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A complexa concepção de direitos humanos no pensamento de Paulo Freire – Paz, mundo e socialismo no processo de libertação do sujeito ético-político

The complex conception of human rights in Paulo Freire's thought – Peace, world and socialism in the process of liberation of the ethical-political subject

Resumo

O presente trabalho, em comemoração aos 100 anos de nascimento de Paulo Freire, aborda, sob uma Teoria de Direitos Humanos, o pensamento sintetizado nos livros “Educação como prática da liberdade”, “Pedagogia do oprimido”, “Pedagogia da esperança” e “Pedagogia da autonomia”. Seu objetivo é entender e apresentar uma concepção de direitos humanos associada às ideias de paz, meio ambiente e socialismo, segundo o pensador brasileiro.

Palavras-chave:
Pensamento de Paulo Freire; Concepção de direitos humanos; Práxis de libertação

Abstract

This paper, in commemoration of the 100th anniversary of Paulo Freire's birth, approaches, under a Theory of Human Rights, the thought synthesized in the books “Education as a practice of freedom”, “Pedagogy of the oppressed”, “Pedagogy of hope” and “Pedagogy of autonomy”. Its objective is to understand and present a conception of human rights associated with the ideas of peace, environment and socialism, according to the Brazilian thinker.

Keywords:
Paulo Freire's thought; Conception of human rights; Liberation praxis

1. Introdução

Muito se tem debatido sobre a possibilidade de existir um pensamento latino-americano. Este, por exemplo, é o foco da discussão promovida entre Salazar Bondy e Leopoldo Zea (1976)ZEA, Leopoldo. El pensamiento latino americano. Barcelona, Espanha: Ariel, 1976.; é o centro dos estudos anti-coloniais de Aimé Cesaire (2006)CESAIRE, Aimé. Discurso sobre el colonialismo. Madri, Espanha: Akal Ediciones, 2006.; parece ser o pressuposto de Boaventura de Sousa Santos ao discutir sobre a existência de concepções contra-hegemônicas de democracia constituídas a partir das lutas sociais na América Latina (2007; 2010).

Partindo do pressuposto de que existe um pensamento filosófico-sociológico latino-americano, o presente artigo procura esboçar a existência de uma teoria de direitos humanos na obra de Paulo Freire, pensador brasileiro mais conhecido em todo o mundo que teve como principal mote de suas elaborações filosóficas a construção de uma “Pedagogia do Oprimido” ou, em outras palavras, de uma “Educação como prática da liberdade” ou de uma “Pedagogia dos sonhos possíveis”, sempre preocupado em analisar o mundo concreto e alimentar a práxis contra todas as formas de opressão e exploração sociais, ademais de, no seu bojo, realizar direitos humanos de pessoas e coletividades historicamente silenciadas. Ainda, enquanto propõe reflexões, é uma forma de comemorar o aniversário de 100 anos de Paulo Freire em 2021, bem assim de celebrar um pensamento e uma vida dedicados às lutas sociais.

Falar em direitos humanos na obra de Paulo Freire, de antemão, inclina o pensamento a processar-se em apenas uma direção no estudo do tema, a da educação em direitos humanos. É o mais evidente de todos os percursos teórico-metodológicos, quando se trata de abraçar uma análise da filosofia política e do direito (com capacidade de, neste caso, constituir condições concretas de sua ressignificação), a partir de um pensador do campo educacional e de uma Teoria da Educação por ele constituída.

A aparente exclusividade do tema educação na obra de Paulo Freire é substituída, porém, sob uma análise atenta de sua teoria, por uma preocupação evidente com a transformação da sociedade, tendo como base de seu pensamento a construção de mecanismos de participação capazes de ensejar a superação das desigualdades e das opressões sociais, como dito acima.

Problematizar o espaço pedagógico e as experiências de produção de conhecimentos parece ser apenas um argumento para pensar a modificação de uma cultura política prejudicial aos direitos humanos que se expressa na relação opressor/oprimido ou opressora/oprimida, de que se assenhora Freire para constituir sua discussão filosófica. Portanto, o objetivo aqui disposto é apresentar estudo sobre a obra de Paulo Freire na ótica da filosofia política para entender e ressignificar a relação entre ética da solidariedade, direitos humanos e cidadania, em toda a sua complexidade, nos termos do pensamento freireano. O que inclui discussões sobre socialismo, paz e meio ambiente (mundo).

Quando se preconiza uma análise desde um olhar amplo do direito, quer-se, com isso, afirmar que o âmbito de sua constituição não se dá por meio de uma teoria tradicional, legalista, do fenômeno jurídico. Ao contrário, é da sua compreensão como construto dialético e dialógico da sociedade que se pode alcançar uma forma de olhar o direito mais precisa, emancipatória, envolta em condições sociais de existência e de legitimação, sempre aberta a transformações, ou, simplesmente, “autêntica”, conforme diz Freire quando deseja expressar o enlace de um tema com a sua capacidade libertadora (FREIRE, 1999).

Evidente, a presença do direito será percebida ora de maneira explícita ora nas entrelinhas, do mesmo modo como se pode depreender a noção de participação em que se baseia Freire para elaborar sua complexa teoria ou seu pensamento filosófico-sociológico em torno de relações éticas, políticas, ideológicas, sociais, econômicas e jurídicas.

Não é objetivo do presente trabalho ver ou fazer surgir o “jurista” Paulo Freire. Intenta-se com o estudo extrair-se do discurso ético contido em sua filosofia educacional uma renovada noção de direitos humanos, de democracia e de cidadania.

Não obstante estar impossibilitada a separação destes temas, cujos significados e práxis demandam uma relação intrínseca (DEMO, 1993DEMO, Pedro. Participação é Conquista. 2. ed. São Paulo: Cortez. 1993., ANDRADE, 2003ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do (pre)conceito liberal a um novo conceito de cidadania: pela mudança do senso comum sobre a cidadania. In: Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 63-79.), elege-se como foco a análise do contato de Paulo Freire com os direitos humanos, observando que não se pode pensá-los na perspectiva freireana sem fazer sua ligação direta com discussões sobre paz e meio ambiente (mundo).

Afinal, se é certo que a teoria da educação de Freire nem de perto se assemelha a um método tradicional, ortodoxo, mononucleado ou de dimensão única, mas um caminho possível para entenderem-se os parâmetros de uma educação realizada sob e com objetivo na liberdade, na igualdade e na justiça social (GADOTTI, 2005, 2006GADOTTI, Moacir. A voz do biógrafo brasileiro: a prática à altura do sonho. In: GADOTTI, Moacir. Paulo Freire: uma biobilografia. 6 reimpressão. São Paulo Cortez: Instituto Paulo Freire; Brasília: UNESCO, 2006, p. 69-117.), é, outrossim, possível perceber que, para constituir seu pensamento, fundou-se em premissas de argumentação no campo da inseparabilidade entre cidadania, democracia e direitos humanos.

Com o objetivo de fazer sobressaírem as construções teóricas que se delineiam através destas bases argumentativas em Paulo Freire, de pronto, erige-se o dever de situá-las em um panorama completo do pensamento freireano, constante em quatro obras capazes de demonstrar o contato com contextos políticos, em que o debate sobre os direitos humanos se difunde. A primeira delas, Educação como Prática da Liberdade, de 1967, em que apresenta suas primeiras análises da sociedade brasileira e coloca a educação como mecanismo capaz de fazer superarem-se as dificuldades de participação social em nome de uma sociedade justa. Ademais, Pedagogia do Oprimido, em que constitui e esboça o seu método de trabalho, por isso, é considerada a obra fundamental de Paulo Freire, escrita em 1967, durante o período de exílio no Chile, devido à ditadura militar no Brasil; Pedagogia da Esperança, escrita em 1992, após a redemocratização do País, com o fim do regime ditatorial e com o advento da Constituição Federal de 1988, em que Freire se reencontra e avalia as condições de permanência das disposições teóricas delineadas na segunda obra referida; e, por último, Pedagogia da Autonomia, de 1996, período de fortalecimento e instrumentalização da globalização econômica no Brasil, na qual Freire, ao expor saberes necessários à prática educativa, estabelece condições para a promoção do sujeito ético-político.

