aspectos, foi redigido não mais do que como um mero esboço de suas ideias sobre teoria do direito27 27 Cf. ELBE, 2019. Na verdade, o próprio soviético admite, no prefácio à segunda edição de seu opúsculo, que, apesar da boa recepção, ele foi redigido, “em larga medida, para autoesclarecimento” (PACHUKANIS, 2017, p. 59). . Porém, para além das considerações acerca da correlação entre penas temporalmente definidas e valor medido em tempo de trabalho abstrato, seria plenamente possível compreender as diversas formas, analisadas pelos autores, de regime de trabalho compulsório nas instituições carcerárias como expressão desse tipo de dominação temporal. Sobretudo no regime penitenciário do modelo da Filadélfia, em que o trabalho – repetitivo, praticado em isolamento e despido de qualquer sentido – era imposto de modo a acentuar o princípio punitivo da pena, é visível a maneira pela qual o tempo abstrato da pena é tornado mais “denso” pela obrigação à produção de valores de uso, independente de o trabalhador ser dotado da qualificação para a prática daquele trabalho concreto, bem como de tais valores de uso de fato servirem ao atendimento de quaisquer necessidades humanas. O encarcerado, segregado de uma sociedade cuja lógica é a expansão do trabalho, é compelido, como condição de sua reintegração ao corpo social regido por tal lógica, à submissão a ela num ambiente que artificialmente a emula. Em outras palavras, cuida-se de fazer aceitar, pela violência, as determinações de uma sociedade do trabalho inútil, ou, mais precisamente, de uma sociedade em que o trabalho útil (produtor de valores de uso), é subordinado ao trabalho abstrato (produtor de valor), em relação ao qual entram apenas secundariamente considerações acerca do valor de uso.

5) Adendum

A título de complementação, é interessante o registro de que Melossi e Pavarini, inobstante terem seguido suas carreiras como intelectuais respeitáveis e decididamente comprometidos com ideologias críticas e libertárias, gradativamente afastaram-se do alinhamento rigoroso ao marco teórico marxista em suas obras subsequentes28 28 Georg Rusche, como dito, faleceu precocemente, e por isso não podemos traçar considerações sobre a sequência de seu pensamento. . Obviamente não se trata neste artigo – e muito menos num simples adendo final – de retraçar o itinerário dos escritos de ambos, mas apenas de pontuar brevissimamente algumas constatações. Melossi, por exemplo, passou a dedicar-se a análises do poder punitivo (em especial o que se expressa nas políticas de imigração) marcadas pela tônica mais propriamente sociológica, ainda que, como ele próprio admitiu em entrevista recente29 29 Cf. “Dario Melossi, interviewed by Máximo Sozzo (2016)”, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=CBRe201vfSM> (acesso em 25 de fevereiro de 2020). , ainda exiba traços do “treinamento marxista” que marcou sua formação acadêmica30 30 O tipo de sociologia a que ele atualmente se dedica vai ao encontro, em certa medida, das linhas de desenvolvimento que, no interior do campo do marxismo tradicional, buscaram atualizar a leitura mais ortodoxa que afirma que Marx apresenta, no Livro I de O Capital, uma descrição da estrutura dos agrupamentos sociais, mas preservando a centralidade da categoria de classe na análise no capitalismo, tal como mapeado por Postone (2014, p. 364-365). . Pavarini, por sua vez, capta adequadamente as drásticas modificações que a instituição carcerária e o poder punitivo em geral sofreram ao longo da história, descrevendo-as como a transição do modelo do “cárcere e fábrica” para o do “cárcere e sociedade” e, finalmente, para o do “cárcere sem sociedade” ou “cárcere e guerra”; por outro lado, as categorias com que trabalha são sem dúvida referíveis, mas cada vez menos efetivamente referidas ao repertório marxista, de modo que dá preferência, por exemplo, a conceitos ou chaves explicativas como “exclusão”, ou a construção discursiva de um “outro” ou do “inimigo” a ser combatido (PAVARINI, 2012PAVARINI, Massimo. Punir os inimigos: criminalidade, exclusão e insegurança. Curitiba: LedZe, 2012.. p. 49-63)31 31 Em outro artigo da mesma coletânea, aliás, ele defende a “influência cultural” como fator explicativo da disseminação do modelo carcerário estadunidense e europeu em contextos nos quais não se o explicava em termos de funcionalidade para o modo de produção capitalista (p.ex., em regiões da Índia ou do Caribe do século XIX onde, segundo ele, “dominavam condições do tipo feudal” [PAVARINI, 2012, p. 79]). Ora, parece-nos que a saída escolhida explica-se apenas por uma concepção pouco sofisticada – também ligada ao marxismo tradicional – quanto ao que significa a “determinação” do momento econômico na estruturação da vida social. Desse modo, não se justifica o afastamento da teoria marxista para explicar a constatação que o inquietou. Mas, por óbvio, uma linha de interpretação adequada para dar conta do fenômeno da disseminação global da instituição carcerária só poderia ser desenvolvida em outro artigo. .

