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Juvenicídio: a expressão da Necropolítica na morte de jovens no Brasil

Juvenicide: the expression of the necropolitics of the death of young people in Brazil

Resumo

Neste artigo analisa-se a mortalidade de jovens no Brasil, como um processo de Juvenicídio e expressão contemporânea de Necropolítica. Explicita-se as conceituações teóricas e de origem do Juvenicídio, como condição final de um processo social mais amplo que vem ocorrendo na América Latina; e de Necropolítica, como poder do estado de decidir quem pode morrer e quem pode viver. Analisa-se os fundamentos de tais conceitos e as expressões contemporâneas e brasileiras de Necropolítica. Finalmente, relaciona-se tais conceitos com o que vem acontecendo com os jovens no território nacional. Trata-se de uma leitura teórica reflexiva sobre um problema social da atualidade, que é indicador da violação de direitos de crianças e adolescentes. Tal realidade decorre de um processo histórico, que se identifica com a formação da sociedade brasileira, mas que, ao mesmo tempo, tem relação direta com a ação e omissão do estado, muitas vezes conivente com a naturalização da violência. Indica-se que a resistência possível a tudo isso está na garantia de direitos, os quais estão previstos nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e ordenamento jurídico pátrio.

Palavras-chave:
Juvenicídio; Necropolítica; Mortalidade de jovens no Brasil

Abstract

This article analyzes the mortality of young people in Brazil, as a process of Juvenicide and the contemporary expression of Necropolitics. The theoretical concepts and the origin of Juvenicide are explained, as the final condition of a broader social process that has been taking place in Latin America; and Necropolitics, as the state's power to decide who can die and who can live. The foundations of such concepts and the contemporary and Brazilian expressions of Necropolitics are analyzed. Finally, these concepts are related to what has been happening to young people in the national territory of Brazil. It is a reflective theoretical reading about a current social problem, which is an indicator of the violation of the rights of children and adolescents. This reality stems from a historical process, which is identified with the formation of Brazilian society, but, at the same time, has a direct relation with the action and omission of the state, often associated with the naturalization of violence. It is indicated that the possible resistance to all this is in the guarantee of rights, which are foreseen in the international treaties to which Brazil is a signatory and the national legal system.

Keywords:
Juvenicide; Necropolitics; Mortality of young people in Brazil

Introdução

Nos últimos anos, muitos jovens têm morrido no Brasil por causas externas, sejam suicídios, acidentes de trânsito ou vítimas de homicídios. Os dados sobre homicídios são objeto de preocupação específica neste artigo, na medida em que falam por si quando expostos. No Atlas da Violência 2019 (uma das fontes de dados estatais) é apresentada a taxa de homicídio de jovens de 15 a 29 anos de 2017, recorde dos últimos dez anos a contar daquele ano. Em 2017, portanto, 35.783 jovens foram assassinados no Brasil, o que significa uma taxa de 69,9 mortos por homicídio, a cada 100.000 habitantes. Homicídio, de modo mais específico, foi a causa de morte de 51,8% dos óbitos de jovens de 15 a 19 anos, o que caracteriza o maior risco de morte na adolescência (IPEA; FBSP, 2019).

O mesmo documento aponta que a taxa de mortalidade da população em geral é de 31,6 mortos por homicídio a cada 100 mil habitantes, o que significa que a taxa de mortes de jovens de 15 a 29 anos (69,9 a cada 100 mil jovens) é mais que o dobro da população em geral. Além disso, a população de jovens que morre possui características específicas: é normalmente moradora das periferias das grandes cidades, pobre, do sexo masculino e negra, ou não branca (IPEA, FBSP, 2019).

O Atlas da Violência 2020, que traz dados referentes a 2018, apresenta uma redução nos números de homicídios em geral. Isso é um dado positivo, mas ainda muito ruim e não tem um significado de tendência à diminuição, até porque as possíveis causas para a redução apresentadas no mesmo relatório não estão consolidadas como políticas públicas específicas de alguns estados e movimentações entre as organizações criminosas em especial no Norte e Nordeste do Brasil, ou, ainda, podem estar relacionadas com uma baixa na qualidade do registo dos dados (IPEA, FBSP, 2020).

De qualquer forma, 30.873 jovens foram vítimas de homicídios no ano de 2018, o que representa uma taxa de 60,4 homicídios a cada 100 mil jovens no país e 53,3% do total de homicídios naquele ano. Ainda, nesse quadro mais recente, o número de homicídios de jovens representa o maior risco de mortes na faixa etária e a população de jovem mais vulnerável a esse tipo de violência é a de negros, periféricos e vivendo nas grandes cidades (IPEA, FBSP, 2020).

A temática do homicídio de jovens não é novidade e nem é uma informação restrita ao mundo acadêmico: no noticiário nacional, com frequência, são veiculadas notícias de jovens mortos, por balas perdidas, ou por envolvimento em algum tipo de conflito bélico. Em regra, são notícias sobre adolescentes, negros e pobres que foram mortos, ilustradas com imagens de mães que choram. Em comum também se assiste que não há explicação ou responsabilização pelo crime ocorrido.

Isso não está acontecendo só no Brasil. Em outros países, em especial na América Latina, pesquisadores têm nominado o processo de morte dos jovens de “Juvenicídio”, conceito que busca sintetizar um processo social complexo, com várias dimensões de explicação. No Brasil movimentos socais e outros enfoques acadêmicos têm utilizado para a descrição do fenômeno a expressão “genocídio de jovens”. Sem desconsiderar o mérito do seu significado genérico de destruição de populações ou povos, opta-se aqui pelo termo Juvenicídio, primeiro porque em uma única palavra expressa o conceito de morte matada, e de quem, no caso dos jovens. Segundo, porque do ponto de vista jurídico, genocídio é um crime tipificado na Lei 2.889/56 e também previsto na Convenção para prevenção do Crime de Genocídio, da ONU de 1948, ratificada pelo Brasil em 1951 e significa, nesses documentos normativos, “a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, com outras derivações e especificidade elencadas na Lei. A análise jurídica de tipicidade dos fatos que têm ocorrido no Brasil não é o objetivo deste artigo. Aqui, pretende-se analisar os processos de morte dos jovens desde um olhar criminológico ou sociológico e não, neste momento, realizar análise de tipicidade ou de enquadramento normativo. Deixa-se esta tarefa para outro momento.

Logo, o objetivo é analisar o processo de Juvenicídio, relacioná-lo com o conceito teórico de Necropolítica e verificar se este processo de mortes vem ocorrendo no Brasil, como uma expressão de Necropolítica. Assim, parte-se da explicitação das ideias teóricas e de origem do Juvenicídio e de Necropolítica, identifica-se os seus fundamentos, verifica-se as expressões contemporâneas e brasileiras de Necropolítica e, finalmente, relaciona-se tais conceitos com o que vem acontecendo com os jovens no território nacional.

Juvencídio e necropolítica

Juvenicídio é a condição final de um processo social mais amplo. Para compreender as mortes de jovens na América Latina é preciso visualizá-las em um cenário social mais amplo que inclui processos de precarização econômica e social, estigmatização e constituição de grupos, setores e identidades juvenis desacreditadas - fatores que implicam na constituição de corpos-territórios juvenis como âmbito privilegiado de morte (VALENZUELA, 2015VALENZUELA, José Manuel. Prólogo. In: VALENZUELA, José Manuel (coord.) . Juvenicidio - Ayotzinapa y las vidas precarias en América Latina y España. Barcelona: NED Ediciones; Guadalajara: ITESO; Tijuana: El Colegio de la Frontera Norte, 2015.).

O contexto social, econômico e cultural da sociedade contemporânea gera, para a grande maioria da população, empobrecimento e precarização, condições sociais e econômicas desfavoráveis e violações sistemáticas de Direitos Humanos. Nesse contexto, amplos setores da população são considerados supérfluos e residuais. Pessoas que, embora sejam vidas presentes, a presença não faz falta para o funcionamento social e, mais ainda, atrapalha.

A sociedade contemporânea segue seu curso, em regra, sem um rumo definido. Mas, para que siga o modelo econômico, social e cultural que é positivo para apenas uma restrita parcela da população, descarta sujeitos, não dá importância à sua eliminação, ou pior, justifica tal eliminação por alguma falha individual, propriedade dos sujeitos eliminados. Não se trata de imaginar um ente de “superpoder”, que possui tais ideias e as aplica no mundo com consequências pré-definidas. Trata-se de um processo social com origem no modelo econômico neoliberal, que estruturalmente circunda o contexto específico da morte dos jovens, mas que se expressa em várias camadas de processos geradores interrelacionados.

Em específico, a morte pode ser entendida como resultado de “Necropolítica”. Necro é o termo grego para “morte” e política tem sua origem na ideia grega de polis, cidade, ou cidadãos da polis. Assim, “Necropolítica” é um processo de controle dos corpos dos sujeitos, por parte da polis, de quem a governa e de seus cidadãos, com a justificativa de que sua eliminação é necessária para a vida em curso. Achille Mbembe (2018)MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, Estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1edições, 2018., pensador camaronês contemporâneo, descreve o processo da Necropolítica como o poder de decidir quem pode morrer e quem pode viver. Isso ocorre quando as políticas adotadas pelos governos, ou setores da sociedade com algum nível de poder, são políticas de morte. Não apenas quando os governos diretamente matam por meio de suas forças de segurança, mas também quando deixam morrer pessoas como consequência de suas ações voltadas a outros propósitos, justificadas conforme interesses que os sustentam. Deixam morrer as pessoas em situação de maior vulnerabilidade ou precariedade. É o caso de quem vive na rua, dos doentes mentais, das dependentes de drogas, das pessoas nas listas de espera dos serviços de saúde insuficientes, dos refugiados, dos emigrantes, das crianças e, entre outros, dos jovens.

