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Autonomia reprodutiva da população trans: Discursos de Direitos Humanos, cisnormatividade e biopolítica

Reproductive autonomy of the trans population: Discourses of Human Rights, cisnormativity and biopolitic

Resumo

O presente artigo tem como objetivo discutir acerca da autonomia reprodutiva da população trans segundo perspectivas críticas de direitos humanos, epistemologias transfeministas e teorias biopolíticas. Para isso, analisam-se os efeitos políticos de discursos presentes no Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais de 2009 (PNCDH/LGBT) e em normas jurídicas atinentes à questão. Em linhas gerais, argumenta-se que, apesar da importância dos direitos humanos para a efetivação da cidadania integral de pessoas LGBT, persistem sentidos de invisibilidade e silenciamento que colaboram para a esterilização física e simbólica da população trans.

Palavras-chave:
População Trans; Autonomia Reprodutiva; Biopolítica

Abstract

This article aims to discuss on the reproductive autonomy of trans popuation according to critical perspectives of human rights, transfeminist epistemologies and biopolitical theories. For this, political effects of discurses are analyzed in the National Plan for the Promotion of Citizenship and Human Rights of Lesbians, Gays, Bisexuals and Transsexuals 2009 (PNCDH/LGBT) and in legal rules related to the issue. In general, it is argued that, despite the importance of human rights for the realization of full citizenship of LGBT people, meanings of invisibility and silencing persist that collaborate for the physical and symbolic sterilization of the trans population.

Keywords:
Trans and Travesti Population; Reproductive autonomy; Biopolitics

Introdução

Os direitos humanos são fundamentais para a fruição de uma vida digna tanto em âmbito individual quanto coletivo. Nesse ínterim, a dignidade humana é frequentemente evocada como o núcleo axiológico fundamental dos tratados internacionais e das Constituições nos Estados Democráticos de Direito que consideram tais direitos como inalienáveis. No entanto, Arendt (2012)ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. afirma que esse sujeito emancipado e “abstrato”, que leva em si mesmo a sua dignidade, contém um paradoxo. Os direitos são considerados inalienáveis porque se supõe que são independentes dos governos, porém, quando os indivíduos são excluídos da comunidade política, quando os direitos se tornam mais necessários e urgentes, eles – os direitos – se tornam inexequíveis, à revelia de seu status normativo de inalienabilidade.

Em uma visada da teoria crítica dos direitos humanos, as categorias abarcadas por eles possuem como característica serem um constructo contínuo, uma gama de garantias que aumenta a partir das necessidades que surgem em diferentes épocas. Assim, no decorrer da história, em virtude de lutas, ações e conquistas de grupos e movimentos sociais, eles se expandem, de modo que não precisam estar positivados para que existam ou sejam garantidos. Por outro lado, a positivação dos direitos humanos nem sempre é sinônimo de efetividade, havendo a necessidade de mobilizações contínuas para visibilizar assimetrias sociais e mostrar os desequilíbrios do poder na sociedade e seus impactos nas relações sociais, com a produção de desigualdades e discriminações estruturais.

A condição de vulnerabilidade de diversos grupos sociais impõe a dificuldade ou vedação de acesso aos bens e serviços essenciais, aos direitos e garantias que deveriam ser assegurados a todos aqueles significados dentro da categoria de “cidadão”. Tal impeditivo leva pessoas vulneráveis a sofrerem material, social e psicologicamente os efeitos dessa exclusão. Nesse contexto, tais sujeitos reivindicam sua própria lei em forma de leis especiais e subjetivas do diferente, do vulnerável (MARQUES; MIRAGEM, 2014MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção de vulneráveis. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.), que vêm ganhando destaque nas demandas de direitos humanos encampadas por inúmeros movimentos sociais ao longo do tempo. Entre esses grupos vulneráveis, ou melhor, vulnerabilizados pelas desigualdades, encontra-se a população LGBT1 1 Embora reconheçamos a impossibilidade de nomear satisfatoriamente a miríade de possibilidades de identificações de gênero e sexualidade, haja vista o caráter multifacetado de tais experiências socioculturais e psíquicas, bem como o risco presente na ação de delimitar fronteiras em termos de políticas identitárias, recorremos a tal nomeação com vistas a fazer alusão ao modo como os movimentos sociais organizados têm reivindicado e gerido processos de nomeação estratégicos nas disputas políticas e jurídicas e nos debates públicos das vivências de pessoas dissidentes em termos de gênero e sexualidade. Por isso, apesar de reconhecermos que ficam invisibilizadas nessa definição, por exemplo, vivências intersexuais e assexuais, por estarmos nos referindo ao movimento social institucionalizado, seus documentos e sua atuação política, utilizaremos, neste artigo, a expressão LGBT, conforme aprovado na 1ª Conferência de Direitos LGBT, ocorrida em 2008. , sigla validada pelo movimento social institucionalizado que visa a englobar grupos atrelados à diversidade sexual (lésbicas, gays, bissexuais, assexuais), bem como à diversidade de gênero (a exemplo das pessoas transexuais, travestis, intersexuais, não-binárias), além de demais sujeitos posicionados em dissidência para com as normatividades heterossexuais, cisgêneras e endosexuais que regem a sociedade brasileira.

Entre os sujeitos inseridos nessa população, as pessoas trans e travestis possuem direitos sistematicamente negados e sofrem profundamente os efeitos dessa exclusão (SERRA, 2016SERRA, Victor Siqueira. Controle social das dissidências de gênero: violência e biopolítica. In : MORAES, Daniela Marques de; RIBEIRO, Daniela Menengoti; FILHO, Enoque Feitosa Sobreira (Orgs.). Sociedade, conflitos e movimentos sociais. Florianópolis: CONPEDI, 2016. p. 223-240. Disponível em: https://www.conpedi.org.br/publicacoes/y0ii48h0/131y9yi8/wr092GnInAWyCe7S.pdf. Acesso em: 09 jul. 2019.
https://www.conpedi.org.br/publicacoes/y...
). No âmbito dos direitos civis, as barreiras para seu exercício refletiram-se, como um processo de violência estrutural e sistêmica de longa duração, na impossibilidade de mudança de nome civil e de gênero nos documentos oficiais sem a necessidade de passar por uma junta multidisciplinar de saúde (reconhecimento de sua condição de gênero patologizada), bem como por um processo judicial (judicialização de corpos trans e travestis como condição para sua existência perante o Estado)2 2 No dia 01 de março de 2018, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275 e do Recurso Extraordinário nº 670.422, o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, reconheceu que pessoas trans podem alterar o nome e o sexo no registro civil sem que se submetam a uma cirurgia (STF, 2018). . Outro direito pouco debatido em relação à população trans3 3 A expressão “população trans”, como empregada neste artigo, faz referência a uma gama complexa de sujeitos e vivências em dissidência em relação à norma cisgênera, englobando travestis e pessoas transexuais, conforme informado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ver ANTRA, 2020). é o de gerar prole, ou seja, o exercício dos direitos reprodutivos conceptivos.

Diante desse cenário, o presente artigo tem como objetivo discutir a liberdade reprodutiva de pessoas trans e travestis segundo uma perspectiva crítica de direitos humanos, a partir da consideração dos efeitos políticos dos discursos4 4 Neste trabalho, tomamos o discurso enquanto uma prática que produz os objetos os quais enuncia, conforme sustentado pelo pensamento foucaultiano. Assim, estamos interessados nas “diferentes maneiras pelas quais o discurso cumpre uma função dentro de um sistema estratégico onde o poder está implicado e pelo qual o poder funciona” (FOUCAULT, 2009, p. 465). que circulam em normas jurídicas atinentes a essa gama de direitos. Assim, o que se questiona é se e em que medida o Plano Nacional de Promoção da Cidadania de Direitos de LGBT de 2009 garante a autonomia reprodutiva desses sujeitos. Para tanto, propomos uma trajetória de reflexão que passa por apresentar teorizações atreladas à noção de identidade de gênero enquanto categoria analítica e política transfeminista, argumentando em torno de seu potencial na construção de uma visada crítica dos direitos humanos. Em termos específicos, nosso campo de discussão focaliza os marcos de promoção de uma cidadania efetiva de pessoas trans e travestis em termos de direitos reprodutivos, considerando especialmente os regimes biopolíticos instaurados na imbricação entre normas, sujeitos e silêncios na questão discutida. Do ponto de vista metodológico, este trabalho está situado no âmbito da vertente teórico-metodológica, de base qualitativa, das ciências sociais aplicadas, especialmente na linha jurídico-teórica, por se aproximar da filosofia do direito e da teoria dos direitos humanos ao estudar conceitos, interpretação e aplicação de normas. Consequentemente, adotamos o tipo metodológico jurídico-exploratório, pois analisamos diversos aspectos sobre a temática. Valemo-nos, ainda, da técnica de pesquisa documental, obedecendo a um conjunto de critérios para análise de documentos históricos (averiguando-se a autenticidade, a credibilidade, a representatividade e o sentido) como elementos descritos por Scott (apud REGINATO, 2017REGINATO, Andréa Depieri de A. Uma introdução à pesquisa documental. In : MACHADO, Maíra Rocha (Org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017. p. 189-225.).

Quanto à estruturação do artigo, o desenvolvimento está dividido em quatro partes. Na primeira delas, são discutidos conceitos relacionados às normas de gênero para demonstrar como a transexualidade é afetada por tensionar o que fora naturalizado como única vivência de gênero possível. Na segunda parte, é apontada a perspectiva contra-hegemônica dos direitos humanos, baseada na teoria crítica. Em seguida, são abordados os direitos sexuais e reprodutivos: apresentam-se conceitos e normas e é realizada uma análise acerca do alcance desses direitos num contexto de diversidade de sujeitos. Por sua vez, a quarta parte traz uma análise do alcance das propostas referentes aos direitos reprodutivos de pessoas trans e travestis no Plano Nacional de Promoção e Cidadania e Direitos Humanos de LGBT de 2009 (PNCDH/LGBT-2009).

1 Identidade de gênero, cisnormatividade e biopolítica

Conforme consta na introdução dos Princípios de Yogyakarta (2006)5 5 Documento redigido por um grupo de especialistas (29 eminentes especialistas de 25 países), reunidos em novembro de 2006, na cidade de Yogyakarta, na Indonésia, por iniciativa da Comissão Internacional de Juristas e do Serviço Internacional de Direitos Humanos. Trata-se de uma norma do direito internacional de soft law (direito em formação), sem caráter vinculante. Segundo a Introdução aos Princípios de Yogyakarta, constitui-se como princípios que “refletem a aplicação da legislação de direitos humanos internacionais à vida e à experiência das pessoas de orientações sexuais e identidades de gênero diversas e nenhum deles deve ser interpretado como restringindo, ou de qualquer forma limitando, os direitos e liberdades dessas pessoas, conforme reconhecidos em leis e padrões internacionais, regionais e nacionais”. , a identidade de gênero pode ser compreendida como a experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo, o que pode acarretar, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros, além de outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos.

