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Viver, em primeira pessoa: Reflexões sobre biopotência e possibilidades de resistência biopolítica

To live, in first person: Reflections on biopotency and possibilities of biopolitical resistance

Resumo

O presente artigo visa a desenvolver uma reflexão sobre possibilidades de resistência ao poder biopolítico em curso na sociedade atual. Questiona-se se é possível vislumbrar tais possibilidades em alguns modos de vida e em diferentes experiências sociais, tomando-se como exemplo práticas de moradores de rua, atitudes e movimentos de jovens em diferentes contextos e a Marcha das vadias. Objetiva-se investigar de que forma grupos marginalizados ou subalternizados produzem resistências por meio dos seus diferentes modos de vida, de suas especificidades e da maneira como se expressam e, assim, logram esquivar-se, ainda que fugazmente, dos mecanismos biopolíticos que captam a vida e sua energia para utilizá-la como seu insumo. Analisam-se conceitos como sociedade disciplinar, biopolítica, vida nua, forma de vida e multidão, a fim de verificar, a partir de uma base teórico-filosófica, se de fato é possível entrever esboços de resistência nos exemplos escolhidos. O que se registra é que, embora em momentos efêmeros, várias formas de expressão, comportamento e organização logram exercer uma subversão a esse poder que paira e se encontra inseparável da vida, revelando uma potência de vida, uma biopotência. O método de abordagem utilizado é o hipotético-dedutivo, em uma pesquisa do tipo exploratória em que se adota procedimentos tais como seleção da bibliografia que forma a base teórica, além da leitura e reflexão de pesquisas que tratam sobre esses modos de vida anteriormente citados.

Palavras-chave:
Experiências sociais; Biopolítica; Potência de vida; Resistência

Abstract

The following article strives to develop a reflection on the possibilities of resistance to the biopolitical power ongoing in today’s society. It is questioned if these possibilities can be glimpsed in some ways of live and in different social experiences, taking as examples practices from homeless people, activities and mobilizations carried out by young people in different contexts and the Slutwalk. The objective is to investigate in what ways marginalized or subalternized groups produce resistance by means of their different ways of life, of their specificities and the way how they express themselves, and, thus, manage to escape, although fleetingly, from the biopolitical mechanisms that capture life and its energy to use it as its supply. For this purpose, concepts such as disciplinary and biopolitical society, naked life, form of life and multitude are briefly analyzed, in order to verify, from a theoretical-philosophical basis, whether it is possible to visualize sketches of resistance in the selected examples. The research reveals that, although in specific and ephemeral moments, several forms of expression, behavior and organization are capable of achieving a subversion to this power that is intertwined with life, revealing a potency of life, a biopotency. The method of approach is the hypothetico-deductive in an exploratory research that adopts proceedings such as selection of the bibliographies and reading and reflection on the researches about the ways of life mentioned above.

Keywords:
Biopolitics; Potency of life; Resistance; Social experiences

1 Considerações iniciais

Partindo de uma base teórica biopolítica, e, especialmente, de possíveis resistências biopolíticas, o presente estudo propõe-se a lançar um olhar atento para diferentes modos de vida, em suas maneiras de se expressar, buscando possibilidades de interpretação de suas diversas formas de colocar-se frente a uma realidade de espraiamento da biopolítica que se caracteriza pela tomada da vida como seu insumo. O problema de pesquisa que se estabelece, portanto, pode ser assim formulado: em que medida tais modos de vida, por vezes marginais ou marginalizados, são capazes de produzir resistências ao modelo de vida socioeconômico predominantemente estabelecido, subvertendo, ao menos em parte e em alguns momentos, a lógica de sujeição da vida a diversos mecanismos biopolíticos que tentam instrumentalizá-la com fim a uma utilidade?

Considera-se, pois, que há uma importância de lançar esse olhar atento, a fim de que se possa enxergar algo para além da miséria e/ou invisibilização com a qual muitos sujeitos têm de lidar, eis que a hipótese formulada é de que formas de vida maltratadas, como, por exemplo, moradores de rua, têm de criar sua própria realidade de sobrevivência, e, também, de “vivência”, no sentido de que também têm sonhos, sofrimentos, desejos e relações afetivas. Nesse sentido, tais pessoas exercem grande criatividade e resistem, muitas vezes, aos controles e maquinarias da sociedade biopolítica que buscam sempre capturar a vida para geri-la em função da sua utilidade. Trata-se - tomando de empréstimo a ideia de Boaventura de Sousa Santos (2002)SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 63, p. 237-280, out. 2002. Disponível em: https://journals.openedition.org/rccs/1285. Acesso em: 16 dez. 2020.
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-, de uma tentativa de captar experiências sociais, a fim de perceber como elas exercem uma biopotência ao “abrir fendas” no biopoder que as envolve em suas malhas.

Para tanto, toma-se como base três contextos diferentes: dos moradores de rua, a partir de estudo em que o pesquisador logrou desenvolver uma relação mais próxima com tais pessoas, casos de coletivos e militâncias desenvolvidas por jovens, em diferentes lugares e conjunturas e também as significações e expressões presentes na(s) Marcha(s) das vadias no Brasil. Objetiva-se investigar, assim, de que forma grupos marginalizados, não valorizados ou subalternizados podem produzir resistências, através dos seus diferentes modos de vida, de suas especificidades e da maneira como se expressam. Para tanto, o presente estudo divide-se em três seções, as quais correspondem aos objetivos específicos da pesquisa.

No primeiro momento, analisa-se, a partir da perspectiva de Michel Foucault, os mecanismos e práticas que permitiram a instauração do poder disciplinar, e, posteriormente, do poder de gerir a população enquanto espécie, isto é, da biopolítica, que acaba por agregar tanto o controle individualizante quanto o controle populacional. Em seguida, faz-se uma incursão nas pesquisas realizadas por Giorgio Agamben sobre o tema da biopolítica, especialmente a partir de sua obra “Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I”, a fim de que se possa agregar elementos importantes para pensar em uma resistência biopolítica - e no porquê fazê-lo. Por fim, explora-se, partindo-se de uma análise teórico-filosófica, perspectivas de resistências nas vivências de moradores de rua e de atuações e práticas desenvolvidos por jovens em diferentes contextos.

Utiliza-se do método de abordagem hipotético-dedutivo, em uma pesquisa do tipo exploratória. Os procedimentos adotados envolvem, além da seleção da bibliografia que forma a base teórica deste estudo, ainda, a leitura e reflexão de pesquisas que se debruçaram a estudar diferentes questões relacionadas aos grupos anteriormente citados, a fim de que se possa verificar se na prática, de fato, a hipótese aqui formulada encontra possibilidades e maneiras de realizar-se.

2 Vida frutuosa

Um dos temas que perpassam a trajetória de pesquisa realizada por Michel Foucault é, como se sabe, a questão do poder, que, conforme Edgardo Castro (2015)CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Tradução de Beatriz de Almeida Magalhães. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., correlaciona-se com o saber e o sujeito, sendo que tais noções permitem a Foucault deslocar-se entre os mais variados temas, desde as primeiras até suas últimas pesquisas. O estudo das relações de poder mostra-se relevante não apenas porque, nessa esteira Foucault, desenvolve suas reflexões sobre a sociedade disciplinar, e, posteriormente, sobre a biopolítica enquanto governo da população, mas, também porque o poder é, para o autor, relacional, ou seja, “onde há poder, há sempre resistência, sendo um co-extensivo [sic] ao outro” (FOUCAULT, 2005aFOUCAULT. Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975 - 1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005a., p. 342). Tal horizonte teórico, assim, deverá perpassar todo o presente estudo.

Conforme explica Peter Pál Pelbart (2016)PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2016., Foucault identificou que, a partir de meados do século XVII, e, em alguns casos, do século XVIII, ocorre uma mudança no regime geral do poder, que, na teoria clássica da soberania, caracterizava-se pelo poder soberano de fazer morrer e deixar viver. O poder de morte torna-se, portanto, apenas um complemento de um poder que, agora, orienta-se em torno da vida, do “fazer viver e deixar morrer”: “poder que se exerce, positivamente, sobre a vida, que empreende sua gestão, sua majoração, sua multiplicação, o exercício, sobre ela, de controles precisos e regulações de conjunto” (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT. Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2005b, Cap. V, p. 125-149., p. 129).