Para expressar a tonalidade que Paulo Freire dá ao tema, ainda, um primeiro passo é explanar a localização do pensamento freireano no debate ético, para, deste, poder-se depreender o modo como contribui para pensar os direitos humanos na contemporaneidade.

2. Marcos iniciais do debate sobre direitos humanos na obra de Paulo Freire

Embora algumas teorias partam da ideia de que o foco da ação por direitos humanos precisa estar na construção de mecanismos de implementação1 1 Talvez seja possível concordar que não se discuta conceito e fundamento por não se perceber ou estar-se comprometido com o que abriga, em termos epistemológicos, uma postura científica de caráter local, dotada de suposta universalidade, demonstrativa, formalista, inapropriados para o tema. Porém, é a discussão de noções e de argumentos de sustentação, como afirma Sousa Santos (2006), que podem auxiliar na construção de entendimentos emancipatórios, mais abrangentes, dos direitos humanos, bem assim de suas circunstâncias de aplicabilidade. O diálogo e a dialética imprimem aos direitos humanos não apenas a qualidade de construção coletiva, mas a de realização coletiva, na qual se inscreve a diversidade/pluralidade. Afinal, não se pode pôr em prática algo que não se pode recriar, por meio de debate, coletivamente. Seria viciado e contraditório implementar estruturas que guardam compreensões fixas, por conseguinte, negam a diferença, ao mesmo tempo que se dizem insurgência contra a desigualdade, em favor da emancipação social. À medida que se discutem os direitos humanos, desde a sua noção até os argumentos de mantença, criam-se responsabilidades coletivas e individuais quanto à sua prática e, mais ainda, torna-se factível conhecer as condições de implemento desses direitos, inerentes ao próprio modo como são compreendidos e motivados (GÓES JUNIOR, 2008). , sem espaço para debates acerca de fundamentos de validade desses direitos (BOBBIO, 1992), o mais plausível é que, além de não ser possível discutir mecanismos de materialização de direitos humanos sem o debate público2 2 A discussão pública é para Enrique Dussel o critério formal que não se separa de um critério material (a vida humana com dignidade) na construção da ética da libertação latino-americana (1977). de concepções, na obra de Paulo Freire, preocupado com a libertação dos povos explorados e oprimidos do planeta ou dos “condenados da terra” (expressão que toma de empréstimo de Fantz Fanon (2001)FANON, Frantz. Los condenados de la tierra. Prefácio de Jean-Paul Sartre. Epílogo de Gérard Chaliand. Tradução para o espanhol de Julieta Campos. Tradução do Epílogo para o espanhol de Eliane Cazenave Tapie Isoard. 3. ed. México: FCE, 2001.), não apenas fica evidente a existência de formas diversas de se conceber e de se realizar, como se elabora e se propaga uma nova epistemologia capaz de dar contornos diversos para esses direitos3 3 São as práticas dos movimentos sociais, sobretudo, aquelas intensificadas, em todo o mundo, especialmente na América Latina e no Brasil, a partir da segunda metade do século XX, com fulcro nas ideias marxistas de emancipação, libertação e ruptura com o sistema de coisas vigente em favor do construto de uma realidade sem opressão, no decorrer do processo de tomada de consciência (FREIRE, 1998) e disputa pela hegemonia da sociedade (BERTINOTTI, 2005; SEMERARO, 1999), que iniciam os câmbios na organização do Estado e do direito vigentes. .

Ao invés de concebê-los simplesmente, como se estivessem situados em um lugar exclusivo (os Tratados Internacionais) e, por seu caráter absoluto, possuíssem uma hermenêutica única e inquestionável, a perspectiva freireana, ancorada na práxis dos movimentos sociais latino-americanas, parece emanar uma (re)invenção dos Direitos Humanos. Por isso, Paulo Freire não trata desses direitos no âmbito da racionalidade instrumental fundada na busca da absoluta verdade ou como sinônimo de manifestação inquestionável cuja certeza e segurança de cumprimento e continuidade residem no caráter imutável que o fenômeno jurídico, na visão positivista, assume no tempo e no espaço.

Da mesma forma, não localiza os direitos humanos em documentos e/ou declarações que, estruturadas sob o manto de uma racionalidade indolente (SOUSA SANTOS, 2002SOUSA SANTOS, Boaventura de. Introdução Geral à Coleção. In: SOUSA SANTOS, Boaventura de (Org.). Reinventar a Emancipação Social: para novos manifestos. Democratizar a Democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 13-27, v. 1.), a) transformam a historicidade em abstração e esta em expressões axiomáticas que parecem se isolar do fazer político-emancipatório cotidiano dos sujeitos; b) adotam concepções naturalistas, fixistas de liberdade, de igualdade e de dignidade, que têm na abstração, no individualismo atomista e na compreensão de matriz liberal e eurocêntrica do Direito o meio para se manter no tempo como formato político-filosófico hegemônico; c) confundem a história da humanidade com a história do ocidente setentrional; d) ao considerarem os modos de interpretar norte-americano e, sobremaneira, o europeu, como única hermenêutica possível dos valores, em tese, compartilhados pela humanidade, desconsideram a história e a vivência de povos não-ocidentais e não-hegemônicos; e, e) pressupõem a uniformidade de culturas e de modos de conhecer os direitos humanos como seu mecanismo de realização.

A filosofia política de matriz latino-americana crítica, presente no pensamento freireano, não admite ideias cristalizadas e abstratas ou defende imposição de conteúdos e/ou formulações a priori distantes das necessidades humanas e da realidade vivida em dado lugar por determinada comunidade. Ao contrário, apresenta uma epistemologia capaz de oferecer entendimento mais complexo de direitos humanos, que os ensejam como fator e resultado de ações cotidianas em defesa da justiça social e os integram a um projeto ético-político de sociedade que vai se formando na medida mesma de sua realização.

Em diálogo como o que Enrique Dussel chama de “Ética da Libertação” (1977, 2002); com o que Boaventura de Sousa Santos denomina “Conhecimento prudente para uma vida decente” (2001) e com o que Joaquín Herrera Flores compõe como elementos de uma nova universalidade cujo parâmetro é o acesso igualitário de todos e todas a bens materiais e imateriais que garantam uma vida com dignidade (2009), Paulo Freire funda a sua ética da solidariedade aos despossuídos (POLLI, 2005POLLI, José Renato. Freire e Habermas. Revista Viver Mente e Cérebro. Paulo Freire: a utopia do saber. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Segmento- Duetto, 2005. (Coleção Memória da Pedagogia, n. 4), p. 56-65.), baseada nos princípios da reciprocidade e do respeito à alteridade, bem como na relação direta entre o conhecimento e seus efeitos, buscando saberes que, embora objetivos, porque têm um método, estão situados no campo da eticidade, guardam vínculo com a promoção da dignidade humana, com a não-opressão, com a não-exploração, com a não-violação de direitos, sem espaço para dicotomias entre ser humano e natureza (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005.). Ao mesmo tempo, esta epistemologia freireana não admite compreender direitos humanos previamente à práxis de reivindicação. Sua concepção de direitos humanos se produz na e da relação humana com o mundo e no mundo, como resultado nunca definitivo da complexidade do processo em que o ser humano se faz livre ao se reconhecer na condição de outro negado da história e se assume como sujeito de direitos. Pois, é em libertação que surge o impulso de realizar necessidades materiais e de promover a igualdade; que se criam os meios para que os oprimidos e as oprimidas possam superar a dominação econômica, cultural e política decorrentes da exploração capitalista (FREIRE, 1998; 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005.).