Tal definição valida uma noção de gênero que parece estar desatrelada dos efeitos limitadores de determinismos biológicos ou de essencialismos metafísicos categóricos, apontando, então, para o caráter sociocultural, histórico e ideológico daquilo que é reconhecido como um gênero em uma dada sociedade. Nesse sentido, conforme a teoria da performatividade de gênero proposta por Judith Butler em Problemas de Gênero (2016), sustentamos que gênero é o modo como nomeamos o efeito de práticas insistentes de significação reguladas por normas tácitas e relações de poder que produzem uma aparência de naturalidade e estabilidade graças à constante repetição de seus signos. Nas palavras da autora, “o gênero é [...] um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, uma classe natural do ser” (BUTLER, 2016BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016., p. 69).

Nesse âmbito, conforme argumenta Bento (2006)BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006., não existe corpo livre de investimentos discursivos, uma vez que os corpos só são socialmente inteligíveis a partir de marcos culturais específicos. Assim, as vivências trans tornam explícito o caráter performativo de todas as experiências de gênero, enfatizando os conflitos ideológicos aí presentes, bem como posicionam esses sujeitos numa situação de dupla via: por um lado, de permanente negociação com as normas de gênero e, por outro, de desestabilização do caráter tácito dessas mesmas normas. Em certa medida, pode-se afirmar que as vivências trans evidenciam os discursos normalizadores sobre gênero.

Em meio aos processos de fratura produzidos pelas performances de gênero que desafiam a aparente coerência e estabilidade do gênero imposto, uma das formas de a cultura hegemônica buscar manter o status quo acerca do binarismo e da naturalização sobre os gêneros é a articulação entre discursos dotados de alto poder na vida social. Um exemplo dessa articulação é aquele encaixe entre as engrenagens dos discursos médico-científicos e jurídicos (COACCI, 2018COACCI, Thiago. As engrenagens do poder: sobre alguns encaixes entre direito, ciência e transexualidades no Brasil. Ex aequo, n. 38, p. 17-31, 2018.), os quais por muito tempo garantiram a consideração das pessoas trans sob o signo da patologia6 6 Para uma discussão mais detida sobre as tensões em torno da des/patologização das identidades trans e do encaixe entre saberes médicos, das ciências psi e do direito, ver Favero e Souza (2019), Coacci (2020). , relegando-as a uma zona de abjeção social que as destitui de sua legitimidade enquanto sujeitos socialmente viáveis. Em função desse mecanismo que opera nas mais diversas esferas da sociedade, de suas instituições e de seus saberes, parece-nos imprescindível reconhecer, de partida, que “a posição presente nos documentos oficiais de que os/as transexuais são ‘transtornados’ é uma ficção e desconstruí-la significa dar voz aos sujeitos que vivem a experiência e que [...] foram os grandes silenciados” (BENTO, 2006BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006., p. 26).

Essa ficção reiterada pelos discursos que circulam/circulavam nos documentos oficiais que significam pessoas trans como transtornadas, adoecidas, destituídas de sua autonomia psíquica e moral está implicada nos modos de funcionamento do biopoder atrelados à normatividade cisgênera, a qual busca desautorizar os discursos e práticas que não servem para naturalizar a identidade de gênero hegemônica. Reconhecer a existência de uma normatividade cisgênera, que impõe a identidade de gênero como algo a-histórico, puramente biológico e imutável, coloca as identidades transgêneras e não cisgêneras em posições marginais e de resistência à dominação colonial cisgênera, a qual busca normalizar experiências de gênero e corporalidade que não reproduzem os modos de seus modos de vida, conforme argumenta Viviane Vergueiro (2012)VERGUEIRO, Viviane. Pela descolonização das identidades trans*. In : Anais do VI Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de Gênero da ABEH, Salvador: v. 1, n. 1, 2012.. Nesse contexto, é possível falar da existência de um padrão hegemônico cisheteronormativo7 7 Adicionar à teorização sobre a condição normativa e compulsória da heterossexualidade (heteronormatividade) uma informação acerca do status normativo da cisgeneridade, falando-se, então, em “cisheteronormatividade”, configura-se numa operação epistemológica e política dos transfeminismos, os quais denunciam que nenhuma identidade de gênero é “natural” ou biologicamente construída. Assim como a condição de pessoas trans e travestis, a condição de pessoas cisgêneras, ou seja, daquelas pessoas reconhecidas como não trans, é produzida a partir de efeitos insistentes de subjetivação, de regulações culturais, historicamente situadas e sustentadas nas performances e estilizações corporais cotidianas. Nesse seguimento, ver Vergueiro (2012), Jesus (2012) e Silva (2019). e de um movimento contra-hegemônico de resistência a esse padrão. Nele estão incluídas as populações trans, entre outras, cuja existência aponta para o caráter não monolítico ou determinístico das normas de gênero e suas regulações, fazendo irromper narrativas outras sobre os corpos e aquilo que eles podem significar e sobre a proliferação de subjetividades não estanques, de multidões de dissidências, de “multidões queer” (PRECIADO, 2011PRECIADO, Paul B. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 11-20, jan./abr. 2011.).

O biopoder tem os corpos como força motriz. É a partir de dispositivos complexos de controle e disciplinarização que são produzidos os corpos, os gêneros e as sexualidades, com base numa verdade “natural” e “biológica”, na suposta “diferença sexual”, o que no sistema capitalista foi alçado a um patamar regulatório hegemônico (LIMA, 2014aLIMA, Fátima. Subversões de sexo(s) e gênero(s): contraposições ao biocapitalismo contemporâneo ou por uma política das multidões queer. In: ______. Corpos, gêneros, sexualidade: políticas de subjetivação. 2. ed. rev. atual. Porto Alegre: Rede Unida, 2014a. p. 19-33.). Mediante a transformação gradual do poder soberano, na figura tradicional da soberania territorial, em biopoder, a partir do século XVII, com o nascimento da ciência da polícia, o cuidado da vida e da saúde dos súditos começa a ocupar um lugar cada vez mais importante nos mecanismos e cálculos do poder dos Estados (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.). O antigo direito de fazer morrer e deixar viver dá lugar a uma figura inversa, que define a biopolítica moderna e se expressa na fórmula fazer viver e deixar morrer. Essa marca do biopoder transforma “a estatização do biológico e do cuidado com a vida no próprio objetivo primário” (AGAMBEN, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução de Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 155).

Segundo a visão foucaultiana, a biopolítica enquanto tecnologia de governo é manejada por um conjunto de técnicas que são desenvolvidas com o objetivo de realizar um gerenciamento planificado da vida das populações, por intermédio, por exemplo, do controle de natalidade e mortalidade e dos níveis de higiene, em uma interferência direta nos destinos da vida humana. Para o autor, conforme já assinalado, esse fenômeno iniciou-se a partir das transformações políticas e econômicas do Ocidente, na segunda metade do século XVIII e no XIX, quando “pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político” (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999., p. 289-290).

Em outras palavras, podemos entender o biopoder como um mecanismo utilizado pelo Estado, e por outras instituições de controle social, a exemplo de ciências médicas e jurídicas, para decidir quais corpos realmente importam e possuem uma vida digna de ser vivida. Os que se adéquam ao padrão hegemônico imposto pelo sistema capitalista, ou seja, os corpos produzidos em obediência à cisheteronormatividade, dentre outras possibilidades interseccionais, merecem os cuidados e a dignidade proporcionados pelas instituições de controle, ao passo que os que não se adéquam, os corpos desviantes, são rechaçados por esse sistema de regulação e gestão da vida que busca negar a existência deles8 8 Exemplo dessa negação dos corpos e das identidades de gênero contra-hegemônicas foi a violência sofrida pela travesti Verônica Bolina durante sua prisão em abril de 2015: para além das torturas sofridas que costumam ser corriqueiras (em que pesem ilícitas), ela não teve seu gênero respeitado (foram expostos vídeos e notícias que se referiam à travesti pelo gênero masculino, como se ela fosse um homem), tampouco o seu nome (parte das notícias veiculadas exibia seu nome civil, masculino, ao invés do nome social, com o qual Bolina se identifica e se reconhece). Além disso, ela foi presa na detenção com pessoas do gênero masculino, situação que só foi revertida após massivas denúncias de movimentos LGBT e transfeministas. .

Nessa trama de subjetividades e poderes, a sexualidade é um campo que permite grande intromissão dos dispositivos de normalização dos indivíduos (REBOUÇAS, 2012REBOUÇAS, Gabriela Maia. Tramas entre subjetividade e direito: a constituição do sujeito em Michel Foucault e os sistemas de resolução de conflitos. Rio de Janeiro Lumen Juris, 2012.). Em sentido semelhante, entendemos o processo histórico de produção da sexualidade na cultura ocidental, baseado num funcionamento discursivo que erige modos de dizer válidos e inválidos sobre tais objetos, fomenta o exercício interminável de táticas de controle dos discursos sobre as sexualidades. Assim, ele se dá mediante incessantes disputas nas arenas das verdades, tais como: a ciência, a religião, o direito, entre outras (FOUCAULT, 2010).

A cultura ocidental legitima o conhecimento científico sobre os corpos e os desejos, tomando-o sob o signo da neutralidade, da objetividade e da universalidade, e, como decorrência desse falso silêncio acerca da sexualidade, foi criada a scientia sexualis, baseada na busca da verdade e da confissão sobre comportamentos sexuais desviantes (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.). Trata-se de uma confissão-denúncia para estigmatizar e reiterar o tido como anormal, a qual é realizada por diversos campos da ciência e suas narrativas, dentre eles se destacam as ciências psi (psicologia, psiquiatra e psicanálise), a medicina e o direito.

2 Direitos humanos contra-hegemônicos: perspectivas críticas

Numa abordagem biopolítica, o direito é um efetivo mecanismo de controle biopolítico sobre a vida social. A esfera jurídica regula não apenas os sujeitos, como também os sexos, os gêneros, os corpos e os desejos, com o intuito de ajustar/adequar os sujeitos e grupos desviantes às normas vigentes (LIMA, 2014b). Ao produzir as leis, o poder jurídico produz uma noção de sujeito para depois ocultá-la num mecanismo regulador da lei que desconsidera, quando da sua aplicação, o sujeito criado quando da sua elaboração dessa mesma lei (BUTLER, 2016BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.). Desse fato decorre o caráter ficcional e, por sua vez, político de uma pretensa universalidade do direito enquanto sistema de garantias ou proteção aos indivíduos.

