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O Direito Tradicional da Comunidade Quilombola do Baú

The Traditional Law of the Quilombola Community of Baú

Resumo

Este artigo científico expõe as normas jurídicas tradicionais de ocupação e de uso do território da comunidade quilombola do Baú, localizada no município do Serro/MG. A pesquisa foi realizada com base na metodologia da observação participante, com a imersão dos pesquisadores na vida cotidiana da comunidade. A observação e análise das práticas sociais proporcionaram o material para a construção das categorias do direito tradicional quilombola.

Palavras-chave:
Comunidades Quilombolas; Leis Tradicionais; Pluralismo Jurídico

Abstract

This scientific article exposes the traditional law of occupation and uses of the territory of the quilombola community of Baú, located in the municipality of Serro/MG. The research was carried out based on the methodology of participant observation, with the immersion of researchers in the daily life of the community. The observation and analysis of social practices provided the material for the construction of traditional quilombola law categories.

Keywords:
Quilombola Communities; Traditional Laws; Legal pluralism

1. Introdução1 1 Este artigo é resultado de pesquisa científica realizada no âmbito do Projeto de Pesquisa “A NORMATIVIDADE JURÍDICA E O MODO DE SER QUILOMBOLA: A tensão entre a normatividade estatal e a normatividade tradicional no interior do território da comunidade quilombola do Baú (Serro)”, executado no ano de 2019, com financiamento do Fundo de Incentivo à Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (FIP/PUC Minas).

O processo modernização/colonização, iniciado em 1492, instituiu uma ordem social baseada na classificação racial da população que tinha por finalidade proporcionar um fluxo permanente de mercadorias, especialmente produtos tropicais (açúcar, algodão e outros gêneros agrícolas) e metais preciosos, para viabilizar a acumulação de capital nos países centrais da economia-mundo capitalista.

A construção social de sujeitos raciais é uma das estruturas fundamentais da sociedade moderna/colonial, por meio da qual se faz a definição dos papéis sociais (políticos, econômicos e jurídicos), dos direitos/deveres e da distribuição dos recursos e oportunidades. Nesse contexto, a população é dividida nas raças branca, negra e ameríndia, atribuindo-se, a cada uma delas, papéis sociais, direitos/deveres e recursos/oportunidades a partir das características atribuídas às raças pelo discurso filosófico e científico hegemônico da modernidade. As três raças são estratificadas hierarquicamente e, consequentemente, justificam a divisão das pessoas em inferiores e superiores, irracionais e racionais, primitivas e civilizadas.

No imaginário hegemônico da sociedade moderna/colonial, os sujeitos brancos seriam os portadores das qualidades psicológicas, morais, intelectuais e culturais que caracterizam a própria humanidade, dentre as quais se destacam a racionalidade, o senso de justiça e de honestidade, cabendo-lhes, portanto, as prerrogativas do exercício dos poderes políticos, econômicos e jurídicos nas sociedades modernas/coloniais.

Por outro lado, os sujeitos negros são reduzidos a corpos comandados por instintos, pulsões irracionais e por uma hipersexualização, aproximando-se mais do animismo do que da humanidade, cabendo-lhes, então, assumir uma posição subalterna nos planos políticos, econômicos e políticos nas sociedades modernas/coloniais.

Nesse sentido, Aníbal Quijano afirma que a sociedade moderna/colonial está assentada na estratificação racial da população, regulando a distribuição do poder social de acordo com o pertencimento à raça. O autor (QUIJANO, 1993QUIJANO, Aníbal. “Raza”, “etnia” y “nación” en Mariátegui: Cuestiones abiertas, in José Carlos Mariátegui y Europa. El otro aspecto del descubrimiento. Lima: Amauta, 1993, pp. 757/775., pp. 758/759) afirma que,

[...] com a formação da América se estabelece uma categoria mental nova, a ideia de “raça”. Desde o início da conquista, os vencedores iniciam uma discussão historicamente fundamental para as relações posteriores entre as pessoas deste mundo, e, em especial, entre os “europeus” e não-europeus, sobre se os povos originários da América possuem “alma” ou não; em síntese: se são ou não pessoas. A conclusão imediata decretada pelo Papado foi que são humanos. Porém, desde então, nas relações intersubjetivas e nas práticas sociais do poder, formou-se, de uma parte, a ideia de que os não-europeus possuem uma estrutura biológica não apenas diferente da dos europeus, mas, principalmente, pertencente a um tipo inferior. De outra parte, a ideia de que as diferenças culturais estão associadas a tais desigualdades biológicas e que não são, portanto, produto da história das relações entre as pessoas e destas com o resto do universo. Estas ideias foram configurando, de modo profundo e duradouro, um complexo cultural, uma matriz de ideias, de imagens, de valores, de atitudes, de práticas sociais, que não deixam de estar implicadas nas relações entre as pessoas, inclusive após o fim das relações políticas coloniais. Este complexo é o que conhecemos como “racismo”.

Como os vencedores foram adquirindo durante a Colônia a identidade de “europeus” e “brancos”, as outras identidades foram associadas também à cor da pele, “negros”, “índios” e “mestiços”. Porém, nessas novas identidades, ficou estabelecida a ideia de sua desigualdade, concretamente de sua inferioridade cultural e étnica.

Esta é a ideia que comanda e preside, desde o momento inicial da conquista, o estabelecimento dos papeis sociais, inclusive das atividades, atribuídos aos não-europeus na América. E é, desde aqui, que se transporta e se reproduz como modo específico das relações coloniais entre europeus e não-europeus, primeiro na Ásia e África, e mais tarde estendida a todas as relações entre europeus e não-europeus (tradução nossa).

O discurso de desumanização das subjetividades negras constituiu um dos mais importantes elementos da tentativa de legitimação da sociedade moderna/colonial, cuja infraestrutura econômica se baseava no trabalho escravo de africanos, que eram utilizados nas plantations e na mineração de metais preciosos para a promoção da acumulação do capital mercantil. A partir da noção de colonialidade do poder, pode-se afirmar que as relações de subalternização da população negra não acabaram com o fim do colonialismo, mas se perpetuam até os dias atuais.

O tráfico negreiro não trouxe, apenas, mão-de-obra escravizada para servir na empresa mercantilista dos produtos agrícolas tropicais e na mineração de metais preciosos, destinados à satisfação do mercado europeu. Trouxe, na verdade, pessoas, que, como tais, possuíam seus próprios sistemas de representação do mundo, constituído por suas religiosidades, manifestações artísticas, saberes éticos e técnicos, e práticas econômicas, dentre outros. É correto afirmar que, “nos porões dos navios, além dos músculos iam às ideias, os sentimentos, tradições, mentalidades, hábitos alimentares, ritmos, canções, palavras, crenças religiosas, formas de ver a vida, e o que é mais incrível: o africano levava tudo isso dentro da sua alma [...]” (Atlântico Negro - Na Rota dos Orixás, 1998).

Os africanos escravizados reconstruíram, no Brasil, seus modos de ser e viver, com suas línguas, tecnologias, religiosidades, cosmologias, usos e costumes, dentre outros elementos diacríticos das culturas africanas, adaptando-os à realidade encontrada na vida colonial por meio formação de territórios de culturas negras, que se tornaram verdadeiros enclaves africanos no seio da sociedade moderna/colonial brasileira.

A presença das culturas de matriz africana na vida cotidiana das pessoas é uma característica distintiva da sociedade brasileira, que pode ser percebida em diversos aspectos da vida social, tais como na culinária, na arquitetura, nas técnicas produtivas, dentre outros. Contudo, o racismo da sociedade moderna/colonial funciona, em suas múltiplas manifestações, para tornar invisíveis as culturas de origem africana no país. Nesse contexto, é importante destacar que:

O Brasil é o mais importante país contemporâneo com registros das referências do continente africano “fora” da África. As referências estão gravadas, principalmente, nos seus territórios (urbano, rural, religioso, agrícola, comercial, cultural, tradicional, dentre outras dimensões possíveis da territorialização) e, sobretudo na sua população e na língua que falamos. São vários os componentes estruturais que explicam esta relevância africano-brasileira, mas três aspectos nos parecem pertinentes de destacar.

Primeiro, foram nas grandes metrópoles coloniais (Salvador, Rio de Janeiro, São Luís, Belém, Recife, São Paulo, dentre outras) e nos vários pontos distribuídos pelo extenso litoral do Brasil para onde foram desembarcados os maiores contingentes de seres humanos de distintos grupos étnicos, matrizes culturais, tecnologias e contextos geográficos do continente africano. A história da humanidade não registra outro grande evento de mobilidade e transferência demográfica forçada que tenha tido tamanho massacre social, nas duas margens dos territórios envolvidos (África e América) e no próprio Oceano Atlântico, entre os séculos XV e XIX. As estimativas apontam entre 12 e 13 milhões como um número provável da dinâmica do tráfico para a “formação” e “ocupação” do “Novo Mundo” e é no Brasil onde estão projetadas as maiores estatísticas, ultrapassando os quatro milhões.

Um segundo aspecto se refere ao desenvolvimento das grandes zonas de atividades econômicas coloniais (café, açúcar, borracha, algodão, cacau, fumo, mineração, dentre outros) estruturados na força de trabalho e na tecnologia de referência africana, ao longo de quatro séculos (XVI-XIX) e que revelam a dimensão econômica e a extensão territorial da “presença ampla” africana na formação do Brasil. Somente estes dois componentes estruturais nos possibilitam entender porque o Estado brasileiro, numa perspectiva histórica, foi o território mais acabadamente escravista do “Novo Mundo”, mesmo com os conflitos políticos e contradições econômico-sociais. Uma das evidências está na opção do sistema político dominante que continuou impondo o regime escravocrata, mesmo depois da “independência” de Portugal e, com essa estratégia, foi um dos últimos a sair do escravismo na América. Essa é uma premissa básica para a compreensão da extensão racista e preconceituosa que vai se consolidar na nossa estrutura social complexa, contraditória e multifacetada.