Nesse sentido, a concepção de direitos humanos no pensamento de Paulo Freire indica estar ancorada na luta por direitos empreendida pelos Movimentos Sociais e contribui com a ressignificação dos termos cidadania e democracia, dotando-os de critérios materiais de validade, ademais dos requisitos formais-discursivos de caráter procedimental presentes nas correntes hegemônicas da filosofia política (2000).

À semelhança do que afirma Herkenhoff (1997)HERKENHOFF, João Baptista. ABC da Cidadania. 2. ed. – revista e atualizada Vitória: Secretaria Municipal de Segurança Pública, 1997., Paulo Freire propõe uma compreensão de cidadania que, para superar a sua vertente liberalista, da formalidade do processo eleitoral (visto como dever perante a comunidade e o Estado), transmuta-se em condições efetivas de participação e de envolvimento nas questões de interesse público, permitindo às pessoas fiscalizar, propor, debater, denunciar desmandos, reunir-se, manifestar-se, defender publicamente a adoção de posições e interesses coletivos (FREITAS, 2002); das liberdades clássicas, no campo civil (referentes à propriedade, ao empreendimento comercial, à segurança jurídica dos bens e das relações contratuais), divisa-se o reconhecimento da diferença como premissa da igualdade real entre os seres humanos, segundo a qual a liberdade só pode existir em caso de eliminarem-se todas as formas de discriminação, seja por sexualidade, gênero, etnia/raça, faixa etária, profissão religiosa, condição socioeconômica, e de se promoverem ações político-jurídicas em favor da dignidade de pessoas e grupos; da exploração do trabalho, decorrente do individualismo liberalizante, no âmbito da dimensão social e econômica da cidadania, erigem-se condições de proteção e respeito ao trabalhador e às pessoas em situação de empobrecimento; no aspecto educacional, estabelece condições mínimas de formação, de modo que a cidadania não deixe de ser exercida ou se faça de modo restrito devido à barreira cognitiva; e, na dimensão existencial, ser cidadão ou cidadã se atrela à realização plena das pessoas, ao respeito e à dignidade humana em sua plenitude (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005.).

Sobre o termo democracia, este estabelece contato inelutável com a abertura do Estado e da sociedade à participação popular e assume o caráter de instrumento de inclusão social e de afirmação de direitos, sobretudo do direito à diferença e de respeito na diferença. Perde o caráter de regime, deixando de ser um fim em si mesma ou um meio de organização político-formal, para assumir a conotação de cultura de realização de direitos, de espaço aberto à “palavra”4 4 “Palavra”, no pensamento de Paulo Freire, significa, primeiro, oposição ao silenciamento histórico imposto aos oprimidos e às oprimidas, isto é, à negação do direito de existir. Portanto, não se faz sozinha, sob pena de se deturpar em “verbalismo”, quando afastada da ação, do mesmo modo que não se faz ação sem a palavra, sob pena de descambar-se em “ativismo”. Representa uma “práxis” e está associada ao trabalho de transformar o mundo para produzir existência concreta e digna para os seres humanos e para o próprio mundo (FREIRE, 1998). do oprimido e da oprimida, isto, é a práxis transformadora. O que é distinto da acepção de democracia que tem como fundamento a liberdade e a igualdade formais e se configura como um regime político instrumental preocupado com a orientação e a organização do poder exclusivamente por meio de procedimentos que têm como base o sufrágio universal, a relação um indivíduo/um voto, as eleições regulares, o direito de candidatura, a formação de maiorias, a liberdade de expressão e de pensamento, a liberdade de associação e de formação de grupos políticos (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005.).

Democracia, cidadania e direitos humanos se entrelaçam no que se concebe na obra de Paulo Freire, como superação da dicotomia opressor/oprimido, como libertação.

Libertar-se é processo em meio ao qual os sujeitos desenvolvem sua capacidade de análise crítica de uma realidade que manifesta injustiças, desigualdade, negação de direitos, que desconsidera a condição de ser humano e de cidadania, ademais de inspirarem-se para interferir nestas circunstâncias e alterar as distorções sociais que as ensejam (FREIRE, 1978).

No seu desempenho, cada um e cada uma promove o reconhecimento de si mesmo ou de si mesma como sujeito, como ser-no-mundo-e-para-o-mundo (ser em ação e/ou em interatividade), com limitações e capacidades, mas também como detentor/detentora de dignidade, merecedor ou merecedora de respeito, suporte de direitos e deveres individuais e coletivos, condicionado ou condicionada pela relação que estabelece com o mundo sem deixar-se determinar pelo modo como este se encontra ordenado ideológica e politicamente (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005.).

De outro modo, libertação é o processo de tomada de consciência de si e do mundo com vistas à atuação, à ocupação dos espaços democráticos e à conquista de novos campos de interferência para a superação das injustiças e vulnerabilidades sociais. Implica em participação e, dialeticamente, participação enseja libertação, mas também guarda íntima relação com a responsabilidade/direito de intervir e de propor, bem como com a construção concreta do respeito, da dignidade, da igualdade e da liberdade dos seres humanos (FREIRE, 1998, 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005.; TAGIBA, 2002). É resultado e mola propulsora da transformação da sociedade, sobretudo por ser incompatível com a dominação/opressão5 5 Para Pedro Demo, liberdade em Paulo Freire tem a ver com politicidade, que seria o atributo construído pelos sujeitos em libertação de produzir, sobretudo coletivamente, sua própria história, e, neste processo, saírem da condição de objetos de opressão para assumirem-se como agentes de transformação da realidade (2002, p.34). (FREIRE, 1998), o que permite florescer uma ideia de liberdade que não se afasta da de igualdade; uma liberdade que só se exerce numa relação de respeito mútuo, de preservação do direito do outro, como condição para a mantença de seu próprio exercício de direitos; exige a alteração das condições sócio-econômico-políticas, materiais e imateriais, do sujeito para permitir sua existência concretamente digna; e, vislumbra a possibilidade de compreensão do “eu” e do “outro” sob o prisma da autonomia e da alteridade.

Os direitos humanos nesse processo aparecem como elementos que dão forma e se constituem como meios de negociação de uma autêntica política democrática, cujo critério geral é a reciprocidade. A seu turno, esta democracia libertadora, fomentada nas bases do respeito mútuo, faz dos direitos humanos mediadores legítimos de um processo formador do fenômeno jurídico em toda a sua complexidade, como práxis, permitindo o confronto dialético entre direitos e entre entendimentos acerca de seu alcance e aplicação. Mas também, encharca a filosofia jurídica de justiça6 6 Faz-se mister afirmar que alguns debates filosóficos sobre a relação do direito com a justiça, em lugar de aprofundar as compreensões filosóficas sobre o direito, tentaram aproximar o modo de pensar sobre a justiça do formato positivista do direito, transformando-a, sob certos pontos de vista, em um elemento racional, formalista, calculável. Entre esses pensadores, poderiam ser incluídos o próprio Hans Kelsen, John Rawls e Noberto Bobbio. . Afasta a neutralidade axiológica como parte do fenômeno do direito, que passa a figurar, em toda sua complexidade, como construção inseparável da sociedade em que se institui (LYRA FILHO, 1980).