Agamben (2014) explica que as declarações de direitos têm uma função biopolítica nos Estados Democráticos de Direito, uma vez que são elas o instrumento de passagem histórica da figura do súdito à do cidadão, que, desde seu nascimento, se constitui num sujeito portador imediato de soberania, com sua inscrição na ordem jurídico-política. As declarações têm uma função histórico-política dupla: são emancipadoras, contribuindo para a luta por conquistas de melhoria de vida da população, e integram os processos de sujeição da vida ao poder soberano (CARVALHO, 2020CARVALHO, José Lucas Santos. Trabalho Escravo Contemporâneo em disputa: direitos humanos, vida nua e biopolítica. Curitiba: Appris, 2020.). É essa visão emancipadora do ambivalente discurso dos direitos humanos que deve caminhar na luta por sua concretização. Daí a necessidade de se utilizar o direito, principalmente os direitos humanos, de forma contra-hegemônica, considerando a necessidade de desconstrução da narrativa falaciosa de universalidade e também a interculturalidade9 9 A interculturalidade pode ser entendida como a interação entre duas ou mais culturas. Ressalte-se que essa interação pode se dar dentro de uma mesma cultura, a exemplo do Brasil, que possui grupos indígenas, grupos remanescentes de quilombos, grupos de pessoas de origem europeia. Há ainda a possibilidade de interação intercultural entre culturas de países diferentes, a exemplo de um diálogo entre a cultura indiana e a brasileira, a francesa e a marroquina etc. Saliente-se que para uma interação entre culturas é preciso abandonar a perspectiva etnocêntrica e tomar consciência de que todas as culturas possuem incompletudes e de que não há cultura mais ou menos evoluída que a outra. Nesse contexto, ver Sousa Santos (2006) e An-na’im (1992). presente em nível intranacional e internacional.

A desconsideração das condições desiguais que os indivíduos e grupos ocupam na organização histórica das sociedades coopera para a reiteração sistemática dos privilégios de grupos sociais em termos de classe social, gênero, raça, etnia, orientação sexual, diversidade funcional, em detrimento dos que ocupam a exterioridade em relação a tais grupos. A tomada de consciência dessas desigualdades colabora para o encurtamento do abismo entre a igualdade formal, aquela garantida em lei, de forma fria, sem considerar as diferenças, e a igualdade material, aquela consciente das peculiaridades dos indivíduos e mesmo das sociedades, que caminha para uma real efetivação do texto de lei (FLORES, 2009FLORES, Joaquin Herrera. Teoria crítica dos direitos humanos: os direitos humanos como produtos culturais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.).

Enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar de forma hegemônica, ou seja, reafirmando as garantias de direitos de grupos sociais historicamente privilegiados e invisibilizando as desigualdades e assimetrias estruturais que se configuram em situações de violência, exclusão e precarização das condições de vida dos grupos subalternizados. Nesse seguimento, acreditamos que um dos caminhos possíveis para romper com lógicas como as que acabamos de descrever é, segundo Sousa Santos (2006SOUSA SANTOS, Boaventura de. Para uma concepção intercultural dos direitos humanos. In : ______. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006. p. 433-470., p. 446), a validação de um viés intercultural de direitos humanos, pressupondo que “todas as culturas são incompletas e problemáticas nas suas concepções de dignidade humana”, de modo que “aumentar a consciência de incompletude cultural é uma das tarefas prévias para a construção de uma concepção emancipadora e multicultural de direitos humanos”.

Percebemos, por esse prisma, que construir direitos sexuais e reprodutivos a partir do ponto de vista hegemônico de diretos humanos – universalizante e reiterador de desigualdades históricas e estruturais implicadas na lógica do biopoder e da biopolítica – gerará uma legitimidade rasa e excludente. Isso porque devido à sua natureza e à forma como projeta em seus discursos normativos o sujeito desses direitos, não levará em consideração a diversidade de possibilidades de vivência dos gêneros presente na sociedade e a diversidade de direitos demandados por tais grupos.

A perspectiva crítica e intercultural dos direitos humanos, que considera a diversidade e os diferentes conceitos de dignidade humana na construção e aplicação de direitos, pode ser implementada entre países ou mesmo no interior de um mesmo país, haja vista as diferenças culturais e as assimetrias experimentadas por diferentes grupos socioculturais circunscritos num mesmo território nacional. Assim, a prática de direitos humanos a partir das noções apresentadas pode, inclusive, levar em consideração a diversidade sexual e de gênero presente no país. Em outras palavras, o que se propõe é uma hermenêutica diatópica para a construção e efetivação dos direitos reprodutivos no contexto da diversidade sexual e de gênero, com o objetivo de “ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra” (SOUSA SANTOS, 2006SOUSA SANTOS, Boaventura de. Para uma concepção intercultural dos direitos humanos. In : ______. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006. p. 433-470., p. 448).

Os direitos humanos numa dimensão universal reforçam o controle hegemônico e reiteram o que Audre Lorde (1984a)LORDE, Audre. Age, race, class and sex: women redefining difference. In : ______. Sister outsider: Essays and speeches. New York: Crossing Press feminist series, 1984a. p. 114-123. denominou como norma mítica: a construção de um padrão de ser humano branco, heterossexual10 10 A autora se refere à categoria conceitual orientação sexual, mas não faz o mesmo em relação à identidade de gênero. A norma mítica trata de padrões hegemônicos, e a identidade cisgênera é a que representa tais padrões. , masculino, cristão, com certo conforto financeiro. Tal padrão é imposto, e, por vezes, pessoas marginalizadas em função de tais normas sequer questionam o motivo pelo qual tal forma opressora de exercício do poder desconsidera a força das diferenças (LORDE, 1984aLORDE, Audre. Age, race, class and sex: women redefining difference. In : ______. Sister outsider: Essays and speeches. New York: Crossing Press feminist series, 1984a. p. 114-123.). Em decorrência disso, aqueles sujeitos que experimentam a força da violência e da opressão por não se enquadrarem nos marcos reguladores que delimitam os sujeitos válidos, em seus próprios termos, muitas vezes são impelidos a buscarem se adaptar à norma mítica, desconsiderando o poder que emana da diversidade.

É justamente na consciência das diferenças, as quais não devem ser meramente toleradas, mas tomadas como base de polaridades necessárias (LORDE, 1984b) – necessárias, inclusive, para se pensar direitos reprodutivos de pessoas trans a partir da lógica da diferença e não da homogeneidade –, que reside a fonte do poder contra-hegemônico. Ou seja, “da interdependência das diferenças mútuas (não-dominantes) verte aquela segurança que nos possibilita descender no caos do conhecimento e retornar com visões verdadeiras do nosso futuro” (LORDE, 1984b, p. 112), um futuro construído a partir das mudanças necessárias à promoção de uma justiça social na diversidade de demandas e de direitos, afirmando que a “diferença é aquela conexão crua e poderosa na qual nosso poder é forjado” (LORDE, 1984b, p. 112).

Apesar de o direito ser utilizado na contemporaneidade como um instrumento de controle biopolítico, acreditamos num uso contra-hegemônico dessa ferramenta, ou seja, num modo de apropriação que possa fazê-la operar numa lógica contrária àquela para a qual foi projetada. Tal fato ganha particular relevo em sociedades que são fruto de experiências coloniais, abrindo possibilidade para uma política em favor de grupos e sujeitos sistematicamente invisibilizados ou excluídos por esse mesmo dispositivo normativo. Isso pode ocorrer através dos direitos humanos pensados desde uma perspectiva crítica e intercultural, de modo a levar em consideração as diferenças e diversidades presentes na sociedade.

3 Direitos sexuais e reprodutivos: políticas, sujeitos e (in)visibilidades

Até parte da década de 1990, a autonomia reprodutiva dos seres humanos era tida como uma questão de controle demográfico (VENTURA, 2009VENTURA, Miriam. Direitos reprodutivos no Brasil. 3. ed. Brasília: UNFPA, 2009.). Segundo tal lógica, a necessidade de controlar a natalidade das populações se justificava enquanto estratégia útil para evitar uma explosão demográfica que gerasse impactos econômicos negativos, principalmente nos países mais pobres. Na segunda metade dessa mesma década, as discussões sobre autonomia reprodutiva e planejamento familiar foram deslocadas do âmbito econômico para o da saúde e dos direitos humanos, passando a fazer parte da categoria de direitos sexuais e reprodutivos. Restrições à fruição dos direitos dessa categoria passaram a ser consideradas graves violações aos direitos humanos (VENTURA, 2009VENTURA, Miriam. Direitos reprodutivos no Brasil. 3. ed. Brasília: UNFPA, 2009.).

Tal mudança de paradigma acerca desse grupo de direitos, a qual aponta para um reposicionamento das lógicas vigentes do biopoder, deveu-se em grande parte à Conferência Mundial de População e Desenvolvimento, ocorrida em 1994, no Cairo. Assim, conforme preconiza o Programa de Ação do Cairo, no capítulo VII, parágrafo 7.2:

A saúde reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não a simples ausência de doença ou enfermidade, em todas as matérias concernentes ao sistema reprodutivo e a suas funções e processos. A saúde reprodutiva implica, por conseguinte, que a pessoa possa ter uma vida sexual segura e satisfatória, tenha a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando, e quantas vezes o deve fazer. Implícito nesta última condição está o direito de homens e mulheres de serem informados e de ter acesso a métodos eficientes, seguros, permissíveis e aceitáveis de planejamento familiar de sua escolha, assim como outros métodos, de sua escolha, de controle da fecundidade que não sejam contrários à lei, e o direito de acesso a serviços apropriados de saúde que dêem [sic] à mulher condições de passar, com segurança, pela gestação e pelo parto e proporcionem aos casais a melhor chance de ter um filho sadio. De conformidade com a definição acima de saúde reprodutiva, a assistência à saúde reprodutiva é definida como a constelação de métodos, técnicas e serviços que contribuem para a saúde e o bem-estar reprodutivo, prevenindo e resolvendo problemas de saúde reprodutiva (ONU, 1994, s/p).