É a razão pela qual a morte passa a ser o momento que o poder não mais alcança, torna-se “o ponto mais secreto da existência, o mais ‘privado’” (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT. Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2005b, Cap. V, p. 125-149., p. 130). Fica para trás, assim, em prol de um poder que agora atua positivamente sobre a vida, a época da morte como espetáculo, tal como Foucault descreve nas primeiras páginas de “Vigiar e Punir”, em que o corpo subjugado, torturado e flagelado de Damiens manifestava justamente o poder absoluto do soberano (PELBART, 2016PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2016.). Tal poder se desenvolve e manifesta em dois polos: a disciplina e a biopolítica, que não são antitéticos, mas interligados, e têm a aptidão de atingir, conforme se verá, todos os âmbitos da vida do indivíduo.

Esses dois polos fazem parte, segundo explica Pelbart (2016)PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2016., de uma estratégia mais ampla, denominada biopoder, que, de acordo com o que Foucault expressa em algumas passagens, teria sua emergência associada à explosão demográfica, industrialização e ao ajuste às necessidades do capitalismo. Assim, o que ocorre é que dispositivos disciplinares e biopolíticos se convertem em técnicas políticas, “necessárias para governar as multiplicidades urbanas e ajustá-las à dinâmica de produção e consumo de uma sociedade industrial e capitalista” (CASTRO, 2015CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Tradução de Beatriz de Almeida Magalhães. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., s/p).

Uma das afirmações de Foucault (2005a, p. 35) a respeito do poder é que ele não é possuído por alguém, não está localizado em algum lugar específico, mas é algo que circula, que “se exerce em rede, e, nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a um poder e também de exercê-lo”. Portanto, “não se deve fazer uma espécie de dedução do poder que partiria do centro e que tentaria ver até onde ele se prolonga por baixo”, mas, pelo contrário, analisá-lo em sua microcapilaridade:

Creio que é preciso examinar o modo como, nos níveis mais baixos, os fenômenos, as técnicas, os procedimentos de poder atuam; mostrar como esses procedimentos, é claro, se deslocam, se estendem, se modificam, mas, sobretudo, como eles são investidos, anexados por fenômenos globais, e como poderes mais gerais ou lucros de economia podem introduzir-se no jogo dessas tecnologias, ao mesmo tempo relativamente autônomas e infinitesimais, de poder (FOUCAULT, 2005aFOUCAULT. Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975 - 1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005a., p. 36).

É a partir desse viés que Foucault, tendo desenvolvido pesquisas sobre diversos temas, como a psiquiatria, a sexualidade, a prisão, dentre outros, expõe o poder disciplinar, que se caracterizou por investir no corpo individual, voltando-se para “seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão das suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade” (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT. Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2005b, Cap. V, p. 125-149., p. 131). Foucault tratou de vislumbrar como uma série de mecanismos de controle e vigilância foram colocados em prática por meio do que chamou de técnicas disciplinares, que acionavam “sistemas de inserção, distribuição, vigilância, observação”, constituindo um verdadeiro “arquipélago carcerário” (FOUCAULT, 2014FOUCAULT. Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014., p. 299). Ou seja, as técnicas disciplinares que podiam ser vislumbradas em toda a sua amplitude dentro das prisões formavam, na verdade, uma relação de continuidade com instituições que se ocupam de todas os âmbitos da vida da pessoa, tais como os órgãos de assistência, orfanato, escola, oficina, hospital, cidade operária, etc. (FOUCAULT, 2014FOUCAULT. Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.).

A partir de meados do século XVIII surge ou intensifica-se uma outra forma de poder que vem agregar-se ao disciplinar: trata-se de uma biopolítica da população, que se ocupa da população enquanto espécie, passando a centrar-se em processos biológicos como natalidade, mortalidade, saúde pública, habitação, etc. O termo biopolítica, assim, designa “o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana” (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT. Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2005b, Cap. V, p. 125-149., p. 134). Ou seja, o poder é exercitado tendo como fim e em base da própria vida, o que implica “fazer da vida objeto de um juízo político de valor tanto para selecioná-la como para melhorá-la” (BAZZICALUPO, 2017BAZZICALUPO, Laura. Biopolítica: um mapa conceitual. Tradução de Luisa Rabolini. São Leopoldo: Unisinos, 2017., p. 35)

Diante disso, a questão que é colocada pelo próprio Foucault (2005b, p. 133) é a respeito das consequências do aparecimento ou da expansão a nível geral desses poderes. A primeira consequência vislumbrada pelo autor é “a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber e do poder”, o que ocorre com o desenvolvimento dos conhecimentos acerca da vida em geral, a partir de meados do século XVIII. Teria passado, portanto, a época dos surtos de morte pela fome e pela peste, e, agora, “os processos da vida são levados em conta por procedimentos de poder e de saber que tentam controlá-los e modificá-los” (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT. Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2005b, Cap. V, p. 125-149., p. 134). Com isso, a consecutiva proliferação de tecnologias políticas que investem sobre o corpo, a saúde, as condições de vida, enfim, em todo o espaço da existência, torna-se um efeito quase que natural a esse desenvolvimento dos conhecimentos humanos sobre a própria vida.

A próxima consequência que ele aponta torna, porém, vislumbrável justamente o ponto em que a biopolítica mostra-se crítica para a vida humana. Trata-se do surgimento de uma “sociedade normalizadora”, “efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida”. Nesse cenário, sobreleva-se a importância da atuação da norma, em contraste com a lei: enquanto essa refere-se ao gládio, em última instância à morte, aquela tem relação com um poder que investe sobre a vida e que, portanto, não poderia centrar-se na morte como seu último expediente. Ao contrário, “um poder dessa natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, mais do que manifestar seu fausto mortífero” (FOUCAULT, 2005bFOUCAULT. Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2005b, Cap. V, p. 125-149., p. 135).

A politização da vida traduz, assim, uma luta: “a luta pela definição da natureza - biológica, viva - do homem, que assume uma função normativa, seletiva, para incluir e excluir aquilo que é digno ou não de vida” (BAZZICALUPO, 2017BAZZICALUPO, Laura. Biopolítica: um mapa conceitual. Tradução de Luisa Rabolini. São Leopoldo: Unisinos, 2017., p. 48). O biopoder precisará, portanto, estabelecer hierarquias sociais, o que fará por meio de cesuras biológicas, a fim de, precisamente, “defender a sociedade”. É o racismo que torna possíveis tais procedimentos, operando o corte entre as raças e permitindo, consequentemente, a eliminação da raça “ruim”, em prol da pureza e vigor da raça “boa” (FOUCAULT, 2005aFOUCAULT. Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975 - 1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005a.). Essa é a faceta tanatopolítica desse poder, ou seja, a política da e sobre a morte (REPO, 2016REPO, Jemima. Thanatopolitics or biopolitics? Diagnosing the racial and sexual politics of the European far-right. Contemporary Political Theory, v. 15, n. 1, p. 80-118, 2016. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/292163353_Thanatopolitics_or_biopolitics_Diagnosing_the_racial_and_sexual_politics_of_the_European_far-right. Acesso em: 20 dez. 2020.
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).

Conforme explica Jemima Repo (2016)REPO, Jemima. Thanatopolitics or biopolitics? Diagnosing the racial and sexual politics of the European far-right. Contemporary Political Theory, v. 15, n. 1, p. 80-118, 2016. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/292163353_Thanatopolitics_or_biopolitics_Diagnosing_the_racial_and_sexual_politics_of_the_European_far-right. Acesso em: 20 dez. 2020.
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, tornou-se comum, no contexto europeu, a apropriação dos estudos de Foucault para tratar da implicação da raça na teoria política a partir do viés da cesura biológica, o que conduz à uma ênfase às análises tanatopolíticas. Segundo a autora, contudo, é necessário retomar o viés do racismo que implica o tornar a vida mais sadia e mais pura (FOUCAULT, 2005aFOUCAULT. Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975 - 1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005a.), pois nesse ponto reside a ligação entre a raça e a sexualidade, que, embora tendo um lugar central nos estudos de Foucault, tem sido negligenciada nesses estudos e tem conduzido até mesmo a uma distorção na compreensão da ascensão dos partidos de extrema direita na Europa. O foco exclusivamente na questão da raça suprime, por exemplo, o fato de as políticas sobre a sexualidade transformarem os corpos “into productive and reproductive machines through processes of regulation, discipline and subjectivation”1 1 Em tradução livre: “em máquinas produtivas e reprodutivas por meio de processos de regulação, disciplina e subjetivação”. (REPO, 2016REPO, Jemima. Thanatopolitics or biopolitics? Diagnosing the racial and sexual politics of the European far-right. Contemporary Political Theory, v. 15, n. 1, p. 80-118, 2016. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/292163353_Thanatopolitics_or_biopolitics_Diagnosing_the_racial_and_sexual_politics_of_the_European_far-right. Acesso em: 20 dez. 2020.
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, p. 112). Veja-se o exemplo das relações homossexuais na Europa que, de acordo com Repo (2016REPO, Jemima. Thanatopolitics or biopolitics? Diagnosing the racial and sexual politics of the European far-right. Contemporary Political Theory, v. 15, n. 1, p. 80-118, 2016. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/292163353_Thanatopolitics_or_biopolitics_Diagnosing_the_racial_and_sexual_politics_of_the_European_far-right. Acesso em: 20 dez. 2020.
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, p. 112), “morphs from being a threat to being the basis for an expanded and diversified family norm that ensures the healthy upbringing of children in a time of increasing divorce rates and declining fertility”2 2 Em tradução livre: “metamorfoseia-se de uma ameaça para tornar-se a base para uma norma expandida e diversificada de família que assegura a educação sadia das crianças em um tempo de aumento das taxas de divórcio e diminuição da fertilidade”. .