Como decorrência da práxis dialeticamente estabelecida no interior de uma comunidade humana ou em suas relações com outros povos, como construção de baixo para cima, o direito, inserido no campo da eticidade, é devolvido para o espaço social, para a cultura, para a política, para a história, e é devolvido à vida cotidiana das pessoas como parte de sua existência concreta. Está sujeito à experiência histórica produzida por meio de acordos e de conflitos que impulsionam o viver em coletividade, para, a partir das amarras próprias do jogo e da convergência de forças, produzir uma ideia de justiça social capaz de se atualizar também historicamente (LYRA FILHO, 1980; 1993; 2003)7 7 Ressalte-se que, na contemporaneidade, não se pode descartar a influência dos acordos e conflitos, bem como das forças internacionais, na produção do direito, seja este intra ou extra-estatal. Os debates empenhados e acordo obtido a partir do trabalho de organizações de defesa de direitos humanos em nível nacional e internacional, em confronto com os ditames das corporações multinacionais e de governos imperialistas (BOFF, 2003), devem ser percebidos nesta tentativa de formar um novo entendimento sobre o direito. Como a perspectiva deste trabalho é perceber o fenômeno jurídico em sentido amplo, considera-se que o entrelaçamento dialético das condições internacionais com mecanismos internos de produção do direito está contemplado em suas entrelinhas. . É processo dentro do qual se podem assimilar valores, premissas e condições teóricas que se vão formulando no processo histórico mesmo de libertação.

Para tomar de empréstimo uma expressão de Paulo Freire, é o Direito mesmo um “ser-estar-sendo”, constituído de compreensões em disputa acerca da justiça e da igualdade (LYRA FILHO, 1980; 1993; 2003) e só se realiza de forma autêntica como direitos humanos, como instrumento de reequilíbrio das relações sociais (ou de equilíbrio, haja vista se observar que a igualdade entre seres humanos nunca se deu na história, principalmente após o capitalismo que, em seu conjunto de peças mobilizatórias e firmadoras, tratou de acirrar a desigualdade pelo impedimento ao exercício da diferença/pluralidade e do direito de produzir, reproduzir e desenvolver a vida concreta com dignidade (DUSSEL, 1977)).

Em síntese, os direitos humanos, como a democracia e a cidadania, estão inseridos no debate concernente à emancipação social formulada sob a vigência de três temas éticos fundamentais: a liberdade, a autonomia e a justiça (FREIRE, 1978, 1998, 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005.). Estes, ao contrário das teorias liberal-positivistas, não se apresentam como parte de uma moral excludente, dominadora e instrumental. Evocam a solidariedade voltada para a transformação da realidade que oprime. Vinculam-se a uma intencionalidade política. São parte da construção de uma ética da alteridade, de uma ética da reciprocidade, de uma ética universal do ser humano como ética do oprimido, como ética que se constitui desde o ponto de vista daqueles e daquelas que sofrem a negação de seus direitos e de sua humanidade ao longo da história.

Talvez, por essa mesma identificação dos direitos humanos no campo de uma eticidade libertadora dos oprimidos e das oprimidas e do debate das relações sociais que negam a dignidade das pessoas, Paulo Freire critica, de outro modo, supera o debate sobre gerações ou dimensões de direitos humanos e/ou de mecanismos processuais tradicionais de implementação desses direitos.

Para Freire, a realização de direitos humanos exige a transformação destes mesmos direitos em uma práxis integrada à vida social em forma de nova cultura ético-emancipatória. Pois, sob esta conotação, os direitos humanos seriam um conjunto de condições que se ligam à dignidade e ao respeito no bojo da necessidade humana de se emancipar, de ganhar autonomia quanto às forças opressoras do mundo, de alcançar a justiça social (FREIRE, 1978; 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005.).

Concebidos como Direitos do Oprimido, os direitos humanos se estabelecem como instrumentos de compreensão e de busca. São, por assim dizer, também uma Pedagogia do Oprimido, dada a sua capacidade de, a partir de concepções históricas do que se produz e reproduz como “vida com dignidade”, criar-se e recriar-se no seu fazer, no contato dos seres humanos entre si e com o mundo. Resgatam os sujeitos e se resgatam pela ação que estes empreendem em favor da igualdade e da justiça como parte imanente de um projeto de sociedade livre, justa e solidária.

É esta reabilitação dos sujeitos no âmbito do fazer jurídico que, por um lado, recupera e aprofunda, no Direito, a condição de elemento essencial à vida em comunidade, e, por outro, faz dos direitos humanos o modo mais legítimo de expressar o Direito; impede que haja qualquer Direito que não sejam direitos humanos; atrela o fenômeno jurídico ao fundamento ético e à responsabilidade de aliar sua prática à emancipação.

Em síntese, ao invés das compreensões que concebem o Direito como um dado, este aparece como práxis, como algo que está para ser construído e reconstruído ou, melhor, transformado. É produto histórico e cultural que se aplica enquanto vai sendo elaborado como lugar de disputas, como locus de tomada de posição daqueles que o vivenciam. Faz-se no diálogo que, inspirado não apenas na troca de ideias e informações, mas, sobretudo, na necessidade de os sujeitos compreenderem o lugar que ocupam, pode trazer à tona o processo histórico e cultural de constituição das categorias sociais em que cada qual se inclui, por conseguinte, pode ensejar a percepção de si mesmos como sujeitos, que na sua incompletude, unem-se a outros sujeitos para superar condicionamentos socialmente erigidos e alterar a realidade, bem assim o próprio fazer do direito em favor da justiça social.

3. A conquista por direitos - paz e meio ambiente (mundo) como elementos da compreensão de direitos humanos no pensamento de Paulo Freire.

Movidos pela insatisfação com as violações históricas e pelo desejo de justiça, os seres humanos empreendem o processo de busca por direitos, e, ao mesmo tempo, impulsionados pelas demandas surgidas no espaço social decorrentes dos sentidos que as conquistas podem dar aos velhos conteúdos normativos ou mesmo pela perspectiva que os novos direitos promovem ao que se poderia indicar historicamente como “vida social com dignidade”, semeiam novas ações reivindicatórias (SEGATO, 2006SEGATO, Rita Laura. Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais. Mana – vol.12, n.º1, Rio de Janeiro, Apr. 2006, p. 207-236, disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132006000100008
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132006...
).

Neste sentido, observando-se a relação entre ética, moral e direito, pode-se dizer que este se apresenta e se legitima como direitos humanos. Pois, têm sua origem na percepção da falta, da negação. São resultado da ação reivindicativa que se insurge da consciência compartilhada do não-direito, da situação de violência (que é uma ausência, que é o sufocamento ou o silenciamento da existência e das necessidades de certas pessoas ou de grupos de pessoas).

O desejo de superar a falta, de suprimir ou de criar as condições para que a ausência constatada dê lugar a uma normatividade capaz de responder ao anseio de garantir a convivência dos diferentes em uma sociedade complexa, enseja o debate público por meio de que vão se percebendo, social e culturalmente, os marcos-limite da normatividade posta (DUSSEL, 1977; SEGATO, 2006SEGATO, Rita Laura. Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais. Mana – vol.12, n.º1, Rio de Janeiro, Apr. 2006, p. 207-236, disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132006000100008
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). Nesta intrincada e complexa rede em que entram em conflito/diálogo distintas compreensões históricas do que se poderia denominar “justo”, põe-se à prova os esquemas referenciais compartilhados em torno do direito e de seus elementos de legitimação, de modo que concepções não-hegemônicas acerca de termos anteriormente utilizados ou do direito mesmo se apresentem para produzir, por um lado, novos significados éticos para a convivência social e, por outro, circunstâncias de realização de um viver coletivo incompatíveis com a violência, com a negação das complexas formas de manifestação da individualidade e da identidade (OLIVEIRA, 2004OLIVEIRA, Rosa Maria Rodrigues de. Ética da libertação em Enrique Dussel. In: WOLKMER, Antonio Carlos. Direitos humanos e filosofia jurídica na América Latina. Lúmen Júris, 2004. pp 229-286.).

Uma vez que a dialética sem síntese ideal do diálogo/conflito alcança essa consciência e cria mecanismos para superar condições inadequadas de existência social, bem assim, de produzir construções normativas sedimentadas no respeito e na coexistência das diferenças, novas faltas, são detectadas. Seja porque a conquista de direitos traz consigo novos conflitos, seja porque produz novas carências de direitos e de instrumentos de efetivação contra as opressões e explorações sociais, que também se renovam e são conscientizadas (são compreendidas como tal) no processo histórico.