De acordo com Ventura (2009)VENTURA, Miriam. Direitos reprodutivos no Brasil. 3. ed. Brasília: UNFPA, 2009., a partir de tal processo de definição da noção de saúde reprodutiva e sua já discutida realocação, consolidou-se, no plano internacional, uma política de promoção de liberdade de escolha individual baseada no planejamento familiar e no amplo acesso aos métodos contraceptivos, objetivando a garantia e a proteção da dignidade da pessoa humana. Assim, a operação de poder que parece erigir uma política para assegurar os direitos de sujeitos humanos dados, cuja dignidade precisa ser, em verdade, assegurada, produz tais sujeitos como seu epifenômeno discursivo, estabelecendo, assim, os contornos de sua reconhecibilidade enquanto “sujeitos humanos”, sujeitos a quem a “dignidade humana” deve ser protegida. Desse modo, é a própria política de direitos sexuais e reprodutivos – enquanto modalidade de manifestação do poder estatal – que estabelece os sujeitos a quem diz proteger, realizando, em função disso, um gesto de exclusão fundamental inerente a toda política identitária. Este fixa a um só tempo sujeitos a serem protegidos e sujeitos cujos direitos seriam potencialmente violáveis (BUTLER, 2016BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.). Nesse âmbito, em função da cisnormatividade vigente, que executa de modo capilar e insistente o genocídio da população trans (JESUS, 2012JESUS, Jaqueline Gomes de. Identidade de gênero e políticas de afirmação identitária . In : ABEH. Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de Gênero. Salvador, 2012.), operada inclusive pela negação do acesso a direitos relativos à saúde sexual e reprodutiva, não seria forçoso inferir que estão excluídas do escopo identitário de “homens” e “mulheres”, a quem a Conferência do Cairo (1995) faz menção, as existências de pessoas trans e travestis. Aqui está posto, certamente, como aspectos raciais, de gênero e de sexualidade, por exemplo, entram em jogo em tais equações de poder e (in)visibilidade.

Segundo tal visada crítica, valores normativamente assegurados, tais como a liberdade de planejamento familiar e o exercício da sexualidade e da parentalidade, encontram-se politicamente imbricados com outras problemáticas acerca da diversidade sexual e de gênero. Isso porque, conforme tem argumentado Pérez Navarro (2017PÉREZ NAVARRO, P. Cisheteromonormatividad y orden público. In : OLIVEIRA, J. M.; AMANCIO, L. (Eds.). Géneros e sexualidades: intersecções e tangentes. Lisboa: CIS-IUL, 2017. p. 89-113., 2018, 2019) em diferentes trabalhos situados no contexto do Estado Espanhol pós-leis de casamento igualitário e de adoção por casais gays, à revelia de possíveis disposições normativas que assegurem relativa cidadania sexual e reprodutiva a sujeitos dissidentes, o funcionamento jurídico do Estado se organiza de acordo com uma ordem pública que é desde já cisgênera, heterossexual, monogâmica e heteroparental. Tal ordem distribui formas contingentes de precariedade e exclusão em função do quanto as vivências dos sujeitos concretos os afastam da norma cisheterocentrada, a qual fundamenta a inteligibilidade de um sujeito de direitos sexuais e reprodutivos, segundo a racionalidade biopolítica vigente.

Nesse sentido, faz-se necessária a desnaturalização das desigualdades de condições materiais, simbólicas e subjetivas, reiteradas inclusive juridicamente, a que populações que representam dissidências em relação aos modos de vida hegemônicos, em termos de gênero e sexualidade, estão submetidas no que tange ao gozo pleno da liberdade reprodutiva. Isso porque, conforme argumenta Judith Butler em “O parentesco é sempre tido como heterossexual?” (2003, p. 224), “variações no parentesco que se afastem de formas diádicas de família heterossexual [e cisgênera] garantidas pelo juramento do casamento [...] colocam em risco as leis consideradas naturais e culturais que supostamente amparam a inteligibilidade humana”.

Em face do efeito de exclusão normativa que tais marcos de inteligibilidade produzem, o reconhecimento da existência de diferentes vivências corporais, de gêneros e de sexualidades por parte do Estado, bem como a busca estratégica pela legitimação da pluralidade de entidades familiares através do ordenamento jurídico interno denotam caminhos possíveis de enfrentamento dessas exclsuões. Tais caminhos têm sido historicamente demandados pelos movimentos sociais ligados às pautas LGBT com vistas a garantia dos mais diversos direitos, inclusive daqueles referentes ao exercício da sexualidade e da reprodução.

De acordo com Alves (2012)ALVES, Hailey. Introdução ao transfeminismo. Transfeminismo – Feminismo intersecional relacionado às questões trans, 2012. Disponível em: http://transfeminismo.com/2012/10/01/introducao-ao-transfeminismo. Acesso em: 17 maio 2015.
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, a afirmação de condições igualitárias de exercício de direitos sexuais reprodutivos para todas as pessoas, de todas as identidades de gênero e orientações sexuais, é uma das principais pautas da militância política dos transfeminismos. Isso porque, nesse campo de reivindicações, tem sido importante argumentar que práticas reprodutivas como a gestação não são direito exclusivo de mulheres cisgêneras, uma vez que homens trans e demais pessoas dotadas de útero também precisam ter seu direito de gestar assegurado, mediante o emprego de tecnologias de saúde e de tecnologias jurídicas necessárias para lhes garantir o direito de gerar prole, conforme sua livre vontade. Tal demanda ganha particular relevo se considerarmos o insidioso paradoxo biopolítico que tem intentado capturar a população trans, o qual violenta com a esterilização forçada aqueles sujeitos que decidem gozar de seu direito à identidade e à autodeterminação através de processos de hormonização, com vistas a lograr maior bem-estar subjetivo e social em relação à vivência da sua corporalidade. Em que pese a não consideração de pessoas trans como sujeitos de direitos sexuais reprodutivos, ou seja, de sujeitos de direitos humanos, é urgente a implementação de meios que visem a garantir às mulheres trans, às travestis e aos homens trans não apenas o acesso a terapias hormonais e demais técnicas do processo transexualizador11 11 Segundo a transfeminista Jaqueline Gomes de Jesus, tal expressão designa o “processo pelo qual a pessoa transgênero passa, de forma geral, para que seu corpo adquira características físicas do gênero com o qual se identifica. Pode ou não incluir tratamento hormonal, procedimentos cirúrgicos variados (como mastectomia, para homens transexuais) e cirurgia de redesignação genital/sexual ou de transgenitalização” (2012, p. 16). , enquanto meios de promoção de sua dignidade, conforme a demanda subjetiva individual, como também a efetividade de meios para a proteção de seus gametas com o escopo de assegurar o livre exercício das relações de parentalidade cromossomicamente mediada àquelas pessoas que assim desejarem.

Em sentido semelhante, estudos relativos à efetividade do exercício de direitos sexuais e reprodutivos pela população LGBT têm afirmado o caráter ficcional e, em muitos casos, meramente formal, da liberdade reprodutiva desse grupo social. Esse fato o coloca numa situação permanente e indefinida (porque em muitos aspectos sequer formalmente reconhecida) de violação de direitos humanos e de exposição à vulnerabilidade, especialmente em razão de a cultura hegemônica, inclusive jurídica, considerar que suas vidas e práticas sexuais são desviantes (ÁLVAREZ-DÍAZ, 2009ÁLVAREZ-DÍAZ, Jorge Alberto. La maternidad de un padre o... la paternidad de una madre? Transexualidad, reproducción asistida y bioética. Gaceta Médica de México, v. 146, n. 2, 2009.; LIONÇO, 2008LIONÇO, Tatiana. Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saúde e sociedade, v. 17, n. 2, p. 11-21, 2008.) e que, por consequência, suas demandas reprodutivas são descabidas, juridicamente anômalas e até mesmo inconstitucionais. Desse modo, para que seja possível se pensar a promoção da cidadania sexual e reprodutiva da população LGBT, especialmente das populações trans, as famílias não podem ser vistas apenas pelos vieses das representações de gênero e das orientações sexuais hegemônicas (nucleares, cisgêneras, heterossexuais e monogâmicas). Faz-se necessário, assim, reconhecer outros modelos de entidades familiares, bem como o desatrelamento entre prática sexual, prática reprodutiva e prática gestacional12 12 Desse processo de desatrelamento urgente também depende o avanço na liberdade e na autonomia reprodutiva desde a problemática da gestação para terceiros, que é comum e pejorativamente chamada no Brasil de “barriga de aluguel”, ou no contexto espanhol de “gravidez subrogada”. Para uma discussão filosófica e normativa da questão, desde um aporte feminista e queer, ver Pérez Navarro (2019). , de forma que os entraves culturais, ainda que sob o argumento da tão aclamada, quanto onírica, neutralidade ideológica da norma jurídica, não obstaculizem o acesso às técnicas de reprodução humana assistida no contexto da diversidade sexual e de gênero13 13 As últimas Resoluções do Conselho Federal de Medicina que tratam de reprodução humana assistida, a já revogada Resolução nº 2.013/2013 e a vigente 2.121/2015, trazem explicitamente a possibilidade de casais homossexuais utilizarem técnicas de reprodução humana assistida. Porém, o mesmo não acontece em relação às pessoas transexuais. Uma hipótese para justificar essa omissão é que a ciência médica, em diferentes sentidos e proporções, ainda estigmatiza essas pessoas como doentes. Um fato que já representou bem essa patologização sofrida por pessoas trans e travestis pelo saber médico foi a inclusão, recentemente realocada, do “transexualismo” como doença no Cadastro Internacional de Doenças (CID-10), de 1990, sob o número F.64.0. Atualmente, em face da aprovação do CID-11, ocorrida em 2018, que entrará em vigência a partir de 2022, passou-se a localizar a transexualidade na seção nomeada “Cuidados destinados à saúde sexual”, classificada como “incongruência de gênero”. enquanto estratégias para a promoção da liberdade reprodutiva desses sujeitos.

Conforme defende Gama (2003)GAMA, Guilherme Calmon Nogueira. Filiação e Reprodução Assistida: introdução ao tema sob a perspectiva do direito comparado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003., a liberdade de reprodução deve ser exercida levando-se em consideração o caráter limitante ao exercício de direitos sexuais reprodutivos presente em outros dispositivos legais e constitucionais, bem como os princípios intrínsecos ao sistema nessa matéria. Portanto, podemos considerar que, além da tutela à saúde e à vida, também deve ser assegurada a tutela à dignidade para o exercício da liberdade de escolha e de acesso aos métodos contraceptivos e conceptivos. Tal perspectiva ganha particular relevo em face da ausência de garantias normativas explícitas ou de marcos regulatórios específicos comprometidos com a promoção da cidadania reprodutiva de pessoas trans.