No Brasil, André de Macedo Duarte (2017DUARTE, André de Macedo. Reler Foucault à luz de Butler: repensar a Biopolítica e o Dispositivo da Sexualidade. Doispontos, Curitiba, São Carlos, v. 14, n. 1, p. 253-264, abr. 2017. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/56552/34035. Acesso em: 20 dez. 2020.
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, p. 254) sugere algo similar: segundo ele, a sexualidade tornou-se, atualmente, “um vórtice que mobiliza a formação de maiorias conservadoras em diversas instâncias Legislativas nacionais”, o que suscita a centralidade política da sexualidade, concebida por Foucault “como instância privilegiada para investimentos políticos destinados a promover a correção, a eliminação e o incentivo do bom comportamento sexual das populações” (DUARTE, 2017DUARTE, André de Macedo. Reler Foucault à luz de Butler: repensar a Biopolítica e o Dispositivo da Sexualidade. Doispontos, Curitiba, São Carlos, v. 14, n. 1, p. 253-264, abr. 2017. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/56552/34035. Acesso em: 20 dez. 2020.
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, p. 257). Para Duarte, a despeito da importância dos desdobramentos teóricos da noção foucaultiana de biopolítica - alguns dos quais serão analisados no decorrer deste texto -, realizados por autores como Giorgio Agamben, Antonio Negri e Roberto Esposito, essas análises afastaram-se do campo da sexualidade, lugar privilegiado de análise e de produção de discursos, técnicas, subjetividades e resistências.

Por meio da imbricação da biopolítica e das políticas sobre a sexualidade analisadas por Foucault, com as interpretações sobre sexualidade, sexo e gênero realizadas por Judith Butler, Duarte (2017DUARTE, André de Macedo. Reler Foucault à luz de Butler: repensar a Biopolítica e o Dispositivo da Sexualidade. Doispontos, Curitiba, São Carlos, v. 14, n. 1, p. 253-264, abr. 2017. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/56552/34035. Acesso em: 20 dez. 2020.
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, p. 259) assevera que “a sexualidade continua sendo um ponto nevrálgico e de grande saturação normativa para a classificação e partilha hierárquica entre as formas de vida socialmente hegemônicas ou marginais”. Assim, através de um “governo biopolítico de corpos e psiquês” (DUARTE, 2017DUARTE, André de Macedo. Reler Foucault à luz de Butler: repensar a Biopolítica e o Dispositivo da Sexualidade. Doispontos, Curitiba, São Carlos, v. 14, n. 1, p. 253-264, abr. 2017. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/56552/34035. Acesso em: 20 dez. 2020.
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, p. 262), produzem-se normas de comportamento e formas de ser baseados nos significados atribuídos ao corpo e ao sexo. Os corpos aparecerão, com base nessa “normatividade” (que pressupõe uma relação causal de sexo-gênero-desejo-prática sexual), como inteligíveis e aceitáveis, se “conformados à norma”, ou como ininteligíveis e abjetos, quando subvertem os padrões (DUARTE, 2017DUARTE, André de Macedo. Reler Foucault à luz de Butler: repensar a Biopolítica e o Dispositivo da Sexualidade. Doispontos, Curitiba, São Carlos, v. 14, n. 1, p. 253-264, abr. 2017. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/56552/34035. Acesso em: 20 dez. 2020.
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).

Além desses fatores, outros vêm somar-se às tecnologias de controle analisadas por Foucault desde o século XVIII. Castor Bartolomé Ruiz (2015RUIZ, Castor Bartolomé. A filosofia como forma de vida (II). Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia). Revista IHU On-Line, São Leopoldo, v. 466, p. 27-32, 01 jun. 2015. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao466.pdf. Acesso em: 06 jan. 2020.
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, p. 11) explica que “a maquinaria biopolítica normatiza as subjetividades produzindo sociedades de massa e a massificação como elemento manipulável pelos dispositivos midiáticos, entre outros”, e, nesse sentido, “pretende produzir uma imanência absoluta da vida na racionalidade utilitária capturando todas as formas de vida e qualquer habilidade vital na lógica funcional mercantil, produtiva, lucrativa, entre outras”. Tal análise vai ao encontro da leitura feita por Antonio Negri e Michael Hardt, na obra denominada “Império”, na qual realizam um diagnóstico do momento presente vislumbrando que se encontram em curso processos de dominação e assujeitamento cuja característica primordial é que não são impostos por algum poder maior, em uma verticalidade, mas são interiorizados e reproduzidos individualmente (PELBART, 2016PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2016.). Daí toda a potência desse regime de poder.

Pensar na posição em que a vida é colocada, em qual é o seu valor, a partir dessa lógica, conduz a inferir que, de fato, o que está em jogo é uma vida biológica, uma “vida nua”: poder-se-ia dizer, utilizando-se dos conceitos de Giorgio Agamben, que essa lógica reduz as “formas de vida” ao “fato da vida”. É esse sentido que será explorado a seguir.

3 Vidas à margem, vidas em campo

O conceito de vida nua é discutido por Agamben em sua obra “Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I”, e diz respeito à vida tomada pelo poder em sua modalidade biológica. Sua compreensão pode se dar a partir da explicação de Agamben a respeito da definição de “vida” para os gregos, que não possuíam um, mas dois termos para traduzi-la: “zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens e deuses), e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo” (AGAMBEN, 2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p. 9). A questão problemática, aqui, é que há uma politização da zoé¸ uma tomada da vida biológica, desta “vida nua”, pelo poder, o que seria impensável no mundo clássico, já que a vida natural ficava excluída da pólis e mantida no âmbito do oîkos.

É válido ressaltar, porém, que o conceito de vida nua concerne, precisamente, a um contexto biopolítico: trata-se de um produto da maquinaria biopolítica. Diferentemente de Foucault, para quem a biopolítica desponta quando há uma modificação no poder soberano, para Agamben, há uma íntima relação justamente entre esse e a vida nua, na medida em que ela é o fundamento oculto da soberania, está desde o início vinculada ao poder soberano em uma relação de inclusão exclusiva. (PELBART, 2016PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2016.).

Tal relação é contida na figura do homo sacer, oriunda do direito romano arcaico, o qual carrega consigo o jugo do poder soberano. O homem sacro era aquele que, tendo sido julgado por ter cometido algum delito, não poderia mais ser sacrificado - cabe notar que, na época, existiam ritos em que vítimas eram sacrificadas como forma de purificação, por exemplo -, mas, por outro lado, poderia ser morto por qualquer pessoa, impunemente. A grande questão impregnada nessa figura reside no fato de que o homo sacer encontra-se tanto excluído do direito humano, quanto do direito divino: é aprisionado em uma zona de indiscernibilidade, submetido a uma dupla exceção (AGAMBEN, 2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.).

Falou-se da relação de continuidade que há, em Agamben, entre a vida nua e o poder soberano: trata-se da simetria existente entre o homo sacer, portador por excelência da vida nua, e o poder soberano. Agamben (2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p. 23) assim afirma a partir da exposição do paradoxo da soberania, que consiste no fato de que “o soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico”. O autor chega a essa constatação com base na obra de Carl Schmitt, para quem o soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção, o que o coloca em uma situação paradoxal de, tendo o poder de suspender a validade da lei, colocar-se legalmente fora dela. O que caracteriza a exceção “é que aquilo que está excluído não está, por causa disso, absolutamente fora de relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma de suspensão” (AGAMBEN, 2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p. 25). Com isso,

a situação, que vem a ser criada na exceção, possui, portanto, este particular, o de não poder ser definida nem como uma situação de fato, nem como uma situação de direito, mas institui entre estas um paradoxal limiar de indiferença (AGAMBEN, 2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p. 26).