Nas palavras de Achille Mbembe, Necropolítica Necropolítica é:

(…) o poder e a capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, Estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1edições, 2018., p. 5).

Para a compreensão do conceito desenvolvido pelo autor é necessário buscar seus fundamentos. Assim, passar-se-á à análise do pensamento dos autores de referência de Achille Mbembe para o conceito de Necropolítica.

Fundamentos para a Necropolítica, desde Achille Mbembe

Para desenvolver o conceito de Necropolítica, Achille Mbembe parte de referenciais teóricos conhecidos e já muito trabalhados academicamente. Destaca-se entre tais referências Michel Foucault (2005)FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Curso no College de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão São Paulo: Martins Fontes, 2005., com o conceito biopolítica; Hanna Arent, em sua análise sobre o que ocorreu nos campos de concentração nazistas e as “Origens do Totalitarismo” (2012) e George Agamben, que desenvolve os conceitos de Homo Saber, como pessoas matáveis (2007) e de Estado de Exceção (2004).

Michel Foucault desenvolve sua crítica ao conceito tradicional de soberania e busca construir uma definição específica a partir da ideia de estatização do biológico. Uma mudança nos mecanismos de poder, segundo o autor, que ultrapassa a ideia antes construída por ele próprio de poder disciplinar, para uma espécie de controle sobre as massas, sobre os corpos, não mais de indivíduos dentro de instituições, mas agora de populações. Portanto, estatização do biológico (FOUCAULT, 2005FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Curso no College de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão São Paulo: Martins Fontes, 2005.).

A disciplina, enquanto técnica de poder moderno, dirige-se ao controle de indivíduos, de modo a eliminar comportamentos inadequados e, em última instância, adestrar sujeitos indesejados. O poder, nesse contexto, é diluído e microfísico, faz parte de inúmeras relações e é utilizado como um modo de manter os sujeitos úteis e adequados ao que a sociedade espera (FOUCAULT, 1995). Nesse sentido, o âmbito de atuação do soberano está em “fazer morrer e deixar viver”, em última instância, controle sobre quem fugia às regras disciplinares (FOUCAULT, 2005FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Curso no College de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 287). Mais ao final do Século XVIII e durante o século XIX, no contexto de sociedades ocidentais em expansão demográfica e industrial, em complementação ao poder disciplinar, surgiu, conforme o autor, um outro mecanismo de poder, voltado para o controle sobre populações mais amplas. Agora, o que está em questão não é apenas lidar com a morte em sentido natural, ou causada por processos individuais de origem na natureza, mas da morte gerada por processos criados pelos homens, como as cidades, por exemplo. O “biopoder”, nova espécie de poder e de soberania, baseia-se em dados estatísticos e em processos sociais gerados pela sociedade em curso. Instala-se, portanto, “a biopolítica”, como justificativa de legitimação do estado soberano. Não se trata agora de “fazer morrer e deixar viver”, mas de “fazer viver e deixar morrer”, nisso está o poder do soberano (FOUCAULT, 2005FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Curso no College de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 287- 295).

No sentido aqui referido, deixar morrer por parte do estado não diz respeito a apenas agir diretamente com a intenção de morte. Tirar a vida não se resume ao assassinato direto de alguém, mas tudo que pode ser considerado morte indireta. Nas palavras do autor: “O risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição etc” (FOUCAULT, 2005FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Curso no College de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 306).

Para que o mecanismo da biopolítica tenha se concretizado, historicamente foi muito importante o racismo. Não que o racismo tenha sido criado entre os séculos XVIII e XIX, época a que autor se refere, mas ganhou um sentido específico, quando se tornou necessário justificar a garantia de uma vida boa e segura para uns, em detrimento de outros. Tornou-se importante concretizar um corte entre quem deve viver e quem pode morrer. A qualificação das raças de forma hierarquizada, permite, desde então, opor uns grupos em relação a outros. Ganha importância a noção de que a soberania se afirma pela segurança e garantia de vida de uns a partir da eliminação de outros (FOUCAULT, 2005FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Curso no College de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão São Paulo: Martins Fontes, 2005.). Para Achille Mbembe, ao descrever o pensamento de Michel Foucault, o racismo é “condição para a aceitabilidade do fazer morrer” e “o estado nazista foi o mais completo exemplo de um Estado exercendo o direito de matar” (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, Estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1edições, 2018., 18-19).

Nessa direção, no início do século XXI, Achile Mbembe retoma o conceito de biopoder, visto que este funciona mediante a divisão entre os que devem viver e os que devem morrer. Tal controle pressupõe a divisão da espécie humana em grupos e o estabelecimento de censuras biológicas entre uns e outros (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, Estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1edições, 2018.).

Hanna Arendt (1989)ARENDT, Hannah. As origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 6. reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., por sua vez, complementa os fundamentos do autor na medida em que localiza o autoritarismo como uma experiência demolidora da alteridade e sugere que a política de raça está relacionada à política de morte.

As câmaras de gás e os fornos de cremação de corpos foram o ponto culminante de um longo processo de desumanização e instrumentalização da morte, o qual foi facilitado pelos estereótipos racistas e pelo florescimento de um racismo de classe, que acabou comparando a classe trabalhadora e o “povo apátria” do mundo industrial aos selvagens do mundo colonial. Ou seja, milhares de pessoas foram mortas sob domínio nazista, conforme a autora, após um processo de construção social da justificativa para tais mortes (ARENTD, 1989).

Afirma a autora:

O racismo pode destruir não só o mundo ocidental, mas toda a civilização humana (…) a raça é, do ponto de vista político, não o começo da humanidade mas o seu fim, não a origem dos povos mas seu declínio, não o nascimento natural do homem mas a sua morte antinatural (ARENDT, 1989ARENDT, Hannah. As origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 6. reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p. 187).

Antes da Segunda Guerra Mundial o racismo já existia, mas nunca tinha sido usado de forma tão meticulosa. No contexto da primeira parte do século XX, a “ideologia racista” interrompeu o processo de fortalecimento das fronteiras entre as nações europeias. O racismo, e não a condição de classe, acompanhou o desenvolvimento das comunidades nacionais europeias, até se transformar em arma de destruição destas nações. Os racistas, embora utilizassem discursos ultranacionalistas, negavam os princípios por meio dos quais são construídas as nações, que são ideias de igualdade e solidariedade.

Segundo Hanna Arendt, a Segunda Guerra Mundial é a exceção dos métodos antes reservados aos selvagens, agora aplicados aos povos civilizados da Europa. Ou seja, já não existia o reconhecimento de todos como seres humanos, a novidade é que agora, no contexto do século XX, não se reconheciam todos os europeus como humanos. Nas palavras da autora: “o mundo não viu nada de sagrado na absoluta nudez de ser unicamente humano” (ARENDT, 1989ARENDT, Hannah. As origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 6. reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p. 333). No entanto, o Nazismo e o Stalinismo não fizeram mais do que ampliar uma série de mecanismos já existentes na formação social e política da Europa ocidental: “subjugação do corpo, regulamentações médicas, darwinismo social, eugenia, teorias médicos-legais sobre hereditariedade, degeneração e raça” (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, Estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1edições, 2018., p. 32).

Nesse ponto, Achille Mbembe relaciona a contextualização histórica desenvolvida por Hanna Arendt com outro processo social gerador de morte: a escravização de pessoas negras, durante o período colonial. Da mesma forma que na experiência do Nazismo, também no período colonial construiu-se a ideia no imaginário social de que as colônias eram semelhantes às fronteiras. Sobre elas constituiu-se a ideia de que habitam selvagens, não eram organizadas como estados e não criariam um mundo humano. Seriam locais, por excelência, onde as garantias de ordem judicial poderiam ser suspensas, zonas onde a violência do estado de exceção supostamente operária a serviço da “civilização”. Isso pode ocorrer porque havia uma ideia que o sustenta, a ideia da negação racial, ou de que não há nenhum “vínculo comum entre o conquistador e o nativo” (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, Estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1edições, 2018., p. 34 -35).

Ou seja, ao longo da História ocidental tem sido necessário construir socialmente noções e crenças que justifiquem que, em nome de uma necessidade supostamente maior, mais importante, afastar-se noções elementares de civilidade e legalidade, ao ponto de considerar algumas pessoas, ou grupos de pessoas, como “sem dignidade”, como vidas matáveis.

Mesmo em estados de direito, portanto, sob “legalidade”, sustentam-se práticas incoerentes com os fundamentos do próprio estado de direito, a partir de justificativas para afastamento de dispositivos legais; trata-se da noção de “estado de exceção”, de Giorgio Agamben. Para o autor está superada a “dicotomia dentro-fora” da Lei, na medida que afirma ser o estado de exceção uma zona de indiferença em que dentro e fora não se excluem. Partindo da premissa de que o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico, o autor conclui que a “suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída de relação com a ordem jurídica” (AGAMBEN, 2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo (Coleção Estado de Sítio), 2004., p.39).

Essa estrutura teórica funda seu conceito na releitura de premissas construídas por Carl Schmitt, autor que construiu bases teóricas para o conceito de estado de exceção. Assim, torna-se relevante para a definição adotada por Giorgio Agamben a distinção schimittiana entre “normas do direito” e “normas de realização do direito”. O estado de exceção é, portanto, a “abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força de lei realiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa” (AGAMBEN, 2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo (Coleção Estado de Sítio), 2004., p. 63).