Assim, os direitos humanos (ou o direito legitimamente constituído) são a representação do anseio incessante de transformar a carência em direitos, por conseguinte, são o resultado não-definitivo de um processo igualmente impossível de finalização por meio de que os silenciados e as silenciadas assumem o seu direito de fala (FREIRE, 1998). Emanam a sua palavra de insatisfação e o seu desejo de supressão de tudo o que elimina a sua possibilidade de realizar a existência concreta em plenitude (DUSSEL, 1977).

Apesar de tudo isso parecer se originar numa relação psicanalítica (de desejo) constituída pela separação entre sujeito e objeto, entre desejante e desejado, no campo jurídico, entretanto, essa separação não parece plausível. Primeiro, porque, dialeticamente, o direito só faz sentido em sociedade, como elemento que cria a sociedade enquanto é criado por ela; enquanto se faz nas relações humanas que são elas mesmas recriadas na relação com o direito. Segundo, por que inseridos no contexto de busca por respeito às diferenças, sujeito e objeto se produzem mutuamente e se confundem com essa busca. Em outras palavras, ao existenciar a reivindicação por respeito à diferença (à dignidade), o sujeito o faz vivenciando compreensões de dignidade que tomam sentido enquanto, igualmente, dão significado ao processo de reivindicação e do sujeito mesmo que dele participa. É na relação “eu”, “outro” e “mundo”, não sendo este apenas o cenário em que tudo acontece, que as três partes intrincadas do processo se constituem e se transformam reciprocamente, pois (com a permissão para um trocadilho), em interação, as pessoas transformam o “mundo” sendo transformadas umas pelas outras e por este, ou ainda, invertendo o ponto de partida, o mundo transforma as pessoas enquanto é transformado pela ação que delas emana mas que delas não se separa porque, de igual modo, as constitui.

Enquanto seres da experiência, os seres humanos constatam, significam e se deixam significar. Em existência, as pessoas percebem, dão um sentido ao existir e compreendem a finitude da vida. Por conseguinte, descobrem os limites da potência individual para seguir vivendo e, constatando a incompletude, a inconclusão, o inacabamento que os tornam vulneráveis, buscam no outro e no mundo as condições de complementaridade necessárias para a preservação da vida. Sob outro aspecto, concebem-se como ser da cultura e, com isso, passam a refletir e sistematizar, de algum modo, os saberes-resultado da experiência movida pelo desejo de viver e de seguir vivendo, e, nesse processo de descoberta do “eu”, do “mundo” e do “outro”, interimplicados no objetivo de realização/manutenção intersubjetiva e material da existência humana, as pessoas percebem os padrões de comportamento, os esquemas referenciais, a opressão e a exploração, que vão se estabelecendo, por compartilhamento e/ou por imposição, na sociedade (FREIRE, 1999; SEGATO, 2006SEGATO, Rita Laura. Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais. Mana – vol.12, n.º1, Rio de Janeiro, Apr. 2006, p. 207-236, disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132006000100008
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).

Este (re)conhecimento das tradições, dos traços da cultura, dos reflexos que estes espraiam nos standards comportamentais e das condições concretas de existência, a seu turno, permite colocar em debate estes mesmos esquemas referenciais, compreender os limites que estes impõem à promoção de “mais vida” para, em contrapartida, produzir o impulso necessário à constante transformação de tudo o que se opõem ao “desejo de viver” (SEGATO, 2006SEGATO, Rita Laura. Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais. Mana – vol.12, n.º1, Rio de Janeiro, Apr. 2006, p. 207-236, disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132006000100008
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). É a produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana o critério ético-material que, em diálogo/conflito realizado no espaço intersubjetivo (critério formal de validade), criam normas, microssistemas, instituições e permitem, por meio delas, que vá se dando a constante ação por direitos, por supressão das carências e negação, sobretudo da condição de ser de cada um e de cada uma no mundo concretamente constituído (DUSSEL, 1977).

Nesse sentido, o direito, assumindo-se como direitos humanos, é o resultado da discordância e das aspirações constituídas em face de marcos normativos e condições materiais de existência, incluindo-se entre estes, costumes que representam a introjeção social de concepções particulares e/ou de fundamentalismos decorrentes de certa visão de mundo que se generaliza pelo impedimento à participação e pela violência do silenciamento das demandas provenientes de grupos oprimidos e explorados da sociedade. No dizer de Rita Laura Segato (2006)SEGATO, Rita Laura. Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais. Mana – vol.12, n.º1, Rio de Janeiro, Apr. 2006, p. 207-236, disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132006000100008
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, o direito se legitima como direitos humanos quando tenta destituir a violência que “não só se confunde com a própria cultura e se torna inseparável da auto-imagem pela qual a identidade se solidifica, como também tem um papel crucial na reprodução material do grupo” (p. 210), e, em lugar disso, realiza uma espécie de normatividade pautada na coexistência de distintas “possibilidades de ser” e de “estar-no-mundo” (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005.).

Em outras palavras, é no espaço intersubjetivo da sociedade, que, ante a responsabilidade de produzir, reproduzir e desenvolver a vida concreta, os elementos deônticos são expostos ao julgamento de legitimidade de suas prescrições, são testados quanto à factibilidade, à sua justeza ao dever de existir fazendo-existir e à sua capacidade de realizar, na complexidade das relações, o respeito à diferença e a superação de formas opressoras e exploratórias de vida (DUSSEL, 1977). Nesse mesmo processo, revelam-se ausências, silenciamentos e se constituem as insatisfações que impulsionam as ações por direitos e as transformações da ordem jurídica, abrindo espaço para novos construtos normativos. Pois, mais uma vez invocando Rita Laura Segato, “os direitos desdobram-se e transformam-se porque um impulso de insatisfação crítica os mobiliza. Esse impulso age, em maior ou menor medida, entre membros de qualquer sociedade” (2006, p.225).

Há que se perceber que este processo se constitui do sujeito e constitui o sujeito. Para Rita Laura Segato (2006)SEGATO, Rita Laura. Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais. Mana – vol.12, n.º1, Rio de Janeiro, Apr. 2006, p. 207-236, disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132006000100008
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, o “sujeito ético” ou seja, “o ser em movimento, aberto ao futuro e à transformação, o ser exigido por uma vontade infatigável de transmutar valores e minar certezas, o ser que duvida e suspeita” (2006, p. 224).

Em todo caso, está o “sujeito ético” em ampla conexão com a “ética da solidariedade aos despossuídos” elaborada por Paulo Freire, segundo quem, o “sujeito ético-político”, aqui revestido da roupagem do cidadão e da cidadã autenticamente inseridos ou inseridas em um processo de emancipação social, constitui, no diálogo/conflito, as possibilidades de eliminar a dominação que, ao negar o direito de ser, sustenta a violação de direitos.

É o que se depreende dos comentários de Padilha sobre a dedicatória que Paulo Freire faz em Pedagogia do oprimido:

Não por acaso, o livro mais conhecido de Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, que foi manuscrito em português no ano de 1968, é dedicado “aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim, descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam” (1987:23).

Foi pensando nos oprimidos que Freire escreveu seu famoso ensaio, como uma forma de, por meio da educação, caminhar com eles rumo à construção de uma teoria que pudesse fundamentar e ajudar a refletir a sua própria ação libertadora. Libertação das injustiças históricas, econômicas, políticas e sociais, cuja superação passaria necessariamente pela educação entendida como “prática da liberdade” e considerada em sua radicalidade criadora. Criação significando ousadia coletiva, ação corajosa e transformadora, que se coloca contra qualquer obstáculo à emancipação dos homens ou, se preferirmos, contra qualquer aprisionamento dos direitos das pessoas.

A Pedagogia do oprimido, segundo palavras do próprio Freire, significa a pedagogia “que tem que ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e se refará” (1987:32, grifos nossos) (2005, p. 167).