Torna-se possível, agora, compreender a simetria vislumbrada por Agamben entre poder soberano e homo sacer, eis que se localizam nos dois limites extremos do ordenamento, “têm a mesma estrutura e são correlatas, no sentido de que o soberano é aquele em relação ao qual todos os homens são potencialmente homines sacri e homo sacer é aquele em relação ao qual todos os homens agem como soberanos” (AGAMBEN, 2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p. 92). A questão primordial, que se quer destacar neste estudo, trata-se, contudo, de como a figura do homo sacer, que carrega em si as características da matabilidade e insacrificabilidade, funciona na atualidade.

Na já citada obra “Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I”, Agamben procura descobrir a origem do caráter sagrado da vida que, hoje, é tido como natural e praticamente inquestionável. Ocorre que, na Antiguidade, tal caráter não estava presente na definição de vida, que se tornava sagrada apenas “através de uma série de rituais, cujo objetivo era justamente o de separá-la do seu contexto profano” (AGAMBEN, 2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p. 74). Nessa lógica, a sacralidade da vida, que se quer invocar contra o arbítrio do poder soberano, contém uma espécie de armadilha, pois a vida sacra do homo sacer - vida matável e insacrificável - remete, justamente, à sujeição a um poder de morte: não aquela que é feita para os deuses, em consagração a eles, mas aquela morte profana, realizada por qualquer pessoa, naquela zona obscura por onde se move o homem sacro (AGAMBEN, 2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.; PELBART, 2016PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2016.).

Ademais, o que Agamben observa é que, atualmente, há uma emancipação total da ideia de sacralidade da vida daquela ideologia sacrificial conhecida nas sociedades que se utilizavam dessas práticas, e, assim, as mortes se dão exatamente dessa maneira profana: poder-se-ia dizer que se tornam, ao final, apenas um índice, um número.

O significado do termo sacro na nossa cultura dá continuidade à história semântica do homo sacer e não à do sacrifício [...]. O que temos hoje diante dos olhos é, de fato, uma vida exposta como tal a uma violência sem precedentes, mas precisamente nas formas mais profanas e banais (AGAMBEN, 2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p. 121).

Outro ponto a ser considerado diz respeito à inscrição cada vez maior da vida nos dispositivos do poder soberano, a partir justamente das conquistas democráticas. Agamben (2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p. 17) sustenta que a aporia da democracia moderna “consiste em querer colocar em jogo a liberdade e felicidade dos homens” no próprio ponto em que ocorre a sua submissão - ou seja, na vida nua. Isso ocorre, por exemplo, cada vez que se conquistam liberdades e direitos - à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade -, eis que, nesse processo que se dá com o aspecto de resistência ao poder, o que acontece é, na verdade, “uma tácita, porém crescente inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e mais temível instância ao poder soberano do qual desejariam liberar-se” (AGAMBEN, 2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p. 127).

É nesse sentido que vem à tona a discussão suscitada por Hannah Arendt, retomada por Agamben, no sentido de que se questione a eficácia das declarações de direitos. O que os autores assinalam, tomando por referência a figura do refugiado, é que os direitos humanos falharam todas as vezes em que foram chamados a agir para proteger pessoas unicamente com base em sua condição de seres humanos, apenas funcionando quando vinculados a um Estado-nação: “no sistema do Estado-nação, os assim chamados direitos sagrados e inalienáveis do homem mostram-se desprovidos de toda tutela no momento em que não é mais possível configurá-los como direitos dos cidadãos de um Estado” (AGAMBEN, 2015AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., p. 27). Daí a advertência para que se encarem os direitos do homem em sua “função real no Estado moderno”: eles “representam, de fato, antes de tudo, a figura originária da inscrição da vida nua natural na ordem jurídico-política do Estado-nação” (AGAMBEN, 2015AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., p. 28).

Agamben é, como se pode perceber, leitor de Arendt e de Foucault, e acaba por conectar suas pesquisas exatamente no ponto que entende ter ficado uma zona obscura em seus trabalhos, quase como se pudessem se complementar: trata-se da conexão existente entre a biopolítica e os estados totalitários instituídos no século passado, e, também, da tese da íntima solidariedade existente, no plano histórico-filosófico, entre democracia e totalitarismo, na medida em que ambos apoiam-se em um mesmo conceito de vida, qual seja, a vida nua. O que ocorre é que o nazismo, por exemplo, foi o estado biopolítico por excelência, que avocou como atividade política a tomada de decisões sobre a vida natural, realizando a total indistinção entre vida natural e vida politicamente qualificada (AGAMBEN, 2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.; PELBART, 2016PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2016.).

A partir da incursão que realiza na política do nacional socialismo, Agamben (2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p. 187) chega àquela que é uma das conclusões do seu livro “Homo sacer”, que ele enuncia da seguinte forma: “o campo [...] é hoje o paradigma biopolítico do Ocidente”. Não é de surpreender que tal afirmação produza certa estranheza, já que se costuma pensar nos campos de concentração como um acontecimento absolutamente terrível mas seguramente confinado no passado e, portanto, que jamais poderia vir a repetir-se. Porém, é exatamente esse o ponto captado pelo autor, para afirmar que não se trata de questionar como foi possível cometer crimes tão terríveis contra seres humanos, mas, “indagar atentamente quais procedimentos jurídicos e quais dispositivos políticos permitiram que seres humanos fossem tão integralmente privados de seus direitos e de suas prerrogativas, até o ponto em que cometer contra eles qualquer ato não mais se apresentasse como delito” (AGAMBEN, 2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p. 178).

Portanto, só seria possível “compreender” os campos de concentração através da perspectiva segundo a qual, lá, a exceção é realizada de forma estável; lá, “tudo é possível”, eis que a lei é integralmente suspendida. Seus habitantes foram integralmente reduzidos à vida nua, pois despidos de todo seu estatuto político. Conforme explica o autor (2002), os campos surgiram justamente em uma época em que foram criadas leis sobre a desnacionalização de cidadãos, não apenas no curso do Terceiro Reich, pelas leis de Nuremberg, mas também em quase todos os estados Europeus entre 1915 e 1933.

Esta seria a representação do campo: “a materialização do estado de exceção e na consequente criação de um espaço em que a vida nua e a norma entram em um limiar de indistinção”. Sendo assim, Agamben (2002AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002., p. 181) entrevê a possibilidade de

nos encontrarmos virtualmente na presença de um campo toda vez que é criada uma tal estrutura, independentemente da natureza dos crimes que aí são cometidos e qualquer que seja a sua denominação ou topografia específica.

Segundo o autor (2002, p. 181), há, na atualidade, momentos em que são criadas situações tais em que o cometimento ou não de atrocidades depende não do direito, “mas somente da civilidade e do senso ético da polícia que age provisoriamente como soberana”, citando, como exemplo, casos em que estrangeiros que pedem o reconhecimento de refugiados podem ficar quatro dias retidos na zone d’attente de aeroportos internacionais franceses, antes da intervenção da autoridade judiciária.

É importante registrar, com isso, que a tese de Agamben de que o campo é o paradigma biopolítico moderno inclui todos como virtualmente homines sacri, portanto, vidas nuas. Contudo, visível é que, na prática, certos grupos sociais são mais passíveis de consideração enquanto mera “vida nua” que outros, na medida em que estão imediatamente expostos a inúmeros tipos de violências e demandas de como uma vida “deve ser”, de como ela deve existir e ser vivida: pode-se tomar como exemplo as condições de vida dos presos brasileiros, dos imigrantes não apenas no Brasil, mas em diversos lugares do mundo, dentre muitos outros casos. Trata-se de como diferentes vidas atendem à expectativa de realizar sua utilidade: conforme Márcia Junges (2014JUNGES, Márcia. A forma-de-vida e a política que vem, em Giorgio Agamben. Controvérsia, São Leopoldo, v. 10, n. 1, p. 12-19, jan.-abr. 2014. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/controversia/article/view/10058/4744. Acesso em: 30 dez. 2019.
http://revistas.unisinos.br/index.php/co...
, p. 13), “é preciso que tudo seja perpassado pelo critério utilitário, pois as coisas, as atividades e até as pessoas devem ‘servir’ para alguma coisa”. Por tais razões, é necessário pensar em maneiras que poderiam viabilizar uma libertação desse “poder total”, tópico que será abordado a seguir.