Na prática, a instauração do paradigma do estado de exceção associa-se à ideia de que para aplicação de uma determinada norma, é necessário suspender sua aplicação para alguns casos, ou em relação a algum grupo de pessoas, como exceções dentro da norma. A força-de-lei sem lei - vigência sem aplicação de uma norma - é a forma por meio da qual o direito tenta incluir em si mesmo a sua própria ausência e, dessa maneira, assegura uma relação estável com o estado de exceção (AGAMBEN, 2004AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo (Coleção Estado de Sítio), 2004.).

Por outro lado, também é um conceito desenvolvido por Giorgio Agamben a ideia de homo sacer, como pessoas consideradas “vida nua”, sem importância e, ao mesmo tempo, “sagradas”. Resgata a figura do homo sacer, presente no direito romano arcaico, que se encontrava incluída no ordenamento jurídico com uma única possibilidade: sua “matabilidade”. Tal figura poderia ser morta por qualquer um impunemente, mas não poderia ser sacrificada conforme os ritos previstos. Possuía “vida nua”, encontrava-se na zona de indiferença, entre o sacrifício e o homicídio (AGAMBEN, 2007). Alguém que estava no limbo da inexistência, ou existia enquanto vida biológica, mas não como vida social.

A partir de tal resgate, prossegue o autor justificando a inexistência dos sujeitos perante o Estado, corporificada na possibilidade de intervenção em suas vidas e na desconsideração de seus direitos. Exemplifica sua afirmação através dos campos de concentração de judeus, durante a Segunda Guerra Mundial, afirmando que existiam espaços fora da sociedade onde tudo era permitido fazer com os sujeitos, “um híbrido entre direito e de fato, no qual os dois termos tornam-se indiscerníveis” (AGAMBEN, 2007, p. 177).

Da mesma forma que homo sacer, a morte das pessoas em tal contexto não tinha significado de morte, visto que suas vidas eram matáveis. Vidas que podem ser eliminadas em nome de outras vidas, sem que seja considerado homicídio. Vidas que são manipuladas, descartadas, vigiadas, encarceradas, torturadas, extintas e podem ter seus direitos suspensos ou eliminados (AGAMBEN, 2007). Como afirma o autor, “aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar entre que a vida e direito [...]” (AGAMBEN, 2007, p. 36). Assim, outras pessoas contemporaneamente “existem”, na medida em que estão vivas e sua existência expõe as contradições presentes no conjunto da sociedade, mas não são reconhecidos pelo Estado, enquanto devedor dos direitos de que seriam titulares, de acordo com o pacto previsto desde o estado moderno; ou nem mesmo são reconhecidas pela sociedade, como parte desta.

Mais adiante será retomado o conceito desenvolvido de “vidas nuas”, para relacioná-lo ao público em abordagem neste texto. Importa neste momento considerar que para que exista uma manifestação de Necropolitica, conforme Achille Mbembe, é preciso vidas consideradas matáveis, por parte do Estado, ainda que para isso justifique-se uma exceção à norma, dentro da legalidade.

Expressões contemporâneas de necropolítica

Achille Mbene identifica vários contextos contemporâneos nos quais se manifestam elementos de Necropolítica. Espaços em que a morte está autorizada. Trata-se de novos modos de colonização, entre estados e povos, ou entre povos e outros povos. Grupos que são dispostos uns em relação a outros, com autorização de morte, ainda que nem sempre existam guerras declaradas, muito menos guerras entre estados. São espaços de morte, em meio a estados de exceção, ou um modo de operação do poder contemporaneamente. A soberania, nesse caso, é a capacidade de decidir quem não importa, quem é descartável e quem não é.

O autor resgata situações que aparentemente são distantes da realidade a que se propõe este texto, porém há elementos em comum. Refere-se, como exemplo, à ocupação palestina e à Faixa de Gaza, como forma contemporânea de controle sobre populações em territórios. Espaços urbanos delimitados e sob controle. Concentram-se nesses casos o poder disciplinar, o biopolítico e o necropolítico. Populações inteiras são alvo do soberano. As vilas e cidades sitiadas são isoladas do mundo. A cidade cotidiana é militarizada (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, Estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1edições, 2018.).

Em outro exemplo refere que muitos estados africanos não possuem mais monopólio sobre violência e sobre os meios de coerção dentro do território. A mão de obra militar é comprada. Milícias urbanas, exércitos privados, exércitos de senhores regionais, segurança privada e exércitos de estado, todos proclamam o direito de exercer violência e matar (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, Estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1edições, 2018.). As armas de fogo são dispostas de várias maneiras na contemporaneidade, de modo a provocar destruição máxima de pessoas e criar condições de morte.

Em vários contextos, pelo mundo, exércitos são formados por soldados-cidadãos, crianças-soldados, mercenários e corsários (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, Estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1edições, 2018.). Meios pelos quais é realizada a gestão das “multitudes”, como uma forma de governo que consiste em fixar especialmente categorias inteiras de pessoas, ou paradoxalmente, soltá-las, forçando-as a migrar para grandes áreas e a sobreviver sem que o monopólio da violência seja do estado. Tais pessoas acabam por se constituir em sobreviventes que, depois de um êxodo, são confinados a campos e zonas de exceção (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, Estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1edições, 2018.).

Ao retomar as definições de poder em Michel Foucault, Achille Mbene afirma que em vários contextos contemporâneos há menos poder disciplinar e mais massacre. “As novas tecnologias de destruição estão menos preocupadas com a inscrição de corpos em aparatos disciplinares do que em inscrevê-los, no momento oportuno, na ordem da economia máxima, agora representada pelo ‘massacre’” (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, Estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1edições, 2018., p. 59). Mais do que controlar e adestrar os sujeitos indesejados, trata-se agora de mantê-los restritos a espaços territoriais e, oportunamente, eliminá-los, ou deixar que se eliminem.

Trata-se de uma espécie de controle sobre territórios contemporâneos semelhante ao controle feudal medieval. Em plena sociedade contemporânea, futurista, pós-moderna (BAUMAN, 1998BAUMAN, Ziygmunt. O Mal-estar da Pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1998.), as pessoas são restritas e controladas em territórios. Isso ocorre nos contextos exemplificados pelo autor e também no espaço urbano das metrópoles ocidentais. São vilas, morros, favelas, guetos, zonas inteiras onde o estado não entra, a não ser de forma episódica e muitas vezes com uso de violência. Territórios sob domínio de grupos, onde não é permitida a circulação de pessoas de outro (s) grupos(s), onde os sujeitos, ainda que formalmente iguais, são submetias informalmente à absoluta desigualdade de tratamento. Os corpos de alguns são matáveis, para justificar a vida de outros que vivem, em regra, fora destes territórios.

Sobre a temática de territórios onde pessoas são obrigadas a viver, há que se considerar os estudos sistematizados por Loïc Wacquant sobre guetos urbanos. O autor parte da análise sobre as definições de guetos medievais, com origem nas cidades estado, em especial Veneza, em que judeus eram confinados em espaços definidos, primeiro como convidados, seguindo atrativos, depois (entre os séculos XIII e XVI) obrigados a lá viver, podendo sair durante o dia para exercer suas ocupações, mas com roupas específicas, e voltando ao gueto no por-do-sol. Desde aquele contexto estava presente a ideia de proteção aos cristãos do risco de contato “contagioso” com os corpos dos judeus. O confinamento levava à superpopulação, deterioração de moradias, empobrecimento e aumento da mortalidade, mas, de outro lado, também proporcionava o fortalecimento institucional próprio e a consolidação cultural. Judeus viveram em espaços deste tipo em muitas cidades da Europa por longo período (WACQUANT, 2008WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2008.).

À época, já estavam presentes os elementos que entende o autor constitutivos dos guetos: “estigma, coerção, confinamento espacial e encapsulamento institucional” (WACQUANT, 2008WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 79). Outros momentos históricos em que tais organizações sociais existiram merecem destaque, como os guetos americanos após a Primeira Guerra Mundial, formados por afro-americanos oriundos dos Sul, mas que migraram para as cidades americanas no Norte e, diante da hostilidade dos brancos, não tinham outra escolha se não vier nos Cinturões Negros das cidades de Nova York e Chicago, entre outras. Ou, ainda, os guetos judeus no período Nazista europeu, ou os “Burakumin”, intocáveis, conforme as religiões japonesas, que viviam confinados nas cidades após o período Tokugawa, sendo emancipados em 1871. Conforme o autor, guetos são “uma forma muito peculiar de urbanização modificada por relações assimétricas de poder entre grupos etnorraciais: uma forma especial de violência coletiva concretizada no e pelo espaço urbano” (WACQUANT, 2008WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 81).

O gueto, portanto, é produto de relações de poder, e consiste em uma instituição de duas faces: para os dominantes, sua razão de ser é confinar e controlar, para aqueles a quem é imposto viver em espaços urbanos determinados e segregados, viver ali, para além de suas limitações, é também espaço de proteção, na medida em que estimula a auto-organização. “Os guetos são produto de uma dialética móvel e tensa entre hostilidade externa e afinidade interna, que se traduz no nível de consciência coletiva pela ambivalência” (WACQUANT, 2008WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 82).

Estigma, coerção, confinamento espacial e encapsulamento institucional também são elementos de expressões de Necropolítica contemporânea, especialmente ao fazer-se um paralelo com as periferias das grandes cidades brasileiras, em que populações pobres, em regra, não brancas, são designadas a viver. Nesse caso, embora formalmente não estejam confinadas, são segregadas, com mobilidade restrita, sujeitas às normas de organizações de estado paralelo, ou paramilitar, submetidas a violências de vários níveis e, inclusive, a políticas estatais de exceção. Nesses espaços estão sujeitas à morte cotidianamente, seja porque não existe estado protetor, ou porque o estado exerce controle por meio da morte.