Importante ainda mencionar que, ao delinear sua concepção de direitos humanos fundada na ética da solidariedade aos “condenados da terra”, Paulo Freire a absorve de uma compreensão de socialismo e de ideias sobre paz e meio ambiente, sendo estes dois últimos termos profundamente ressignificados em sua obra.

No que concerne ao socialismo, este se inclui nos debates sobre direitos humanos, porque para Freire, a concentração de capital é o fator principal da violação de direitos nas sociedades modernas. É ela que enseja a opressão e a exploração, negando ao ser humano sua condição de “ser mais”, de viver com dignidade, ou no dizer de Segato (2006)SEGATO, Rita Laura. Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais. Mana – vol.12, n.º1, Rio de Janeiro, Apr. 2006, p. 207-236, disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-93132006000100008
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, de promover “mais bem”, “melhor vida”, como afirma longamente Paulo Freire após ter revisitado sua “Pedagogia do Oprimido” para construir uma “Pedagogia da Esperança”:

Me sinto absolutamente em paz ao entender que o desfalecimento do chamado “socialismo realista” não significa, de um lado, que foi o socialismo mesmo que se revelou inviável; de outro, que o capitalismo se afirmou definitivamente na sua excelência.

Que excelência é essa que consegue “conviver com mais de um bilhão de habitantes do mundo em desenvolvimento que vivem na pobreza”, para não falar em miséria. Para não falar também na quase indiferença com que convive com os bolsões de pobreza e “bolsos” de miséria no seu próprio corpo, o desenvolvido. Que excelência é essa, que dorme em paz com a presença de um sem-número de homens e de mulheres cujo lar é a rua, e deles e delas ainda se diz que é a culpa de na rua estarem. Que excelência é essa que pouco ou quase nada luta contra as discriminações de sexo, de classe, de raça, como se negar o diferente, humilhá-lo, ofendê-lo, menosprezá-lo, explorá-lo fosse um direito dos indivíduos ou das classes, ou das raças ou de um sexo em posição de poder sobre o outro. Que excelência é essa que registra nas estatísticas, mornamente, os milhões de crianças que chegam ao mundo e não ficam e, quando ficam, partem cedo, ainda crianças e, se mais resistentes, conseguem permanecer, logo do mundo se despedem.

Que excelência é essa que, no Nordeste brasileiro, convive com uma exacerbação tal da miséria que parece mais ficção: meninos, meninas, mulheres, homens, disputando como cachorros famintos, tragicamente, animalescamente, detritos nos grandes aterros de lixo, na periferia das cidades, para comer. E São Paulo não escapa à experiência dessa miséria.

Que excelência é essa que parece não ver meninos barrigudos, comidos de vermes, mulheres desdenhadas, aos 30 anos parecendo velhas alquebradas, homens gastos, populações diminuindo de porte. Cinqüenta e dois por cento da população do Recife favelada, vítima fácil das intempéries, das doenças que abatem sem dificuldade os corpos enfraquecidos. Que excelência é essa que vem compactuando com o assassinato frio, covarde, de camponeses e camponesas, sem terra, porque lutam pelo direito à sua palavra e a seu trabalho à terra ligado e pelas classes dominantes dos campos espoliado.

Que excelência é essa que não se comove com o extermínio de meninas e meninos nos grandes centros urbanos brasileiros; que “proíbe” que 8 milhões de crianças populares se escolarizem, que “expulsa” das escolas grande parte das que conseguem entrar e chama a tudo isso “modernidade capitalista” (2005, p. 94-96).

Conforme sintetiza Padilha,

Paulo Freire valoriza os direitos humanos quando, por exemplo, fala que sua justa ira fundamenta-se na “negação do direito de ‘ser mais’ inscrito na natureza dos seres humanos” (2000:79) [...]. Também nos convida a denunciar a impunidade, a negar qualquer tipo de violência, e a colocarmos “contra a mentira e o desrespeito à coisa pública” (idem:61), ou contra a falta de escola, de casa, de teto, de terra, de hospitais, de transporte, de segurança ou ainda, contra a falta de esperança da ideologia neoliberal e da insensatez dos poderosos, que tentam o todo custo, todos os dias, em todos os espaços da sociedade, naturalizar a miséria, a pobreza, e, disfarçadamente, impedir “a briga em favor dos direitos humanos, onde quer que ela se trave. Do direito de ir e vir, do direito de comer, de vestir, de dizer a palavra, de amar, de escolher, de estudar, de trabalhar. Do direito de crer e de não crer, do direito à segurança e à paz” (Freire, 2000:130) (2005, p. 170).

Outro dos elementos centrais da concepção de direitos humanos forjada no debate sobre a eticidade que se pode depreender do pensamento de Paulo Freire é a “paz”8 8 Por sua defesa da paz, em 1993, Paulo Freire teve seu nome indicado por organizações de todo mundo ao comitê que confere anualmente o Prêmio Nobel da Paz. . Isto se dá, por certo, pela influência religiosa, principalmente de origem judaico-cristã que recebe o pensamento freireano através do humanismo neotomista.

Observando-se, contudo, as palavras de Padilha através de que a voz freireana reúne paz e “briga pelos direitos humanos” ao tempo em que se insurge contra a violência, apreende-se que Paulo Freire não está adstrito à compreensão religiosa conservadora quanto à semântica que atribui ao termo “paz”. Com forte influência de uma teologia da libertação e de uma filosofia da libertação (ARAÚJO FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005.; DUSSEL, 2002DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão. Tradução de Ephraim Ferreira Alves, Jaime A. Clasen, Lúcia M. E. Orth. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.), o pensador não confunde violência (entendida como qualquer ato que possa desrespeitar a humanidade das pessoas e impedi-las de “ser mais”) com a defesa da autêntica democracia, com a realização plena da vida com dignidade e com a “briga por direitos humanos” implementada com auxílio da “justa ira” de mulheres e homens que, imersos em relações sociais e circunstâncias de vida opressoras, lutam para superar o silenciamento, a ausência, a negação, isto é, lutam para “ser”.

Lutar pela paz através da educação pressupõe um novo entendimento de paz [...]. Esse novo conceito não quer apenas a deposição das armas, de todas as armas, mas a paz social, religiosa, de gênero, ética e política. Paz que nasce, viabiliza e nutre as virtudes da tolerância, do respeito e da dignificação humana acatando as diferenças de todos os níveis e graus entre todos os seres do mundo para instaurar a diversidade cultural autêntica, resgatando a humanidade que vem sendo historicamente roubada dos homens e das mulheres (ARAÚJO FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005., p. 27-28).

Em sendo assim, paz não é apenas um direito humano consagrado, mas também realização efetiva e processo em que os direitos humanos ganham materialidade. É libertação que se constrói no confronto de liberdades. É meio e fim da práxis social libertadora, não podendo se confundir com resignação, com silêncio, com a aceitação conformada de situações de opressão mantidas por uma ordem de coisas (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005.).

No mundo de desigualdade, de exploração humana, de miséria e de negação de direitos, aceitar o sentido de paz como não-conflituosidade é deixar-se arrebatar por uma passividade alienante que mantém as pessoas atadas a uma estrutura organizacional opressiva (SARTRE, 2003; FANON, 2003). “Paz”, no pensamento de Paulo Freire, ao contrário, constitui-se do ato transformador que se produz pela intencionalidade política e pela responsabilidade ética compartilhada em defesa da igualdade e da realização de direitos humanos para todas as pessoas (FREIRE, 1998, 1999, 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005., 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005.).

É como se manifesta Paulo Freire sobre o tema:

Não junto minha voz à dos que, falando em paz, pedem aos oprimidos, aos esfarrapados do mundo, a sua resignação. Minha voz tem outra semântica, tem outra música. Falo da resistência, da indignação, da “justa ira” dos traídos e dos enganados. Do seu direito e do seu dever de rebelar-se contra as transgressões éticas de que são vítimas cada vez mais sofridas (2005, p. 113-114).