Uma hipótese razoável para essa trajetória pode residir em que, realmente, o apego às categorias prediletas do marxismo tradicional, sobretudo a luta de classes, despe o marxismo de poder analítico (e crítico) no contexto contemporâneo de “desclassificação”, para usar o expressivo termo de Norbert Trenkle (2015). Entender o lugar do cárcere e de outras formas de punição na quadra atual do capitalismo, caracterizada pela crise da sociabilidade estruturada – porque mediada – pelo valor, exige não o abandono do marxismo, mas o retorno a Marx e àquilo que constitui o cerne de sua arrasadora crítica.

  • 1
    Classicismo é uma categoria em Marx que se refere ao maior ou menor desenvolvimento – no caso, de um tipo de sociedade regido por determinada lógica de acumulação. Não se trata de categoria de cunho moral, ou seja, não se afirma que o clássico ou o mais desenvolvido é algo valorativamente superior ao não clássico ou ao menos desenvolvido. A categoria do classicismo se revela fundamental no contexto do método marxiano, na medida em que a identificação (e análise) do estágio mais desenvolvido do ser deve iluminar os estágios menos desenvolvidos, como expressa a famosa analogia: “A anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por outro lado, os indícios de formas superiores nas espécies animais inferiores só podem ser compreendidos quanto a própria forma superior já é conhecida” (MARX, 2011, p. 58).
  • 2
    Vale notar que a exposição em O Capital segue, em linhas gerais, um percurso descendente no que toca ao nível de abstração com que se investiga o objeto, isto é, o modo de produção capitalista. Na primeira parte do Livro I, portanto, a exposição se desenvolve em nível ainda bastante elevado de abstração, e no citado capítulo 24 se apresenta um excurso que demonstra a conjugação dos fatores históricos que, reunidos, puderam desencadear uma lógica capitalista, como exporei no tópico seguinte, de auto-expansão quase objetiva.
  • 3
    Para uma exposição da discussão, com uma tomada de posição fundamentada, remetemos ao primeiro capítulo de FONTES, 2010FONTES, Virginia. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010..
  • 4
    Outro exemplo, mais recente, consiste no trabalho de Valeria Vegh Weis (2017)WEIS, Valeria Vegh. Marxism and criminology: a history of criminal selectivity. Boston: Brill, 2017., que, inobstante não pretender focar a pena de prisão, parte da seletividade penal presente na acumulação primitiva para retraçar as transformações de tal seletividade ao longo do desenvolvimento do modo de produção capitalista.
  • 5
    Sem aprofundar a polêmica a respeito de como se deve interpretar a expressão ‘a assim chamada acumulação primitiva’ no título do Capítulo 24 do Livro I de O Capital, entendo que, nesse ponto da obra, Marx contrasta de maneira pungente a sua visão a respeito da origem do modo de produção capitalista com a explicação apresentada pelos economistas. Estes, tal como Marx já havia exposto no capítulo 22, apresentam uma narrativa idílica pela qual a acumulação original, localizada em nenhuma época específica, derivou da abstinência do capitalista num momento em que ele ainda era trabalhador. A essa fábula do esforço de poupança, Marx contrapõe no capítulo 24 sua explanação para o mesmo fenômeno, fincada na história e na violência concretamente praticada. Nesse sentido, o termo “assim chamada” pode ser compreendido como elemento que insere uma carga irônica no texto.