O terceiro componente estrutural, está associado ao elevando contingente demográfico de matriz africana existente no Brasil contemporâneo (97 milhões de pessoas - Censo IBGE, 2010), ou seja, mais de 50% do “país continental” e este é o maior registro estatístico de ascendência africana “fora” do espaço da África. É esse “Brasil Africano” que tem sido a principal vítima da discriminação e preconceito étnico instaurado secularmente no país, sobretudo pela manutenção de algumas práticas do regime escravista e da ideologia racista na sociedade dominante. Não podemos perder de vista que a forma como o sistema nacional lida com a população brasileira de referência na África é, na verdade, a maneira como lida consigo mesmo enquanto país: negando a sua “riqueza” humana e cultural; não assumindo as suas “identidades”; negligenciando o trabalho realizado por outras matrizes étnicas e revelando uma “imagem de país” que não corresponde à realidade. Existe aí um atraso na mentalidade coletiva das elites seculares, um equívoco nacional, isso porque o Brasil não precisa mais assumir o racismo como estratégia para manutenção do poder histórico e conservador (ANJOS, 2014ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. AFRICABRASIL: Atlas Geográfico. Brasília: Mapas Editora & Consultoria Ltda, 2014., p. 18).

As comunidades quilombolas surgem, então, a partir da apropriação de um território por parte de um grupo étnico de origem africana, cujo uso e controle do ambiente biofísico permitem o surgimento de uma organização social própria, a reprodução física e cultural da coletividade e a resistência à posição de subalternidade que lhe é imposta pela sociedade moderna/colonial2 2 A definição legal de comunidades remanescentes de quilombo está posta no artigo 2odo Decreto n.º 4.887/03: “Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. .

Estes processos de territorialização deram origem a uma multiplicidade de comunidades quilombolas, que estão espalhadas por todo o território brasileiro e que adotam diferentes modalidades de apropriação, uso e controle de seus territórios, cujo uso (permanente ou temporário) das florestas, dos recursos hídricos, dos campos, das pastagens e de outros bens da natureza é regulado por uma pluralidade de direitos tradicionais não estatais, admitidos e obedecidos ainda que de modo inconsciente pelos membros do grupo étnico.

As comunidades quilombolas são grupos étnicos, entendidos como uma coletividade que engloba indivíduos que compartilham uma mesma herança cultural, construída a partir de uma rememoração coletiva de sua origem comum (história mítica/interpretada e invocada/esquecida de acordo com as circunstâncias) e de um processo dinâmico e ininterrupto de realce dos “traços culturais diferenciadores” (crenças, valores, símbolos, ritos, normas, vestimentas, aparência exterior, culinária, canto, dança etc.).

O realce de “traços culturais diferenciadores” produz a edificação de uma fronteira étnica, na qual os membros de um grupo étnico (nós) se distinguem e se diferenciam daqueles que não pertencem ao grupo étnico (eles). Surge, então, um conjunto de leis tradicionais que obrigam os membros do grupo étnico a observarem certos deveres de lealdade, solidariedade, hierarquia, função social e divisão do trabalho social, que são reconhecidos (consciente ou inconscientemente) como obrigatórios aos pertencentes ao grupo étnico.

A etnicidade é, então, uma “[...] forma de organização social, baseada na atribuição categorial que classifica as pessoas em função de sua origem suposta, que se acha validada na interação social pela ativação de signos culturais socialmente diferenciadores” (Poutignat & Streiff-Fenart 2011POUTIGNAT, Philipe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: Unesp, 2011., p. 141).

Pode-se afirmar, então, que a normatividade própria é um dos elementos que caracterizam a etnicidade, expressa nos modos de pensar, sentir e fazer adotados pelos membros do grupo étnico, e validada pelo acatamento (consciente ou inconsciente) da normatividade no direcionamento das diferentes práticas do grupo étnico.

Os grupos étnicos produzem sua própria juridicidade, que vigora na regulação das relações sociais estabelecidas entre aqueles que pertencem ao grupo, que, por isso, se sentem obrigados a obedecer à normatividade típica deste tipo de sociabilidade.

Essas leis tradicionais se originam dos hábitos adotados por aqueles que pertencem ao grupo étnico e são mantidos (os hábitos) enquanto forem bem-sucedidos na orientação das ações destinadas à resolução de seus problemas vitais. Neste processo de construção da vida étnica, há um processo contínuo e ininterrupto de adaptação e transformação das leis tradicionais, de modo a adaptá-las aos novos desafios, demandas, conflitos e problemas vitais que emergem incessantemente para o grupo étnico, por meio da reorientação das ações sociais a serem realizadas pelos pertencentes ao grupo étnico. Assim, os hábitos representam a corporificação das leis tradicionais, cujo significado somente pode ser conhecido por meio da compreensão do pensamento orientador da ação e das condições materiais em que transcorre a vida comunitária do grupo étnico.

Os diversos modos de ser e viver, adotados pelas mais de 3.000 comunidades quilombolas existentes no Brasil3 3 A Fundação Cultural Palmares (FCP) inscreveu 3.386 comunidades quilombolas, localizadas em diversos Estados brasileiros, no Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos, com a emissão de certificação, de acordo com os dados disponíveis no sítio eletrônico: http://www.palmares.gov.br/?page_id=37551. Acesso 07/11/2019, às 10:30. , deram origem a diversas normatividades jurídicas tradicionais que regem a vida comunitária em concorrência com a ordem jurídica estatal.

Em outras palavras, nos territórios das comunidades quilombolas, há uma convivência conflitiva de antigos códigos costumeiros, que regulam a existência étnica na família, no trabalho e na terra, e que podem ficar em aberta contradição com a legislação estatal.

O racismo, em suas múltiplas dimensões, ocultou e tornou invisível a normatividade tradicional vigente nos territórios quilombolas. No âmbito institucional, esta normatividade tradicional não foi reconhecida pelo direito oficial do Estado, que, assim, impôs uma normatividade jurídica homogeneizadora, unitária e eurocêntrica em detrimento da pluralidade cultural e étnica da sociedade brasileira. No âmbito epistêmico, as faculdades de direito adotam, de modo hegemônico, uma perspectiva monista do fenômeno jurídico de acordo com a qual o Estado-Nação é a única instituição autorizada a estabelecer o que é o Direito, sendo todo o Direito oriundo de decisões tomadas por órgãos integrantes do Estado-Nação.

O presente artigo científico está baseado numa perspectiva teórica pluralista e contra hegemônica, que visa superar o pensamento abissal das teorias monistas do Direito4 4 As teorias monistas do Direito se caracterizam por adotar um pensamento abissal, que apenas reconhece a juridicidade das práticas e normas produzidas pelo Estado-Nação e exclui a possibilidade de reconhecimento de quaisquer outras práticas e normas não provenientes do Estado-Nação. Na perspectiva do monismo jurídico, as normatividades jurídicas não estatais simplesmente não existem e, por isso, não podem ser objeto de conhecimento. Boaventura de Sousa Santos (2010, 31/33) explica o pensamento abissal nos seguintes termos: “O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’. A divisão é tal que ‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto realidade torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro. A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade de copresença dos dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante. Para além dela há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética. [...] No campo do direito moderno, este lado da linha é determinada por aquele que conta como legal ou ilegal de acordo com o direito oficial do Estado ou com o direito internacional. O legal e o ilegal são as duas únicas formas relevantes de existência perante a lei, e, por esta razão a distinção entre ambos é uma distinção universal. Esta dicotomia central deixa de fora todo um território social onde ela seria impensável como princípio organizador, isto é, o território sem lei, fora da lei, o território do a-legal, ou mesmo do legal e ilegal de acordo com direitos não oficialmente reconhecidos. Assim, a linha abissal invisível que separa o domínio do direito do domínio do não-direito fundamenta a dicotomia visível entre o legal e o ilegal que deste lado da linha organiza o domínio do direito”. e, com isso, conhecer e dar visibilidade a outras normatividades jurídicas não estatais e que estão implícitas nos modos de fazer, sentir e viver das comunidades quilombolas existentes no Brasil. O interesse cognitivo deste artigo científico exclui, de antemão qualquer abordagem teórica que reduza o Direito àquilo que é posto ou reconhecida pelo Estado-Nação. Pois, a concepção teórica do monismo jurídico simplesmente oculto e torna invisível exatamente aquilo que se deseja conhecer: a normatividade tradicional que rege a vida material e simbólica das comunidades quilombolas.

Não se desconhece as críticas feitas ao pluralismo jurídico por autores como Miguel Reale5 5 REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. São Paulo: s. ed., 1984, pp. 246 e 253. , Norberto Bobbio6 6 BOBBIO, Norberto. Contribucción a la teoria del derecho. Edición de Alfonso Ruiz Miguel. Valencia: Fernando Torres, 1980, pp. 164 e 264-265. , Jean Carbonnier7 7 CARBONNIER, Jean. Sociologia Jurídica. Coimbra: Almedina, 1979, pp. 220 e 222-223. , Carlos Cárcova8 8 CÁRCOVA, Carlos. A opacidade do direito. São Paulo: LTr, 1998, pp. 118-120. , dentre outros, cuja diversidade de críticas engloba posições de defesa do monismo jurídico (a necessidade do Estado como centro único de determinação do Direito para a estabilidade da ordem social, na perspectiva de Miguel Reale); de preocupação para que o pluralismo jurídico não se torne um projeto conservador de prevalência da normatividade não estatal imposta pelos grandes conglomerados econômicos internacionais (Norberto Bobbio); de rejeição da confusão teórica entre direito e moral, na medida em que o pluralismo jurídico não reconhece a coercibilidade como elemento essencial do direito e que, por isso, deveria estar em qualquer concepção teórica sobre o direito (Carlos Cárcova).