Em seu “livro falado”, como denomina o texto que produziu como Sérgio Guimarães, “Aprendendo com a própria história II”, Paulo Freire, não sem constrangimento, afirma uma paz que, em defesa dos direitos dos oprimidos e das oprimidas, só pode se constituir com a luta mesmo:

(...) Eu já tinha dito que o ideal é que as transformações radicais da sociedade --- que trabalham no sentido da superação da violência --- fossem feitas sem violência (...) diante do problema da violência e da democracia, eu hoje continuo pensando que a democracia não significa o desaparecimento absoluto do direito de violência de quem está sendo proibido de sobreviver. E que o esforço de sobreviver às vezes ultrapassa o diálogo. Para quem está proibido de sobreviver, às vezes, a única porta é a da briga mesmo. Então eu concluiria lhe dizendo: eu faço tudo para que o gasto humano seja menor, como político e como educador. Entendo, porém, o gasto maior. Se você me perguntar: ‘entre os dois, para onde você marcha?’ Eu marcho para a diminuição do gasto humano, das vidas, por exemplo, mas entendo que elas também possam ser gastas, na medida em que você pretenda manter a vida. O próprio esforço de preservação da vida leva à perda de algumas vidas, às vezes, o que é doloroso (2000, p. 84 a 86).

Traduzida em compromisso com a eliminação das injustiças sociais, a “paz” ganha sentido libertador, compõe e se confunde com os próprios direitos humanos. Pois, constitui-se como resultado-processo da resistência do oprimido e da oprimida contra o “ser menos”. Manifesta-se do enfrentamento promovido pelos seres humanos negados da história, que sofrem a violência do silenciamento, da negação, para libertar-se eliminando a opressão mesma, ou seja, para reinventar o mundo enquanto reinventa o poder e a maneira como este se realiza. Neste aspecto, a “paz” se afasta de uma fisionomia instrumental-racionalista que lhe foi atribuída em certo momento histórico e não se dicotomiza da ação, às vezes, violenta, que possa transformar a sociedade em nome de um projeto ético-político fundado no respeito à diversidade, na convivência cooperativa entre povos, culturas, pessoas e entres estas e o meio ambiente (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005.). O que significa dizer que se, sob uma perspectiva ética, a realização de direitos deve acontecer no processo de construção de uma cultura política de promoção de respeito e solidariedade, estas mudanças não podem se dar senão em determinado espaço, ou seja, no mundo de que não se aparta o ser humano e em que não se separam cultura e natureza.

Em outras palavras, para entender o que Paulo Freire indica como direitos humanos em sua ética da solidariedade, é preciso fazer uma relação direta entre “paz” (produção, reprodução e desenvolvimento da vida, da existência mesmo, da garantia de possibilidade de “ser mais”) e o meio ambiente, por vezes, confundido com o que Freire chama de mundo. Com dito acima, este não é apenas o cenário em que se dão as relações humanas, mas o lugar em que o ser humano, em interação, se descobre enquanto tal e dá sentido à própria existência à medida mesmo que vai constatando/transformando e sendo transformado por aquilo que constrói/transforma para a manutenção da vida e dos conhecimentos que a impedem de se extinguir (FREIRE, 1999).

No encontro com a natureza (com o “mundo”), os seres humanos fazem e refazem os laços que os integram à existência com dignidade. Dá-se o encontro e o reencontro coletivo com o bem-viver e com conhecimentos e tradições constituídas da/na percepção consciente do estar-no-mundo que permitem garantir vida às futuras gerações. Pois, para Paulo Freire, toda relação humana se dá com interveniência do espaço (do mundo). E, em confluência com o pensamento de Dussel (2002)DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão. Tradução de Ephraim Ferreira Alves, Jaime A. Clasen, Lúcia M. E. Orth. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002., para a garantia da “possibilidade de ser” (que se realiza em cada pessoa como o existenciar do desejo de “ser mais”), hão de convergir a necessidade de resguardar a vida e a compreensão de que o mundo é o lugar de promoção da convivência cooperativa entre os seres humanos e entre estes e outros seres, devendo a preservação do espaço comum de existência, em que a vida se produz, se reproduz e se desenvolve, fazer parte do compromisso ético com a realização de direitos, melhor, com a promoção da paz e da justiça, uma vez que não se admite a destruição/concentração de recursos naturais para o acúmulo de capital, em detrimento da vida concreta.

Para ficar claro, no mundo, os seres humanos significam sua experiência de viver e vão marcando o espaço com a sua presença, de modo a torná-lo propício à sua sobrevivência material e espiritual. Por isso, Freire erige como princípios éticos fundamentais do que concebe como “estar-no-mundo-com-o-mundo-e-com-o-outro” a cooperação e a solidariedade para defender como inadmissível a concentração, a destruição e, sobretudo, a apropriação não-comunal da natureza. Se é na relação com o mundo que os seres humanos dão sentido à vida para produzirem sua existência material e espiritual (sua dignidade), ao admitir como legítima a concentração de riquezas pela transformação do meio ambiente em bem comercializável, o capitalismo, não só impede que se constitua uma cultura política baseada na promoção dos direitos, como rouba essa conexão com o mundo tão importante aos seres humanos e a sua existência com dignidade. Além disso, torna-se ele mesmo [o capitalismo] o substituto das pessoas na constituição dos sentidos da existência em comunidade para naturalizar uma cultura da concentração que ameaça a existência no planeta, esbulha os seres humanos dos bens de uso comum e promove desigualdade e injustiça social (FREIRE, 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005.).

Paulo Freire, ao contrário do que impõem as concepções capitalistas, compreende o meio ambiente, no bojo de uma teoria do conhecimento que, por estar preocupada com a relação direta entre o ato de conhecer e seus efeitos, ademais de não fragmentar o ser humano e de não separá-lo da natureza (sujeito/objeto), vincula a experiência cognitiva com a produção de subjetividades capazes de promover o “ser mais” (a dignidade humana, a não-opressão, a não-exploração das pessoas e do mundo e a não-violação de direitos).

Neste aspecto, não como proprietário ou como ser mais importante, mas como o único ser que pode: a) compreender e construir sua própria história; b) significar seus atos, adquirir e transmitir experiências cognitivas; c) perceber a sua inserção no mundo como requisito para transformá-lo; d) conceber-se como sujeito ético-político; e) tomar consciência de que existe no mundo, com o mundo e com o outro, o ser humano se torna responsável pela preservação e pelo cuidado com a natureza (com o mundo) para a preservação da vida concreta. Assim, é que no pensamento de Paulo Freire, a ideia de meio ambiente integra a pretensão ética de organizar o mundo e ressignificar o poder em razão dos princípios da solidariedade, da reciprocidade, da participação, da interculturalidade, da criatividade e da re-localização do ser humano na natureza, como parte inextrincável dela (FREIRE, 1998, 1999, 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005., 2005FREIRE, Paulo. À Sombra desta Mangueira. 7. ed. São Paulo: Olha d’Água, 2005.).

E, nisso reside a relação do termo com os direitos humanos. Não com aqueles compreendidos por uma doutrina simplificadora, de cunho liberal-positivista, com raízes no naturalismo, no contratualismo, no individualismo, cujos elementos filosóficos se instituem como estruturas fixas, eternas e imutáveis. Mas, como aqueles que se estabelecem como práxis cotidiana, em sua relação com uma ética universal dos seres humanos, voltada para a responsabilidade com o outro, com a justiça, com a autonomia e com a liberdade.

