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Onde (direito em) ação e crítica se encontram: uma conversa com David Trubek

Critical Legal Perspectives on Global Governance, obra publicada em 2014 pela Hart Publishing e editada por Gráinne de Búrca (NYU), Claire Kilpatrick (EUI) e Joanne Scott (EUI), homenageia David Trubek, intelectual norte-americano que, há mais de 50 anos, tem se dedicado à compreensão do papel do direito, suas instituições e atores em processos de desenvolvimento, especialmente em países do Sul Global e sobretudo no Brasil. O livro é organizado em torno de seis seções que debatem os principais temas a que o homenageado se dedicou ao longo de sua multifacetada carreira: Caminhos críticos no direito; Transformações na governança global; Trabalho e globalização; União Europeia; Discursos sobre direitos e Profissão jurídica e globalização. A coletânea reúne textos de autores cujas trajetórias e agendas de pesquisa entrelaçam-se à obra de David Trubek, dentre os quais Duncan Kennedy, Álvaro Santos, Yves Dezalay, Bryant Garth, David Wilkins, Mario Schapiro, Diogo Coutinho, dentre outros. Em uma tentativa de identificar o amálgama que une os aparentemente tão distintos interesses de pesquisa de Trubek, o livro ressalta a perspectiva crítica do autor e, assim, resgata sua importância para o movimento do Critical Legal Studies (CLS). As reflexões propostas pelos textos que compõem o título serviram de inspiração para uma entrevista concedida por David Trubek às autoras. Nesta resenha, exploramos a importância do CLS para a vida de Trubek e a importância de Trubek para a vida do CLS.

A relação é sugerida por Duncan Kennedy no texto de abertura da coletânea. Nele, Kennedy nos permite, ao mesmo tempo, compreender os sentidos que o termo crítico assume na obra de Trubek e como a sua vida foi impactada e impactou os CLS enquanto um movimento contestatório. O capítulo de Duncan Kennedy tem o mérito de não tratar essas duas esferas como separadas: os sentidos que a palavra “crítico” assume na vida profissional de Trubek são, a um só tempo, teoria e práxis. Assim é que o autor reconstrói, em diferentes momentos do texto, a trajetória acadêmica e profissional de David Trubek, apontando ora para a perspectiva crítica de seus trabalhos, ora para a sua atuação enquanto um acadêmico propagador da perspectiva crítica do direito.

1. A vida do CLS e a vida de Trubek

Da narrativa de Kennedy, conseguimos remontar aos anos iniciais da carreira de Trubek, mesmo momento em que o CLS se inicia. Uma vez graduado pela Faculdade de Direito de Yale, David Trubek atua como assessor de um importante magistrado, Judge Charles Clark, com quem escreve uma contundente resenha do livro de Karl Llewellyn, "The Common Law Tradition: Deciding Appeals" (1960). De acordo com Kennedy, Clark conecta Trubek à tradição do Realismo Jurídico norte-americano em contraposição a um momento em que se acreditava que o processo legal se baseava em uma elaboração fundamentada e em princípios neutros. A neutralidade dos princípios, desafiada pelos realistas, era defendida por um movimento conservador à época, ao qual Trubek compara com o “originalismo norte-americano”1 1 Segundo Balkin, em sua obra Living originalism (2011), um dos mais proeminentes defensores do originalismo foi Justice Antonin Scalia. Para Scalia, a constituição deveria ser interpretada de acordo com o sentido original do seu texto. Em outras palavras, o sentido atribuído aos princípios e valores estampados no documento constitucional devem ser aplicados do mesmo modo que fariam os criadores da constituição. atual. "Eu aprendi com o magistrado Clark que o direito era indeterminado, embora não tivéssemos essa palavra ainda. Digamos, [aprendi] que o direito era aberto e que poderia ser moldado pela vontade. E que a ideia de princípios neutros era uma ficção" (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.). O texto de 1961 antecede a revolução social e cultural que acontece nos Estados Unidos na década de 1960. Para Kennedy, esse escrito inicial de Trubek serve como uma ponte entre o contexto norte-americano anterior à Segunda Guerra Mundial e o contexto pós-Guerra do Vietnã.