Contudo, este artigo científico não pretende discutir e rebater as críticas ao pluralismo jurídico, por mais relevante que seja tal debate acadêmico. O objetivo deste artigo científico é expor as leis tradicionais que, de fato, são observadas pelos moradores da comunidade quilombola do Baú, localizadas no município do Serro, Estado de Minas Gerais, na regulação da apropriação e do uso das diversas partes do território tradicional daquele grupo étnico.

Adota-se, assim, como marco teórico para a síntese do material coletado na pesquisa empírica sobre as normatividades tradicionais existentes na comunidade quilombola do Baú, o pluralismo jurídico comunitário-participativo que entende o direito a partir das práticas sociais adotadas por uma comunidade, podendo ser ou não oficiais, para a regulação da convivência social, a resolução dos problemas sociais e a satisfação das necessidades existenciais, materiais e culturais que afligem a comunidade. Nesse contexto, Antônio Carlos Wolkmer (2015, p. 82) sustenta:

[...] um pluralismo jurídico (designado comunitário-participativo) configurado através de espaços públicos abertos e compartilhados democraticamente, privilegiando a participação direta de sociabilidades excluídas e subalternas, capazes de instaurar novos direitos enquanto necessidades desejadas e possibilitando que o processo histórico de lutas se encaminhe por vontade e por manifestação autêntica das bases comunitárias.

A comunidade quilombola do Baú fica localizada no município do Serro, Estado de Minas Gerais, ficando a uma distância aproximada de 10 km da sede do município, e é composta por descendentes de africanos escravizados, originados na região Sul de Angola, e trazidos à região das Minas no início do século XVIII, para servirem como mão-de-obra escrava na atividade econômica-mercantil de mineração de ouro e diamante nos afluentes do Rio Jequitinhonha, especialmente no ribeirão denominado “Acaba Saco”9 9 O Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica, Ambiental e Sociocultural da Comunidade Quilombola do Baú, elaborado pelos projetos de extensão “A luta por reconhecimento dos direitos fundamentais das comunidades remanescentes de quilombo” e “Lições da Terra - Projeto interdisciplinar de direitos étnicos”, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), apresentou uma série de documentos históricos que indicam o ribeirão Acaba-Saco como local de extração de ouro e diamante no início do século XVIII. Os 2 documentos históricos mais importantes são a carta denominada “Demarcação das terras que produz diamantes” (1729) e o “Pequeno Mapa da Demarcação Diamantina” (1774). .

A investigação das normatividades jurídicas implícitas nas práticas sociais da comunidade quilombola do Baú foi conduzida a partir da metodologia da observação participante, com o envolvimento dos pesquisadores na vida diária da comunidade, com a participação nas atividades sociais e com o diálogo sobre a história da comunidade, seus valores (critérios para distinguir o justo e o injusto), suas alianças e desavenças com outros grupos sociais, e suas formas de apropriação e ocupação de seu território tradicional.

A pesquisa jurídica se centrou na observação dos hábitos adotados pelos membros da comunidade quilombola do Baú na ocupação e no uso das diversas partes constitutivas do seu território. A partir dos hábitos observados, os pesquisadores buscaram extrair a regularidade implícita nas práticas sociais de ocupação e uso das diversas partes constitutivas do território quilombola. Com exceção das perspectivas de essencialidade dos traços culturais e do evolucionismo antropológico presente na noção de tribo, a metodologia científica de Malinowski serviu de inspiração e orientação das pesquisas empíricas sobre a normatividade jurídica da comunidade quilombola do Baú. Na introdução dos Argonautas do Pacífico Ocidental, Malinowski (1978, p. 24) explica o trabalho do etnógrafo nos seguintes termos:

[...] o etnógrafo tem o dever e a responsabilidade de estabelecer todas as leis e regularidades que regem a vida tribal, tudo que é permanente e fixo; apresentar a anatomia da cultura e descrever a constituição social. Mas estes elementos, apesar de cristalizados e permanentes, não se encontram formulados em lugar nenhum. Não há códigos de lei, escritos ou expressos explicitamente; toda a tradição tribal e sua estrutura social inteira estão incorporadas ao mais alusivo dos materiais: o próprio ser humano. Mas nem mesmo na mente ou na memória do nativo se podem encontrar estas leis definitivamente formuladas. Os nativos obedecem às ordens e à força do código tribal, mas não as entendem do mesmo modo como obedecem a seus próprios instintos e impulsos, embora sejam incapazes de formular qualquer lei da psicologia. As regularidades existentes nas instituições nativas são resultado automático da ação recíproca das forças mentais da tradição e das condições materiais do meio ambiente. Da mesma forma que os membros mais humildes de qualquer instituição moderna - seja o Estado, a Igreja, o Exército, etc. - pertencem a ela e nela se encontram, sem ter visão da ação integral do todo e, menos ainda, sem poder fornecer detalhes de sua organização, seria inútil interpelar o nativo em termos sociológicos abstratos. A única diferença, no caso, é que cada uma das instituições da sociedade civilizada possui, em seu meio, elementos inteligentes, historiadores, arquivos e documentos; no caso da sociedade nativo, nada disso existe. Depois que se constata essa dificuldade, é necessário que se procure um recurso através do qual superá-la. O recurso para o etnógrafo é coletar dados concretos sobre todos os fatos observados e através disso formular inferências gerais.

Assim, no período de 14 a 21 de abril de 2019, os pesquisadores viveram seu primeiro período junto à comunidade quilombola do Baú, com o intuito de se envolver na vida social e de iniciar um diálogo com os quilombolas sobre a sua forma de vida, para desvendar as regras de apropriação e uso das partes constituintes do território tradicional da comunidade. Foram realizadas entrevistas com os moradores da comunidade quilombola do Baú, gravadas com a autorização das pessoas entrevistadas, com o intuito de registrar a história de formação da comunidade, o modo de aquisição do território, as práticas econômicas a que se dedicam para a reprodução material da comunidade, e os princípios de justiça reconhecidos na comunidade para a regulação da apropriação e uso das partes constitutivas do território tradicional.

Ao retornarem para a universidade, os pesquisadores fizeram a transcrição das gravações e, a partir do material coletado, construíram hipóteses sobre a normatividade tradicional que rege da vida da comunidade quilombola do Baú, especialmente em relação à ocupação e ao uso de seu território tradicional. Foram formuladas, então, as categorias jurídicas da “casa/quintal”, “matas/campos” e “terras de bolo” como hipóteses explicativas das diversas normatividades que regulam os modos de apropriação e uso do território tradicional.

No dia 11 a 16 de outubro de 2019, os pesquisadores viveram seu segundo período junto à comunidade quilombola do Baú, com o objetivo de dialogar com os moradores da comunidade quilombola do Baú sobre as categorias jurídicas “casa/quintal”, “matas/campos” e “terras de bolo”, ajustando os elementos conceituais das categorias jurídicas às informações fornecidas pelos moradores da comunidade quilombola do Baú e buscando a validação das categorias jurídicas formuladas a partir do seu modo de vida. A entrevista foi realizada com a caminhada no território da Comunidade Quilombola do Baú, para a compreensão das regras e uso e ocupação, concedida aos pesquisadores.


Foto da “casa/quintal” do casal Jurandir e Vera.


Fotos do casal Jurandir e Vera, moradores da comunidade quilombola do Baú.

O presente artigo científico expõe o resultado da pesquisa sobre o direito tradicional da comunidade quilombola do Baú, na regulação da apropriação e do uso das diversas partes do território tradicional por parte dos membros daquele grupo étnico minoritário. A realização da pesquisa permitiu trazer à luz e dar visibilidade ao direito tradicional e às práticas jurídicas adotadas pela comunidade quilombola do Baú, na regulação da apropriação e uso de seu território tradicional. A pesquisa permitiu mostrar, ainda, que o direito tradicional da comunidade quilombola do Baú se baseia no modo de produção, na cosmovisão de mundo e nos valores éticos adotados pelo grupo étnico, regulando o acesso e uso do território de modo muito diferente do direito oficial do Estado brasileiro.

2. O pluralismo jurídico e os direitos tradicionais que vigoram nos territórios quilombolas

A colonização europeia do continente americano produziu, de modo não intencional, um pluralismo jurídico que se caracteriza pela coexistência, sem qualquer relação hierárquica, de diversos sistemas jurídicos, práticas jurídicas e normatividades jurídicas num mesmo espaço territorial, e que regulam a convivência social por meio da definição dos direitos/deveres e dos critérios de distribuição das riquezas/oportunidades, a partir de uma concepção de justiça constitutiva do universo simbólico.

É preciso esclarecer que, apesar da tentativa de se invisibilizar e de se negar validade jurídica aos sistemas, práticas e normas não provenientes do Estado-Nação por meio das instituições fundamentais da sociedade moderna/colonial no Brasil (Estado, Mercado, Universidades, Meios de Comunicação de Massa, dentre outros), o pluralismo jurídico é, antes de tudo, uma questão de fato. Ou seja, há uma pluralidade de sistemas jurídicos, práticas jurídicas e normas jurídicas, originadas do Estado e de outras instituições sociais não estatais, que regulam a convivência humana e que, muitas vezes, são fontes constantes de conflitos e de acomodações precárias.