  • 6
    Novamente não é o caso de descer à polêmica quanto a se poder falar em classes sociais em formações pré-capitalistas. Aqui, assumimos que elas só existem no modo de produção capitalista, pois devem ser conceituadas como posições sociais cujo antagonismo agora se baseia não mais em relações diretas e pessoais de dominação, mas é mediado pela forma valor, como se exporá no tópico 2 deste artigo. Assim, o conflito entre tais posições é dinamizado por um novo tipo de lógica, derivada em última instância das compulsões da mencionada forma valor. Antes disso, caberia falar em estamentos, grupamentos, castas, protoformas de classes, etc., com o que se expressaria um tipo de conflito social não automatizado por uma lógica quase objetiva, como no capitalismo. De acordo com tal linha de raciocínio, o famoso trecho no Manifesto de 1848, em que se assinala que “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes” (MARX; ENGELS, 2005MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 40), deve ser tido como ultrapassado à luz da teoria (crítica) do valor desenvolvida posteriormente por Marx, sobretudo em O Capital. Aliás, como nota Heinrich (2014HEINRICH, Michael. Die Wissenschaft vom Wert. Münster: Westfälisches Dampfboot, 2014., p. 152), já em A Ideologia Alemã haviam Marx e Engels rejeitado a concepção de que a história tem um sujeito – seja o homem (genérico, como se assumia na filosofia da essência esposada pelo jovem Marx), sejam as classes –, o que aliás robustece a tese, defendida por exemplo por Andreas Fisahn (2017FISAHN, Andreas. Der kapitalistische Staat als bürokratischer Staat: Überlegungen zu Staat und Marktgesellschaft. In: Rechts- und Staatskritik nach Marx und Paschukanis: Recht – Staat – Kritik. Berlim: AG Rechtskritik, 2017. p. 69–81., p. 71–72) de que, em textos voltados mais à agitação política (como o Manifesto ou o Guerra Civil na França), o rigor teórico permanecia em segundo plano.
  • 7
    Rusche enfatiza a dinâmica da regulação dos salários por meio do aprisionamento, valendo-se da análise da dinâmica do mercado de trabalho (maior disponibilidade ou carência de força de trabalho em dado contexto sócio-histórico concreto) e, como premissa, do mecanismo da less elegibility, pelo qual as condições do cárcere devem ser piores do que aquelas vigentes entre a camada dos trabalhadores livres mais pauperizada. A dupla de italianos, por sua vez, sem abandonar a perspectiva ruscheana, dá atenção também ao disciplinamento da força de trabalho pela instituição carcerária no estabelecimento e no desenvolvimento do modo de produção capitalista.
  • 8
    Por imperativo de lealdade, devo advertir o leitor que a descrição que ofereço sobre a razão de Marx ter optado por esse modo de exposição já exprime um juízo de interpretação. Como se sabe, Marx desenvolveu a pesquisa necessária à sua crítica da economia política por muitos anos, e também planejou minuciosamente o modo de exposição a ser adotado em O Capital. A redação desta obra, mesmo quando já publicado o Livro I, sofreu significativas mudanças. Na impossibilidade de aqui alongar-me sem fugir ao escopo do artigo, remeto o leitor à obra incontornável quando se trata da temática: ROSDOLSKY, 2001. Também em HEINRICH, 2014HEINRICH, Michael. Die Wissenschaft vom Wert. Münster: Westfälisches Dampfboot, 2014. encontram-se fundadas digressões sobre o ponto, que em grande parte compatibilizam-se com as premissas teóricas adotadas no presente artigo.
  • 9
    Como informei ao final do item anterior, baseio a exposição do artigo, no presente tópico, nas formulações de Moishe Postone, sobretudo as consolidadas em sua principal obra, Tempo, Trabalho e Dominação Social. Todavia, devo assinalar uma dissonância entre o que fiz constar de meu texto e o que o historiador canadense defende (cf. POSTONE, 2014, p. 64 e ss.). Embora ele reconheça, obviamente, a existência da generalização da dinâmica acima exposta – que os trabalhadores isolados e privados devem levar seus produtos ao mercado para realizar a troca e assim satisfazer suas próprias necessidades mediante aquisição das mercadorias de outros produtores –, ele sustenta, argutamente, que o trabalho no capitalismo é, já na origem, imediatamente social e por isso oprime e anula a esfera individual (e não que, como afirmei acima com base p. ex. em HEINRICH, 2014HEINRICH, Michael. Die Wissenschaft vom Wert. Münster: Westfälisches Dampfboot, 2014., p. 206–207, ele se realiza privadamente e apenas na troca se confirma sua participação no trabalho social geral, pois, diz Postone, tal posição estaria associada a uma ênfase indevida nas relações de mercado). Como aqui importa mais a descrição da dinâmica e menos a interpretação que dela se faz, deve-se apenas registrar a polêmica teórica.