Em 1962, Trubek muda-se para Washington, para trabalhar como attorney advisor na Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (United States Agency for International Development - USAID). Poucos anos depois, é enviado ao Brasil, onde chega no emblemático ano de 1964, para servir como Diretor da Missão Brasileira, dedicando-se especialmente ao desenvolvimento urbano e de moradia. Sua passagem pelo Brasil durante a ditadura militar o impacta tremendamente. Percebe aqui e também em outros países da América Latina, como Chile e Argentina, a “indeterminação do direito”. Nota que o direito praticado no Brasil, nesse período de exceção, se manifestava de maneira bastante distante da forma descrita pelo modelo liberal legalista clássico. Afirma que “muitas partes da América do Sul, ao menos no papel, adaptaram princípios básicos do legalismo liberal” (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.). Apesar de haver “um desvio maior entre o ideal e o real na América Latina" do que o notado nos países centrais, existiram “muitos episódios nos quais [os princípios básicos] foram absolutamente rejeitados” (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.). É a partir dessa experiência que ele concebe a ideia de “exportar a cultura jurídica americana” e o estado de direito (“rule of law”). Em entrevista para Laura Kalman (2005)KALMAN, Laura. Yale Law School and the sixties: revolt and reverberations. The University of North Carolina Press, 2005., Trubek esclarece que, para ele, o sistema jurídico brasileiro era um obstáculo ao crescimento. A solução mais simples, naquele momento, parecia ser:

“reeducar os juristas do terceiro mundo que não compreendiam o mix de instrumentalismo pragmático e idealismo liberal que tinham sido a marca da nossa educação jurídica. Ao exportar as técnicas educacionais das Faculdades de Direito americanas - método socrático, ciências sociais e tudo mais - nós fortaleceríamos as instituições jurídicas do mesmo modo que os técnicos agrônomos da Agência de Desenvolvimento Internacional estavam transformando os pequenos ovos amarelos em grandes ovos brancos” (KALMAN, 2005KALMAN, Laura. Yale Law School and the sixties: revolt and reverberations. The University of North Carolina Press, 2005., p. 260).

Após seu retorno aos Estados Unidos, Trubek torna-se professor assistente na Faculdade de Direito de Yale. A instituição buscava alguém que pudesse conduzir uma agenda de pesquisa sobre questões relacionadas à moradia e ao desenvolvimento. Trubek havia recebido de seu antigo empregador (USAID) um substantivo financiamento para desenvolver o "Programa de Direito e Modernização" (the Law and Modernization Program). O projeto tinha o objetivo de versar jovens acadêmicos na literatura e em técnicas da sociologia do direito, a fim de permitir o estudo do papel do direito na modernização de países em desenvolvimento (termo empregado à época).

Kalman lembra que a Faculdade de Direito de Yale daquele momento já contava com um Programa de Direito e Sociologia, financiado pela Russel Sage Foundation e conduzido por Stanton Wheeler. Trubek acreditava, então, que pudesse unir seus esforços aos já existentes; no entanto, o Programa de Direito e Modernização enfrentou diversas dificuldades. Seus próprios objetivos estavam em debate: enquanto a compreensão do direito em seu contexto crescia (o que sugeria uma dificuldade de se aventa-lo em abstrato em contextos nacionais completamente distintos do norte-americano), também se desenvolviam críticas às teorias da modernização (que passavam a ser consideradas formas de neocolonialismo); ainda, experiências de transplantes institucionais se mostravam soluções inócuas.