Nesse toar, em relação à liberdade de planejamento familiar, os principais normativos brasileiros são o artigo 227, §6º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB) e a Lei nº 9.263/96, que regulamenta o direito fundamental previsto na CRFB. Os referidos normativos são importantes para a garantia do direito humano à reprodução em âmbito interno, porém não fazem menção expressa à diversidade sexual e tampouco à diversidade de gênero, que têm sido alvo de uma interpretação restritiva. Ou seja, por conta de tais aspectos não estarem explicitamente ditos no texto da lei, esse silêncio constituiria, então, uma vedação das possibilidades de sua aplicação em face das demandas específicas vivenciadas pelos sujeitos dissidentes de gênero e sexualidade.

A omissão constitucional e legal relativa à liberdade reprodutiva de pessoas LGBT configura, na prática, o não reconhecimento do direito de procriar dessa população, questão que se agrava nitidamente quando se trata da promoção de condições efetivas do exercício desse direito por parte de pessoas trans (BARBOZA, 2012BARBOZA, Heloisa Helena. Proteção à autonomia reprodutiva dos transexuais. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 20, n. 2, ago. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2012000200015. Acesso em: 14 out. 2014.
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). A justificativa para os referidos entraves estaria ancorada no fato de o direito não cogitar a possibilidade de pessoas não-cisgêneras gerarem filhos com seus próprios gametas, através da reprodução humana assistida, em virtude de eventuais famílias formadas em torno de uma parentalidade transexual – e demais tipos de relações reprodutivas não exclusivamente conjugais – serem avaliadas, nessa conjuntura, como patológicas (BARBOZA, 2012BARBOZA, Heloisa Helena. Proteção à autonomia reprodutiva dos transexuais. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 20, n. 2, ago. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2012000200015. Acesso em: 14 out. 2014.
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) e, por isso, exteriores ao escopo protetivo do Estado no que tange ao gozo do conjunto de garantias constitucionais em questão.

Lançando uma mirada crítica de direitos humanos sobre tal funcionamento normativo, em consonância com o que tem sido discutido neste artigo, a referida omissão do ordenamento jurídico interno pode ser entendida como um mecanismo biopolítico que representa o interesse capitalista hegemônico para fazer crer que apenas pessoas dentro do padrão cisheteronormativo são moralmente dignas de gerar prole. Em outras palavras, tal modo de gestão política da vida reprodutiva da população expulsa para o exterior dos limites da categoria “sujeito de direitos humanos” aqueles que não são idênticos, em termos de gênero e sexualidade, ao modelo prototípico de sujeito a ser produzido pelas normas jurídicas – homem, cisgênero, heterossexual, monogâmico. Desse modo, essa dinâmica biopolítica (re)produz, mediante processos de invisibilização e exclusão, a premissa de uma identidade de gênero homogênea, coerente, binária, permanente e pré-discursiva, na qual está sustentada a cisnormatividade – e a violência transfóbica institucionalizada como seu efeito – enquanto dispositivo da colonialidade de gênero que visa a normalizar diversidades corporais, de gênero e de desejo (VERGUEIRO, 2015). De certa maneira, podemos argumentar que esse modo de funcionamento fundamenta os investimentos políticos múltiplos de um direito hegemônico, o qual objetiva ter um poder absoluto sobre os indivíduos, uma vez que “a uniformidade, a igualização e a homogeneização dos indivíduos facilita [sic] o exercício do poder absoluto ao invés de impedi-lo”, como argumenta Warat (1992WARAT, Luis Alberto. A fantasia jurídica da igualdade: democracia e direitos humanos numa pragmática da singularidade. Revista Sequência, 24, p. 36-54, 1992., p. 40).

Se, por um lado, a aplicação do direito, conforme lógicas hegemônicas, funciona na direção de reproduzir desigualdades estruturais e violências institucionais que tornam precárias as vidas de pessoas trans, por exemplo, há, por outro lado, a possibilidade do uso dessa ferramenta de maneira contra-hegemônica. Nesse contexto, os direitos humanos em sua vertente crítica podem vir a ser um caminho possível para fazer a lógica do direito “colapsar”, ainda que em nível local, fazendo-o proteger aqueles sujeitos a quem, em sentido estrutural, foi projetado para violentar. Um exemplo do modo de operação é que, se faltam dispositivos legais e constitucionais internos para assegurar direitos reprodutivos da população trans, e faltam, como discutimos, há a possibilidade de se recorrer a normas internacionais14 14 Dentre as normas internacionais, destaca-se o teor do artigo 24, alínea “a”, dos Princípios de Yogyakarta (2006): Art. 24 [...]: Os Estados Deverão: a) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar o direito de constituir família, inclusive pelo acesso à adoção ou procriação assistida (incluindo inseminação de doador), sem discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero. para garantir tais direitos, e isso mediante a necessidade constante de luta política por esse direito através de mobilizações sociais15 15 Podemos afirmar que a teoria crítica dos direitos humanos entende o direito como princípio e instrumento de transformação social politicamente legitimado para abarcar grupos e classes oprimidos, na medida em que eles, por meio de suas lutas jurídicas, devolvem ao direito o caráter insurgente e emancipatório. Acerca disso, ver Sousa Santos (2011). . Se existem silêncios normativos biopoliticamente orquestrados, a participação social, a partir de conferências e da elaboração de políticas públicas, pode ser um mecanismo eficiente para a garantia de direitos humanos, nos quais estão inseridos os direitos reprodutivos das pessoas trans e travestis.

4 Direitos reprodutivos de pessoas trans e travestis no PNCDH/LGBT-2009

As Conferências Nacionais de Direitos LGBT fazem parte do conjunto temático de políticas públicas para grupos vulneráveis formado por esse tema e outros oito: os direitos da pessoa idosa, da pessoa com deficiência, dos povos indígenas e tradicionais, das políticas públicas para as mulheres, da criança e do adolescente, da juventude, da promoção da igualdade racial e das comunidades brasileiras no exterior. Dessas nove áreas fomentadoras de políticas para vulneráveis sociais e culturais, apenas uma já era objeto de conferência nacional antes do início do governo Lula em 2003: a Conferência Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (POGREBINSCHI, 2012POGREBINSCHI, Thamy. Conferências nacionais e políticas públicas para grupos minoritários. Textos para discussão, n. 1741. IPEA: Rio de Janeiro, junho de 2012. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/td_1741.pdf. Acesso em: 12 nov. 2015.
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).

Antes da tomada dessa posição de protagonismo na democracia brasileira em 2003, os grupos sociais pertencentes a essas minorias faziam-se representar pelas conferências nacionais de direitos humanos, que continuam sendo um espaço importante de demanda dos grupos minoritários (POGREBINSCHI, 2012POGREBINSCHI, Thamy. Conferências nacionais e políticas públicas para grupos minoritários. Textos para discussão, n. 1741. IPEA: Rio de Janeiro, junho de 2012. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/td_1741.pdf. Acesso em: 12 nov. 2015.
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). Inclusive, de acordo com Almeida (2011)ALMEIDA, Wellington Lourenço. A estratégia de políticas públicas em direitos humanos no Brasil no primeiro mandato de Lula. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 14, n. 2, p. 230-238, dez. 2011., foi a partir do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que ocorreram articulações políticas entre a sociedade civil e o poder político institucional, fato esse que foi responsável pelo avanço estatal em relação à proteção dos direitos humanos, uma vez que tais direitos passaram a ser incorporados como variável analítica para a criação de políticas públicas.

Depreendemos desses acontecimentos que, a partir do primeiro governo presidencial do Partido dos Trabalhadores, as políticas públicas referentes a direitos humanos com ênfase nas demandas dos grupos minoritários ganharam um espaço mais relevante. Em 2003, foi criado o Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Tal iniciativa “envolveu a sociedade e o governo na promoção de direitos abordando a importância da discussão sobre diversidade sexual e combate à violação dos direitos humanos de gays, lésbicas, transgêneros e bissexuais” (ALMEIDA, 2011ALMEIDA, Wellington Lourenço. A estratégia de políticas públicas em direitos humanos no Brasil no primeiro mandato de Lula. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 14, n. 2, p. 230-238, dez. 2011., p. 235). Por meio dessa iniciativa, surgiu o Programa Brasil sem Homofobia16 16 Conforme discute Feitosa (2018), somente após deliberação plenária ocorrida na 3ª Conferência Nacional LGBT, ocorrida em abril de 2016, foi deliberada a substituição do termo genérico “homofobia” pelo termo “LGBTfobia”, com vistas a melhor designar as violências perpetradas contra tais sujeitos, apontando para a preocupação de não invisibilizar as violências sofridas pelas demais possibilidades de identificação em termos de gênero e sexualidade reunidas na sigla LGBT. Para um debate mais detido em torno dessas tensões, ver Lionço (2008). , lançado em 2004.

A 1ª Conferência Nacional LGBT17 17 Como eventos marcantes para a promoção da cidadania LGBT no âmbito das políticas públicas, seguiram-se: em 2010, a instalação do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT); em 2011, a 2ª Conferência Nacional LGBT; em 2016, a 3ª Conferência Nacional LGBT; em 2019, a 4ª Conferência Nacional LGBT. Para uma discussão mais ampla acerca dessas conferências e de seus efeitos políticos, ver Feitosa (2018). , ocorrida em junho de 2008, em Brasília, produziu ganhos políticos importantes, dentre os quais podemos assinalar a proposição de um Plano Nacional LGBT; a criação da Coordenação-Geral de Promoção de Direitos LGBT, ligada à estrutura da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República; o surgimento do Conselho Nacional LGBT e a adoção, por parte do movimento social organizado, da sigla LGBT em substituição à anterior “GLBT”. Como resultado dessa Conferência, originou-se, ainda, o Plano Nacional de Promoção de Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Travestis e Transexuais de 2009 (PNCDH-LGBT-2009), primeiro documento a dispor, de forma direta, acerca de direitos reprodutivos da população LGBT.