  • 10
    A fundamentação teoricamente mais acabada (e influente) dessa orientação encontra-se, sem dúvida, no Lukács de História e Consciência de Classe (2003). A mais vulgarizada pode ser identificada nas propostas de Stálin. Não sendo o caso de expor aqui em detalhes em que consistem a sofisticação em Lukács e o caráter rudimentar dos escritos de Stálin – bem como abordar os diversos autores que se situam entre tais extremos, incluindo o relevante Lênin –, remeto o leitor a ELBE, 2010ELBE, Ingo. Marx im Westen: die neue Marx-lektüre in der Bundesrepublik seit 1965. Berlim: Akademie, 2010., onde se encontra, em relação a inúmeras obras e teóricos, uma categorização bem fundamentada conforme aproximem-se ou distanciem-se de um marxismo que se pode ter como tradicional (no sentido da distorção, consciente ou não, do pensamento marxiano em prol de sua acomodação às dinâmicas estatais-partidárias típicas do socialismo realmente existente).
  • 11
    Nesse texto, aliás, Marx expressamente estipula, na linha do que expusemos acima com base em Postone, que riqueza material é um tipo de riqueza distinta daquela que predomina no modo de produção capitalista. A riqueza material, consistente em valores de uso, é fruto não exclusivo do trabalho (como é o valor, no capitalismo), mas também da natureza. Marx ainda observa que o próprio trabalho produtor de valores de uso é, sob certo ponto de vista, uma força natural. Essa visão não é equivocada, pois o ser humano é, obviamente, um ser natural, mas ela pode ser pormenorizada e sofisticada pelas construções teóricas do velho Lukács de Para a Ontologia do Ser Social.
  • 12
    Atentar para que a comparação, sob esse aspecto, entre formações pré-capitalistas e capitalistas não quer sugerir, obviamente, uma proposta de tipo romântico ou saudosista de contextos em que tais relações imediatas, não mediadas pelo valor, eram na verdade essencialmente fundadas na violência aberta, como no caso do escravismo. Inclusive, nada indica que a superação das determinações do valor, na quadra atual, conduzirá necessariamente a uma sociedade pós-capitalista de tipo comunista. Ao revés, as indicações conjunturais do presente dão conta de que, no contexto de desgaste da sociabilidade mediada pelo valor, é a violência – inclusive no trato com a natureza – que retorna à cena na tentativa de reconstituir os laços sociais em processo de ruptura. A inauguração de uma etapa civilizatória superior dependeria da construção efetiva de uma nova figuração de mundo baseada numa ética comunista. É evidente, porém, que os limites deste trabalho impedem que me aprofunde nessas reflexões.
  • 13
    Reconheço que, ao leitor que não tenha tido contato prévio com a obra de Postone, muito dificilmente terei, com a inevitável concisão que tive de observar, conseguido transmitir de maneira clara o cerne de sua leitura da obra de Marx. Portanto, optei por pontualmente elencar, sem maiores aprofundamentos, unicamente aquilo que me interessa ao desenvolvimento de meu argumento, sem que se dispense a remissão aos escritos do próprio historiador. Além de sua principal obra, já citada, há diversos outros artigos que, mais sucintamente do que no livro, mas menos do que aqui, desenvolvem os temas que abordei: cf. p. ex. POSTONE, 1998, 2004POSTONE, Moishe. Critique and historical Transformation. Historical Materialism, v. 12, n. 3, p. 53–72, 2004., 2017. Ademais disso, consigno que o Grupo de Estudos e Pesquisa em Ontologia Crítica (GEPOC-UFF) planeja organizar e publicar, em futuro próximo, uma publicação com textos que possam servir como uma primeira aproximação à obra do autor.