Nesse sentido, Boaventura de Sousa Santos (2014SANTOS, Boaventura de Sousa. O direito dos oprimidos: sociologia crítica do direito. São Paulo: Cortez, 2014., p. 55/56) explica que:

O problema do pluralismo jurídico foi depois retomado, em termos muito diferentes, pela antropologia do direito, e é hoje um dos problemas mais amplamente tratados por esta disciplina. O contexto sociológico básico em que se deu o interesse por este problema foi, como em muitas outras questões, o colonialismo, isto é, a coexistência num espaço, arbitrariamente unificado como colônia, do direito do Estado colonizador e dos direitos tradicionais. Esta coexistência, fonte constante de conflitos e de acomodações precárias, teve em alguns casos cobertura jurídico-constitucional (por exemplo, na indirect rule do colonialismo inglês), enquanto em outros foi um fenômeno sociológico e político à revelia das concepções jurídico-políticas oficiais do Estado colonizador (o que, em boa parte, aconteceu com o colonialismo português).

A sociedade brasileira é formada por uma multiplicidade de culturas de origem europeia, indígena e africana, sendo cada cultura constitutiva de um universo simbólico próprio a partir do qual se pode construir, de modo ininterrupto e interminável, a significação das práticas sociais, dos valores éticos e estéticos, das concepções de justiça, dentre outras dimensões da vida social, que vigoram e possuem sentido apenas na medida em que pertencem ao seu universo simbólico.

Os universos simbólicos proporcionam uma estrutura total de significação a partir da qual é possível construir o significado das práticas sociais adotadas numa dada comunidade, tais como suas religiosidades, manifestações artísticas, saberes éticos e técnicos, práticas econômicas, dentre outros. Ou seja, as práticas sociais ganham seu significado na medida em que pertencem a um universo simbólico, entendido como uma rede de significados compartilhados por aqueles que pertencem a uma mesma cultura e que é utilizada para dar sentido à realidade em que se vive. Por outro lado, as novas práticas sociais, que se originam a partir da criatividade dos membros de uma dada cultura em reinventar os saberes e costumes que lhes foram legados pela tradição, forçam à ressignificação do universo simbólico constitutivo de uma dada cultura.

A tensão dialética entre o universo simbólico e as práticas sociais particulares é o motor que põe em movimento as constantes e ininterruptas transformações do universo simbólico (a totalidade) e das práticas sociais (o particular).

Nesse contexto, o Direito, entendido como uma prática social destinada a regular a convivência das pessoas e a divisão dos bens sociais, é uma construção social realizada a partir de um universo simbólico compartilhado por aqueles que pertencem a uma determinada comunidade.

Assim, as diversas culturas, originadas da diversidade dos modos de vida de origem europeia, indígena e africana, que constituem horizontes de significação que permitem a experimentação, definição, interpretação e constituição de sentido às diversas condições de existências humanas, fazem nascer uma pluralidade de ordens jurídicas, cada uma delas apropriadas para a regulação da convivência humana a partir de um horizonte de significado próprio.

O pluralismo jurídico de tipo cultural pode ser visualizado nas diversas comunidades quilombolas, que, ao reivindicarem o reconhecimento e proteção às suas formas de vida, exigem o reconhecimento de seus usos e costumes como fontes materiais de seu direito tradicional, que, em diversas ocasiões, se contrapõe ao direito oficial do Estado.

3. A comunidade quilombola do Baú e as leis tradicionais de uso e ocupação de seu território.

A comunidade quilombola do Baú está localizada no município do Serro, na mesorregião do Alto Jequitinhonha, Estado de Minas Gerais. A origem histórica da comunidade quilombola do Baú está relacionada à exploração de ouro e diamante, organizada e regulamentada pelo Estado Colonial Português, na região denominada “Distrito Diamantino.”10 10 O Distrito Diamantino é uma demarcação de terra realizada pela Coroa Portuguesa com o intuito de controlar a extração e comercialização de diamantes. Joaquim Felício dos Santos (pp. 50/) explica que: “Logo que a Corte portuguesa teve notícia do aparecimento dos diamantes na Comarca do Serro Frio, por carta régia de 9 de fevereiro de 1730, ao mesmo tempo que se estranhava a D. Lourenço o ter sido tardio em fazer esta comunicação a El-Rei, foi ele investido de poderes amplos e ilimitados para regular e providenciar sobre este novo e importante ramo de rendimentos, que em breve ia mais enriquecer a Fazenda Real. [...] D. Lourenço de Almeida, usando dos poderes ilimitados que lhe foram conferidos para providenciar, como lhe parecesse justo, sobre a mineração dos diamantes, que se acabavam de descobrir, estabeleceu imediatamente o imposto de capitação de 5$000 por cada um escravo, que fosse empregado nesta mineração, em satisfação do quinto devido pela extração das pedras preciosas, como consta da portaria de 24 junho de 1730 [...]. Até este ano de 1734 ainda não se achavam bem definidos os limites do distrito propriamente diamantino. Todos os alvarás, portarias, bandos e ordens, que se expediam sobre a nova mineração só falava em ‘córregos e ribeiros donde se extraem diamantes na Comarca do Serro Frio’. Para obviar a incerteza e confusão dos direitos dos concessionários de lavras auríferas, determinar a jurisdição das autoridades que se criavam e executar-se o novo regimento, foi Martinho de Mendonça de Pina e Proença por ordem do Rei encarregado de fazer a demarcação das terras diamantinas”.

O atual território da comunidade quilombola do Baú é dividido pelo Ribeirão “Acaba Saco”, que, em vários documentos datados do início do século XVIII, é indicado como local de extração de ouro e diamante. Nesse sentido, no Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica, Ambiental e Sociocultural da Comunidade Quilombola do Baú - Serro/MG (2015, Volume 2, p. 15), a origem histórica da comunidade é descrita nos seguintes termos:

As primeiras referências históricas à área do Território Quilombola do Baú nos remetem não ao nome como a comunidade ficou conhecida, mas a esse ribeirão (Acaba-Saco). Tais referências se devem à exploração de diamantes nesse curso d‘água, que data do início do século XVIII e mantém-se até o final do século XX. O primeiro documento a citar a área é a carta ― Demarcação das terras que produz diamantes” (Costa, 2004, p. 214/215), um manuscrito aquarelado, pertencente ao Arquivo Histórico Ultramarino (n. 247/1153), cujo autor e data não são conhecidos [...]. É considerado o primeiro registro cartográfico da delimitação do Distrito Diamantino, ― o que levou os especialistas a datarem a carta como posterior ao ano de 1739 quando a mineração de diamantes, após um período de interrupção, passou a funcionar sob o sistema de contratos que exploravam os diamantes somente dentro da região demarcada (Rodrigues, 2015?). Ali além das origens do Arraial de Milho Verde, [...] estão identificadas várias localidades próximas ao Território, como “C. três barras” (Córrego Três Barras), “C. das Lages” (Córrego das Lages), “C. Simão Vrª” (Córrego Simão Vieira), “C. S. B.” (Córrego São Bartolomeu), “Rio das P” (Rio das Pedras) e M.º Verde” (Milho Verde). O Ribeirão Acaba Saco é designado como “C. Cavasaco” (Córrego Cavassaco), mas desconhece-se a razão dessa denominação.

O Ribeirão “Acaba Saco” era utilizado para o garimpo de ouro e, principalmente, do diamante, cuja exploração em seu leito ou em suas margens proporcionou a extração de incomensurável riqueza desde o início do século XVIII até as últimas décadas do século XX. O garimpo de ouro e diamante era realizado, principalmente, nos meses de abril a setembro, que, por ser o período de seca na região do Serro, facilitava a mineração de metais preciosos no leito dos rios.

O Ribeirão “Acaba Saco” era, ainda, utilizado para a captação de água destinada a manter a exploração agrícola no período chuvoso, que ocorre no período de outubro a março, destinando-se a produção agrícola para a subsistência das famílias quilombolas.

Inúmeros documentos históricos evidenciam que, desde o início do século XVIII, realiza-se a exploração de diamantes no Ribeirão “Acaba-Saco”. Nesse contexto, o Ribeirão “Acaba-Saco” é indicado como local de exploração de diamantes, estando inserido no interior do Distrito Diamantino, na carta denominada “Demarcação das terras que produz diamantes”, que é um manuscrito aquarelado, pertencente ao Arquivo Histórico Ultramarino, que pode ser a seguir visualizado:

O “Pequeno Mapa da Demarcação Diamantina”, datado de 1774, pertencente ao acervo do Arquivo Histórico Ultramarino, encaminhado pelo então Intendente de Diamantes (João da Rocha Dantas de Mendonça), possui uma lista dos cursos d’águas em que se instalou a exploração de diamantes. O primeiro nome da lista é “Cabasaco”, que se refere justamente ao Ribeirão “Acaba-Saco”, apontado como um dos lugares em que se instalaram os serviços de extração de diamantes.

A comunidade quilombola do Baú se formou, então, a partir da instalação dos primeiros empreendimentos de mineração do ouro e, principalmente, do diamante, ao longo do Ribeirão “Acaba-Saco” e seus afluentes. As famílias quilombolas, que serviram de mão-de-obra escravizada na extração dos metais e pedras preciosas na Comarca do Serro Frio, se estabeleceram às margens do Ribeirão “Acaba Saco” em virtude das facilidades do deslocamento entre a moradia e o local de trabalho na roça e na extração de diamantes/ouro.

O tempo da escravidão está presente na memória dos atuais quilombolas do Baú, que tanto se lembram das relações de opressão e exploração a que foram submetidos, quanto valorizam seus ancestrais pela perpetuação de sua cultura e pela aquisição das terras que permitiram a permanência da comunidade em seu atual território. No Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica, Ambiental e Sociocultural da Comunidade Quilombola do Baú - Serro/MG (2015, Volume 2, p. 29), constatou-se que “a comunidade quilombola do Baú possui fortes referências em relação aos seus antepassados recentes e até os mais remotos identificados com o tempo da escravidão”.