Augusto Jobim e Melody Vargas analisam a Necropolítica no caso brasileiro e chamam a atenção para a guerra contra o tráfico, declarada pelo Estado do Rio de Janeiro. Naquele caso, sob o pretexto de combater o comércio ilegal de drogas, voltou-se ao mercado correspondente ao varejo, que não atinge o “negócio”, ou o crime organizado em torno de drogas e armas. A partir daí, justificou-se a instalação de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), o que significou maior controle estatal sobre os corpos e as mentes dos indivíduos que vivem em determinados territórios. Tal política, em última instância, “permite o extermínio de grupos inteiros de pessoas, selecionadas conforme um sistema político que vê esses sujeitos como intrusos, com a validação da maior parte da sociedade, a qual aceita com naturalidade a gradual extinção desse segmento” (JOBIM; VARGAS, 2019, p.130).

Lívia Casseres e Thula Pires também contribuem com a reflexão sobre Necropolítica na realidade brasileira ao realizar três estudos de caso que se referem a ações coletivas relacionadas ao contexto da política de segurança pública do Rio de Janeiro: o primeiro caso diz respeito às operações policiais realizadas no Militar no Complexo de Favelas da Maré, em que três pessoas não envolvidas no confronto foram baleadas sendo que uma morreu; o segundo caso diz respeito a um habeas corpus coletivo impetrado em favor dos moradores da Favela Cidade de Deus, diante de mandado coletivo genérico de busca e apreensão domiciliar; o terceiro caso trata de ação civil pública que analisa a utilização de residências situadas no Complexo de Favelas do Alemão como base militar para operações dos agentes da Unidade de Polícia. Todos os episódios ocorreram entre junho de 2016 e abril de 2017 (CASSERES; PIRES, 2017CASSERES, Lívia; PIRES, Thula. Necropoder no Território de Favelas do Rio de Janeiro. Anais do I Congresso de Pesquisa em Ciências Criminais. São Paulo: IBCCRIM. 2017.).

Nas três situações analisadas são enfocadas as delimitações espacial, racial e de classe presentes. De outra parte, analisa-se os mecanismos institucionais por meio dos quais o Estado controla, acondiciona, fragiliza e extermina corpos negros nas favelas do Rio de Janeiro, o que, segundo as autoras, “constituem uma das diversas formas de perpetuação do genocídio negro e da colonialidade brasileira” (CASSERES; PIRES, 2017CASSERES, Lívia; PIRES, Thula. Necropoder no Território de Favelas do Rio de Janeiro. Anais do I Congresso de Pesquisa em Ciências Criminais. São Paulo: IBCCRIM. 2017., p. 1429).

As autoras desenvolvem fundamentos e concluem no sentido de que a política de extermínio e instrumentalização da vida concretizada pelo Estado do Rio de Janeiro, por meio da segurança pública, trata-se de uma tecnologia do necropoder. Porém, torna-se possível por meio de vários mecanismos já cristalizados e naturalizados, como o próprio racismo e os padrões históricos de intervenção do braço armado do Estado nas favelas, o que se caracteriza por um regime de exceção. Tal processo, que é histórico, com origem desde a colonização do país e do regime escravocrata, ganha outras dimensões numéricas diante do empobrecimento da população também branca e sua crescente precarização. Nesse caso, passa a ocorrer um processo de “democratização da senzala”, com o agregamento de outras camadas sociais às favelas, e, em consequência, “extermínio da senzala”, com intensificação da morte dos negros, em certa medida para a manutenção da hierarquia social sobre a qual a estrutura social brasileira foi construída (CASSERES; PIRES, 2017CASSERES, Lívia; PIRES, Thula. Necropoder no Território de Favelas do Rio de Janeiro. Anais do I Congresso de Pesquisa em Ciências Criminais. São Paulo: IBCCRIM. 2017., p. 1459)

Outros autores têm construído afirmações consistentes sobre a adequação do conceito de Necropolítica na América Latina, em geral, e em particular no caso brasileiro. Estudos convergem na direção de uma explicação histórica, fundada na origem colonial das civilizações contemporâneas latinoamericanas, associadas à construção de sociedades patriarcais, racistas e de significativa desigualdade social (NIELSON, 2020; BAGGIO, GONÇALVES, RESSADORI, 2018).

Em tais contextos, Berenice Bento não separa objetivamente os conceitos de biopoder e necropoder para explicar a complexidade da violência latinoamericanos, mas se aproxima de Achille Mbembe e de Judith Butler, ao buscar responder a seguinte questão: “O que faz com que o Outro não seja reconhecido como humano?”, mencionando casos de violência contra população indígena, negra e transfeminicídios, e argumentando que nessas situações de violências “o Estado aparece como um agente fundamental na distribuição diferencial de reconhecimento de humanidade.”.precisa produzir interruptamente zonas de morte”, de tal modo que, em contextos de estados coloniais como os latino-americanos, a “governabilidade e poder soberano não são formas distintas de poder, mas têm, [...] uma relação de dependência contínua”. (BENTO, 2018BENTO, Berenice. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? Cadernos Pagu (53), 2018., p. 03)

Silvo Almeida, de outra parte, tem reconstruído o conceito de racismo no Brasil a partir da ideia salutar de que existe um racismo estrutural na sociedade brasileira, acompanhado de um outro plano institucional de racismo e, finalmente, de um racismo interpessoal. A combinações destas dimensões gera o contexto racista em que se opera na atualidade. Porém, cabe salientar, o racismo é sempre estrutural, ou seja, é um elemento que integra a organização econômica e social da sociedade, com formação ao longo da História. Assim, é um fenômeno normal de sociedades como a brasileira e não algo patológico, ou anormal. A “normalidade brasileira”, funda-se no projeto colonial desde o qual se buscava uma universalização de valores, complementada pela classificação das pessoas. Ferramenta essa que foi responsável, desde lá, por um processo de destruição e morte. Refere-se a Achille Mbembe para sustentar a tese de que há um processo de desumanização que precede às práticas discriminatórias ou de genocídios. Assim, só é possível explicar as mortes de hoje, relacioná-las à constituição da sociedade racista brasileira (ALMEIDA, 2020ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaira, 2020.).

Em contextos, como o brasileiro, afirma Achille Mbembe, alguns são sobreviventes, resistentes ou resilientes. São aqueles que estando na zona próxima da morte, ainda que restritos, estão vivos. Conseguiram, até dado momento, escapar com vida. Esta vida sobrevivente pode significar poder de morte sobre outros. Conforme o autor, “(…) é a morte do outro, sua presença física como um cadáver, que faz o sobrevivente se sentir único. E cada inimigo morto faz aumentar o sentimento de segurança do sobrevivente” (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, Estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1edições, 2018., p. 62).

Assim, quem realiza o ato em si de matar pode ser aquele que sobreviveu. No mesmo contexto, seria alguém matável, mas acabou por matar. Ambos vítimas e autores de violência, em sentido estrito, são vítimas em um contexto mais amplo de uma violência que aqui define-se como Necropolítica.

Desde a escravidão e ocupação colonial, morte e liberdade estão entrelaçadas. O terror é uma característica dos estados escravistas e também nos regimes coloniais contemporâneos. Ambos regimes são experiências de ausência de liberdade. Viver sob a condição de ocupação contemporânea é experimentar uma condição permanente de “viver na dor”. Estruturas fortificadas, bloqueios de estradas, construções que trazem à memória dolorosas humilhações, interrogatórios e espancamentos. Toques de recolher que aprisionam pessoas em suas casas apertadas e que lá tem que anoitecer e amanhecer. A morte, finalmente, muitas vezes, é a libertação do terror da servidão. A morte é aquilo sobre o que o sujeito tem algum poder (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, Estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1edições, 2018.).

Trata-se de formas contemporâneas de subjugar a vida ao poder da morte. O biopoder, desenvolvido por Michel Foucault não é suficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida de alguns ao poder da morte, por isso é necessário construir-se a ideia de “Necropoder” e “Necropolítica”. São “formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes confere o estatuto de ‘mortos-vivos’ “(MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, Estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1edições, 2018., p. 71). Assim, a manutenção do poder soberano não mais está na capacidade bélica externa, mas no poder interno sobre indivíduos, que seriam inimigos constituídos como tais (JOBIM; VARGAS, 2019).

Determinados grupos, portanto, são alvo do controle necropolítico. Não são alvos aleatórios, mas construídos histórica e socialmente, de modo a que se justifique sua eliminação. O medo desses indivíduos é cultivado e até alimentado pelo estado, de modo a que sejam legitimadas práticas genocidas. Nesse contexto, o medo produz e alimenta-se de uma “violência biopolítica”, de modo a tornar legítima a guerra no ambiente doméstico e justificando um estado de exceção (JOBIM; VARGAS, 2019).

Considerando-se os fundamentos aqui elencados para o conceito de Necropolítica, cabe relacioná-lo ao propósito deste texto que diz respeito à temática do Juvenicídio. Trata-se de buscar resposta ao questionamento: em que medida a morte de adolescentes e jovens, de forma sistemática, que aqui se vai conceituar como Juvenicídio, caracteriza-se por uma expressão de Necropolítica.

Juvenicídio como expressão da Necropolítica contemporânea

O processo social que culmina no Juvenicídio, ou seja, na morte em grande escala de adolescentes e jovens, especialmente do sexo masculino, não brancos, nas periferias das grandes cidades, não se explica por meio de uma única causa ou de um raciocínio linear. Trata-se de um processo complexo, que pode ser compreendido em camadas de fatores gerados que se entrelaçam.