4 Vida enquanto resistência

Conforme se observou nas seções anteriores, a biopolítica que está em curso capta a vida e a envolve quase que integralmente em seus mecanismos. Cabe buscar, então, possíveis formas de libertação desses grilhões, e, nesse sentido, diversos autores fornecem perspectivas de resistências possíveis: além de Foucault e Agamben, também se ocupam do tema pensadores como Antonio Negri e Michael Hardt. Assim, visa-se a analisar perspectivas de resistência para além de sua perspectiva teórico-filosófica: busca-se também verificar como, na prática, certas pessoas parecem subverter, ao menos em parte, essa lógica e exercer sua resistência a partir das suas próprias vidas, indo em direção à criação de uma “forma-de-vida”.

O termo forma-de-vida é utilizado por Agamben (2015)AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. para definir uma vida que não pode ser separada de sua forma, ou seja, uma vida sobre a qual não se poderia operar a cisão biopolítica que separa algo como uma vida nua. Ruiz (2015RUIZ, Castor Bartolomé. A filosofia como forma de vida IV. A regra da vida (regula vitae), fuga e resistência ao controle social. Revista IHU On-Line, São Leopoldo, v. 468, p. 10-18, 29 jun. 2015. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao468.pdf. Acesso em: 06 jan. 2020.
http://www.ihuonline.unisinos.br/media/p...
, p. 27) elabora explicação muito clara acerca do tema a partir da filosofia antiga (meados do século V a.C). Segundo o autor, um dos objetivos da filosofia era ajudar os sujeitos a criar uma forma de vida, “um modo de existência além das meras determinações da natureza biológica”. Tal tarefa era atravessada por processos éticos como o cuidado de si e o domínio de si, os quais foram abordados especialmente por Foucault. Ruiz (2015RUIZ, Castor Bartolomé. A filosofia como forma de vida (II). Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia). Revista IHU On-Line, São Leopoldo, v. 466, p. 27-32, 01 jun. 2015. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao466.pdf. Acesso em: 06 jan. 2020.
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, p. 28) destaca que tanto Foucault quanto Agamben debruçaram-se sobre o tema da filosofia como forma-de-vida em virtude de perceberem nesta “potência da filosofia uma possibilidade de constituição da autonomia efetiva dos sujeitos e, como consequência, uma prática que possibilite resistir aos dispositivos biopolíticos de sujeição e controle que dominam nossas sociedades”.

Foucault desenvolve seus estudos sobre este tema já na última fase de suas pesquisas, nas quais se volta especialmente para processos de subjetivação e nota que, na Antiguidade, cultivava-se uma série de “práticas de si”, ou seja, um conjunto de práticas desenvolvidas pelo indivíduo voltadas à modificação do seu próprio ser. Buscava-se, com isso, desenvolver uma “estética da existência”, a constituição de um código moral a partir não de um código pré-estabelecido, mas sim a partir da autocrítica, do trabalho de si realizado individualmente, criativamente, por cada um, “com a finalidade de elaborar sua própria vida como uma obra de arte, um estilo, o qual manifestasse os raros e desejados atributos de uma bela existência: justiça, coragem, temperança e prudência” (NALDINHO, CARDOSO JR., 2012NALDINHO, Thiago Canonenco; CARDOSO JR., Hélio Rebello. A filosofia como modo de vida em Foucault. Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 26, n. 51, p. 185-206, jan/jun. 2012. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/8201/9695. Acesso em: 20 jan. 2020.
http://www.seer.ufu.br/index.php/Educaca...
, p. 187).

Para tanto, ou seja, para desenvolver esse cuidado de si (epiméleia heautoû), seria necessário primeiramente desenvolver a capacidade de domínio de si (enkrateia), o que significa aprender a exercitar a liberdade, pois essa, para os gregos, não era algo natural, mas devia ser aprendida. A prática da liberdade relacionava-se não apenas com fatos externos, mas também internos: além de aprender a não ser escravo de si, devia-se aprender também a não sê-lo das influências sociais. Apenas a partir do exercício dessa virtude é que se poderia atingir o governo de si, que habilita o sujeito a desenvolver livremente sua autonomia e decidir por seu modo de vida, moldar a estética de sua existência. Ademais, na medida em que se desenvolve uma forma-de-vida, que se busca uma estética da existência, trata-se não apenas de uma ação individual, mas também política. Foucault trabalhou, inclusive, com a noção de governo de si “e dos outros”, tomando como base a filosofia de Platão, no sentido de que só poderia governar a pólis quem tivesse aprendido a governar a si mesmo (RUIZ, 2015RUIZ, Castor Bartolomé. A filosofia como forma de vida (II). Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia). Revista IHU On-Line, São Leopoldo, v. 466, p. 27-32, 01 jun. 2015. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao466.pdf. Acesso em: 06 jan. 2020.
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).

No contexto atual, ademais da complexidade intrínseca a uma prática nesse sentido, deve-se ainda considerar que existe uma “ampla gama de dispositivos que estimulam determinadas condutas e formatam comportamentos”, produzindo “subjetividades flexibilizadas”, facilmente influenciáveis, e, a despeito do discurso da grande liberdade existente, ela é “efetivamente corroída pelos dispositivos biopolíticos de sujeição e controle”, características já percebidas por Foucault, quando de suas pesquisas sobre o tema (RUIZ, 2015RUIZ, Castor Bartolomé. A filosofia como forma de vida (II). Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia). Revista IHU On-Line, São Leopoldo, v. 466, p. 27-32, 01 jun. 2015. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao466.pdf. Acesso em: 06 jan. 2020.
http://www.ihuonline.unisinos.br/media/p...
, p. 31). Sendo assim, uma prática possível do cuidado de si deve buscar o exercício da liberdade e autonomia dentro do contexto em que se vive, ou seja, não se trata de atingir uma autonomia absoluta ou uma liberdade ideal, mas, sim, entender que elas podem se ampliar ou encolher-se. Nas palavras de Ruiz (2015RUIZ, Castor Bartolomé. A filosofia como forma de vida (II). Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia). Revista IHU On-Line, São Leopoldo, v. 466, p. 27-32, 01 jun. 2015. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao466.pdf. Acesso em: 06 jan. 2020.
http://www.ihuonline.unisinos.br/media/p...
, p. 31): “o que está em questão é a possibilidade de criar a própria vida de modo crítico e com poder de si (enkrateia), resistindo à tendência hegemônica de corrosão da capacidade de autonomia efetiva”.

A investigação de Agamben que se voltou à filosofia para ver nela uma possibilidade de emancipação do sujeito pode ser considerada uma continuação dos trabalhos iniciados por Foucault, embora o autor introduza modificações e explore, naturalmente, outros temas, estabelecendo, inclusive, novos paradigmas para análise. O autor analisa, por exemplo, o possível desenvolvimento de uma forma-de-vida em experiências do monasticismo cristão, adentrando na relação entre regra e vida, que fugia radicalmente do campo jurídico, eis que o que era colocado em questão não era o cumprimento da regra em determinados atos, mas, sim, o próprio modo de viver, regra e vida confundindo-se inteiramente (AGAMBEN, 2014AGAMBEN, Giorgio. Altíssima pobreza. Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2014.). O conjunto de suas pesquisas realizadas nesse âmbito deixa de ser aqui analisado, em virtude de sua extensão e da profundidade que requer, todavia, importa considerar que a forma-de-vida, para o autor, situa-se “não na perspectiva da captura da vida nos dispositivos da lei, mas na de uma vida que se subtrai ou, ao menos, busca subtrair-se a todo direito" (CASTRO, 2016CASTRO, Edgardo. Introdução a Giorgio Agamben: uma arqueologia da potência. Tradução de Beatriz de Almeida Magalhães. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016., p. 195). Conforme explica o próprio Agamben (2006AGAMBEN, Giorgio. Entrevista com Giorgio Agamben. [Entrevista concedida a] Flavia Costa. Revista do Departamento de Psicologia - UFF, [s.l.], v. 18, n.1, jan./jun. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rdpsi/v18n1/a11v18n1.pdf. Acesso em: 21 jan. 2020.
http://www.scielo.br/pdf/rdpsi/v18n1/a11...
, p. 131), em entrevista, sua tentativa é no sentido de “capturar a outra face da vida nua, uma possível transformação biopolítica em uma nova política”.