  • 14
    Por esse mecanismo se percebe como a pletora de valores de uso no capitalismo é subordinada ao imperativo de valorização do valor.
  • 15
    A compulsão temporal é expressa por Postone pela imagem de uma esteira (treadmill effect): à medida que a técnica indutora de novos níveis de produtividade se generaliza, um novo padrão se estabelece, a partir do qual se reconstitui o que conta como hora de trabalho social. Para explorar a alegoria proposta pelo autor, é como se a esteira fosse reprogramada, e só a corrida na nova velocidade, superior à anterior, possa contar como corrida durante o período do treino – embora se trate de movimento que não leva a lugar algum, mas apenas a que a mesma dinâmica (corrida no mesmo equipamento com velocidades opressiva e sucessivamente ascendentes) se perpetue.
  • 16
    Os pontos não destacados na passagem copiada revelam, ainda, sendas instigantes de investigação: em que medida instituições de controle social de tipo análogo às que são efetivas no capitalismo devem exercer algum papel numa sociedade emancipada? Essa via de elucubração, por mais atrativa que se apresente, excederia em muito o modesto escopo de meu trabalho, e por isso deve ser aqui apenas registrada para que seu rumo possa ser tomado em outra oportunidade.
  • 17
    Valemo-nos da terminologia do próprio Marx que, no Teorias do Mais-Valor, ao analisar a economia política clássica, sobretudo a de Smith, nela identifica momentos esotéricos – ou seja, que caminham na direção de apreender o movimento real da dinâmica capitalista – e exotéricos – i.e. que se rendem às suas mistificações da dinâmica capitalista. Veja-se passagem em que Marx se refere a esses últimos momentos: “Cabe criticá-lo [Smith], por um lado, por não avançar nem ser consequente bastante na abstração, e assim, por exemplo, ao interpretar o valor da mercadoria, logo se deixa influenciar por considerações relativas a condições concretas de toda espécie; por outro lado, por conceber a forma fenomenal, de maneira imediata e direta, como prova ou representação das leis gerais, sem explicá-la.” (MARX, 1980, p. 537). Pontuo que a submissão de construções teóricas a tal tipo de escrutínio, tal como agora procedemos relativamente à criminologia marxista, não representa qualquer tipo de desprestígio, visto até mesmo a obra de Marx foi assim lida, de modo instigante, pela chamada Neue Marx-Lektüre (cf. ELBE, 2019, p. 189).
  • 18
    Um exemplo desse tipo de ênfase que remete à construção ricardiana encontra-se no capítulo 9 do livro
  • 19
    Exemplo de uma visão de tal tipo – que, para ser exato, é esposada de modo mais claro e direto por Kirchheimer – encontra-se no capítulo 9 do livro: ali, assume-se que as “condições de vida das classes subalternas na Europa melhoraram consideravelmente (...) especialmente no último quartel do século XIX”, já que integradas no ciclo de produção e consumo em massa; isso provocou um “incremento dos níveis de remuneração”, o que também foi favorecido por fatores que reduziram “taxa de natalidade e o consequente decréscimo de oferta de mão-de-obra”. Com a absorção máxima da força de trabalho, o resultado foi que “o número de delitos e condenações decresceu em toda parte” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Revan, 2004., p. 193–194).
  • 20
    Outro fator, de ordem prática, poderia consistir na diferença entre as condições – materiais e mesmo pessoais – em que as pesquisas foram desenvolvidas. Enquanto Melossi e Pavarini gozaram de estrutura e fomento para empreender suas (apesar de nossas críticas, repise-se, brilhantes) pesquisas, a biografia de Georg Rusche foi marcada pela tragédia e pela morte prematura, de modo que sua obra teve de ser concluída – de maneira teoricamente inferior – por Otto Horkheimer, por cuja pessoa Max Horkheimer, diretor do IPS em Nova Iorque, parecia nutrir mais simpatia. Cf., a respeito, a breve pesquisa de Melossi (1980)MELOSSI, Dario. Georg Rusche: a biographical essay. Crime and social justice, p. 51–63, 1980. sobre a vida de Rusche.
  • 21
    Ver observação na nota de rodapé nº 6.