O feminicídio (expressão linguistica similar), caracteriza-se como a morte de mulheres pelo fato de serem mulheres, ou em razão da condição de gênero, em sociedades em que há forte domínio patriarcal. Marcela Lagarde (2008), antropóloga mexicana que foi responsável por resignificar o conceito de feminicídio, chegou a tal ideia a partir da observação de vários casos de mortes de mulheres com requintes de violência, que ocorreram na cidade de Juárez, na província mexicana de Chihuahua, mas que tinham características que se repetiam em outras regiões daquela país. Depois da compreensão do conceito e sua positivação legal, como um tipo de homicídio, tal fenômeno passou a ser identificado também em outros países da Região e também criminalizado de modo específico. Como afirma a autora:

El feminicidio es una categoria; parte de la teoría sobre el femicídio, de acuerdo com sus creadoras Diana Russel y Jill Radford, dos extraordinarias feministas estadounidenses que desde hace casi 20 aõs han venido trabajando el tema, y han proposto esta mirada específica que tiene una particulariedad: ubican los homicidios contra niñas y mujeres como parte de la violencia de género. Ése es sua porte, ésa es la pequeña y gran diferencia paradigmática (…) Lo que pasaba em Ciudad Juárez era feminicidio y no crímenes contra mujeres (LAGARDE, 2006LAGARDE, Marcela. Del femicídio al feminicídio. In: Desde el Jardín de Freud, número 6, Bogotá, 2006., p. 217).

No caso do Juvenicídio, não se pode restringir a explicação à existência de sociedades “adultocentricas”, com dominação dos adultos sobre os jovens. Rossana Reguillo Cruz (2015), ao tratar o tema e a relação deste com feminicídio, colabora ao afirmar que embora não se tenha ainda um conceito bem trabalhado de Juvenicídio - como se tem no caso de feminicídio, há anos desenvolvido pelos teóricos das relações de gênero - ao usar o termo Juvenicídio, ilumina-se uma zona opaca onde se localizam as violências específicas que estão acontecendo. No caso das mortes de jovens, a possibilidade de interpretação é menos nítida. Os jovens não são “matáveis” apenas por serem jovens. Nos episódios específicos em que ocorrem as mortes, não se vislumbra, necessariamente ou apenas, uma relação de poder diferenciada pela idade.

Em outras palavras, não se trata, como regra, de adultos matando jovens. Há policiais matando jovens, há milicianos matando jovens e há jovens matando outros jovens, entre outros. Por outro lado, os dados identificam que há processos regulares de morte, com vítimas com perfil repetido, as quais se deixa morrer, sem que haja um prejuízo socialmente considerado. É possível formular-se a hipótese de que o Juvenicídio elucida a ideia de que a morte de jovens é sistemática em razão do valor, ou falta de valor, do corpo dos jovens, valor que corresponde à engrenagem da Necropolítica. Não se trata, portanto, de uma intencionalidade explícita estruturalmente, mas da operação cotidiana de uma sistemática da morte sobre vítimas específicas (REGUILLO CRUZ, 2015).

O Juvenicídio tem como antecedente a obstrução dos canais de mobilidade social para os jovens. Assim, fala-se de horizontes de vida restritos, tanto no que se refere à possibilidade de empregos, quanto de ultrapassar a linha de pobreza. Trata-se de um processo social de precarização (BOURDIEU, 1998Bourdieu, Pierre. Contrafogos: Táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.) e vulnerabilidade do polo frágil formado por crianças e adolescentes, na medida em que crescem sem perspectiva de projeto de vida. O Juvenicídio alude a algo mais significativo que os dados de jovens mortos em si, pois se refere a processos de precarização, vulnerabilidade, estigmatização, criminalização e morte. Criam-se predisposições que desclassificam os jovens, apresentando-os como revoltados, vagos, membros de gangs/facções, perigosos, anarquistas, criminosos. É parte do processo social do Juvenicídio a construção de uma imagem criminal do sujeito juvenil (VALENZUELA, 2015VALENZUELA, José Manuel. Prólogo. In: VALENZUELA, José Manuel (coord.) . Juvenicidio - Ayotzinapa y las vidas precarias en América Latina y España. Barcelona: NED Ediciones; Guadalajara: ITESO; Tijuana: El Colegio de la Frontera Norte, 2015.).

Nas palavras do autor:

El juvenicidio refiere al asesinato amplio e impune de jóvenes portadores de identidades desacreditadas, aspecto que, en ocasiones, asume condiciones de limpeza social que se intentan minimizar a partir de la utilización de estereotipos y estigmas donde las víctimas quedan atrapados en un alo de sospecha que pretende justificar su morte por imputarles condiciones de delincuentes, pandilleros, violentos, comunistas, guerrilleros, anarquistas, punks, emos, bikers, góticos, afros, indios, pobres, proles, marginales, asalariados” (VALENZUELA, 2015VALENZUELA, José Manuel. Prólogo. In: VALENZUELA, José Manuel (coord.) . Juvenicidio - Ayotzinapa y las vidas precarias en América Latina y España. Barcelona: NED Ediciones; Guadalajara: ITESO; Tijuana: El Colegio de la Frontera Norte, 2015., p. 31).

Portanto, o Juvenicídio caracteriza-se como uma expressão específica de Necropolítica contemporânea, visto que tem como vítimas sistemáticas pessoas que compõem uma parcela da população, caracterizada pela idade, mas também pela classe social, cor da pele e territórios de moradia, que podem morrer por ação ou omissão direta do estado, processo, este, respaldado muitas vezes pela sociedade. Em uma parcela da população cuja morte é um destino aceitável, ainda mais, como na maioria das vezes ocorre, é possível identificar as vítimas com a juventude criminalizada, ou seja, “inimigos sociais”.

Para analisar como se configura o processo de Juvenicídio é preciso abordá-lo acerca do significado social das vidas dos jovens. No espaço social, os fatos e a matéria são significantes, aos quais se atribui significados (SAUSSURE, 2003SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2003). Não há fato, matéria, objeto ou pessoa com valor em si, o valor e o “desvalor” são significados atribuídos. É comum, ainda que de modo superficial, considerar-se a vida como bem jurídico máximo a ser protegido, como se estivesse acima dos outros valores sociais. Em realidade, não é assim que ocorre, há vidas que significam o valor máximo a ser protegido, há outras que não têm este significado. Quando morrem, o significado de suas perdas não é o mesmo, comparando-se às vidas com um significado entendido como pleno, valorizado como absoluto. Para que uma vida seja considerada perdida, precisa ter significado “vida”. Uma vida concreta não pode considerar-se com algum dano, se antes não foi compreendida como viva. Judith Butler afirma que algumas vidas não se classificam como vidas, ou desde o princípio não são concebidas como vidas dentro de certos marcos epistemológicos (BUTLER, 2010BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Trad. Bernardo Moreno Carillo. Barcelona: Paidós, 2010., p. 13).

A autora parte da ideia de que toda a vida é danificável, ou pode ser perdida, destruir-se ou sofrer danos até o momento da morte. Isso quer dizer não só sobre a finitude da vida, já que a morte é parte da vida e é certa, mas também sobre a precariedade da vida. A precariedade quer dizer que a vida existe se forem cumpridas várias condições sociais e econômicas para que se mantenha como tal (BUTLER, 2010BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Trad. Bernardo Moreno Carillo. Barcelona: Paidós, 2010.).

Não se nasce e torna-se precário. Já se nasce precário. Isso significa que um bebê pequeno vai sobreviver ou não, dependendo da rede social que o cerca. Precisamente porque um ser vivo pode morrer é necessário cuidar deste ser para que possa viver. Assim a autora refere-se a um conceito social de vida, para além de uma ideia biológica, ontológica ou religiosa (BUTLER, 2010BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Trad. Bernardo Moreno Carillo. Barcelona: Paidós, 2010.). A ideia de que viver em sociedade e existir enquanto sujeito depende das relações sociais onde se está inserido.

Em regra, pode-se imaginar que um bebê vem ao mundo e é mantido neste mundo até chegar à vida adulta, depois é que irá morrer. Assim como os animais, as plantas, todos os seres vivos possuem um curso natural de vida, que alguns realizam outros não, mas que se pode imaginar como ciclo natural. Quando o bebê é querido existe uma celebração no começo de sua vida, o que ocorre porque sua vida é merecedora de ser conquistada, vivida, com ciclo completo (BUTLER, 2010BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Trad. Bernardo Moreno Carillo. Barcelona: Paidós, 2010.).

Ao final da vida também se prestam homenagens a quem morreu porque foi uma vida merecedora de ter sido vivida. Se a vida que se foi não é capaz de suscitar condolências é porque não houve vida. Ou houve algo vivo, mas distinto de um conceito socialmente compreendido como vida digna. A apreensão da capacidade de ser chorada, precede e torna possível a apreensão da vida precária. (BUTLER, 2010BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Trad. Bernardo Moreno Carillo. Barcelona: Paidós, 2010.). Nas palavras da autora:

No existe vida alguma sin las condiciones que mantienen la vida de manera variable, y estas condiciones son predominantemente sociales, ya que no establecen la ontología discreta de las personas, lo que implica unas relaciones sociales reproducibles y sostenedoras, así como unas relaciones con el entorno y con formas de vida no humanas consideradas de manera general (BUTLER, 2010BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Trad. Bernardo Moreno Carillo. Barcelona: Paidós, 2010., p. 38).

Resta saber em que condições a vida precária tem direito de proteção. Há, pelo menos, dois modos de responder ao questionamento proposto por Judith Butler: ou compreende-se a responsabilidade de sobrevivência como individual, ou seja, aqueles que sobrevivem e persistem devem lograr isto por seu mérito individual; ou compreende-se que as condições de sobrevivência dependem do contexto e das condições sociais disponíveis, ou seja, da responsabilidade coletiva (BUTLER, 2010BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Trad. Bernardo Moreno Carillo. Barcelona: Paidós, 2010., p. 39).