Sobrevém que, na prática, pensar em inventar - precisamente naquele sentido estético, artístico, trabalhado por Foucault - uma forma-de-vida é uma ideia um tanto enigmática. A pesquisa intitulada “A rua e a sociedade: articulações políticas, socialidade e a luta por reconhecimento da população em situação de rua”, de autoria de Tomás Henrique de Azevedo Gomes Melo (2011)MELO, Tomás Henrique de Azevedo Gomes. A rua e a sociedade: articulações políticas, socialidade e a luta por reconhecimento da população em situação de rua. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2011, 194 p. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011. Disponível em: http://www.humanas.ufpr.br/portal/ppga/files/2012/04/A-Rua-e-a-Sociedade-Melo-Completa2.pdf. Acesso em: 02 jan. 2020.
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, contudo, mostrou-se ser um daqueles trabalhos com potencial de iluminar um aspecto que até então não se havia vislumbrado: o fato de que moradores de rua, inseridos em uma situação tão peculiar que envolve inúmeras perdas e sofrimentos, são capazes de criar, recriar-se, encontrar uma existência possível, revelando que “aquilo que parecia submetido, subsumido, controlado, dominado, isto é, a vida, revela num processo mesmo de expropriação a sua positividade indomável e primeira” (PELBART, 2015PELBART, Peter Pál. Políticas da vida, produção do comum e a vida em jogo... Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, supl. 1, p. 19-26, jun. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902015000500019&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 06 jan. 2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 21).

Mencionada pesquisa é fruto de um amplo convívio do autor com a população de rua especialmente na cidade de Curitiba-PR, o que possibilitou que ele adentrasse de fato nas peculiaridades e regras do viver na rua. Não se ignora que a grande maioria dos moradores que estão nessa situação passou por inúmeros e doloridos “processos de ruptura” (MELO, 2011MELO, Tomás Henrique de Azevedo Gomes. A rua e a sociedade: articulações políticas, socialidade e a luta por reconhecimento da população em situação de rua. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2011, 194 p. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011. Disponível em: http://www.humanas.ufpr.br/portal/ppga/files/2012/04/A-Rua-e-a-Sociedade-Melo-Completa2.pdf. Acesso em: 02 jan. 2020.
http://www.humanas.ufpr.br/portal/ppga/f...
, p. 37), relacionados com família, cônjuges, emprego, moradia, consumo de drogas, até o momento em que passam definitivamente a ter a rua como “casa”. Contudo, o que atrai a atenção e interessa especialmente a este estudo é a forma como os moradores de rua administram suas vidas e criam uma lógica própria, que envolve desde as suas relações afetivas e de partilha com os demais, até a obtenção de alguma renda e mesmo a forma como lidam com essa renda, e, com isso, desafiam uma lógica utilitarista da vida: resistem, pelo simples fato de viver - o desconforto causado em situações nas quais os moradores de rua entram ou tentam entrar em contato “com a sociedade”, descrito diversas vezes por Melo (2011)MELO, Tomás Henrique de Azevedo Gomes. A rua e a sociedade: articulações políticas, socialidade e a luta por reconhecimento da população em situação de rua. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2011, 194 p. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011. Disponível em: http://www.humanas.ufpr.br/portal/ppga/files/2012/04/A-Rua-e-a-Sociedade-Melo-Completa2.pdf. Acesso em: 02 jan. 2020.
http://www.humanas.ufpr.br/portal/ppga/f...
, o demonstra.

Assim, o autor (2011, p. 61) descreve inúmeras práticas, tais como o mangueio, que consiste na utilização de uma série de “possibilidades de ações para conseguir recursos, seja em forma de dinheiro, alimentação, roupa ou demais objetos, serviços e acessos”. Sua principal característica é a diferença da ideia de mendicância, pois, no mangueio, os sujeitos assumem um posicionamento ativo, de conversa com seus interlocutores, em que contam histórias, o que estão tentando realizar e mesmo criam uma narrativa a seu favor, a partir de uma expertise que desenvolvem em reconhecer valores e o que poderá ter mais sucesso no convencimento do seu interlocutor. Em um ambiente em que normalmente estão em grupo, também é extremamente importante que todos contribuam com algo e não apenas usufruam dos bens conseguidos pelos demais, sob pena de aquele que assim agir ser considerado um parasita ou chupim. Existe, portanto, uma espécie de acordo tácito de que quem consegue obter algo, como comida, bebida, cigarros, deve compartilhar com seus “irmãos”, tendo em vista a escassez a que todos estão submetidos (MELO, 2011MELO, Tomás Henrique de Azevedo Gomes. A rua e a sociedade: articulações políticas, socialidade e a luta por reconhecimento da população em situação de rua. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2011, 194 p. Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011. Disponível em: http://www.humanas.ufpr.br/portal/ppga/files/2012/04/A-Rua-e-a-Sociedade-Melo-Completa2.pdf. Acesso em: 02 jan. 2020.
http://www.humanas.ufpr.br/portal/ppga/f...
).

Observar esse aspecto criativo, essa força, ou, nas palavras de Marielle Macé (2018MACÉ, Marielle. Siderar, considerar: migrantes, formas de vida. Tradução de Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018., p. 31): essas “existências vividas, em sua aventura, sua concretude, seu cotidiano, sua intimidade psíquica”, revela justamente uma faceta da vida que é capaz de não só render-se, submeter-se a um poder em tudo impregnado, ou apenas reproduzi-lo, mas, pelo contrário, demonstrar-se maior, mais forte e criativa. Pelbart (2015PELBART, Peter Pál. Políticas da vida, produção do comum e a vida em jogo... Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, supl. 1, p. 19-26, jun. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902015000500019&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 06 jan. 2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; 2016) descreve uma inversão do conceito de biopolítica realizada por teóricos italianos, incluindo Antonio Negri, que passa a definir a vida não apenas a partir de seus processos biológicos, e, descolando-se dessa acepção, capta a biopolítica como potência da vida, no seguinte movimento: “ao poder sobre a vida, biopoder, responde a potência da vida, biopotência” (PELBART, 2015PELBART, Peter Pál. Políticas da vida, produção do comum e a vida em jogo... Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, supl. 1, p. 19-26, jun. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902015000500019&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 06 jan. 2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 21).

Essa ideia vai ao encontro daquela desenvolvida por Hardt e Negri (2005HARDT, Michal; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império. São Paulo: Record, 2005., p. 139) na obra “Multidão: guerra e democracia na era do Império”, na qual sustentam justamente que é a “multidão” o sujeito capaz da “ação política voltada para a transformação e a libertação”. Para uma explicação do conceito, os autores partem do contraste com o conceito de povo: enquanto esse é uno, sintetiza ou reduz as diferenças sociais a uma identidade, a multidão “não é unificada, mantendo-se plural e múltipla [...] é composta por um conjunto de singularidades” (HARDT E NEGRI, 2005HARDT, Michal; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império. São Paulo: Record, 2005., p. 139, grifo dos autores). Assim, sendo heterogênea, plural, “desprovida de centro, de líder, de hierarquia” (PELBART, 2015PELBART, Peter Pál. Políticas da vida, produção do comum e a vida em jogo... Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, supl. 1, p. 19-26, jun. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902015000500019&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 06 jan. 2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 23), a multidão desafia até mesmo a ideia de soberania, na medida em que, não se baseando na ideia de unidade, não exige - até mesmo não admite - a designação de um representante, seja um soberano ou um partido (HARDT E NEGRI, 2005HARDT, Michal; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império. São Paulo: Record, 2005.). A multidão é, inclusive, conforme explica Pelbart (2015)PELBART, Peter Pál. Políticas da vida, produção do comum e a vida em jogo... Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, supl. 1, p. 19-26, jun. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902015000500019&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 06 jan. 2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, desprovida de uma direção unívoca, e disso resulta até mesmo a fuga e a contrariedade em relação a certas instituições que tentam falar em nome de todos, em nome de uma suposta unidade.

Todas essas acepções, deve-se notar, não apenas a ideia da multidão, como também a da biopotência, da filosofia como forma de vida em Agamben e Foucault, envolvem uma faceta de resistência que é não apenas individual, mas também coletiva e extremamente política. E, nesse sentido, alguns acontecimentos podem ser tomados como exemplo: pessoas que, das mais variadas formas, por meio de atividades culturais, militância, suas falas, seus corpos, seus modos de viver, mesmo rechaçando as formas tradicionais de fazer política, na verdade o fazem, exercendo uma crítica extremamente importante às questões que lhes são contemporâneas.