Os seminários concebidos no bojo deste programa tornaram-se então o lócus de discussão das premissas que sustentavam a ideia do Programa de Direito e Modernização. Esses debates - conduzidos por Trubek e por Richard Abel e frequentados por Boaventura de Sousa Santos, Duncan Kennedy, Mark Tushnet, dentre outros -, foram de fundamental importância para o surgimento do movimento do CLS. Laura Kalman afirma que a presença de Trubek em Yale ajudou a "radicalizar outros menos inclinados a perceberem o liberalismo com simpatia" (KALMAN 2005KALMAN, Laura. Yale Law School and the sixties: revolt and reverberations. The University of North Carolina Press, 2005., p. 262). Segundo a autora, além de ter sido essencial para o movimento Direto e Sociedade, o Programa de Direito e Modernização também serviu como uma "incubadora" para o Critical Legal Studies. A partir de trechos de entrevistas concedidas por Mark Tushnet, Kalman diz que os contornos do que seria o CLS foram rascunhados no grupo de leitura desse Programa. Em seu âmbito, "ele, Duncan Kennedy, outros alunos de esquerda, Abel e Trubek descobriram as raízes radicais do realismo jurídico, a atenção inicial dos realistas para a indeterminação das regras jurídicas e à cooptação do realismo e das ciências sociais pelos formuladores de políticas públicas ligados ao New Deal" (KALMAN 2005KALMAN, Laura. Yale Law School and the sixties: revolt and reverberations. The University of North Carolina Press, 2005., p. 262).

Ainda assim, em nossa entrevista, Trubek ressalta o fato de que o CLS nasce de iniciativas de jovens acadêmicos, seus estudantes, ligados ao movimento estudantil que animava Yale durante os fins dos 1960 e início da década de 1970 (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.). A posição intermediária entre estudantes e o corpo docente, além dos diversos desafios que o Programa de Direito e Modernização atravessou, contribuiu para que Trubek não fosse nomeado professor efetivo da Faculdade de Direito de Yale. Em retrospectiva, diz para a Kalman: "os eventos em Yale e o comportamento do corpo docente mais sênior me fizeram questionar o que o legalismo liberal estava se tornando. Enquanto os docentes rumavam para a direita, eu continuava em minha busca pelo que entendia ser o ideal liberal e a tradição do realismo jurídico" (2005, p. 262). Essa posição o situava, no plano intelectual, próximo de estudantes como Kennedy e Tushnet; no entanto, enquanto membro do corpo de professores - com um estatuto ainda provisório - era instado a se manifestar sobre uma série de políticas institucionais francamente disputadas por alunos e docentes. Buscava ainda um caminho do meio quando descobriu que esse não existia (KALMAN 2005KALMAN, Laura. Yale Law School and the sixties: revolt and reverberations. The University of North Carolina Press, 2005.: 262).

Em 1973, David Trubek muda-se para o middle west americano, tornando-se professor da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison. É naquela instituição que se torna uma figura central para o movimento de Direito e Sociedade e também para o estabelecimento do campo Direito e Desenvolvimento, o que o projeta como um acadêmico altamente internacionalizado, lido tanto pelas academias norte-americana e europeia quanto pelos centros de diversos países do Sul Global. São seus projetos de pesquisa que financiam o primeiro encontro dos Crits, em 1975, e, anos mais tarde, também de outros movimentos críticos, como o Critical Race Theory, ambos os eventos sediados na Universidade de Wisconsin-Madison.

Em meados da década de 1980, David Trubek torna-se pesquisador visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard. Novamente, a heterodoxia de sua produção colabora para que não seja nomeado como professor daquela instituição. David Wilkins, em seu capítulo para a coletânea resenhada, afirma:

"Quando David Trubek chegou como visitante em Harvard no outono de 1986, CLS havia se tornado uma força tão potente que o venerável corpo docente estava literalmente em guerra. Ao fim de sua estadia de um ano, Trubek se tornou uma vítima do conflito mortal na instituição que ele famosamente apelidou de 'Beirute da educação jurídica' - mas isso apenas depois de ter convencido, miraculosamente, uma saudável maioria de dois terços do equivalente em Harvard aos Hatfields e os McCoys que a sua combinação de internacionalismo, empirismo e investigação crítica era para onde a ação estava se movendo desde os campos do direito e desenvolvimento, passando pelo estudo do sistema de litígios civis, até à sociologia da profissões jurídica e a teoria do direito. Eu sei porque eu estava lá". (WILKINS in DE BURCA, KILPATRICK, SCOTT, 2014, p. 441-442).