De forma objetiva, os humanos, de modo especial, são dependentes desde quando nascem. Um bebê humano tem muito menos condição de sobreviver sozinho do que muitos outros animais ou seres vivos mais autônomos. Portanto, a ideia da responsabilidade individual pela sobrevivência, torna-se irreal, frente à condição básica humana de necessidade de cuidado, ou necessidade dos outros. A vida, em especial, a vida humana, exige apoio e condições para poder ser uma vida viável.

As condições de que se está a abordar, inclusive quanto ao que é necessário, são, ou foram, construídas historicamente. Isso implica em considerar que as condições de sustentabilidade são sociais e políticas. A vida depende do apoio do que está fora dela. Não pode haver persistência na vida, sem, ao menos, algumas condições que tornem viável a vida. As decisões sobre tais condições são práticas sociais (BUTLER, 2010BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Trad. Bernardo Moreno Carillo. Barcelona: Paidós, 2010.).

Tendo a precariedade da vida como ponto de partida, não há vida sem uma dependência de redes mais amplas de sociabilidade e trabalho. Não há vida que transcenda o risco de dano e mortalidade. A distribuição desigual de precariedade é uma questão material e perceptível. Isso porque aqueles a quem não se considera vidas que merecem ser choradas, por não serem valiosas, estão feitos para suportar desde a fome até a violência e a morte (BUTLER, 2010BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Trad. Bernardo Moreno Carillo. Barcelona: Paidós, 2010.).

A ausência dessa consideração conduz a uma realidade material precária e esta, aliada a outros marcos interpretativos de significados, significa uma ausência de consideração como pessoa que merece ser considerada vida.

A precariedade, portanto, designa uma condição politicamente induzida em que certas populações não possuem apoio social e econômico e estão diferentemente expostas a danos, à violência e à morte. Isso diz respeito a políticas de estados, de ação ou de omissão.

Em síntese, pode-se afirmar que ao nascer somos vidas precárias que necessitam umas das outras para sobreviver. Trata-se de compreender a vida para além do âmbito biológico ou ontológico, mas enquanto vida social. A viabilidade da vida depende das relações sociais e intersubjetivas. Algumas vidas são consideradas vidas que devem sobreviver, outras não. A decisão sobre isso está posta em certos marcos conceituais dentro dos quais as racionalidades se desenvolvem.

Marcos conceituais são como significados construídos. Discursos justificadores que sustentam a ação humana. Aquilo que se faz, seja no âmbito privado ou como uma política de estado conta com uma explicação racional, algumas declaradas abertamente, por vezes conscientes, justificativas reais do porquê agir, visto que se sustentam em uma coletividade. Outros são construídos como discursos, conscientes de que são apenas discursos, ou não, os quais nem sempre correspondem aos reais motivos pelos quais as ações são práticas. Colabora com essa ideia o pensamento de Michel Foucault sobre discursos justificadores, muitas vezes presente em sua obra (FOUCAULT, 1995).

Dependendo do nível de legitimidade racional envolvido, a morte pode ser algo lamentável, triste, desumano, mas não racionalmente injusto. Judith Butler (2010)BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Trad. Bernardo Moreno Carillo. Barcelona: Paidós, 2010. afirma que as formas políticas funcionam no âmbito dos marcos normativos. Tais marcos estruturam modos (molduras) de reconhecimento. São delimitações de contextos, dentro dos quais os significados são justificados e seus limites e contingências convertem-se em objeto de exposição. Em situações de encarceramento, torturas e também de políticas de imigração certas vidas são percebidas como vidas que não estão propriamente vivas. Não são percebidas como tal. Assim como nas diferentes formas de racismo, são populações que não são merecedoras de serem choradas, ou que sua perda não é considerada uma real perda de vida (BUTLER, 2010BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Trad. Bernardo Moreno Carillo. Barcelona: Paidós, 2010.).

Conforme a autora, marcos interpretativos não são absolutos, ou inquestionáveis. Ao mesmo tempo em que definem o contexto plausível de um discurso racional que seleciona vidas consideráveis, suas delimitações denunciam suas insuficiências, ou seja, seus limites, demonstram o que está fora do que seus limites impõem (BUTLER, 2010BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Trad. Bernardo Moreno Carillo. Barcelona: Paidós, 2010.).

A vulnerabilidade da juventude e o conceito social sobre tal parcela da população têm raízes históricas. Para compreender o presente, é preciso tal resgate histórico em busca da compreensão do processo de formação da sociedade brasileira que resultou em tal hierarquia social, a qual tem em sua base inferior uma parcela da população descartável socialmente. Não há contexto sem uma implícita delimitação do contexto. Ainda que a vida seja viável em determinado contexto e encontre justificativas racionais, também cria novos contextos em virtude desta delimitação. Este autorompimento converte-se em parte da própria definição, que leva a uma maneira diferente de entender tanto a eficiência do marco, como a sua vulnerabilidade e sua inversão, ou subversão e, inclusive, sua instrumentalização crítica. (BUTLER, 2010BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Trad. Bernardo Moreno Carillo. Barcelona: Paidós, 2010.).

Isso pode ser compreendido como os limites dos discursos e dos diferentes planos normativos em que se processam. Ao mesmo tempo em que no plano jurídico o direto à vida é um direito humano fundamental e a vida de crianças e adolescentes em especial é um direito constitucional a ser garantido com prioridade por parte do estado, da família e da sociedade, este marco interpretativo da realidade expõe sua contradição, quando vidas são perdidas e isso não implica em constrangimento, consternação, ou não leva a responsabilização. Há outro marco interpretativo presente, menos explícito, mais subliminar, sob o qual certas vidas de crianças e adolescentes específicos não importam. A construção social deste marco interpretativo é histórica.

Violência e jovens descartáveis

No plano simbólico, a violência expressa-se por meio de distintas manifestações de linguagem e representações culturais que a sociedade impõe a indivíduos e grupos. De acordo com Pierre Bourdieu, a violência simbólica é insensível e invisível para as próprias vítimas, que se exerce essencialmente por meio dos caminhos simbólicos da comunicação e do conhecimento, por meio de sentimentos (BOURDIEU, 2003BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 3 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.). A violência simbólica sofrida pelos adolescentes relaciona-se diretamente com a generalização de suas identidades e a padronização de suas condutas. A partir de estigmas imputados aos jovens da periferia, constituem-se maniqueísmos que acabam por justificar menor credibilidade em relação aos adolescentes das classes populares.

Pelo exposto, evidenciam-se dois dentre os infinitos componentes da violência sofrida pela juventude brasileira: a violência negativa de direitos e a violência simbólica permeada pelas representações sociais e pelos estigmas depreciativos da condição adolescente, sobretudo quando vinculada à pobreza. Evidencia-se, portanto, a omissão do Estado em relação à juventude, cuja função é a de provedor de subsídios para o desenvolvimento digno e autônomo, o que só se faz possível em uma concepção de estado social forte, responsável e mobilizador de uma reversão quanto à trajetória de violência em que se vê inserida a infância e a adolescência.

O Brasil não é um país em que as crianças e adolescentes nasçam e cresçam em meio a conflitos militares tradicionalmente nominados estados de guerra, como pode-se citar contemporaneamente o caso da população infantil da Síria, recentes como na Guerra do Iraque ou nas guerras civis na Somália ou Sudão, e guerrilhas como na Colômbia. Não há, no território brasileiro, desastres naturais que ensejam mobilizações internacionais em favor da infância, como se pode dizer do caso do Haiti. Não há uma condição de miséria econômica, como se observa em vários contextos do continente africano. Entre outras realidades pelas quais se justifica mobilizar todos os esforços possíveis na afirmação dos direitos humanos desta parcela da população. Porém, no Brasil, morrem jovens em percentual ascendente, tendência que fica clara ao analisar-se os dados (IPEA, FBSP, 2020).

Nesse contexto, conforme o Atlas da Violência 2020, os homicídios foram a principal causa dos óbitos da juventude masculina, responsável pela parcela de 55,6% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos; de 52,3% daqueles entre 20 e 24 anos; e de 43,7% dos que estão entre 25 e 29 anos. Tanto é assim, que o título destinado à análise deste tipo de morte recebe o nome de “Juventude Perdida”.(IPEA, FBSP, 2020)

Como já dito neste trabalho, o relatório do IPEA de 2020 refere-se a dados de 2018, ano em que houve uma pequena queda do número de homicídios no Brasil. Porém esta queda não pode ser considerada ainda uma tendência e, ainda que o fosse, os números seguem alarmantes: 30.873 jovens foram vítimas de homicídios no ano de 2018, que correspondem a uma taxa de 60,4 homicídios a cada 100 mil jovens. Visto de outro modo, forma 53,3% do total de homicídios naquele ano.

A análise desses dados deixa claro que as pessoas mais vulneráveis à morte por armas de fogo no Brasil contemporâneo são jovens, negros, do sexo masculino, vivendo em municípios populosos. Nesses lugares, morrem adolescentes e jovens adultos invisíveis aos olhos da sociedade interna nacional e do exterior, especialmente porque suas mortes estão associadas ao seu próprio envolvimento com a violência e o com o contexto do tráfico de drogas. Morre um, outro já ocupa seu posto. Morrem vários, iguais em estereótipo. Em contraponto, são diferentes, porque são individualidades, identidades, pessoas, especiais para suas famílias, em suas escolas, em suas comunidades. Pessoas que são descartáveis aos olhos da população dos aglomerados urbanos, porém, que fazem falta, cuja ausência traz uma dor irreparável às mães, aos pais, irmãos, professores e amigos, que se não sentem sua profunda falta é porque naturalizaram a violência em que eles próprios estão inseridos. Para sobreviver, e continuar vivendo, é preciso considerar natural que mais um se foi.