Um exemplo disso pode ser vislumbrado no estudo denominado “Los Tambores No Callan: Candombe y nuevos ethos militantes en el espacio público de la ciudad de Buenos Aires”, no qual a pesquisadora Eva Lamborghini (2017)LAMBORGHINI, Eva. Los Tambores No Callan: Candombe y nuevos ethos militantes en el espacio público de la ciudad de Buenos Aires. Runa, archivo para las ciencias del hombre, [s.l.], v. 38, n. 1, p. 111-129, 17 ago. 2017. Disponível em: http://revistascientificas.filo.uba.ar/index.php/runa/article/view/2625. Acesso em: 20 jan. 2020.
http://revistascientificas.filo.uba.ar/i...
demonstra como o grupo assim mesmo denominado, Los Tambores No Callan (LTNC) exercem, por meio da arte que é o candombe afro-uruguaio, uma intensa militância política que une a arte ao protesto, a expressão através da música e da dança à luta social. O grupo, que tem uma das características importantes seu aspecto de movimento, na medida em que se arma e desarma em cada oportunidade - qualquer pessoa pode integrá-lo, e, assim, a cada encontro, sua composição pode ser diferente -, caracteriza-se por uma proposta de aliar a arte com a necessidade de tematizar e visibilizar diversos assuntos, especialmente aqueles concernentes aos grupos historicamente marginalizados, e, assim,

su propuesta nos dirige a un terreno creado más allá del candombe en tanto que, si bien las acciones de LTNC consisten en ejecutar esta música, los tambores se tocan y los cuerpos se mueven (movilizan) “para otra cosa” - como señaló uno de sus participantes - que excede lo recreativo, lo lúdico o la pertenencia conjunta, y cuyas razones se imprimen, en cada ocasión, por distintas causas sociales siendo las causas sociales las que imprimen razones en cada ocasión (LAMBORGUINI, 2017, p. 115)3 3 Em tradução livre: “sua proposta nos dirige a um terreno criado para além do candombe, na medida em que, embora as ações de LTNC consistam em executar esta música, os tambores se tocam e os corpos se movem (mobilizam) para “outra coisa” - como referiu um de seus participantes - que excede o recreativo, o lúdico ou a pertença conjunta, e cujas razões se imprimem, em cada ocasião, por distintas causas sociais, sendo essas as que imprimem razões em cada ocasião”. .

Ademais de suas performances andantes, fluidas, o LTNC ainda se caracteriza em suas relações e organização pelo princípio da horizontalidade. Trata-se de um modo de organização alternativa no qual não existe uma pessoa que seja diretora, sendo que todas as decisões são tomadas coletivamente. Assim, cada candombero, tendo recebido um convite ou tendo interesse em participar de determinada marcha, festival ou manifestação, difunde a possibilidade a outros candombeiros, e, com isso, “se promueve el valor de lo abierto y no jerárquico/verticalista y se propicia que cualquier persona convoque y ‘tome la palabra’”4 4 Em tradução livre: “se promove o valor do aberto e não hierárquico/vertical e se propicia que qualquer pessoa convoque e ‘tome a palavra’”. (LAMBORGHINI, 2017LAMBORGHINI, Eva. Los Tambores No Callan: Candombe y nuevos ethos militantes en el espacio público de la ciudad de Buenos Aires. Runa, archivo para las ciencias del hombre, [s.l.], v. 38, n. 1, p. 111-129, 17 ago. 2017. Disponível em: http://revistascientificas.filo.uba.ar/index.php/runa/article/view/2625. Acesso em: 20 jan. 2020.
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, p. 117).

Um movimento significativo para se pensar em atos subversivos a partir do corpo e da linguagem é a Marcha das vadias, surgida em Toronto, Canadá, em 2011, como “SlutWalk”, e que rapidamente se espraiou para diversas cidades do mundo, sendo que a primeira marcha realizada no Brasil ocorreu em São Paulo, ainda em 2011 (GOMES; SORJ, 2014GOMES, Carla; SORJ, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 29, n. 2, p. 433-447, maio/ago. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/se/v29n2/07.pdf. Acesso em: 21 dez. 2020.
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). Sua origem deve-se a um discurso realizado por um policial, na Universidade de Toronto, no qual afirmou que as mulheres não deveriam vestir-se como sluts (traduzido para o português como “vadias”) caso não quisessem ser estupradas, o que resultou em uma grande marcha pela não culpabilização das mulheres vítimas de violência sexual (BOENAVIDES, 2019BOENAVIDES, Débora Luciene Porto. Ressignificar e resistir: a Marcha das Vadias e a apropriação da denominação opressora. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 2, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ref/v27n2/1806-9584-ref-27-02-e48405.pdf. Acesso em: 22 dez. 2020.
https://www.scielo.br/pdf/ref/v27n2/1806...
). Destaca-se o lugar ocupado pelo corpo, nas marchas, que possui um duplo papel: tanto de reivindicação, ou seja, pela autonomia das mulheres sobre seus corpos, como de instrumento de protesto. “É um corpo-bandeira” (GOMES; SORJ, 2014GOMES, Carla; SORJ, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 29, n. 2, p. 433-447, maio/ago. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/se/v29n2/07.pdf. Acesso em: 21 dez. 2020.
https://www.scielo.br/pdf/se/v29n2/07.pd...
, p. 437), que se torna um lugar para a provocação, para o questionamento nas normas de gênero e para problematizar “as regras de apresentação do corpo feminino no espaço público” (GOMES; SORJ, 2014GOMES, Carla; SORJ, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 29, n. 2, p. 433-447, maio/ago. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/se/v29n2/07.pdf. Acesso em: 21 dez. 2020.
https://www.scielo.br/pdf/se/v29n2/07.pd...
, p. 438). A denominação do movimento também pode ser vista, como o é por algumas correntes feministas, como um ato subversivo, a partir da ressignificação o termo “vadia” de uma forma positiva, para conotar “empoderamento”, liberdade5 5 Apesar disso, a escolha do uso do termo não é livre de críticas. Débora Boenavides (2016), por exemplo, entende que a ressignificação do termo abrange apenas a sua acepção machista, sendo que, no Brasil, ele é também impregnado por valores racistas - pois era utilizado para designar pessoas escravizadas que se negavam a trabalhos forçados - e classistas - para indicar tanto prostitutas quanto trabalhadores sem ofício e sem renda. .

Deve-se mencionar, contudo, que apesar de seu caráter inclusivo, com a participação, por exemplo, de mulheres transexuais - segundo Gomes e Sorj (2014)GOMES, Carla; SORJ, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 29, n. 2, p. 433-447, maio/ago. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/se/v29n2/07.pdf. Acesso em: 21 dez. 2020.
https://www.scielo.br/pdf/se/v29n2/07.pd...
, a marcha carioca auto intitula-se marcha “transfeminista” - pesquisas apontaram que as organizadoras e participantes da marcha no Rio de Janeiro, nos anos de 2011 e 2012, eram em sua maioria mulheres brancas, jovens e com nível educacional universitário. Isso reflete, por exemplo, as disputas e tensões entre os diferentes movimentos feministas: movimentos de mulheres negras, por exemplo, entendem que esses eventos não conseguem incorporar as suas lutas e especificidades (GOMES; SORJ, 2014GOMES, Carla; SORJ, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 29, n. 2, p. 433-447, maio/ago. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/se/v29n2/07.pdf. Acesso em: 21 dez. 2020.
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). Essa consideração é importante para que se note como as opressões, as resistências, as práticas subversivas e as práticas reprodutoras de violências são, por vezes, faces da mesma moeda: são os poderes operando de forma imanente, “não mais de fora nem de cima, mas como que por dentro” (PELBART, 2015PELBART, Peter Pál. Políticas da vida, produção do comum e a vida em jogo... Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, supl. 1, p. 19-26, jun. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902015000500019&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 06 jan. 2020.
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, p. 21).