Em nossas entrevistas, Trubek reflete: "Depois de um tempo, foi ficando claro para mim. Eu fui ingênuo. Não havia me ocorrido que, sabe, tomar uma posição heterodoxa afetaria minha carreira tão significativamente" (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.).

Embora ele e outros, como lembra Kalman (2015), tenham tido suas carreiras profundamente impactadas pela proximidade com o CLS, alguns tiveram suas carreiras impulsionadas. Nesse sentido, Trubek afirma que houve um momento em que se acreditava que “toda escola de direito deveria ter um [Crit]” (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.). No entanto, “no momento que passou a ter um número significativo, isso se tornou ameaçador” (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.). Quando perguntamos se o CLS conseguiu transformar o ensino e a prática das Faculdades de Direito dos Estados Unidos, D. Trubek responde: “sim e não” (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.). Ele diz: “Não, muitas das ideias mais radicais nunca aconteceram, mas o CLS coincidiu com um movimento mais amplo que levou a maior diversidade (…) tanto diversidade intelectual, quanto de gênero e raça” (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.).

Pela primeira vez, o “consenso liberal legalista” que dominava a universidade norte-americana foi questionado por “Crits, simpatizantes e pesquisadores com um posicionamento político de esquerda” (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.). Qualquer ideia que desafiasse esse consenso era considerada “realmente heterodoxa”, o que impedia que diferenças ideológicas existissem nas escolas de Direito. Como reação, “existiram esforços organizados para reprimir o CLS”, (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.) tais como os vivenciados por Trubek.

A repressão não foi sentida apenas institucionalmente. Foi também publicizada pela mídia2 2 KINGSON, Jennifer A. “Harvard Tenure Battle Puts ‘Critical Legal Studies’ on Trial”. The New York Times, Nova Iorque, 30 de ago. 1986, p. 138 --- (KINGSON, 1986) e vivenciada em encontros informais. Os ecos da disputa ultrapassaram o ambiente jurídico norte-americano, tomando proporções internacionais. Trubek narra duas ocasiões em que, em conversas informais com pessoas que não o conheciam, é surpreendido com informações que demonstravam a existência de reações organizadas ao CLS.

A primeira situação ocorreu em um casamento. Ele inicia uma conversa com um desconhecido que está sentado ao seu lado. Trubek, ao ser perguntado sobre o que faz, responde que “está ensinando em Harvard” e ouve o seguinte comentário: “Harvard! Você não sabe o que está acontecendo. É terrível! Existem esses Crits malucos lá. Nós reunimos um grupo de alunos para ver o presidente semana passada para lhe dizer que precisa se livrar dos Crits. Eles estão destruindo o estado de direito” (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.).

A segunda recordação evoca o início dos anos 1990 em Moscou, quando foi contratado pela USAID para desenvolver um relatório sobre “as perspectivas do estado de direito na Rússia” (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.). Em um evento festivo, certo casal, ao tomar conhecimento de que Trubek tinha realizado entrevistas com professores de Direito no país, comentou: “Escolas de Direito. Vocês sabem o que está acontecendo na América? Comunistas. Eles estão tentando assumir o comando da escola de direito. É algo chamado Critical Legal Studies. Eles têm que ser expulsos da escola de direito.” (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.).

A reação pública ao CLS, segundo Trubek, “modificou o eixo do movimento” (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.). Isso porque, se por um lado, a rejeição às ideias heterodoxas afetou não somente sua carreira, mas também a de outros acadêmicos dos EUA, por outro, chamou a atenção de acadêmicos de todo o mundo. Assim, se alunos norte-americanos tinham receio de serem prejudicados por aderir ao CLS, ao mesmo tempo “mais e mais estudantes do mundo todo foram para Harvard para [cursar] LLM e SJD” (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.). Essa movimentação internacional “difundiu com grande força as ideias do CLS” (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.).