Pois, em Paulo Freire, como dito acima, os direitos humanos, são visualizados como integrantes de uma ética da alteridade, construída, pela ação cidadã e democrática (ação ético-política) de defesa de direitos, isto é, pela participação direta e consciente na construção de uma igualdade efetiva entre as pessoas. Por isso mesmo, são parâmetros sociais de convivência fundados no processo de busca incessante da justiça social, cultural, econômica, política e ecológica. Não são a priori. São arcabouços de condições de vida com dignidade que se refazem e se modificam na práxis, na dialética social, porque colocados como elementos basilares das relações que cada um e cada uma tem com o mundo na construção do “ser mais” (da produção, reprodução e desenvolvimento da vida em comunidade).

4 Considerações Finais

Pensar os direitos humanos na obra de Paulo Freire não anula a condição que o consagrou, de educador, de pessoa que se dedicou a entender e pensar o processo educacional a partir da realidade em que se inserem as pessoas. Seu pensamento, porém, devolvido à complexidade de que não pode ser isolado, pode levá-lo a outras interpretações igualmente factíveis, entre as quais a de fomentador de um “direito do oprimido”.

Este, por sua vez, é a expressão do direito como fenômeno construído social e politicamente, por meio de processo dialético/dialógico, em função do que se entende como justo, equânime, emancipador, todos termos que se atualizam por meio da ação humana mobilizadora e impulsionada pela insatisfação, pela ausência, pela falta.

Decerto, não se pode dizer que Paulo Freire, apesar de eleger como foco de estudos a educação, não se relacione com o debate acerca do direito, por meio das discussões em torno de uma ética da solidariedade que incluem a cidadania, a democracia e os direitos humanos, de modo mais preciso, que não tome assento no debate concernente ao “direito do oprimido e da oprimida”.

Freire era um homem de seu tempo dedicado a debater a sua realidade, a envolver-se concretamente nos projetos de transformação social. Seu pensamento é produzido nos caminhos que seus pés pisam e sua obra nasce da sua vivência de exclusão social, bem como da negação de direitos no Brasil e nos países por onde passou durante o exílio ensejado pela ditadura militar, seja na América Latina ou na África, na América do Norte ou na Europa.

Portanto, não se pode entender que obra de Paulo Freire tenha ficado imune aos debates internacionais, promovido pela comunidade de nações, enquanto estava no exílio, em torno dos direitos civis e políticos, bem como dos direitos econômicos, sociais e culturais, reconhecidos nos Pactos Internacionais de 1966. Do mesmo modo como não ficou imune, quando, de volta ao Brasil, em 1980, Freire presenciou os debates e fez parte das mobilizações pela redemocratização do País e pela realização da Assembleia Nacional Constituinte.

Não por acaso, experiências de construção da cidadania e de mobilização por direitos, nacionais e internacionais, em áreas urbanas ou no meio rural, absorvem a influência freireana. Ele mesmo, em sua Pedagogia da Indignação (2000), afirma a sua felicidade de ver a marcha dos sem-terra e das marchas que revelam o ímpeto da vontade amorosa de mudar o mundo. Ao mesmo tempo que diz esperar, antes de sua morte, que o Brasil esteja tomado de marchas: não só a marcha dos sem-terra, mas a marcha dos que não têm escola, marcha dos reprovados, marcha dos que querem amar e não podem, marcha dos que se recusam a uma obediência servil, marcha dos que se rebelam, marcha dos que querem ser e estão proibidos de ser, marcha dos desempregados, a marcha das mulheres, dos sem-teto, dos sem-comida, dos sem-amor, porque demostram que é preciso “brigar” para que se obtenha a transformação, porque afirmam as pessoas como gente, como sociedade querendo democratiza-se.

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    Talvez seja possível concordar que não se discuta conceito e fundamento por não se perceber ou estar-se comprometido com o que abriga, em termos epistemológicos, uma postura científica de caráter local, dotada de suposta universalidade, demonstrativa, formalista, inapropriados para o tema. Porém, é a discussão de noções e de argumentos de sustentação, como afirma Sousa Santos (2006), que podem auxiliar na construção de entendimentos emancipatórios, mais abrangentes, dos direitos humanos, bem assim de suas circunstâncias de aplicabilidade. O diálogo e a dialética imprimem aos direitos humanos não apenas a qualidade de construção coletiva, mas a de realização coletiva, na qual se inscreve a diversidade/pluralidade. Afinal, não se pode pôr em prática algo que não se pode recriar, por meio de debate, coletivamente. Seria viciado e contraditório implementar estruturas que guardam compreensões fixas, por conseguinte, negam a diferença, ao mesmo tempo que se dizem insurgência contra a desigualdade, em favor da emancipação social. À medida que se discutem os direitos humanos, desde a sua noção até os argumentos de mantença, criam-se responsabilidades coletivas e individuais quanto à sua prática e, mais ainda, torna-se factível conhecer as condições de implemento desses direitos, inerentes ao próprio modo como são compreendidos e motivados (GÓES JUNIOR, 2008).
  • 2
    A discussão pública é para Enrique Dussel o critério formal que não se separa de um critério material (a vida humana com dignidade) na construção da ética da libertação latino-americana (1977).
  • 3
    São as práticas dos movimentos sociais, sobretudo, aquelas intensificadas, em todo o mundo, especialmente na América Latina e no Brasil, a partir da segunda metade do século XX, com fulcro nas ideias marxistas de emancipação, libertação e ruptura com o sistema de coisas vigente em favor do construto de uma realidade sem opressão, no decorrer do processo de tomada de consciência (FREIRE, 1998) e disputa pela hegemonia da sociedade (BERTINOTTI, 2005; SEMERARO, 1999), que iniciam os câmbios na organização do Estado e do direito vigentes.
  • 4
    “Palavra”, no pensamento de Paulo Freire, significa, primeiro, oposição ao silenciamento histórico imposto aos oprimidos e às oprimidas, isto é, à negação do direito de existir. Portanto, não se faz sozinha, sob pena de se deturpar em “verbalismo”, quando afastada da ação, do mesmo modo que não se faz ação sem a palavra, sob pena de descambar-se em “ativismo”. Representa uma “práxis” e está associada ao trabalho de transformar o mundo para produzir existência concreta e digna para os seres humanos e para o próprio mundo (FREIRE, 1998).
  • 5
    Para Pedro Demo, liberdade em Paulo Freire tem a ver com politicidade, que seria o atributo construído pelos sujeitos em libertação de produzir, sobretudo coletivamente, sua própria história, e, neste processo, saírem da condição de objetos de opressão para assumirem-se como agentes de transformação da realidade (2002, p.34).
  • 6
    Faz-se mister afirmar que alguns debates filosóficos sobre a relação do direito com a justiça, em lugar de aprofundar as compreensões filosóficas sobre o direito, tentaram aproximar o modo de pensar sobre a justiça do formato positivista do direito, transformando-a, sob certos pontos de vista, em um elemento racional, formalista, calculável. Entre esses pensadores, poderiam ser incluídos o próprio Hans Kelsen, John Rawls e Noberto Bobbio.
  • 7
    Ressalte-se que, na contemporaneidade, não se pode descartar a influência dos acordos e conflitos, bem como das forças internacionais, na produção do direito, seja este intra ou extra-estatal. Os debates empenhados e acordo obtido a partir do trabalho de organizações de defesa de direitos humanos em nível nacional e internacional, em confronto com os ditames das corporações multinacionais e de governos imperialistas (BOFF, 2003BOFF, Leonardo. Ethos Mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Rio de Janeiro: Sexante, 2003.), devem ser percebidos nesta tentativa de formar um novo entendimento sobre o direito. Como a perspectiva deste trabalho é perceber o fenômeno jurídico em sentido amplo, considera-se que o entrelaçamento dialético das condições internacionais com mecanismos internos de produção do direito está contemplado em suas entrelinhas.
  • 8
    Por sua defesa da paz, em 1993, Paulo Freire teve seu nome indicado por organizações de todo mundo ao comitê que confere anualmente o Prêmio Nobel da Paz.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2021
  • Aceito
    20 Set 2021
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