A pesquisa coordenada por Jaqueline Sinhoretto, a partir de dados da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, referentes aos anos de 2009 e 2011, aponta que as vítimas de mortes em decorrência de atuação policial naquele Estado são predominantemente negras, 61% (sessenta e um por cento); homens, 97% (noventa e sete por cento), sendo 25% (vinte e cinco por cento) na faixa etária entre 15 e 19 anos, 57% (cinquenta e sete por cento) entre 15 e 24 anos e o total de 78% (setenta e oito por cento) até 29 anos (SINHORETTO et ali, 2014). Ainda que a pesquisa realizada no âmbito da Universidade de São Carlos, em São Paulo, não possa estender-se à realidade nacional, muito desigual quanto às formas de atuação das forças policiais, pode-se afirmar que para além do perfil das vítimas por armas de fogo concentrar-se na faixa etária de jovens adultos urbanos, meninos e negros, tal perfil é coincidente com o perfil de mortos pela polícia. A partir de tais dados pode-se afirmar que, as mortes invisíveis, muitas vezes justificadas pelos meios de comunicação como sendo entre os envolvidos na criminalidade, são também causadas por agentes do Estado.

A tarefa de buscar compreender, em alguma medida, a complexidade de hoje, ou uma de suas manifestações, como as vulnerabilidades que envolvem crianças e adolescentes, requer uma leitura para além do tempo atual. Um modo de interpretar a realidade contemporânea, portanto, é buscar reconstruir historicamente o tempo presente. Como afirma Michel Foucault existem forças que nos levam a inquirir o arranjo que compartilhamos com nossos contemporâneos, ou seja, entender o presente, pressupõe uma “história do presente” (FOUCAULT, 1987, p. 29). Desde tal perspectiva metodológica, buscar-se neste texto resgatar aspectos históricos da vulnerabilidade de crianças e adolescentes.

O Brasil começou muito antes de 1500. Quando iniciou nestas terras a colonização portuguesa havia um vasto contingente populacional, estimado em dois milhões de pessoas (hoje menos de 800 mil indígenas vivem no Brasil), que era remanescente de um período que se estima pode ter sido de 12 mil ou de até 35 mil anos atrás (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, Lilian M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.).

No entanto, naquele ano emblemático de 1500 chegou aqui o homem branco, com suas caravelas e sede de exploração. Teve início o sistema de estratificação social que nos constitui até os dias de hoje. Crianças indígenas foram apresentadas ao homem branco, que as via como não seres humanos, ou, na melhor das hipóteses, nativas que necessitavam ser civilizados pela evangelização, além de batizados pela Igreja Católica, deveriam trabalhar para tornar-se humanas (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, Lilian M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.). Nesse contexto, instalou-se nestas terras o modelo de colonização extrativista e depredatório, que iniciou com extração de pau-brasil e foi seguido de outros produtos, os quais, em mais de 300 anos, acumularam riquezas, que se juntaram às outras extraídas das outras colônias portuguesas e espanholas e possibilitaram a acumulação de capital necessária ao processo e industrialização europeu.

Trazidas pelo homem branco também vieram para cá, junto com suas famílias, ou já apartadas delas, algumas poucas crianças negras (2 a 3% da população de escravizados), oriundas do continente africano. Seu valor era medido pela sua força potencial de trabalho ou de reprodução (no caso das meninas), expressa em sua condição genética, origem e etnia1 1 De acordo com SCHWARCZ; STARLING (2015, p. 77) as mulheres e as crianças eram em regra menos bem avaliadas. Manter crianças, consideradas assim até os 8 anos de idade, era considerado um problema para os senhores donos dos escravos. Depois dos 8 anos e até os 12 considerava-se adolescentes. Logo a seguir já atingiam a fase adulta e produtiva, até chegar aos 35 anos, já velhos, pouco aproveitados para o trabalho. . Aqui os negros chegaram já inferiorizados quanto a sua condição de humanidade. Seus filhos nasciam escravos brasileiros e também não eram considerados humanos, mas seres inferiores na evolução natural e biológica. Além disso, seu modo de ser e cultura de classe, diferente do branco europeu, legitimava sua escravização (SOUZA, 2006SOUZA, Jessé (org.). A invisibilidade da Desigualdade Brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.).

Crianças indígenas e negras, se não mortas pelas doenças contraídas do homem branco, visto que a mortalidade infantil era altíssima entre natimortos e crianças que não chegavam à primeira infância, eram desde já vulneráveis (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, Lilian M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.). Quando sobreviventes, eram submetidas à toda sorte de violências naturalizadas: abusos sexuais de adolescentes indígenas ou de crianças nas senzalas; maus tratos físicos justificados pela necessidade de educação evangelizadora; adestramento para a docilidade e para o suporte de dores físicas, úteis ao trabalho. A miscigenação, tão propagada como parte da natureza positiva do nosso povo, nada mais foi do que a expressão concreta do resultado dos abusos a que negras e índias foram submetidas em um modelo patriarcal familiar (SOUZA, 2017SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso. Da escravidão à Lava Jato. Rio de janeiro: Leya, 2017.).

Durante todo o período colonial e escravagista, a vulnerabilidade de crianças à morte e à violência esteve emoldurada pelo modelo de exploração a que estavam sujeitas, o qual contou, desde sempre, com racionalizações que justificavam as boas intenções dos homens brancos.

Quando se alcançou o período da suposta independência nacional, o império e a abolição da escravatura - período recente, de pouco mais de um século atrás - já se contava em terras nacionais com uma elite branca estabelecida, com os meios de produção privatizados e com a cresça instituída de que o futuro civilizatório seria vislumbrado desde que o processo de miscigenação fosse eficaz no branqueamento do povo e no espelhamento da elite nacional com a elite europeia dita civilizada2 2 Em 1911, o Diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista de Lacerda, representou o País no "Ï Congresso Nacional das Raças”, em Paris, onde proferiu palestra na qual defendia que com a entrada no novo século, os mestiços desapareceriam no Brasil, fato que estaria vinculado com a progressiva extinção da raça negra. Seu pronunciamento utilizava o argumento biológico para afirmar a promissora a sociedade branqueada em que se transformaria o Brasil (SCHWARCZ, Lilian M.; STARLING, 2015. p. 343). .

Crianças libertas restaram sem donos, sem pais e sem mães, depois da Lei do Ventre Livre (1871). Mais uma manobra política do que uma efetiva abolição, as crianças negras nascidas a partir daquela data eram consideras livres, mas permaneciam com suas mães até os oito anos de idade. Deste marco em diante, os seus senhores poderiam optar por uma indenização a ser recebida do Estado, ou poderiam usar os seus serviços até que completasse 21 anos (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, Lilian M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.). A Lei Áurea (1888), tão festejada como redentora, também não veio acompanhada de políticas públicas que fossem capazes de viabilizar a inclusão da população negra liberta no mercado de trabalho remunerado, em condições de moradia, ou de acesso à educação (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, Lilian M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.).

Desde lá até hoje, negros, pardos, não brancos, em geral, têm lugar nas periferias das cidades e nas rebarbas das políticas públicas (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, Lilian M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.). Para tais sujeitos e, principalmente para seus filhos, é destinada alguma sinalização de política pública, mas não efetivos processos de inclusão e acolhimento em condições de efetiva seguridade social. Acompanhando os fatos, vê-se que a visão de mundo que sustenta tal desigualdade também se constitui em violência simbólica. Se são pobres, se não têm sucesso na educação, ou não são adequados para o trabalho, “isso é pela falta de méritos individuais”. Em uma sociedade dita “livre, não racista e de mercado”, aqueles que têm mérito aproveitam as oportunidades. Por isso, o problema não é social, mas é individual, dos piores, dos fracassados, daqueles que não têm inteligência, disciplina ou persistência individual. Para estes, desajustados, inadequados, ou outros atributos que os qualificam, cabe políticas públicas de controle e de mais direcionamento no sentido da correção dos seus ditos defeitos individuais, “sub-humanos” (SOUZA, 2017SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso. Da escravidão à Lava Jato. Rio de janeiro: Leya, 2017.).

Nesse contexto, o século XX foi marcado por políticas públicas de institucionalização de crianças. Ainda que acompanhadas de discursos higienistas e assistencialistas, tais políticas têm servido à segregação e à reprodução da realidade estratificada. Como afirma Irene Rizzini, a passagem do tempo tem sido perdida no sentido de não ter sido feito o que deveria ser feito, ou seja, tratar as crianças e adolescentes do Brasil como cidadãos brasileiros, sujeitos constituintes de uma nação (RIZZINI, 2015RIZZINI, Irene. O Século Perdido. Raizes Históricas das Políticas Públicas para a Infância no Brasil. São Paulo: Cortez Editora, 2015.). Ao contrário, crianças e adolescentes sempre foram vistos como a parte indesejável da nação, e, por isso, adestráveis ou passíveis de civilização. Os problemas do Brasil não são vistos, portanto, desde muito tempo, como parte de sua estrutura social, mas com origem no seu povo de pior qualidade, com “natureza” desqualificada e desprovidas de méritos individuais. Em outras palavras, pode dizer-se que os pobres, não brancos ou vulneráveis, não são reconhecidos socialmente como portadores de méritos individuais e, em consequência, contam com baixa autoestima (SOUZA, 2006SOUZA, Jessé (org.). A invisibilidade da Desigualdade Brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.). As crianças ora são vistas como salvação, como esperança de um futuro melhor civilizatório, na medida em que ajustáveis, ou quando são afastadas de seu meio social, ora são vistas como problema, principalmente se estiverem em número maior, enchendo as ruas, as periferias, as praias, as praças (RIZZINI, 2015RIZZINI, Irene. O Século Perdido. Raizes Históricas das Políticas Públicas para a Infância no Brasil. São Paulo: Cortez Editora, 2015.).