2.Vivendo dentro das contradições: CLS, Direito e Sociedade, e Direito e Desenvolvimento

Além da vida e carreira, o CLS afetou de forma ainda mais duradoura o pensamento e os escritos de Trubek. Politizar a indeterminação do direito, revelando a distribuição de poder e o jogo político (politics) inseridos nas normas jurídicas, nas instituições e na própria concepção do Direito, conformou a forma pela qual Trubek se engajou posteriormente em movimentos como o “Direito e Sociedade” e o “Direito e Desenvolvimento”. Como sintetizam os editores na abertura do volume: “Cada uma das perspectivas críticas da pesquisa de Trubek envolve a rejeição de uma concepção do Direito que gira ao redor dos temas permanentes de que a lei é vital, os processos jurídicos são neutros e racionais, e que o estudo do Direito é vestido de uma autoridade impositiva.” (DE BURCA, KILPATRICK, SCOTT, 2014, p.vi).

2.1 CLS e Direito e Sociedade: Política e empiria

No capítulo de David Wilkins, encontramos a reconstrução da tentativa de Trubek de unir os dois movimentos marginais que disputavam um maior espaço no interior das Faculdades de Direito americanas. À medida que a tensão entre o CLS e o Direito e Sociedade crescia, Trubek coloca em diálogo suas principais divergências (TRUBEK, 1984; 1989TRUBEK. "Where the Action Is: Critical Legal Studies and Empiricism." Stanford Law Review 36, no. 1/2 (1984): 575-622). Assim, publica um primeiro artigo, em 1984, voltado para audiência crítica3 3 "Where the action is" (Trubek, 1984) é publicado em periódico que havia veiculado alguns dos principais textos dos Crits até o momento, o Stanford Law Review (WILKINS in DE BURCA, KILPATRICK, SCOTT, 2014, p. 441). . Nele, argumenta que a rejeição à ideia de se produzir trabalhos empíricos nutrida pelos Crits baseava-se numa falsa crença de que a pesquisa feita nesses moldes seria necessariamente guiada pelo positivismo e pelo determinismo. Trubek, então, se dedica a demonstrar que os melhores trabalhos empíricos em direito em nada se relacionavam com essas pressuposições, não abrigando nada que fosse essencialista ou reducionista. Nas palavras Wilkins, Trubek buscava demonstrar que

"ao contrário, uma cuidadosa compreensão de 'como o mundo funciona' é inteiramente consistente com o reconhecimento do papel que a consciência do direito desempenha na conformação do modo como atores assim como os advogados de proteção de direito dos consumidores de McCauley entendem e ajudam a criar as condições mesmas que constituem a realidade. Esse ramo do empirismo pragmático, como Trubek chama, é 'interpretativo e empírico ao mesmo tempo', e capaz de fornecer perspectivas importantes para um amplo leque de fenômenos jurídicos" (WILKINS in DE BURCA, KILPATRICK, SCOTT, 2014, p. 441).

Alguns anos mais tarde, Trubek, em parceria com John Esser, endereça o outro lado da disputa. Em artigo de 19894 4 ‘Critical Empiricism’ in American Legal Studies: Paradox, Program, or Pandora's Box?” Law & Social Inquiry (1989), veiculado no periódico Law & Social Inquiry. , enfrenta o denso debate sobre a possibilidade de produção de trabalhos que sejam empíricos e críticos a um só tempo, colocando em revista o trabalho de um grupo de acadêmicos associados ao “Seminário em Processos Judiciais e Ideologia Jurídica”, que se reunia regularmente em Amherst, Massachusetts (EUA). Perguntava-se:

"O trabalho do Seminário resolveu o aparente paradoxo na justaposição do “crítico” com o “empírico”? O Seminário desenvolveu um programa ou agenda de pesquisa que irá reconstituir os estudos em direito e sociedade como uma sociologia crítica do direito? A resolução do paradoxo e o desenvolvimento de uma agenda de pesquisa crítica irá abrir uma caixa de Pandora, ameaçando as conquistas duramente alcançadas pelo movimento direito e sociedade e minando sua relativa estabilidade e integração quando se aproximam os 25 anos de sua fundação?" (TRUBEK; ESSER, 2013, p. 240-2415 5 Utilizamos a tradução do texto original publicada na Revista de Estudos Empíricos em Direito (2014). ).

Sua resposta nega aos trabalhos daquele grupo a resolução do aparente paradoxo que eles identificavam e buscavam contornar. Da mesma maneira, não reconhece a existência, naquele conjunto de trabalhos, de um único programa, mas de variados, podendo-se falar em implicações divergentes entre eles. Em sua última resposta, inverte aquilo que à primeira vista pode receber conotação negativa: entende o empirismo crítico como uma caixa de pandora e, de maneira inspiradora, a concebe como algo positivo:

"Conforme o projeto de empirismo crítico se desdobrar, ficará evidente para muitos, como ficou para nós, que ele somente pode ser entendido em termos políticos e que ele só pode ser bem sucedido se confrontar seu próprio papel na produção e reprodução da vida social. E se isso ocorrer, ele pode colocar em perigo o movimento direito e sociedade tal como constituído atualmente. Hoje, o movimento é uma coalizão trêmula de cientistas sociais que querem expandir sua atuação em direção a novos territórios, juristas que querem abraçar os métodos das ciências sociais para aprimorar a educação jurídica e legitimar a reforma do direito, formuladores de políticas públicas que buscam informação para uma agenda de reformas, pesquisadores atuando em órgãos de formulação de políticas que buscam contato com a academia. A mudança no sentido de um reconhecimento mais aberto da relação entre conhecimento e política corre o risco de desestabilizar esta coalizão. Mas esse é um risco que vale a pena correr" (TRUBEK; ESSER, 2013, p. 242).

No ano seguinte, afirma Wilkins, Trubek (1990) encorajaria os participantes da conferência da Associação de Direito e Sociedade a abraçarem a indeterminação, a contradição e a normatividade dos CLS e de seus companheiros de viagens intelectuais.

2.2 Direito e Desenvolvimento: Crítica como profissão

O texto magistral “Scholars In Self-Estrangement" (TRUBEK, GALANTER, 1974TRUBEK, David. GALANTER, Mark. “Scholars in Self Estrangement: some reflections on the crisis in Law and Studies in the United States”. Wisconsin Law Review. 1974. Pp. 1073-1102.) delineia o campo do Direito e Desenvolvimento. Kalman (2005KALMAN, Laura. Yale Law School and the sixties: revolt and reverberations. The University of North Carolina Press, 2005., p. 262) situa o texto na trajetória profissional de David Trubek, ressaltando o fato de que sua escrita ocorre logo após os acontecimentos de Yale. Por essa razão, o caracteriza como um cri de coeur, em que Trubek e Galanter reposicionam os estudos de direito e desenvolvimento, conferindo-lhes contornos mais acadêmicos e menos "missionários". Eles o fazem a partir da avaliação das ações de seus próprios atores, os acadêmicos autoalienados, categoria a qual os autores dizem pertencer: juristas excessivamente envolvidos na criação e sustentação de programas de modernização e desenvolvimento por agências estrangeiras em países do Sul Global. O que havia começado com otimismo sobre o papel do direito na transformação social se revela problemático. Pouco se atentava, dizem os autores, como o direito, ainda que sob uma roupagem moderna, poderia servir como instrumento de dominação, a favor do status quo e dos mais poderosos.