Nas culturas da região sub-saariana da África, é possível constatar a importância que o culto aos ancestrais desempenha na vida de seus parentes vivos, especialmente nas cerimônias de iniciação de crianças, nos casamentos, nas curas dos enfermos, nas grandes caças comunais, dentre outras atividades sociais. O padrão geral do culto africano aos ancestrais pode ser sintetizado da seguinte maneira:

Ancestrais são revestidos de poderes e autoridade místicos. Eles mantêm um papel funcional no mundo dos vivos, especificamente na vida dos seus parentes vivos; de fato, os grupos de parentesco africanos são geralmente descritos como comunidades tanto de vivos quanto de mortos. A relação dos ancestrais com os parentes vivos tem sido descrita como ambivalente, como sendo tanto punitiva como benevolente e algumas vezes até mesmo caprichosa. Em geral, a benevolência ancestral é assegurada através do apaziguamento e do sacrifício; acredita-se que a negligência acarreta em punição. Ancestrais estão intimamente envolvidos com o bem-estar do seu grupo de parentesco, mas eles não estão ligados da mesma forma a todos os membros daquele grupo. A ligação é estruturada através das pessoas mais velhas do grupo de parentesco, e a autoridade das pessoas mais velhas (do grupo de parentesco) está relacionada com sua forte ligação com os ancestrais. (KOPYTOFF, 2012KOPYTOFF, Igor. Ancestrais enquanto pessoas mais velhas do grupo de parentesco na África, in Cadernos de campo, São Paulo, n. 21, 2012, p. 233-250., p. 233).

O culto africano aos ancestrais é perceptível em várias práticas sociais existentes na comunidade quilombola do Baú, inclusive na regulação do acesso e utilização de seu território tradicional. O culto africano do ancestral se tornou um critério normativo fundamental da regulação do uso do território quilombola, na medida em que algumas partes do território somente podem ser utilizadas pelos descendentes do ancestral quilombola a quem se atribui a aquisição da terra quilombola.

Nesse contexto, nas entrevistas realizadas na comunidade quilombola do Baú, evidenciou-se que os ancestrais mortos dos atuais quilombolas, seja no período da escravidão ou no período posterior à abolição da escravidão, conseguiram adquirir partes do território quilombola por meio de retribuição pela extração de diamantes, de serviços prestados aos proprietários da terra ou de aquisição das terras com pagamentos realizados através de diamantes extraídos.

Na entrevista feita com a quilombola Doralice do Socorro Paulino, evidenciou-se a importância dos ancestrais quilombolas na vida cotidiana da comunidade. A entrevistada é bisneta de Norberto Batista dos Reis (nascido em 1823) e Inácia Pinto Ribeiro - e são apresentados pela entrevistada como negros escravizados que trabalharam na Fazenda do Baú; é neta de João Norberto Batista (1853-1933 - filho de Norberto Batista Reis e Inácia Pinto Ribeiro) e Mariana Miquelina dos Santos (1878-1948 - filha de Francisco África da Costa e Maria Miquelina Costa); é filha de Francelino da Silva Paulino e Inácia Eraldo Reis (filha de João Norberto Batista e Mariana Miquelina dos Santos).


Foto de Inácia Eraldo Reis - Primeira geração de quilombolas do Baú nascidos após a abolição da escravidão.

A entrevistada narra que parte das terras do Baú foram adquiridas por João Norberto Batista por compra feita a “Zezé Antônio”. Senão vejamos:

Doralice: Meu pai é Francelino da Silva Paulino e minha mãe é Inácia Eraldo Reis, que é filha de Mariana; vovó Mariana nasceu no último ano da escravidão

Pesquisador: Nasceu no último ano da escravidão?

Doralice: No último ano da escravidão. Vovô foi escravo.

Pesquisador: Como chamava o avô da senhora?

Doralice: João Norberto

Pesquisador: Ele foi escravo?

Doralice: Ele foi escravo. Ele casou duas vezes. Tanto que vovó é da mata (região de Mata dos Crioulos, que fica próximo ao território quilombola do Baú), adquiriu uma família que é a mãe da Arlita [...].

Doralice: É a mãe de Zé Ferreira, a primeira família. Aí a mãe dele morreu e ele casou com vovó menina nova.

Pesquisador: Uhum

Doralice: É… ele já tinha aproveitado. Mamãe contava e a gente concorda que vovô trabalhou para Zezé Antônio e foi trabalhando, trabalhando…

Pesquisador: Zezé Antônio é o fazendeiro, o dono do Baú?

Doralice: É o dono do Baú, dono da fazenda do Baú

Pesquisador: O avô da senhora era escravo do Zezé Antônio?

Doralice: Meu avô era escravo do Zezé Antônio, trabalhou muitos anos; aí o Zezé Antônio ficou doente (tenho que contar o que mamãe me contou, se mamãe tivesse viva tava quase com 100 ano), viu que ia morrer, ele não era brasileiro, aí ele vendeu a fazenda pra o Vovô.

Pesquisador: Então ele vendeu, não doou não?

Doralice: Não, foi em serviço, ele não aguentou pagar em serviço.

No depoimento acima transcrito, a entrevistada informa que “Zezé Antônio” seria o dono da Fazenda do Baú. De acordo com as pesquisas documentais realizadas, acredita-se que “Zezé Antônio” é Francisco Antônio da Silva Pereira11 11 No Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica, Ambiental e Sociocultural da Comunidade Quilombola do Baú - Serro/MG (2015, Volume 2, p. 33/34), consta informações sobre Francisco Antônio da Silva Pereira e sua atividade de extração de diamantes: “Francisco Antonio da Silva Pereira, juiz de paz e capitão da Guarda Nacional em Milho Verde, era filho de Luis Antonio da Silva Pereira - ‘Juis Suplente’ em Milho Verde e Bernardina Carlota de Souza (APM / PP1 10 CX 49 DOC. 06). Luis Antonio da Silva Pereira descendia do Capitão Vicente Antonio da Silva Pereira, natural de Leira em Portugal, que se mudou para Milho Verde no século XVIII. ‘Veio com ordens do rei de Portugal para fornecer alimentação aos milhares de escravos que trabalhavam na Real Extração. (...) O Capital Vicente Antônio trouxe três gigantescas mós feitas nas Ilhas da Madeira. A maior dessas mós, com três metros de diâmetro, parou de funcionar quando, em decorrência do desmatamento imprevidente, o córrego que a punha em movimento deixou de correr. Outra ficava no Moinho dos Macacos. A fazenda da família foi erguida no Córrego do Piolho, pouco coisa a sul de Milho Verde, estendendo-se a propriedade até o Rio Massangano (Jequitinhonha) (Satiago, 2006, p. 108/109). Luis Antonio da Silva Pereira nasceu em 1781 e sua esposa no ano anterior, tiveram dez filho e, em 1831, possuíam 11 escravos de diferentes idades (PP1 CX 49 DOC.06). Não foram encontradas informações sobre a data do falecimento do casal, mas, em 1865, ambos já haviam morrido e três dos seus filhos homens, Francisco Antonio da Silva Pereira, Joaquim Antonio da Silva Pereira e Luis Antonio da Silva Pereira apresentaram uma petição junto ao Delegado dos Terrenos Diamantino do Serro, ‘na qual mostravão terem requerido as sobras da lavra que foi arrendatária a finada Bernardina Carlota de Souza da qual (lavra) são eles sucessores como herdeiros daquela finada’. A lavra, situada no Acaba Saco (Curtume) principiava ‘de huá pontezinha que atraveça o rego que leva água ao Moinho (macaco) seguindo o rego, e Rio Acaba são acima athe ou defronte de um suco onde se collocou hum marco de madeira de Lei (...) (APM / TD 08, p. 4v)”. , que, no dia 9 de abril de 1856, realizou o registro de “uma terra, no Districto de Milho Verde, denominada Baú, e dividem com os herdeiros de Anna Ramos, com os de Sebastião Antonio e com as de Francisca Maria” (APM / TP-1-217).

No inventário de Francisco Antônio da Silva Pereira, que faleceu no dia 28 de julho de 1876, consta uma relação de bens imóveis e de escravos deixados pelo falecido. Dentre os vários bens imóveis arrolados no inventário, não há qualquer terreno rural, mas há a descrição de “Huma pequena morada de caza coberta de telhas, sita no sitio do Bahu, em terras do Cortume, Bahú, tendo avaliado pela quantia de um conto e cem mil reis”. Ou seja, na data de seu óbito, Francisco Antônio da Silva Pereira não era mais proprietário da Fazenda do Baú, mas, apenas, de uma “pequena morada de caza coberta de telhas” situada no Baú. Isso caracteriza a aquisição feita por João Norberto Batista das terras do Baú, compra feita a Francisco Antônio da Silva Pereira.