Onde seria o lugar das crianças e adolescentes do Brasil que não no seu território, junto com o seu povo, respaldadas e atendidas em seus direitos pelo seu Estado nacional? Um país que tem um projeto de nação precisa de um plano coletivo e inclusivo, o que aqui não teve lugar nos quinhentos anos da constituição do Brasil. Em um país (hipotético) em que todas as vidas importassem, as vidas de crianças e adolescentes precisariam ser viabilizadas pelo cuidado.

Soltos pelas ruas e pelos cortiços, o tempo foi passando, e foram crescendo pobres e vulneráveis. Vulneráveis ao maior empobrecimento, à perda do emprego dos pais, às doenças que matam, ao medo diante das várias manifestações de violência.

A vulnerabilidade social a que estão sujeitos crianças e adolescentes não é de hoje e não se resolve apenas desde a institucionalidade da norma constitucional (também vulnerável). São vulneráveis à pobreza, ao racismo, ao preconceito, à cultura da desresponsabilidade. São vulneráveis, como é a maioria da população brasileira, só mais um tanto, decorrente das especificidades da faixa etária.

Como resultado da negligência e carência de direitos observada no que tange às classes populares, os jovens da periferia acumulam uma série de fatores que servem de base à atribuição de estereótipos e depreciações. Robert Castel percebe que os jovens das periferias das grandes cidades do mundo acumulam “contra-performaces sociais”, as quais caracterizam-se por fracasso escolar e ausência de perspectivas quanto ao futuro profissional. A precariedade de projetos de vida leva a que usem estratégias informais e, eventualmente, fora da lei (CASTEL, 2008CASTEL, Robert. A Discriminação Negativa – Cidadãos ou autóctones? Trad. Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2008.). O autor pontua que uma evocação conhecida destes adolescentes os reflete como símbolos da inutilidade social, pois são considerados incapazes de integrarem-se à ordem produtiva, e símbolos da periculosidade, visto que são observados como os principais responsáveis pelo aumento da insegurança (CASTEL, 2008CASTEL, Robert. A Discriminação Negativa – Cidadãos ou autóctones? Trad. Francisco Morás. Petrópolis: Vozes, 2008.). Veja-se que isso acontece em outros países e, em muitos casos, está associado ao processo de Juvenicídio, mais ainda no caso brasileiro, em razão dos marcadores históricos que constroem a identidade subjetiva dos jovens periféricos.

Assim, no contexto brasileiro, crescem e vão adquirindo a ‘identidade do outro”. Lilian Schwarcz afirma que desde o início da sociedade brasileira, o povo era o outro, desde o lugar das elites. Alguém de quem, de acordo com a hierarquia construída, os de cima querem diferencia-se. A intolerância, segundo a autora, relaciona-se ao código binário de que a identidade de uns se constitui a partir da constituição do outro como inimigo, pois portador de tudo que se identifica como negativo (SCHWARCZ, 2019SCHWARCZ, Lilian M. Sobre o Autoritarismo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.).

Pois “o outro”, não reconhecido como parte do todo e sem condições objetivas e subjetivas de um projeto de vida, cresce em meio a violências, relaciona-se com a violência e por meio da violência. Conforme Hanna Arentd, a violência é falta de palavra e assim, com falta de palavra, de diálogo de acolhimento e pertencimento, o outro é alguém que não aprende a usar palavras e naturaliza o modo de comunicação violento (ARENDT, 1993ARENDT, Hannah. A dignidade da política: ensaios e conferências. Trad. Helena Martins e outros. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.).

Morrem muitos a sua volta: morre o colega da escola, o vizinho de rua, o primo, o irmão. Com o tempo, passa a ser normal que jovens morram, a morte é uma possibilidade da guerra, assim como é uma possibilidade vislumbrada na vida desde o lugar que a enxergam. Em complemento, a prisão ou a internação em instituições socioeducativas também é algo possível de acontecer. Muitos à sua volta vão e voltam da prisão, assim como de outras instituições de controle.

O espaço do território onde vivem é restrito e do tamanho do mundo que enxergam. Mesmo a mobilidade dentro da cidade grande não é algo que se visualize. Andar de um território a outro da cidade é uma possibilidade limitada para muitos dos jovens, não apenas porque são espaços dominados por outros grupos dos quais não se pertence, mas porque não é algo visível ou sonhado.

Em meio à naturalização da violência e dos limites de vida que se conhece, a vida sem projeto é algo relativizado. Assim como a vida de quem morreu perto é relativa e a falta de vida é naturalizada, também será a vida de quem está do outro lado da vila, ou no asfalto desconhecido. A violência é a linguagem que se conhece e, potencializada pelo acesso às armas, a morte de outros também é algo possível e acessível. Assim, morrem uns do lado de cá, morrem outros do lado de lá, como parte do que significa o universo de estar vivo no tempo imediato.

Não é de hoje e nem só no Brasil que isso acontece. Crianças soldados em guerra são relatos até mesmo de literatura, como feito por Ishamael Beah, em “Muito longe de casa, memórias de um menino-soldado” (BEAH, 2007BEAH, Ishmael. Muito longe de casa. Memórias de um menino-soldado. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.). Mas nos importa referir que a vida relativizada e a morte possível não são fatalidades ou produto da natureza. Decorrem de processos históricos e sociais, da ação direta do Estado, ou da omissão histórica, não protetiva. No Brasil contemporâneo, em que nunca morreram tantos jovens por homicídio, suas mortes não têm grande importância até porque são considerados “o outro”, inimigo comum, aquele que detém os atributos do inimigo público, que ameaça um grupo de pessoas unidas pela intolerância comum e pela ausência da identificação com aqueles.

Considerações finais

O Juvenicídio no Brasil, assim como em outros países da América Latina, é um fato, um dado estatístico, mas também uma realidade vivenciada pelas famílias envolvidas. Neste artigo foi realizada uma leitura acerca de como isso acontece - processo gerador dos crimes - desde o olhar da Necropolítica, como política de estado, que se concretiza pela ação direta de mortes, ou pela omissão histórica.

Desde o lugar teórico em que se enfocou o problema em análise, pode-se identificar que nos contextos brasileiros periféricos, territórios onde é ausente o poder protetivo do estado e encontram-se em guerra grupos relacionados ao tráfico de drogas e também outros crimes, como tráfico de armas, formação de milícias e violências físicas, nascem, crescem, vivem e morrem vidas de crianças e adolescência descartáveis, não vidas que importam, mas vidas que não contam.

Nesses contextos, estão presentes os elementos da Necropolítica contemporânea, especialmente porque as políticas estabelecidas, ou a falta delas, é expressão de escolhas sobre quem deve viver e quem deve morrer. Esta escolha política tem construção histórica: desde o período colonial, o povo brasileiro pobre - formado por nativos indígenas, negros escravizados e, mais tarde, miscigenados e brancos pobres - não foi considerado portador de direitos, especialmente de direitos a serem supridos por políticas públicas inclusivas.

Nos tempos atuais, o descaso no Estado e a omissão da sociedade expressa-se no Juvenicídio em massa. Todos os dias morrem jovens, em especial, negros e não brancos, meninos, vivendo em territórios sitiados, precarizados em seus projetos de vida. A falta de perspectiva de vida, de projeto de futuro é parte do processo juvenicídio, enquanto uma das camadas que constituem algo mais amplo como a naturalização da violência e das mortes de vidas, que morrem, mas que não são consideras mortes importantes, ou significativas para o contexto social amplo.

Em evidente contradição está, de um lado, o marco normativo nacional que prevê direitos a esta população, os quais devem ser garantias com prioridade absoluta. De outro, no mesmo contexto, esses direitos são ignorados, tendo como indicador de violação as mortes, as quais figuram ao final de um processo de ação e de omissão. Em um mesmo país, que não é diferente de vários de seus vizinhos latinoamericanos, convivem o plano normativo do marco civilizatório dos direitos, e a mais absoluta violação destes, como um outro marco normativo, subjacente, naturalizado.

Por tudo que foi demostrado neste texto, sabe-se que o enfrentamento de tal realidade e a sua superação dizem respeito a mudanças amplas na sociedade, nos planos estrutural e cultura, as quais não são imediatas. Porém, tratando-se do plano do realizável nos tempos contemporâneos, a resistência possível a tudo isso está na garantia de direitos, os quais estão previstos no ordenamento jurídico pátrio, desde a Convenção dos Direitos da Criança (1989), da qual o Brasil é signatário, o art. 227 da Constituição Federal (1988), desdobrando-se por leis regulamentadoras, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8069/90). A morte de jovens, para além de violação do direito à vida em si, é indicador de uma vida curta, vivida sem dignidade, durante a qual vários direitos foram violados, por vezes, com naturalização.

  • 1
    De acordo com SCHWARCZ; STARLING (2015, p. 77)SCHWARCZ, Lilian M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. as mulheres e as crianças eram em regra menos bem avaliadas. Manter crianças, consideradas assim até os 8 anos de idade, era considerado um problema para os senhores donos dos escravos. Depois dos 8 anos e até os 12 considerava-se adolescentes. Logo a seguir já atingiam a fase adulta e produtiva, até chegar aos 35 anos, já velhos, pouco aproveitados para o trabalho.
  • 2
    Em 1911, o Diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista de Lacerda, representou o País no "Ï Congresso Nacional das Raças”, em Paris, onde proferiu palestra na qual defendia que com a entrada no novo século, os mestiços desapareceriam no Brasil, fato que estaria vinculado com a progressiva extinção da raça negra. Seu pronunciamento utilizava o argumento biológico para afirmar a promissora a sociedade branqueada em que se transformaria o Brasil (SCHWARCZ, Lilian M.; STARLING, 2015SCHWARCZ, Lilian M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.. p. 343).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2020
  • Aceito
    19 Fev 2021
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