Essa Conferência foi considerada um marco histórico na luta pela cidadania e pelos direitos humanos das pessoas LGBT, organizada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, através da Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos – SPDDH –, em parceria com diversos Ministérios e representantes da sociedade civil18 18 Ministério das Cidades, Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Saúde, Ministério da Justiça, Ministério do Turismo, Ministério da Cultura, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Ministério da Previdência Social, Ministério da Educação, Ministério dos Esportes, Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério do Meio Ambiente, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Secretaria Especial de Política para Mulheres e Movimento LGBT (IPEA, 2008). . A Conferência foi dividida em 10 eixos temáticos19 19 Eixos temáticos da Conferência: (1) Direitos Humanos; (2) Saúde; (3) Educação; (4) Justiça e Segurança Pública; (5) Cultura; (6) Trabalho e Emprego; (7) Previdência Social; (8) Turismo; (9) Cidades; (10) Comunicação (IPEA, 2008). , e as atividades20 20 No dia 05/06/2015, ocorreu a abertura; no dia 06/06/2008, ocorreram palestras com especialistas convidados acerca de temáticas ligadas a cada um dos dez eixos da Conferência. No dia 07/06/2015, cada grupo temático, dividido de acordo com os eixos da Conferência, reuniu-se para analisar as 510 propostas originárias das Conferências Estaduais, com a finalidade de deliberar sobre a manutenção, a modificação, a exclusão e/ou os acréscimos propositivos pertinentes. Por fim, em 08/06/2008, as propostas apreciadas pelos delegados nos grupos temáticos foram submetidas à votação. A etapa nacional da Conferência congregou cerca de 10 mil participantes (IPEA, 2008). envolveram palestras sobre os temas, análise das propostas advindas das Conferências Estaduais e, por fim, deliberações21 21 A Conferência Nacional de LGBT de 2008 produziu 153 diretrizes, das quais 62,7% foram administrativas e 37,3% foram legislativas (POGREBINSCHI, 2012). De acordo com a autora: “É importante notar que as possíveis explicações para a tendência à prevalência de diretrizes aprovadas de caráter administrativo sobre aquelas de natureza legislativa não nos devem permitir inferir que esteja em jogo apenas algum tipo de preferência forte, entre os delegados (os participantes com direito a voto) das conferências nacionais, por políticas pontuais e específicas do que por leis gerais e abstratas. Tampouco seria pertinente a inferência de que tais participantes simplesmente consideram mais efetiva e mais rápida uma potencial resposta do Executivo que do Legislativo. Para além do fato de que, naturalmente, alguns consensos em torno de políticas demandem tempo para serem formados no Legislativo (o que se deve não apenas ao ritmo imposto pelas diversas etapas do processo legislativo e regras que o disciplinam, mas também às eventuais coalizões necessárias para aprová-las, além de outras variáveis), é preciso lembrar que muitas das demandas de natureza administrativa requerem juntamente a implementação de políticas já estabelecidas em lei” (POGREBINSCHI, 2012, p. 24-25). (IPEA, 2008IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Deliberações da 1ª Conferência LGBT. IPEA: Brasília, 2008. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/LGBT/deliberacoes_1_c onferencia_lgbt.doc. Acesso em: 12 nov. 2015.
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). Tal importância se deve justamente à intensificação da participação social LGBT na vida política do país, mais especificamente no que concerne à produção de políticas públicas para garantia da cidadania dessa população. Conforme discute Feitosa (2018FEITOSA, Cleyton. A participação social nos 40 anos do Movimento LGBT brasileiro. In : GREEN, James N.; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcelo; FERNANDES, Marisa. História do Movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Almeida, 2018. p. 435-448., p. 436), a participação social LGBT diz respeito “aos processos participativos de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais na esfera pública em busca da conquista ou efetivação de direitos negados ou violados”, sendo melhor compreendida “para as relações envolvendo o Estado e sua estrutura político-administrativa”.

Nesse âmbito, o Plano Nacional de Promoção de Cidadania e Direitos Humanos LGBT de 2009 (PNCDH-LGBT-2009) foi elaborado com o intuito de garantir o acesso a direitos no contexto da diversidade sexual e de gênero e de diminuir as discriminações sofridas por essa população. Em termos de direitos sexuais e reprodutivos para pessoas trans e travestis, aspecto temático específico em torno do qual temos discutido ao longo deste artigo, destacam-se, no escopo da PNCDH-LGBT-2009, as seguintes diretrizes:

5.40. Efetivação do Estado Laico como pressuposto para a implementação do SUS, garantindo os Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, bem como o atendimento de qualidade e não discriminatório por orientação sexual e identidade de gênero, raça e etnia.

[...]

5.44. Qualificação da atenção no que concerne aos direitos sexuais e direitos reprodutivos em todas as fases de vida para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, no âmbito do SUS;

[...]

5.48. Disponibilização do acesso universal e integral de reprodução humana assistida às Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais em idade reprodutiva (BRASIL, 2009, p. 18-19).

Como discutem Angonese, Lago e Santos (2015)ANGONESE, Mônica; LAGO, Mara Coelho de Souza; SANTOS, Verônica Bem dos. Direitos reprodutivos trans em documentos brasileiros de saúde e direitos humanos: ausências e (in)visibilidades. In : IV Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades, 2015, Salvador. Anais..., v. 01, p. 01-10. Disponível em: Direitos reprodutivos trans em documentos brasileiros de saúde e direitos humanos: ausências e (in)visibilidades. Acesso em: 11 nov. 2015., tais diretrizes citadas, se observadas desde a perspectiva dos meios efetivos para a promoção de condições materiais para a autonomia reprodutiva das pessoas trans e travestis, apesar de as referidas políticas terem como intento proteger a população LGBT, podem ser consideradas insuficientes no que tange às demandas de cidadania sexual e reprodutiva daquela população. As autoras em tela exemplificam esse fato através da impossibilidade de haver, segundo a organização vigente no Sistema Único de Saúde (SUS), um médico ginecologista para a “saúde do homem”, o que faz com que homens trans precisem ser atendidos no âmbito da “saúde da mulher”, porém, na prática, eles não são atendidos pela saúde da mulher, uma vez que, embora sejam considerados pelo saber médico sob a pecha transfóbica de “mulheres biológicas”, são lidos socialmente como uma pessoa do gênero masculino.

Indo além do já exposto, acreditamos que nesse exemplo é possível constatar, também, como o recurso a uma política identitária binária, ainda que assimile algum tipo de identidade dissidente, vai sempre reproduzir diferentes níveis e tipos de exclusão. Perguntemo-nos num gesto crítico mais radical: o que está operando em políticas de acesso/exclusão a serviços de saúde pautados no pertencimento compulsório e tácito a categorias essencialistas e biomédicas de gênero, tais como “saúde do homem”/“saúde da mulher”? Não seria uma questão mais urgente a ser posta, diante dos processos de elaboração/implementação/fiscalização de políticas voltadas para a atenção à saúde sexual e reprodutiva das pessoas LGBT, aquela que indaga o motivo de serviços de saúde serem recusados às populações trans, inegavelmente em função de sua condição dissidente de um sujeito de direitos ideal cisheteronormativo?

As questões trazidas evidenciam, de modo flagrante, um cenário de desrespeito sistemático e não fortuito, especialmente se respondermos às questões acima postas pelo viés da biopolítica, conforme já discutimos, voltada aos direitos básicos de saúde da população trans, o que incide diretamente nas condições para o livre exercício das práticas reprodutivas daqueles sujeitos que assim desejarem. Ademais, tal situação de vulnerabilização e violação de direitos humanos a que essas pessoas estão submetidas torna-se ainda mais inegável se atentarmos ao que preconiza o Ministério da Saúde do Governo Federal por meio dos Cadernos de Atenção Básica – Direitos Sexuais e Reprodutivos:

O reconhecimento da universalidade dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos é fundamental para a qualificação da proposição de políticas públicas que contemplem as especificidades dos diversos segmentos da população. A prática sexual e a maternidade/paternidade são direitos de todos, que devem ser garantidos pelo Estado [...] (BRASIL, 2010, p. 17).

A orientação sexual e a identidade de gênero são categorias reconhecidas pelo Ministério da Saúde como determinantes e condicionantes da situação de saúde, não apenas por implicarem práticas sexuais e sociais específicas, mas também por expor lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais a agravos decorrentes do estigma e da exclusão social (BRASIL, 2010, p. 81).

Dessa forma, o que está posto é que, se, por um lado, podemos afirmar que a PNCDH-LGBT-2009 trouxe alguns avanços no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos da população trans, principalmente pela menção expressa ao direito de acessar técnicas de reprodução assistida como meio para a garantia do exercício da liberdade reprodutiva, tais prerrogativas, por outro lado, somadas a outros dispositivos normativos que dizem respeito aos direitos dessa população, têm funcionado sob um regime de inclusão/exclusão como modo de operação específico dos regimes biopolíticos (AGAMBEN, 2014). Isso porque, se, de certo modo, pessoas trans e travestis são reconhecidas como sujeitos de direitos humanos, por isso sujeitos de direitos sexuais e reprodutivos, o que ficaria expresso em garantias constitucionais universalizantes e pela sua menção em domínios normativos específicos – como no PNCDH-LGBT-2019, no volume Direitos Sexuais e Reprodutivos dos Cadernos de Atenção Básica e na Política Nacional de Saúde LGBT, entre outros –, ainda prevalece, um viés cisheteronormativo que expulsa esses sujeitos dos regimes de inteligibilidade. Esse fenômeno se dá mediante diferentes lógicas de precarização e exclusão dos serviços de saúde sexual e reprodutiva, reiterando o que seria um modelo “aceitável” de prática reprodutiva e quem seriam aqueles moralmente dignos de gerar prole, segundo a ordem pública vigente (PÉREZ NAVARRO, 2018).

Outro exemplo contundente desse paradoxo biopolítico, ao qual já aludimos aqui, é a constatada ausência, nas portarias que regulamentam o processo transexualizador, ou seja, a gama de intervenções e terapias médicas com vistas a levar pessoas trans e travestis, que assim demandam, a um maior bem-estar subjetivo em face de sua vivência corporal, de previsões e/ou de recomendações acerca da possibilidade de tais sujeitos recorrerem a técnicas de preservação de seus gametas. Tudo isso com o escopo de assegurar o direito à prática reprodutiva geneticamente mediada, em função do alto potencial esterilizador do referido processo, o que é prática protocolar comum em procedimentos de saúde outros, dotados de igual risco de produção de esterilidade (BARBOZA, 2012BARBOZA, Heloisa Helena. Proteção à autonomia reprodutiva dos transexuais. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 20, n. 2, ago. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2012000200015. Acesso em: 14 out. 2014.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Assim, como argumentam Angonese, Lago e Santos (2015)ANGONESE, Mônica; LAGO, Mara Coelho de Souza; SANTOS, Verônica Bem dos. Direitos reprodutivos trans em documentos brasileiros de saúde e direitos humanos: ausências e (in)visibilidades. In : IV Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades, 2015, Salvador. Anais..., v. 01, p. 01-10. Disponível em: Direitos reprodutivos trans em documentos brasileiros de saúde e direitos humanos: ausências e (in)visibilidades. Acesso em: 11 nov. 2015., podemos pensar em diferentes tipos de incidência da violação à liberdade reprodutiva de pessoas trans e travestis, ou, conforme argumenta Pérez Navarro (2017)PÉREZ NAVARRO, P. Cisheteromonormatividad y orden público. In : OLIVEIRA, J. M.; AMANCIO, L. (Eds.). Géneros e sexualidades: intersecções e tangentes. Lisboa: CIS-IUL, 2017. p. 89-113., em diferentes modalidades de operação da violência biopolítica contra esses corpos. Enquanto num polo dessas violências estariam situações de esterilização compulsória, como aquelas oriundas do acesso ao processo transexualizador, como aludimos há pouco, teríamos noutro polo a ocorrência de processos de esterilização simbólica, fruto “de uma barreira social, um não reconhecimento da legitimidade daquilo que evade dos padrões pré-estabelecidos” (ANGONESE; LAGO; SANTOS, 2015ANGONESE, Mônica; LAGO, Mara Coelho de Souza; SANTOS, Verônica Bem dos. Direitos reprodutivos trans em documentos brasileiros de saúde e direitos humanos: ausências e (in)visibilidades. In : IV Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades, 2015, Salvador. Anais..., v. 01, p. 01-10. Disponível em: Direitos reprodutivos trans em documentos brasileiros de saúde e direitos humanos: ausências e (in)visibilidades. Acesso em: 11 nov. 2015., p. 1). Ou seja, padrões de reprodução calcados em modos de vida cisnormativos que põem as parentalidades trans e travestis no lugar do impensável, do indizível, do interdito, por assim dizer.