Na relação de escravos constante no inventário de Francisco Antônio da Silva Pereira, consta a presença de Francisco África da Costa e Maria Miquelina Costa (bisavôs maternos da quilombola Doralice do Socorro Paulino) e João Norberto Batista (avô da quilombola Doralice do Socorro Paulino). Senão vejamos:

NOME IDADE PROCEDÊNCIA VALOR OUTRAS INFORMAÇÕES Calisto 20 anos 1.650.000 Rita 44 anos Africana 600.000 Elias 15 anos Crioulo 1.650.000 Francisco 46 anos Africano 1.300.000 Casado com Maria Maria 30 anos Crioula 800.000 Casada com Francisco Ricardo 9 anos Crioulo 1.000.000 Filho de Francisco e Maria Norberto 4 anos Crioulo 200.000 Filho de Francisco e Maria Gabriel 2 anos Crioulo 150.000 Filho de Francisco e Maria Sebastião 3 anos Crioulo 150.000 Filho de Francisco e Maria Catharina 55 anos Africana 200.000 Viúva Sebastiana 30 anos Crioula 900.000 Serafim 28 anos Crioulo 1.650.000 ? 24 anos Crioulo 1.650.000 João 16 anos Crioulo 1.650.000 Jorge 21 anos Crioulo 1.650.000 Adão 43 anos Africano 1.350.000 Luiza 18 anos Crioula 1.000.000 Dionizia 14 anos Crioula 1.000.000 Antonio 17 anos Crioulo 1.650.000 Candida 12 anos Crioula 1.000.000 Miguel 12 anos Crioulo 1.400.000 Antonio 48 anos Africano 900.000 Fonte: Inventário de Francisco Antônio da Silva Pereira (1876)

A parte das terras do Baú, que foi adquirida por João Norberto Batista por compra feita a “Zezé Antônio”, integra o território atual da comunidade quilombola do Baú. E, de acordo com as leis comunitárias tradicionais, que regulam o uso e a ocupação do território e que estão implícitas nas práticas sociais da comunidade do Baú, as terras deixadas por João Norberto Batista são consideradas “terras de bolo” e podem ser usadas por todos os seus descendentes.

Outros quilombolas também adquiriram terras no Baú, tais como Zé Malaquias, Firmiano Pedro da Costa, João Veríssimo dos Santos, Maria Fernandes (Maria Preta), João Novato, dentre outras famílias quilombolas. E, seguindo a mesma lógica da categoria jurídica do direito tradicional “terras de bolo”, todos os descendentes deixados pelos quilombolas acima indicados podem usar, coletivamente, as terras adquiridas por seu ancestral comum.

A entrevista, feita com o quilombola Luiz Gonzaga Costa, é elucidativa em relação às regras jurídicas de utilização das “terras de bolo”, que se formaram com a aquisição feita por quilombolas ao longo de todo o século XIX e XX. Senão vejamos:

Luiz Gonzaga Costa: [...] terra de bolo é igual está ali da porteira para lá, dali pra lá é terra de bolo, que é do povo da família de Lucimara, desse povo de Clemilde, de Odilon; aquela lá é terra de bolo que a gente fala, igual lá em cima do Firmiano que é de bolo que a gente fala né, muita gente da família.

Pesquisador: As pessoas da família podem usar a terra, né?

Luiz Gonzaga Costa: É.

Pesquisador: Uma outra pessoa de fora podia usar?

Luiz Gonzaga Costa: Uai, se arrumasse jeito de plantar.

Pesquisador: Assim, de dentro do baú que não é da família?

Luiz Gonzaga Costa: Pode plantar uai, o tempo que podia roçar podia plantar uai.

Pesquisador: E aí não tinha que pagar arrendo?

Luiz Gonzaga Costa: Não, pagava arrendo sim.

Pesquisador: Então quem era da família que não pagava arrendo, mas quem não era da família pagava.

Luiz Gonzaga Costa: É quem não era da família pagava.

Pesquisador: Então, na verdade, existiam várias terras de bolo, e era por família?

Luiz Gonzaga Costa: Por família.

[...]

Pesquisador: Então, na verdade, a terra de bolo funcionava por família. Por exemplo, na parte da família do Firmiano, ali tinha terra de bolo, aí os descendentes do Firmiano podiam usar aquela área em comum.

Luiz Gonzaga Costa: É.

Pesquisador: E aí, por exemplo, se ele precisasse usar de uma área que não tivesse dentro da parte do Firmiano, ele já tinha que pagar arrendo pros outros?

Luiz Gonzaga Costa: Era.

Pesquisador: Quais sãos as grandes famílias do Baú?

Luiz Gonzaga Costa: Aqui era do João Norberto, de Zé Malaquias, Firmiano, João Verissimo dos Santos e tinha a da Maria Fernandes também que era lá em cima.

Pesquisador: Que é a Maria Preta casada com o Juca Rosa?

Luiz Gonzaga Costa: É casada com Juca Rosa, que também era família grande, e também tinha a de João Novato que era família grande.

Pesquisador: Então todas as terras de bolo funcionavam com base nas relações familiares?

Luiz Gonzaga Costa: É.

A partir das práticas sociais relacionadas ao uso de seu território tradicional, pode-se afirmar a existência da categoria jurídica “terra de bolo” no direito tradicional da comunidade quilombola do Baú, de acordo com a qual é permitida a utilização das “terras de bolo” por todos os descendentes do ancestral quilombola responsável pela aquisição das terras integrantes do território do Baú. Ou seja, a ancestralidade desempenha uma função importante na regulação do acesso e uso das partes constitutivas do território quilombola, na medida em que a descendência do ancestral é o critério para a permissão/proibição do uso das “terras de bolo”.

A regulação do acesso e uso das “terras de bolo” a partir da ancestralidade é, claramente, uma categoria jurídica decorrente de culturas de matriz africana, cuja identidade, direitos e deveres de uma pessoa se relacionam diretamente com seus ancestrais e com o território a que pertence. Ou seja, os direitos e deveres de uma pessoa dependem de seu pertencimento às linhagens do clã fundador. Nesse sentido, o antropólogo Norbert Rouland reconstrói a cosmologia de diversos povos africanos e, em relação à compreensão da pessoa, afirma que:

O indivíduo, tal como o concebe o Ocidente moderno, não existe. Seria melhor empregar a noção de pessoa para compreender os conceitos africanos. A pessoa repousa nas relações que ultrapassam a unidade abstrata representada pelo indivíduo e irradia para mais além. Uma pessoa pode ser também sua família, seus amigos, alguns de seus bens (presentes) ou mesmo certos lugares. Estende-se também no tempo: o homem africano traz em si seus ancestrais e já é sua descendência. Daí a importância das linhagens que condensam num eixo oriundo do fundador do clã (que não é necessariamente um humano, mas um animal ou, mais raramente, um vegetal) todos os indivíduos que delas fazem parte e lhes assegura uma imortalidade coletiva. O pertencer a uma linhagem é um dos pilares dos direitos africanos: estrutura a relação do homem com a terra (esta normalmente só pode ser alienada entre membros da mesma linhagem), com seus rebanhos, assim como as diversas modalidades de aliança matrimonial (2008, p. 78/79 - grifos nossos).

Na comunidade quilombola do Baú, o direito de acessar e usar as “terras de bolo” é condicionado pelo pertencimento à linhagem do ancestral quilombola que adquiriu a terra. É vedada a venda da terra para pessoas que não pertencem à mesma linhagem ancestral, garantindo-se, assim, a continuidade do domínio comum dos descendentes do ancestral quilombola sobre a “terra de bolo”. Ou seja, a “terra de bolo” não pode ser vendida para pessoas que não pertençam à linhagem do ancestral quilombola adquirente da terra.

O instituto jurídico da “terra de bolo” desempenha importante função na perpetuidade do modo de vida quilombola e de sua organização social, na medida em que assegura aos jovens quilombolas a possibilidade de buscar oportunidades econômicas em outras regiões, tendo garantida a possibilidade de retornar ao seu território ancestral em virtude do direito de uso comum das “terras de bolo” pertencentes a todos os descendentes de seu ancestral quilombola. A dinâmica migratória e econômica dos quilombolas é condicionada pelo instituto jurídico da “terra de bolo”, que funciona como um instrumento para assegurar o retorno dos quilombolas ao seu território ancestral a qualquer momento. Ou seja, ao sair do território por qualquer motivo, o quilombola do Baú sabe que poderá retorna porque lhe é garantido o direito de uso das “terras de bolo” deixadas por seu ancestral quilombola.

Além das “terras de bolo”, os quilombolas do Baú se apropriam de seu território por meio de outras duas categorias jurídicas: “casa/quintal” e “matas/campos”. A “casa/quintal” é o espaço apropriado pela família restrita para a construção de sua moradia e a produção agrícola de gêneros alimentícios destinados, em geral, ao consumo da própria família. Tal espaço é de uso exclusivo da família restrita e proporciona a autarquia econômica da família em relação às outras famílias quilombolas. As “matas/campos” são os espaços de apropriação coletiva de toda a comunidade quilombola, independentemente da descendência dos “pais fundadores” da comunidade quilombola, e que são utilizados para a realização de extrativismo vegetal destinado a fomentar a produção de mel e artesanato por parte dos interessados em participar desta atividade comunitária.

As categorias jurídicas “casa/quintal”, “matas/campos” e “terras de bolo” sintetizam as normas de apropriação e uso do território da comunidade quilombola do Baú, regendo a vida de todos os moradores do quilombo e disciplinando quem e de que forma se pode usar as diferentes parcelas do território ocupado pela comunidade.

No direito oficial do Estado brasileiro, não há qualquer instituto jurídico parecido com a categoria jurídica “terra de bolo” do direito tradicional da comunidade quilombola do Baú. Ao contrário, por estar baseada no individualismo possessivo da sociedade liberal burguesa (modo de vida europeu que se tornou hegemônico pela prevalência da economia de mercado e do Estado-Nação), o direito oficial do Estado brasileiro trata como uma situação de anormalidade a circunstância de duas ou mais pessoas serem coproprietárias e/ou copossuidoras de uma mesma coisa (terra). E, por isso, o direito oficial do Estado brasileiro privilegia a extinção dessa situação anômala para o individualismo possessivo burguês, assegurando aos coproprietários e/ou copossuidores, a qualquer tempo, o direito de exigir a extinção do condomínio pela divisão da coisa em comum.