O artigo cria uma forma particular de engajamento crítico com temas relacionados ao desenvolvimento econômico, ao progresso, e ao papel do jurista. É, precisamente, esse questionamento das categorias e hierarquias que são a matéria da prática jurídica que marcam a potência intelectual do campo e permitem sua retomada, nos anos 1990 em diante. Zumbansen captura esse exercício crítico definidor do Direito e Desenvolvimento, ao analisá-lo na agenda de governança global (2014, p.110):

“Enfatizar e simultaneamente questionar as categorias pelas quais nós desenhamos a linha entre 'aqui' e 'ali', 'doméstico' e 'estrangeiro', 'nosso’ e 'deles', transforma-se em uma ocupação de toda a vida, uma que é apenas inadequadamente capturada por uma descrição em website indicando ‘Direito e Desenvolvimento’ como sendo o ‘interesse’ ou ‘campo de estudos’ de alguém (...) .”

Direito e Desenvolvimento, assim, pouco se distingue como um conjunto específico de temas, e se torna, cada vez mais, um método de inquisição sobre o próprio “fazer” jurídico e como o direito distribui papéis, recursos e possibilidades. Trubek como acadêmico do campo define sua profissão como ensinar e aprender a “viver dentro da contradição” (TRUBEK, 2021TRUBEK. “Living in the Contradiction: Globalisation and its Discontents”. In: Ballakrishnen, Swethaa S and Dezalay, Sara (Eds). Invisible Institutionalisms Collective Reflections on the Shadows of Legal Globalisation, Hart Publishing, 2021(b), p. 241-248.b, p. 245):

“Eu senti que havia uma necessidade de um olhar crítico ao direito e ao desenvolvimento. Eu vi a importância de documentar tanto o exercício do poder quanto suas resistências; as falhas em transplantes e o sucessivo de vias alternativas para reformas; os limites de exportar princípios liberais, e as formas pelas quais direitos ainda podiam ser protegidos. Eu pensei que era essencial ajudar estudantes ingressando no campo Direito e Desenvolvimento a entender sua missão, complexidade e aprender, como eu aprendi, a viver dentro da contradição.”

Em sua reflexão sobre o aniversário de 40 anos de “Scholars In Self-Estrangement”, Trubek reconhece as transformações do campo ao longo das décadas (TRUBEK, 2016TRUBEK. “Law and Development: Forty years after ‘Scholars in Self-Estrangement”. University of Toronto Law Journal, vol. 66, n. 3, 2016. P. 301-329.). Continua, sobretudo, fiel ao seu método crítico e autorreflexivo (também TRUBEK, 2007TRUBEK. “The Owl and the Pussy-Cat: Is There a Future for Law And Development?”. Wisconsin International Law Journal, 25, 2007.). Celebra o aumento de capacidade institucional dos centros de pesquisa do Sul Global e a atenção recebida pelo campo no Norte. No entanto, chama atenção para as profundas divisões (por exemplo, entre juristas e economistas abordando os mesmos tópicos) e fragmentações em tópicos especializados (como comércio e desenvolvimento, direitos humanos e desenvolvimento, gênero e desenvolvimento) que aprofundam o conhecimento no campo, e simultaneamente, atuam como força centrífuga a ele.

A arquitetura jurídico-institucional que obsta (ou promove) desenvolvimento passa a ser pensada a partir de outras lógicas e gramáticas, vale dizer, em um contexto cada vez mais agudo de crise econômica e democrática. A atualidade e força do Direito e Desenvolvimento conecta-se, precisamente, com suas origens: é necessário, mais do que nunca, iluminar a desigualdade de poder cristalizada pelo direito, sem, contudo, abrir mão de sua potencialidade.