Considerações finais

Os direitos humanos têm um importante papel para a garantia de uma vida digna para a população LGBT. Essa categoria de direitos é responsável pela criação de outras, através de normas e de políticas públicas, bem como pela legitimação e efetivação de garantias por meio das constantes lutas e ações realizadas por grupos, minorias e movimentos sociais. No entanto, em termos de garantia da autonomia reprodutiva das pessoas trans e travestis, ainda se percebe a reiteração de invisibilizações. Há uma negação de acesso aos direitos básicos dessas pessoas como forma de disciplinamento por não se adequarem ao padrão hegemônico da identidade de gênero, negando a dignidade que suas vidas precisam ter para serem vividas.

A existência política de pessoas trans e travestis é negada a partir de diversas estratégias, que vão daquelas de caráter ontológico até as de caráter epistêmico, e a obstaculização da capacidade de gerar prole e da parentalidade é um exemplo disso. Essa impossibilidade é mais simbólica do que biológica. É sabido que o processo transexualizador pode levar à esterilização em virtude da hormonioterapia ou de intervenções cirúrgicas, mas esses eventuais problemas podem ser contornados com a utilização de técnicas de reprodução humana assistida. A obstaculização simbólica, ou seja, a deslegitimação de pessoas trans e travestis enquanto seres humanos e sujeitos de direitos humanos, em decorrência do tensionamento que provocam nos padrões de gênero pré-estabelecidos, é um problema mais grave e mais difícil de ser contornado, pois é cistêmico22 22 Tal termo, um neologismo empregado pela ativista e intelectual transfeminista Viviane Vergueiro (2015), aponta para o caráter sistêmico, ou seja, estrutural e estruturante, da cisgeneridade como uma norma de inteligibilidade social. (VERGUEIRO, 2015) e estruturante.

Nesse toar, o direito, assim como a medicina, é uma ferramenta do biopoder para a manutenção da hegemonia cisheteronormativa e para o exercício de uma violência biopolítica que trabalha para produzir corpos obedientes, inclusive às normas de gênero e sexualidade vigentes. Se, por um lado, é sabido que o direito vem sendo utilizado como instrumento para esse fim, ou seja, para aprofundar as violências praticadas contra corpos trans, travestis, intersex, não-bináries, também é possível conceber, por outro lado, que ele seja agenciado de forma contra-hegemônica, ou seja, fazendo-o operar em uma lógica contrária à manutenção de situações de violência e exclusão. Isso porque a vertente crítica dos direitos humanos pode oferecer ferramentas possíveis para realizar essa apropriação política. Tal fato se dá especialmente mediante a consideração das diferenças e das diversidades, por isso mesmo, das hierarquias, das relações de poder e das violências que sustentam os regimes de privilégios supremacistas e de distribuição desigual de desiguais formas de precariedade entre diferentes grupos populacionais.

A utilização dos direitos humanos, segundo tal perspectiva crítica, pode se dar através da positivação de normas que garantam a vida digna da população LGBT, a exemplo dos Princípios de Yogyakarta, documento que traz expressa previsão à garantia da autonomia reprodutiva de pessoas trans e travestis e funciona como orientador de normas internacionais e internas. Outro exemplo disso consiste na ampliação das possibilidades de participação social LGBT, como produzido pelas Conferências Nacionais de Direitos LGBT e por políticas públicas, a exemplo do Plano Nacional de Cidadania e Direitos Humanos LGBT (PNCDH-LGBT-2009).

Nesse contexto, o PNCDH-LGBT-2009 trouxe avanços em relação aos direitos e às garantias para pessoas transexuais, inclusive no que se refere aos direitos sexuais e reprodutivos. Porém, foi percebido que essa política ainda trata a população trans desde um ponto de vista que reitera o lugar de universalidade de um sujeito de direitos cisheteronormativo, o que pode ser notado pela menção genérica e inespecífica aos direitos reprodutivos, sem apontar caminhos concretos para a produção de condições materiais e simbólicas que levem à efetivação da autonomia reprodutiva das pessoas trans e travestis. Essa postura, ainda capturada pelo funcionamento biopolítico, argumentamos, reitera a invisibilidade e outras violências sofridas por essa população, corroborando um modelo de família e de parentalidade que não contempla a diversidade sexual e de gênero.

Em face do exposto, as lacunas normativas e as abordagens genéricas nas políticas públicas em relação à autonomia reprodutiva das pessoas trans e travestis são obstáculos que convocam ao trabalho e à militância. Fazem parte dos processos de legitimação de direitos humanos contra-hegemônicos ações pautadas na educação, nas lutas sociais e políticas, bem como nas mobilizações sociais para a real efetivação desses direitos. Essa tarefa inclui a desnaturalização de binarismos excludentes (homem X mulher; homossexual X heterossexual) capturados pela lógica hegemônica, os quais “dificultam a construção dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos, pois os mantêm sujeitos a normas morais e impedem a integralidade e a equidade desses direitos em programas de saúde” (ANGONESE; LAGO, 2017), assim como em outras práticas de intervenção.

Especialmente em momentos de ruptura democrática, de precarização sistemática de estruturas institucionais voltadas à promoção da cidadania de sujeitos em situação de violação de direitos, de radicalização de lógicas econômicas ultraliberais e de intensificação de uma ofensiva internacional antigênero catalisada por fundamentalismos cristãos racistas e genocidas, o que bem caracteriza a condição atual da política institucional brasileira, a promoção de uma cidadania integral de pessoas trans e travestis como sujeitos de direitos humanos, inclusive de direitos reprodutivos, é uma agenda a ser pautada mediante políticas de aliança (BUTLER, 2018) engajadas na produção de espaços alternativos de poder, de guerrilhas culturais eda apropriação estratégica de estruturas feitas para violentar e oprimir por meio de micropolíticas insistentes. Acreditamos que a visada crítica e contra-hegemônica dos direitos humanos, protagonizada por forças teóricas e políticas transfeministas, feministas queer e aliadas, pode ser um caminho para a construção da autonomia reprodutiva da população trans, rejeitando sempre os perigos de discursos calcados na reificação de identidades sexuais e de gênero baseada em essencialismos de diferentes tipos.