Se o direito oficial do Estado brasileiro fosse aplicável à regulação do acesso e uso do território quilombola, as “terras de bolo” estariam submetidas ao instituto jurídico do “condomínio”, entendido como uma situação na qual uma mesma coisa pertence a mais de uma pessoa, cabendo a cada uma delas igual direito, idealmente, sobre o todo e cada uma das partes. E, por serem uma transgressão ao ideário burguês de regulação da apropriação das coisas pelos indivíduos12 12 Os civilistas Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2015, p. 581) explicam a situação anômala do condomínio nos seguintes termos: “Em linha de princípio, a mesma coisa não pode ser objeto de domínio exclusivo e simultâneo de duas ou mais pessoas, em idêntico lapso temporal, impedindo-se que terceiros exerçam qualquer poder sobre a coisa. À evidência, duas pessoas não ocupam o mesmo espaço jurídico, deferido com pertinência a alguém. Portanto, o proprietário poderá excluir terceiros da atuação sobre a coisa mediante a adoção da reivindicatória. A exclusividade é um princípio que se dirige ao domínio, pois não pode haver mais de um domínio sobre o mesmo bem. Só uma pessoa pode usar, fruir e dispor do objeto, na medida em que o domínio é uno e indivisível. Daí a inviabilidade de se estabelecer um direito real onde outro da mesma natureza já esteja presente. Ao contrário do que se possa supor, no condomínio tradicional não há elisão ao princípio da exclusividade, eis que, pelo estado de indivisão do bem, cada um dos proprietários detém fração ideal do todo. Há uma pluralidade de sujeitos (proprietários) em um dos polos da relação jurídica. Isto é, como essas pessoas ainda não se localizaram materialmente por apenas possuírem cotas abstratas, tornam-se donos de cada parte e do todo ao mesmo tempo. Mesmo quando atue isoladamente, o condômino exercitará o domínio na integralidade e não apenas na proporção de sua fração. Consequente- mente, cada qual poderá isoladamente reivindicar a coisa de terceiro que injustamente a possua, sendo despicienda a autorização dos demais condôminos (art. 1.314 do CC)”. , os condomínios podem ser extintos, a qualquer momento, pela simples manifestação de vontade de quaisquer condôminos, nos termos do disposto no artigo 1.320 do Código Civil Brasileiro (direito oficial do Estado brasileiro)13 13 “Art. 1.320. A todo tempo será lícito ao condômino exigir a divisão da coisa comum, respondendo o quinhão de cada um pela sua parte nas despesas da divisão”. .

Os civilistas Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald justificam as razões que levaram o direito oficial do Estado brasileiro a estatuir como desejável a extinção do condomínio. Os civilistas (2015, p. 592) afirmam que:

O condomínio não é qualificado pela perpetuidade. Pelo contrário, cuidando-se de forma anômala de titularidade, a transitoriedade é de sua essência, pois o ordenamento jurídico cuida de disciplinar a sua extinção. Explica Orlando Gomes que a indivisão “é um estado inorgânico, uma situação excepcional, que não deve durar, porque se contrapõe, econômica e socialmente, a forma normal do domínio”.

A divisão é uma das formas de extinção da coisa comum, cujo desiderato é conferir a cada um dos ex-condôminos uma área concreta e perfeitamente individualizada. Ou seja, materializa-se em uma coisa certa aquilo que anteriormente era fração ideal, abstratamente pertence a cada comunheiro.

Aliás, a faculdade de divisão é emanação do direito de propriedade, não se sujeitando assim a prazos prescricionais. Por mais que o condômino tenha se calado por longos anos, poderá oportunizar o exercício à partilha da coisa quando assim o entender. Daí a manifesta referência do art. 1.320 do Código Civil ao direito de “a todo tempo” ser facultada a divisão da coisa comum.

Aconselha-se que o estado de indivisão seja provisório. Comumente, o condomínio converte-se em manancial de discórdias, sendo socialmente adequado evitar os conflitos que provoca. Daí o legislador privilegiar a sua extinção, por intermédio do direito potestativo de qualquer dos condôminos de exigir a divisão da coisa comum - mesmo que o cotitular tenha fração minoritária e independentemente da anuência da maioria -, por meio de negócio jurídico ou pela via judicial, em caso de resistência por um ou mais titulares. Aliás, a existência de cláusula de inalienabilidade recaindo sobre uma fração de bem imóvel não impede a extinção do condomínio. Na hipótese, haverá sub-rogação da cláusula de inalienabilidade, que incidirá sobre o produto da alienação do bem, no percentual correspondente à fração gravada.

O direito oficial do Estado brasileiro está assentado na premissa normativa de que uma coisa deve ser apropriada, apenas, por uma pessoa, declarando como indesejável a circunstância de uma coisa pertencer a uma coletividade. O direito estatal brasileiro é, então, a expressão normativa do modo de vida da sociedade moderna/colonial, que, por sua vez, está assentada numa concepção individualista e egoísta de humanidade, na qual cada indivíduo se compreende como uma mônada que possui vida independente de sua comunidade e que se destina à satisfação de seus desejos/interesses pela aquisição/consumo de mercadorias.

Por isso, no âmbito do direito oficial do Estado brasileiro, permite-se que, a qualquer momento, um dos condôminos exija a extinção do condomínio, retornando à normalidade da vida na sociedade moderna/colonial na qual um indivíduo se apropria, com exclusividade e com exclusão de todos os outros, de uma coisa (terra) para a satisfação de seus desejos/interesses particulares.

Por outro lado, no âmbito do direito tradicional da comunidade quilombola do Baú, as “terras de bolo”, que pertencem a coletividade formada por todos os descendentes do ancestral quilombola adquirente da terra, expressam a identidade coletiva do grupo étnico, que se mantém na medida em que há a rememoração de sua origem histórica, de seus mitos fundadores, de seus valores, etc. O direito tradicional da comunidade quilombola do Baú está assentado numa concepção comunitária de humanidade na qual cada indivíduo constrói sua identidade por pertencer a um grupo étnico e por compartilhar uma forma de vida comunitária.

O reconhecimento e proteção jurídica das formas de vida dos povos não europeus, com suas racionalidades, com seus valores, com suas práticas sociais, com suas instituições, com suas éticas e estéticas próprias, implica na admissão da validade jurídica da normatividade tradicional dos povos não europeus e, consequentemente, no afastamento da dinâmica colonizadora, homogeneizadora e excludente do direito estatal, consistente em não reconhecer outros direitos que não provenientes das instituições do Estado-Nação.

Nesse contexto, a Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) estatui que “deverá ser respeitada a integridade dos valores, práticas e instituições” (artigo 5º, b) dos povos e comunidades tradicionais.

O respeito aos valores, práticas e instituições das comunidades quilombolas implica no reconhecimento de que a normatividade tradicional afasta a incidência da normatividade estatal na regulação das relações sociais mantidas no interior dos territórios quilombolas. Ou seja, o respeito aos valores, práticas e instituições das comunidades quilombolas exige que se reconheça a existência e validade de seu direito tradicional e se rechace qualquer tentativa de substituição deste direito pelo direito oficial do Estado brasileiro, rejeitando-se, assim, a colonialidade em sua dimensão jurídica que marca a história do Direito no Brasil.

4. Conclusão

A prática do Direito no Brasil é marcada pelas relações de colonialidade que perpassam toda a sociedade brasileira, invisibilizando, subalternizando e negando reconhecimento e respeito aos modos de ser e viver dos grupos étnicos de origem africana. No âmbito da epistemologia jurídica, o monismo jurídico é a concepção teórica hegemônica, cujo arcabouço conceitual impede a observação da multiplicidade de práticas jurídicas não estatais que subsistem ao lado da normatividade jurídica produzida pelo Estado brasileiro. No âmbito da prática da produção do direito, tanto legislativa quanto jurisdicional, o Direito estatal continua a ser utilizado como instrumento de homogeneização cultural, impedindo-se que outras formas de viver e estar no mundo, que são incompatíveis com o individualismo possessivo e com a economia de mercado, possam ser reconhecidas, protegidas, respeitadas e vivenciadas pelos povos não-europeus.

A construção de uma sociedade pluriétnica e multicultural exige, então, que se supere o monismo jurídico e o seu caráter homogeneizador, reconhecendo-se a existência de outras práticas jurídicas não estatais, que integram os modos de ser e viver de povos e comunidades tradicionais, e que regulam as relações interpessoais entre todos aqueles que compartilham uma dada tradição cultural.

Nesse contexto, buscou-se explicitar as leis tradicionais que regem a vida na comunidade quilombola do Baú, em relação à apropriação e uso das partes constitutivas de seu território. Descobriu-se que a prática jurídica da comunidade quilombola do Baú classifica as diferentes parcelas de seu território em “casa/quintal”, “matas/campos” e “terras de bolo”, pois são categorias jurídicas que sintetizam as normas de apropriação e uso do território, que vigoram na vida dos quilombolas do Baú, disciplinando quem e de que forma se pode usar as diferentes parcelas do território ocupado pela comunidade.

As leis tradicionais, que regulam a apropriação e uso do território da comunidade quilombola do Baú, se assentam numa perspectiva comunitária de subjetividade, cuja ancestralidade desempenha uma função fundamental na definição dos direitos/deveres e na divisão dos bens/oportunidades. As premissas do direito tradicional da comunidade quilombola do Baú são, de todo, incompatíveis com as premissas individualistas e egoístas do direito estatal da sociedade moderna/colonial brasileira. Por isso, o direito estatal não é apropriado para regular as relações de apropriação e uso do território da comunidade quilombola do Baú, por ser incompatível com a “integridade dos valores, práticas e instituições” da comunidade quilombola, que são protegidas pelo artigo 5º, alínea b, da Convenção nº 169 da OIT.