  • 22
    Vale ainda assinalar, como informado por Melossi nas notas biográficas que teceu sobre Georg Rusche (MELOSSI, 1980MELOSSI, Dario. Georg Rusche: a biographical essay. Crime and social justice, p. 51–63, 1980.), que este invocava o professor Dobb como referência a fim de, após retornar à Europa em 1939 de seu auto-exílio trienal na Palestina, tentar (em vão) obter uma posição de pesquisador no Reino Unido. Como também anota Melossi, Maurice Dobb, por sua vez, cita Rusche em uma de suas principais obras, o que denota uma proximidade entre ambos (cf. DOBB, 1983DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo. São Paulo: Abril Cultural, 1983., p. 19 e 169).
  • 23
    Ignorando-se que este último consiste apenas na forma de manifestação do valor.
  • 24
    É preciso chamar aqui atenção para que não se pretende descrever os capitalistas “com cores róseas”, seja como se vítimas fossem de um sistema que se põe a si mesmo (quase como a materialização necessária de um Espírito hegeliano), seja como se não se reconhecesse que o polo por eles ocupado na relação lhes assegura exposição muito menos brutal à violência ínsita à lógica de valorização do valor, se comparados aos trabalhadores. A intenção é apenas reforçar o que o próprio Marx, no prefácio à primeira edição de O Capital, quis deixar claro: sua teoria não versa sobre relações pessoais, mas sobre posições sociais que ativam determinada lógica (MARX, 2013, p. 80). Há, assim, personificações do capital, que podem consistir em capitalistas-empresários, Estado, sociedades anônimas, etc.
  • 25
    Terminologia preferida por Robert Kurz, por exemplo em O Colapso da Modernização (1993).
  • 26
    Sobre a relação entre punição e valorização do valor no contexto soviético, teci algumas considerações na forma de artigo em VAZ, 2017..
  • 27
    Cf. ELBE, 2019. Na verdade, o próprio soviético admite, no prefácio à segunda edição de seu opúsculo, que, apesar da boa recepção, ele foi redigido, “em larga medida, para autoesclarecimento” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 59).
  • 28
    Georg Rusche, como dito, faleceu precocemente, e por isso não podemos traçar considerações sobre a sequência de seu pensamento.
  • 29
    Cf. “Dario Melossi, interviewed by Máximo Sozzo (2016)”, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=CBRe201vfSM> (acesso em 25 de fevereiro de 2020).
  • 30
    O tipo de sociologia a que ele atualmente se dedica vai ao encontro, em certa medida, das linhas de desenvolvimento que, no interior do campo do marxismo tradicional, buscaram atualizar a leitura mais ortodoxa que afirma que Marx apresenta, no Livro I de O Capital, uma descrição da estrutura dos agrupamentos sociais, mas preservando a centralidade da categoria de classe na análise no capitalismo, tal como mapeado por Postone (2014, p. 364-365).
  • 31
    Em outro artigo da mesma coletânea, aliás, ele defende a “influência cultural” como fator explicativo da disseminação do modelo carcerário estadunidense e europeu em contextos nos quais não se o explicava em termos de funcionalidade para o modo de produção capitalista (p.ex., em regiões da Índia ou do Caribe do século XIX onde, segundo ele, “dominavam condições do tipo feudal” [PAVARINI, 2012PAVARINI, Massimo. Punir os inimigos: criminalidade, exclusão e insegurança. Curitiba: LedZe, 2012., p. 79]). Ora, parece-nos que a saída escolhida explica-se apenas por uma concepção pouco sofisticada – também ligada ao marxismo tradicional – quanto ao que significa a “determinação” do momento econômico na estruturação da vida social. Desse modo, não se justifica o afastamento da teoria marxista para explicar a constatação que o inquietou. Mas, por óbvio, uma linha de interpretação adequada para dar conta do fenômeno da disseminação global da instituição carcerária só poderia ser desenvolvida em outro artigo.

6) Referências bibliográficas

  • DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo São Paulo: Abril Cultural, 1983.
  • ELBE, Ingo. Marx im Westen: die neue Marx-lektüre in der Bundesrepublik seit 1965. Berlim: Akademie, 2010.