  • 1
    Embora reconheçamos a impossibilidade de nomear satisfatoriamente a miríade de possibilidades de identificações de gênero e sexualidade, haja vista o caráter multifacetado de tais experiências socioculturais e psíquicas, bem como o risco presente na ação de delimitar fronteiras em termos de políticas identitárias, recorremos a tal nomeação com vistas a fazer alusão ao modo como os movimentos sociais organizados têm reivindicado e gerido processos de nomeação estratégicos nas disputas políticas e jurídicas e nos debates públicos das vivências de pessoas dissidentes em termos de gênero e sexualidade. Por isso, apesar de reconhecermos que ficam invisibilizadas nessa definição, por exemplo, vivências intersexuais e assexuais, por estarmos nos referindo ao movimento social institucionalizado, seus documentos e sua atuação política, utilizaremos, neste artigo, a expressão LGBT, conforme aprovado na 1ª Conferência de Direitos LGBT, ocorrida em 2008.
  • 2
    No dia 01 de março de 2018, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275 e do Recurso Extraordinário nº 670.422, o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, reconheceu que pessoas trans podem alterar o nome e o sexo no registro civil sem que se submetam a uma cirurgia (STF, 2018).
  • 3
    A expressão “população trans”, como empregada neste artigo, faz referência a uma gama complexa de sujeitos e vivências em dissidência em relação à norma cisgênera, englobando travestis e pessoas transexuais, conforme informado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ver ANTRA, 2020).
  • 4
    Neste trabalho, tomamos o discurso enquanto uma prática que produz os objetos os quais enuncia, conforme sustentado pelo pensamento foucaultiano. Assim, estamos interessados nas “diferentes maneiras pelas quais o discurso cumpre uma função dentro de um sistema estratégico onde o poder está implicado e pelo qual o poder funciona” (FOUCAULT, 2009, p. 465).
  • 5
    Documento redigido por um grupo de especialistas (29 eminentes especialistas de 25 países), reunidos em novembro de 2006, na cidade de Yogyakarta, na Indonésia, por iniciativa da Comissão Internacional de Juristas e do Serviço Internacional de Direitos Humanos. Trata-se de uma norma do direito internacional de soft law (direito em formação), sem caráter vinculante. Segundo a Introdução aos Princípios de Yogyakarta, constitui-se como princípios que “refletem a aplicação da legislação de direitos humanos internacionais à vida e à experiência das pessoas de orientações sexuais e identidades de gênero diversas e nenhum deles deve ser interpretado como restringindo, ou de qualquer forma limitando, os direitos e liberdades dessas pessoas, conforme reconhecidos em leis e padrões internacionais, regionais e nacionais”.
  • 6
    Para uma discussão mais detida sobre as tensões em torno da des/patologização das identidades trans e do encaixe entre saberes médicos, das ciências psi e do direito, ver Favero e Souza (2019)FAVERO, Sofia; SOUZA, Fernanda Hermínia. (Des)patologizar é (des)diagnosticar? Inquietações sobre as disputas por autonomia no campo político. Periódicus, n. 11, v. 1, maio/out. 2019., Coacci (2020).
  • 7
    Adicionar à teorização sobre a condição normativa e compulsória da heterossexualidade (heteronormatividade) uma informação acerca do status normativo da cisgeneridade, falando-se, então, em “cisheteronormatividade”, configura-se numa operação epistemológica e política dos transfeminismos, os quais denunciam que nenhuma identidade de gênero é “natural” ou biologicamente construída. Assim como a condição de pessoas trans e travestis, a condição de pessoas cisgêneras, ou seja, daquelas pessoas reconhecidas como não trans, é produzida a partir de efeitos insistentes de subjetivação, de regulações culturais, historicamente situadas e sustentadas nas performances e estilizações corporais cotidianas. Nesse seguimento, ver Vergueiro (2012)VERGUEIRO, Viviane. Pela descolonização das identidades trans*. In : Anais do VI Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de Gênero da ABEH, Salvador: v. 1, n. 1, 2012., Jesus (2012) JESUS, Jaqueline Gomes de. Identidade de gênero e políticas de afirmação identitária . In : ABEH. Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de Gênero. Salvador, 2012.e Silva (2019)SILVA, Danillo da Conceição Pereira. Quando dizer é violentar: violência linguística e transfobia em comentários online. Salvador: Devires, 2019..
  • 8
    Exemplo dessa negação dos corpos e das identidades de gênero contra-hegemônicas foi a violência sofrida pela travesti Verônica Bolina durante sua prisão em abril de 2015: para além das torturas sofridas que costumam ser corriqueiras (em que pesem ilícitas), ela não teve seu gênero respeitado (foram expostos vídeos e notícias que se referiam à travesti pelo gênero masculino, como se ela fosse um homem), tampouco o seu nome (parte das notícias veiculadas exibia seu nome civil, masculino, ao invés do nome social, com o qual Bolina se identifica e se reconhece). Além disso, ela foi presa na detenção com pessoas do gênero masculino, situação que só foi revertida após massivas denúncias de movimentos LGBT e transfeministas.
  • 9
    A interculturalidade pode ser entendida como a interação entre duas ou mais culturas. Ressalte-se que essa interação pode se dar dentro de uma mesma cultura, a exemplo do Brasil, que possui grupos indígenas, grupos remanescentes de quilombos, grupos de pessoas de origem europeia. Há ainda a possibilidade de interação intercultural entre culturas de países diferentes, a exemplo de um diálogo entre a cultura indiana e a brasileira, a francesa e a marroquina etc. Saliente-se que para uma interação entre culturas é preciso abandonar a perspectiva etnocêntrica e tomar consciência de que todas as culturas possuem incompletudes e de que não há cultura mais ou menos evoluída que a outra. Nesse contexto, ver Sousa Santos (2006)SOUSA SANTOS, Boaventura de. Para uma concepção intercultural dos direitos humanos. In : ______. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006. p. 433-470. e An-na’im (1992)AN-NA’IM, Abdullahi. Cross-Cultural perspectives: a quest for consensus. Philadelphia: Philadelfia Press, 1992..
  • 10
    A autora se refere à categoria conceitual orientação sexual, mas não faz o mesmo em relação à identidade de gênero. A norma mítica trata de padrões hegemônicos, e a identidade cisgênera é a que representa tais padrões.
  • 11
    Segundo a transfeminista Jaqueline Gomes de Jesus, tal expressão designa o “processo pelo qual a pessoa transgênero passa, de forma geral, para que seu corpo adquira características físicas do gênero com o qual se identifica. Pode ou não incluir tratamento hormonal, procedimentos cirúrgicos variados (como mastectomia, para homens transexuais) e cirurgia de redesignação genital/sexual ou de transgenitalização” (2012, p. 16).
  • 12
    Desse processo de desatrelamento urgente também depende o avanço na liberdade e na autonomia reprodutiva desde a problemática da gestação para terceiros, que é comum e pejorativamente chamada no Brasil de “barriga de aluguel”, ou no contexto espanhol de “gravidez subrogada”. Para uma discussão filosófica e normativa da questão, desde um aporte feminista e queer, ver Pérez Navarro (2019).
  • 13
    As últimas Resoluções do Conselho Federal de Medicina que tratam de reprodução humana assistida, a já revogada Resolução nº 2.013/2013 e a vigente 2.121/2015, trazem explicitamente a possibilidade de casais homossexuais utilizarem técnicas de reprodução humana assistida. Porém, o mesmo não acontece em relação às pessoas transexuais. Uma hipótese para justificar essa omissão é que a ciência médica, em diferentes sentidos e proporções, ainda estigmatiza essas pessoas como doentes. Um fato que já representou bem essa patologização sofrida por pessoas trans e travestis pelo saber médico foi a inclusão, recentemente realocada, do “transexualismo” como doença no Cadastro Internacional de Doenças (CID-10), de 1990, sob o número F.64.0. Atualmente, em face da aprovação do CID-11, ocorrida em 2018, que entrará em vigência a partir de 2022, passou-se a localizar a transexualidade na seção nomeada “Cuidados destinados à saúde sexual”, classificada como “incongruência de gênero”.
  • 14
    Dentre as normas internacionais, destaca-se o teor do artigo 24, alínea “a”, dos Princípios de Yogyakarta (2006): Art. 24 [...]: Os Estados Deverão: a) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar o direito de constituir família, inclusive pelo acesso à adoção ou procriação assistida (incluindo inseminação de doador), sem discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero.
  • 15
    Podemos afirmar que a teoria crítica dos direitos humanos entende o direito como princípio e instrumento de transformação social politicamente legitimado para abarcar grupos e classes oprimidos, na medida em que eles, por meio de suas lutas jurídicas, devolvem ao direito o caráter insurgente e emancipatório. Acerca disso, ver Sousa Santos (2011).
  • 16
    Conforme discute Feitosa (2018)FEITOSA, Cleyton. A participação social nos 40 anos do Movimento LGBT brasileiro. In : GREEN, James N.; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcelo; FERNANDES, Marisa. História do Movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Almeida, 2018. p. 435-448., somente após deliberação plenária ocorrida na 3ª Conferência Nacional LGBT, ocorrida em abril de 2016, foi deliberada a substituição do termo genérico “homofobia” pelo termo “LGBTfobia”, com vistas a melhor designar as violências perpetradas contra tais sujeitos, apontando para a preocupação de não invisibilizar as violências sofridas pelas demais possibilidades de identificação em termos de gênero e sexualidade reunidas na sigla LGBT. Para um debate mais detido em torno dessas tensões, ver Lionço (2008)LIONÇO, Tatiana. Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saúde e sociedade, v. 17, n. 2, p. 11-21, 2008..
  • 17
    Como eventos marcantes para a promoção da cidadania LGBT no âmbito das políticas públicas, seguiram-se: em 2010, a instalação do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT); em 2011, a 2ª Conferência Nacional LGBT; em 2016, a 3ª Conferência Nacional LGBT; em 2019, a 4ª Conferência Nacional LGBT. Para uma discussão mais ampla acerca dessas conferências e de seus efeitos políticos, ver Feitosa (2018)FEITOSA, Cleyton. A participação social nos 40 anos do Movimento LGBT brasileiro. In : GREEN, James N.; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcelo; FERNANDES, Marisa. História do Movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Almeida, 2018. p. 435-448..
  • 18
    Ministério das Cidades, Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Saúde, Ministério da Justiça, Ministério do Turismo, Ministério da Cultura, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Ministério da Previdência Social, Ministério da Educação, Ministério dos Esportes, Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério do Meio Ambiente, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Secretaria Especial de Política para Mulheres e Movimento LGBT (IPEA, 2008IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Deliberações da 1ª Conferência LGBT. IPEA: Brasília, 2008. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/LGBT/deliberacoes_1_c onferencia_lgbt.doc. Acesso em: 12 nov. 2015.
    http://www.ipea.gov.br/participacao/imag...
    ).
  • 19
    Eixos temáticos da Conferência: (1) Direitos Humanos; (2) Saúde; (3) Educação; (4) Justiça e Segurança Pública; (5) Cultura; (6) Trabalho e Emprego; (7) Previdência Social; (8) Turismo; (9) Cidades; (10) Comunicação (IPEA, 2008).
  • 20
    No dia 05/06/2015, ocorreu a abertura; no dia 06/06/2008, ocorreram palestras com especialistas convidados acerca de temáticas ligadas a cada um dos dez eixos da Conferência. No dia 07/06/2015, cada grupo temático, dividido de acordo com os eixos da Conferência, reuniu-se para analisar as 510 propostas originárias das Conferências Estaduais, com a finalidade de deliberar sobre a manutenção, a modificação, a exclusão e/ou os acréscimos propositivos pertinentes. Por fim, em 08/06/2008, as propostas apreciadas pelos delegados nos grupos temáticos foram submetidas à votação. A etapa nacional da Conferência congregou cerca de 10 mil participantes (IPEA, 2008).
  • 21
    A Conferência Nacional de LGBT de 2008 produziu 153 diretrizes, das quais 62,7% foram administrativas e 37,3% foram legislativas (POGREBINSCHI, 2012POGREBINSCHI, Thamy. Conferências nacionais e políticas públicas para grupos minoritários. Textos para discussão, n. 1741. IPEA: Rio de Janeiro, junho de 2012. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/td_1741.pdf. Acesso em: 12 nov. 2015.
    http://www.ipea.gov.br/participacao/imag...
    ). De acordo com a autora: “É importante notar que as possíveis explicações para a tendência à prevalência de diretrizes aprovadas de caráter administrativo sobre aquelas de natureza legislativa não nos devem permitir inferir que esteja em jogo apenas algum tipo de preferência forte, entre os delegados (os participantes com direito a voto) das conferências nacionais, por políticas pontuais e específicas do que por leis gerais e abstratas. Tampouco seria pertinente a inferência de que tais participantes simplesmente consideram mais efetiva e mais rápida uma potencial resposta do Executivo que do Legislativo. Para além do fato de que, naturalmente, alguns consensos em torno de políticas demandem tempo para serem formados no Legislativo (o que se deve não apenas ao ritmo imposto pelas diversas etapas do processo legislativo e regras que o disciplinam, mas também às eventuais coalizões necessárias para aprová-las, além de outras variáveis), é preciso lembrar que muitas das demandas de natureza administrativa requerem juntamente a implementação de políticas já estabelecidas em lei” (POGREBINSCHI, 2012, p. 24-25).
  • 22
    Tal termo, um neologismo empregado pela ativista e intelectual transfeminista Viviane Vergueiro (2015), aponta para o caráter sistêmico, ou seja, estrutural e estruturante, da cisgeneridade como uma norma de inteligibilidade social.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2020
  • Aceito
    30 Set 2020
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