3.Novos projetos

A agenda de pesquisa atual de Trubek trata do Legalismo Autocrático - a retração democrática impetrada por instrumentos jurídicos utilizados por lideranças autoritárias. Esse fenômeno, estudado inicialmente por Kim Scheppele (2018)SCHEPPELE, Kim. “Autocratic Legalism”. University of Chicago Law Review, 85, 545-583. 2018. para compreensão da Hungria, não se confunde com as ditaduras de momentos anteriores. Já não há tanques nas ruas, a ascensão de autocratas se dá pela via democrática. Uma vez no poder, eles mobilizam o direito e o arcabouço jurídico para subverter o próprio Estado de Direito e a ordem democrática. Esse objeto de estudo permite que Trubek permaneça conectado ao discurso crítico do início de sua carreira, ao mesmo tempo que volta novamente seu olhar para o Brasil. Décadas depois de ter desembarcado em um país sitiado por militares, ele assiste novamente ao retrocesso democrático brasileiro que se consolida com o governo Bolsonaro (HUNTER; POWER, 2019HUNTER, Wendy, POWER, Timothy J. “Bolsonaro and Brazil’s Illiberal Backlash”, Journal of Democracy, vol. 30, n.1, 2019, p. 62-82,). Desta vez sem golpes militares, mas com juristas e burocratas desempenhando papel central.

Trubek entende que, no processo atual, há protagonismo dos juristas, ainda que de forma ambígua. Eles participam ora como resistência, ora colaborando no processo técnico de avanço autocrático (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.). Essa participação o remete há algo que já era claro “desde que estava na faculdade de Direito - a profissão jurídica está ideologicamente dividida, como todas as outras coisas”, ou seja, “sempre existiram advogados para causas diversas” (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.). O embate entre juristas demonstra “quão longe isso poderia ir em termos de divergências e ideologias” (TRUBEK, 2021aTRUBEK, David M. Entrevista concedida via ferramenta eletrônica ‘Zoom’ em 8 fev. 2021(a), mp4.). Assim, Trubek, que este ano completa 60 anos de carreira, dedica-se a compreender essas duas faces das profissões e da práxis jurídica no processo político autocrático.

Apesar do déficit democrático experienciado no Brasil contemporâneo, Trubek terminou nossa entrevista com uma nota de esperança: “é um mundo diferente. [Um mundo] muito melhor, não ótimo, mas muito melhor que naqueles dias [da ditadura militar]”. Apesar do retrocesso democrático atual, entende que “todas as instituições ainda estão lá, as normas estão lá e existe uma arena a ser disputada”. Como fazê-lo? É preciso, mais do que nunca, viver dentro da contradição.

  • 1
    Segundo Balkin, em sua obra Living originalism (2011), um dos mais proeminentes defensores do originalismo foi Justice Antonin Scalia. Para Scalia, a constituição deveria ser interpretada de acordo com o sentido original do seu texto. Em outras palavras, o sentido atribuído aos princípios e valores estampados no documento constitucional devem ser aplicados do mesmo modo que fariam os criadores da constituição.
  • 2
    KINGSON, Jennifer A. “Harvard Tenure Battle Puts ‘Critical Legal Studies’ on Trial”. The New York Times, Nova Iorque, 30 de ago. 1986, p. 138 --- (KINGSON, 1986)KINGSON, Jennifer A. “Harvard Tenure Battle Puts ‘Critical Legal Studies’ on Trial”. The New York Times, Nova Iorque, 30 de ago. 1986, p. 138.
  • 3
    "Where the action is" (Trubek, 1984TRUBEK. "Where the Action Is: Critical Legal Studies and Empiricism." Stanford Law Review 36, no. 1/2 (1984): 575-622) é publicado em periódico que havia veiculado alguns dos principais textos dos Crits até o momento, o Stanford Law Review (WILKINS in DE BURCA, KILPATRICK, SCOTT, 2014, p. 441).
  • 4
    ‘Critical Empiricism’ in American Legal Studies: Paradox, Program, or Pandora's Box?” Law & Social Inquiry (1989), veiculado no periódico Law & Social Inquiry.
  • 5
    Utilizamos a tradução do texto original publicada na Revista de Estudos Empíricos em Direito (2014).
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2021
  • Aceito
    06 Maio 2021
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