  • ___________. Teoria Geral do Direito e Marxismo de Eugen Pachukanis. Revista Direito e Práxis, v. 10, n. 2, p. 1554–1582, 2019.
  • FISAHN, Andreas. Der kapitalistische Staat als bürokratischer Staat: Überlegungen zu Staat und Marktgesellschaft. In: Rechts- und Staatskritik nach Marx und Paschukanis: Recht – Staat – Kritik. Berlim: AG Rechtskritik, 2017. p. 69–81.
  • FONTES, Virginia. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.
  • HEINRICH, Michael. Die Wissenschaft vom Wert Münster: Westfälisches Dampfboot, 2014.
  • KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
  • LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • MARX, Karl. Crítica do programa de Gotha São Paulo: Boitempo, 2012.
  • ___________. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011.
  • ___________. O capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • ___________. Teorias da mais-valia: história crítica do pensamento econômico. V. 2. Livro 4 de O Capital. São Paulo: DIFEL, 1980.
  • MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista São Paulo: Boitempo, 2005.
  • MELOSSI, Dario. Georg Rusche: a biographical essay. Crime and social justice, p. 51–63, 1980.
  • MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica Rio de Janeiro: Revan, 2006.
  • PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria geral do direito e marxismo São Paulo: Boitempo, 2017.
  • PAVARINI, Massimo. Punir os inimigos: criminalidade, exclusão e insegurança. Curitiba: LedZe, 2012.
  • POSTONE, Moishe. Critique and historical Transformation. Historical Materialism, v. 12, n. 3, p. 53–72, 2004.
  • ___________. La teoría crítica del capitalismo. Revista de Teoría Crítica, n. 8–9, p. 82–98, 2017. Disponível em: <constelaciones-rtc.net/article/view/1913>.
  • ___________. Repensando a Marx (en un mundo post-marxista). In: CAMIC, Charles (Org.). Reclaiming the Sociological Classics Cambridge: Mass Blackwell Publishers, 1998.
  • ___________. Tempo, trabalho e dominação social. São Paulo: Boitempo, 2014.
  • RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social Rio de Janeiro: Revan, 2004.
  • TRENKLE, Norbert. Luta sem classes: por que não há um ressurgimento do proletariado no processo de crise capitalista. Disponível em: <http://www.krisis.org/2015/luta-sem-classes/>. Acesso em: 25 fev. 2020.
    » http://www.krisis.org/2015/luta-sem-classes/
  • VAZ, André. O aprofundamento da lógica de valorização do valor pelo trabalho abstrato através do poder punitivo na Revolução Russa: possíveis diálogos entre a criminologia marxista e a teoria crítica do valor. Disponível em: <https://t.umblr.com/redirect?z=https%3A%2F%2Fdrive.google.com%2Fopen%3Fid%3D1kjI_S_K2IZs52xZhbhbd65oBtk28o68D&t=ZmNlNGQ0MDIxNGI2YjQwMjliYzE0NWU3YzNiOTc5OTE0ZWZkZDk3YSxtTUZDN3BEVw%3D%3D&b=t%3A1Y3fyCPQCbA3rwpwJJpcsA&p=https%3A%2F%2Fdeprevolucao.tumblr.com%2Fpost%2F174813108932%2Fos-anais-do-evento-direito-e-revolu%25C3%25A7%25C3%25A3o-est%25C3%25A3o&m=1>. Acesso em: 27 abr. 2020.
    » https://t.umblr.com/redirect?z=https%3A%2F%2Fdrive.google.com%2Fopen%3Fid%3D1kjI_S_K2IZs52xZhbhbd65oBtk28o68D&t=ZmNlNGQ0MDIxNGI2YjQwMjliYzE0NWU3YzNiOTc5OTE0ZWZkZDk3YSxtTUZDN3BEVw%3D%3D&b=t%3A1Y3fyCPQCbA3rwpwJJpcsA&p=https%3A%2F%2Fdeprevolucao.tumblr.com%2Fpost%2F174813108932%2Fos-anais-do-evento-direito-e-revolu%25C3%25A7%25C3%25A3o-est%25C3%25A3o&m=1
  • WEIS, Valeria Vegh. Marxism and criminology: a history of criminal selectivity. Boston: Brill, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2020
  • Aceito
    15 Maio 2020
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com