Sustenta-se, então, que a normatividade jurídica tradicional afasta a incidência da normatividade estatal na regulação da apropriação e uso das partes constitutivas do território da comunidade quilombola do Baú. Em outras palavras, as leis tradicionais da comunidade quilombola do Baú são as normas jurídicas aplicáveis à regulação da apropriação e uso do território tradicional quilombola, assegurando-se, assim, respeito, proteção e continuidade dos modos de ser e viver distintivos do grupo étnico-racial de origem africana.

5. Referências Bibliográficas

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  • 1
    Este artigo é resultado de pesquisa científica realizada no âmbito do Projeto de Pesquisa “A NORMATIVIDADE JURÍDICA E O MODO DE SER QUILOMBOLA: A tensão entre a normatividade estatal e a normatividade tradicional no interior do território da comunidade quilombola do Baú (Serro)”, executado no ano de 2019, com financiamento do Fundo de Incentivo à Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (FIP/PUC Minas).
  • 2
    A definição legal de comunidades remanescentes de quilombo está posta no artigo 2odo Decreto n.º 4.887/03: “Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.
  • 3
    A Fundação Cultural Palmares (FCP) inscreveu 3.386 comunidades quilombolas, localizadas em diversos Estados brasileiros, no Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos, com a emissão de certificação, de acordo com os dados disponíveis no sítio eletrônico: http://www.palmares.gov.br/?page_id=37551. Acesso 07/11/2019, às 10:30.
  • 4
    As teorias monistas do Direito se caracterizam por adotar um pensamento abissal, que apenas reconhece a juridicidade das práticas e normas produzidas pelo Estado-Nação e exclui a possibilidade de reconhecimento de quaisquer outras práticas e normas não provenientes do Estado-Nação. Na perspectiva do monismo jurídico, as normatividades jurídicas não estatais simplesmente não existem e, por isso, não podem ser objeto de conhecimento. Boaventura de Sousa Santos (2010, 31/33) explica o pensamento abissal nos seguintes termos: “O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’. A divisão é tal que ‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto realidade torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro. A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade de copresença dos dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante. Para além dela há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética. [...] No campo do direito moderno, este lado da linha é determinada por aquele que conta como legal ou ilegal de acordo com o direito oficial do Estado ou com o direito internacional. O legal e o ilegal são as duas únicas formas relevantes de existência perante a lei, e, por esta razão a distinção entre ambos é uma distinção universal. Esta dicotomia central deixa de fora todo um território social onde ela seria impensável como princípio organizador, isto é, o território sem lei, fora da lei, o território do a-legal, ou mesmo do legal e ilegal de acordo com direitos não oficialmente reconhecidos. Assim, a linha abissal invisível que separa o domínio do direito do domínio do não-direito fundamenta a dicotomia visível entre o legal e o ilegal que deste lado da linha organiza o domínio do direito”.
  • 5
    REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. São Paulo: s. ed., 1984, pp. 246 e 253.
  • 6
    BOBBIO, Norberto. Contribucción a la teoria del derecho. Edición de Alfonso Ruiz Miguel. Valencia: Fernando Torres, 1980, pp. 164 e 264-265.
  • 7
    CARBONNIER, Jean. Sociologia Jurídica. Coimbra: Almedina, 1979, pp. 220 e 222-223.
  • 8
    CÁRCOVA, Carlos. A opacidade do direito. São Paulo: LTr, 1998, pp. 118-120.
  • 9
    O Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica, Ambiental e Sociocultural da Comunidade Quilombola do Baú, elaborado pelos projetos de extensão “A luta por reconhecimento dos direitos fundamentais das comunidades remanescentes de quilombo” e “Lições da Terra - Projeto interdisciplinar de direitos étnicos”, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), apresentou uma série de documentos históricos que indicam o ribeirão Acaba-Saco como local de extração de ouro e diamante no início do século XVIII. Os 2 documentos históricos mais importantes são a carta denominada “Demarcação das terras que produz diamantes” (1729) e o “Pequeno Mapa da Demarcação Diamantina” (1774).
  • 10
    O Distrito Diamantino é uma demarcação de terra realizada pela Coroa Portuguesa com o intuito de controlar a extração e comercialização de diamantes. Joaquim Felício dos Santos (pp. 50/) explica que: “Logo que a Corte portuguesa teve notícia do aparecimento dos diamantes na Comarca do Serro Frio, por carta régia de 9 de fevereiro de 1730, ao mesmo tempo que se estranhava a D. Lourenço o ter sido tardio em fazer esta comunicação a El-Rei, foi ele investido de poderes amplos e ilimitados para regular e providenciar sobre este novo e importante ramo de rendimentos, que em breve ia mais enriquecer a Fazenda Real. [...] D. Lourenço de Almeida, usando dos poderes ilimitados que lhe foram conferidos para providenciar, como lhe parecesse justo, sobre a mineração dos diamantes, que se acabavam de descobrir, estabeleceu imediatamente o imposto de capitação de 5$000 por cada um escravo, que fosse empregado nesta mineração, em satisfação do quinto devido pela extração das pedras preciosas, como consta da portaria de 24 junho de 1730 [...]. Até este ano de 1734 ainda não se achavam bem definidos os limites do distrito propriamente diamantino. Todos os alvarás, portarias, bandos e ordens, que se expediam sobre a nova mineração só falava em ‘córregos e ribeiros donde se extraem diamantes na Comarca do Serro Frio’. Para obviar a incerteza e confusão dos direitos dos concessionários de lavras auríferas, determinar a jurisdição das autoridades que se criavam e executar-se o novo regimento, foi Martinho de Mendonça de Pina e Proença por ordem do Rei encarregado de fazer a demarcação das terras diamantinas”.
  • 11
    No Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica, Ambiental e Sociocultural da Comunidade Quilombola do Baú - Serro/MG (2015, Volume 2, p. 33/34), consta informações sobre Francisco Antônio da Silva Pereira e sua atividade de extração de diamantes: “Francisco Antonio da Silva Pereira, juiz de paz e capitão da Guarda Nacional em Milho Verde, era filho de Luis Antonio da Silva Pereira - ‘Juis Suplente’ em Milho Verde e Bernardina Carlota de Souza (APM / PP1 10 CX 49 DOC. 06). Luis Antonio da Silva Pereira descendia do Capitão Vicente Antonio da Silva Pereira, natural de Leira em Portugal, que se mudou para Milho Verde no século XVIII. ‘Veio com ordens do rei de Portugal para fornecer alimentação aos milhares de escravos que trabalhavam na Real Extração. (...) O Capital Vicente Antônio trouxe três gigantescas mós feitas nas Ilhas da Madeira. A maior dessas mós, com três metros de diâmetro, parou de funcionar quando, em decorrência do desmatamento imprevidente, o córrego que a punha em movimento deixou de correr. Outra ficava no Moinho dos Macacos. A fazenda da família foi erguida no Córrego do Piolho, pouco coisa a sul de Milho Verde, estendendo-se a propriedade até o Rio Massangano (Jequitinhonha) (Satiago, 2006, p. 108/109). Luis Antonio da Silva Pereira nasceu em 1781 e sua esposa no ano anterior, tiveram dez filho e, em 1831, possuíam 11 escravos de diferentes idades (PP1 CX 49 DOC.06). Não foram encontradas informações sobre a data do falecimento do casal, mas, em 1865, ambos já haviam morrido e três dos seus filhos homens, Francisco Antonio da Silva Pereira, Joaquim Antonio da Silva Pereira e Luis Antonio da Silva Pereira apresentaram uma petição junto ao Delegado dos Terrenos Diamantino do Serro, ‘na qual mostravão terem requerido as sobras da lavra que foi arrendatária a finada Bernardina Carlota de Souza da qual (lavra) são eles sucessores como herdeiros daquela finada’. A lavra, situada no Acaba Saco (Curtume) principiava ‘de huá pontezinha que atraveça o rego que leva água ao Moinho (macaco) seguindo o rego, e Rio Acaba são acima athe ou defronte de um suco onde se collocou hum marco de madeira de Lei (...) (APM / TD 08, p. 4v)”.
  • 12
    Os civilistas Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2015, p. 581) explicam a situação anômala do condomínio nos seguintes termos: “Em linha de princípio, a mesma coisa não pode ser objeto de domínio exclusivo e simultâneo de duas ou mais pessoas, em idêntico lapso temporal, impedindo-se que terceiros exerçam qualquer poder sobre a coisa. À evidência, duas pessoas não ocupam o mesmo espaço jurídico, deferido com pertinência a alguém. Portanto, o proprietário poderá excluir terceiros da atuação sobre a coisa mediante a adoção da reivindicatória. A exclusividade é um princípio que se dirige ao domínio, pois não pode haver mais de um domínio sobre o mesmo bem. Só uma pessoa pode usar, fruir e dispor do objeto, na medida em que o domínio é uno e indivisível. Daí a inviabilidade de se estabelecer um direito real onde outro da mesma natureza já esteja presente. Ao contrário do que se possa supor, no condomínio tradicional não há elisão ao princípio da exclusividade, eis que, pelo estado de indivisão do bem, cada um dos proprietários detém fração ideal do todo. Há uma pluralidade de sujeitos (proprietários) em um dos polos da relação jurídica. Isto é, como essas pessoas ainda não se localizaram materialmente por apenas possuírem cotas abstratas, tornam-se donos de cada parte e do todo ao mesmo tempo. Mesmo quando atue isoladamente, o condômino exercitará o domínio na integralidade e não apenas na proporção de sua fração. Consequente- mente, cada qual poderá isoladamente reivindicar a coisa de terceiro que injustamente a possua, sendo despicienda a autorização dos demais condôminos (art. 1.314 do CC)”.
  • 13
    “Art. 1.320. A todo tempo será lícito ao condômino exigir a divisão da coisa comum, respondendo o quinhão de cada um pela sua parte nas despesas da divisão”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2019
  • Aceito
    29 Ago 2020
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