Em outro estudo, denominado “Subjetividades juveniles: esbozos de resistencia ante la sociedad disciplinaria y la sociedad de control”, levado a cabo em uma escola de Bogotá, na Colômbia, a autora Carolina Roatta Acevedo (2007)ACEVEDO, Carolina Roatta. Subjetividades juveniles: esbozos de resistencia ante la sociedad disciplinaria y la sociedad de control. Universitas Humanística, Bogotá, n. 63, p. 243-268, jan-jun. 2007. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-48072007000100012⟨=pt . Acesso em: 06 jan. 2020.
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analisa como um grupo de jovens, autodenominado “MAFRA - Movimiento Antifascista Radical Anarco - colectivista” - realizava sua resistência ao que chamavam “sistema”, através de suas narrativas e, mais, de suas práticas estéticas, como seus cabelos, seu estilo de vestir, as músicas que ouviam, os lugares que frequentavam, etc. A autora, que participava de um Projeto piloto denominado “Agrupaciones, culturas juveniles y escuela en Bogotá”, buscava responder, em sua investigação, em que sentido essas subjetividades juvenis seriam formas de resistência a uma sociedade disciplinar e de controle, como as descrevem, por exemplo, Foucault, Negri e Hardt (ACEVEDO, 2007ACEVEDO, Carolina Roatta. Subjetividades juveniles: esbozos de resistencia ante la sociedad disciplinaria y la sociedad de control. Universitas Humanística, Bogotá, n. 63, p. 243-268, jan-jun. 2007. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-48072007000100012⟨=pt . Acesso em: 06 jan. 2020.
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).

A autora chama a atenção para o fato de que existe uma ideia do adolescente como sujeito passando por um momento de desordem, crise de identidade, por um rito de passagem, na qual está implícita a noção de vida adulta como o “momento esperado”, o “ponto de chegada”, o que resulta em um descrédito de suas ações e posicionamentos, quando, na verdade, “los jóvenes son peligrosos porque en sus manifestaciones gregarias crean nuevos lenguajes, y a través de esos cuerpos colectivos, mediante la risa, el humor, la ironia, desacralizan y, a veces, logran abolir las estrategias coercitivas”6 6 Em tradução livre: “os jovens são perigosos por que em suas manifestações sociais criam novas linguagens, e através de corpos coletivos, mediante o riso, o humor, a ironia, dessacralizam, e, às vezes, logram abolir as estratégias coercitivas”. (REGUILLO apud ACEVEDO, 2007ACEVEDO, Carolina Roatta. Subjetividades juveniles: esbozos de resistencia ante la sociedad disciplinaria y la sociedad de control. Universitas Humanística, Bogotá, n. 63, p. 243-268, jan-jun. 2007. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-48072007000100012⟨=pt . Acesso em: 06 jan. 2020.
http://www.scielo.org.co/scielo.php?scri...
, p. 253). Assim, a partir de suas ações que envolviam resistências desde dentro da escola até fora de seus portões, tais jovens, especialmente os integrantes do MAFRA, exerciam uma posição política, embora rechaçando formas tradicionais como partidos políticos. Suas resistências se exprimiam a partir de suas próprias subjetividades e de seus próprios corpos. Embora note que por vezes alguns movimentos - como o festival “Rock al Parque” - que, a princípio, seriam símbolos de resistência para os jovens, acabem sendo investidos por interesses comerciais e de consumo, Acevedo (2007ACEVEDO, Carolina Roatta. Subjetividades juveniles: esbozos de resistencia ante la sociedad disciplinaria y la sociedad de control. Universitas Humanística, Bogotá, n. 63, p. 243-268, jan-jun. 2007. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-48072007000100012⟨=pt . Acesso em: 06 jan. 2020.
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, p. 265) vê no grupo MAFRA uma possibilidade até mesmo da realização de uma ideia de multidão, a partir desse “conjunto de sujetos que se unen en su diferencia y resignifican los discursos de revolución y resistencia que han venido conociendo ya sea por lo que les enseñan en el colegio, por «cultura general» o por la influencia de su grupo de pares”7 7 Em tradução livre: “conjunto de sujeitos que se unem em sua diferença e ressignificam os discursos de revolução e resistência que foram conhecendo seja pelo que lhes ensinam na escola, pela “cultura geral” ou pela influência de seu grupo de pares”. .

A partir dessa experiência, Acevedo (2007)ACEVEDO, Carolina Roatta. Subjetividades juveniles: esbozos de resistencia ante la sociedad disciplinaria y la sociedad de control. Universitas Humanística, Bogotá, n. 63, p. 243-268, jan-jun. 2007. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-48072007000100012⟨=pt . Acesso em: 06 jan. 2020.
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salienta que é necessário pensar em uma resistência que parta de um posicionamento ético de permanente reinvenção, de resistência como atitude experimental constante, uma vez que a máquina biopolítica está sempre se modificando e, portanto, uma vida que se quer como potência, a busca de uma forma de vida, deve estar apta a fazer frente a essas modificações. Trata-se de pensar, como o faz Pelbart (2015PELBART, Peter Pál. Políticas da vida, produção do comum e a vida em jogo... Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, supl. 1, p. 19-26, jun. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902015000500019&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 06 jan. 2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 21), na potência da vida “como o avesso mais íntimo, imanente e coextensivo ao próprio poder”, ou seja, estão de tal forma interligados que por vezes até mesmo se confundem: “isso significa, talvez, que a própria vitalidade social, quando dominada pelos poderes que a vampirizam, aparece subitamente como uma potência que já estava lá desde sempre, potência primeira que o poder persegue e sobre a qual ele se constrói e se ancora” (PELBART, 2015PELBART, Peter Pál. Políticas da vida, produção do comum e a vida em jogo... Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, supl. 1, p. 19-26, jun. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902015000500019&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 06 jan. 2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 21).

Conforme se pode perceber, não há uma resposta única, e as diversas que se apresentam envolvem um esforço filosófico cujo desafio, além desse da reflexão, é o de buscar meios de ação. Sem desconsiderar que, por exemplo, as análises realizadas por Negri e Hardt em suas obras recebam inúmeras críticas (a exemplo da ideia de multidão), parece ser possível apropriar-se de tais análises para pensar justamente além, eis que podem despertar um senso de criatividade e mesmo uma consciência dos inúmeros processos que envolvem a vida na atualidade e também de possibilidades de utilizar-se dessa mesma vida no sentido da resistência. Daí que os exemplos que foram brevemente citados podem ser capazes de demonstrar possibilidades de ação e resistência, seja ela individual, através de posicionamentos que podem ser assumidos frente a comportamentos massivos, até coletiva, tanto por meio de atitudes adotadas em nível de grupo, quanto mobilizações que busquem tornar-se o mais amplas possíveis.

A necessidade parece ser a de impedir a produção da vida nua como produto da máquina biopolítica, até por que o conceito de vida nua é por vezes criticado: Marielle Macé (2018MACÉ, Marielle. Siderar, considerar: migrantes, formas de vida. Tradução de Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018., p. 32), por exemplo, diz que “não há vidas nuas, não há vidas sem qualidade; só há vidas desnudadas e desqualificadas”, embora talvez seja esse mesmo o sentido que está implicado na ideia de Agamben de vida nua como produção biopolítica. Conforme explica Pelbart (2016)PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2016., desenvolver uma forma-de-vida e lograr impedir a cisão entre fato da vida e forma-de-vida, assim, parece ser o caminho para que a vida se torne não apenas algo passível de ser somente moldado e investido pelo poder, mas, sim, um leque de possibilidades.

5 Considerações finais

O desafio proposto na presente pesquisa era lançar um olhar para diferentes modos de vida e de práticas, sociais ou individuais, buscando neles possibilidades de resistência a um poder que atualmente investe quase que completamente a vida. Questionava-se, assim, acerca da capacidade e potencial desses modos de vida de realmente esboçarem algo como propõem autores como Agamben, Foucault, Negri e Hardt. Para tanto, foram analisadas, primeiramente, embora de forma breve, algumas pistas a respeito desse poder, do seu desenvolvimento e da forma como funciona hoje. Em seguida, aproximando-se mais do que é o principal foco do estudo, buscou-se fazer uma breve análise teórico-filosófica a respeito das possibilidades que se apresentam frente a esse cenário, adentrando-se em algumas experiências sociais selecionadas como pertinentes à reflexão.

O exame que se faz, após percorrido esse percurso, dá conta de que é possível lançar luz a um cenário que pode apresentar-se bastante desfavorável a algo como a criação de uma estética da existência ou do vislumbre de algo como uma multidão. Isso, pois, a vida, “vivida em primeira pessoa”, carrega consigo aquela outra face do poder, seu avesso, conforme mencionado anteriormente, que é a sua potência: a criatividade humana pode ser capaz de criar inúmeras formas de resistência. O desafio que se apresenta parece ser justamente o de exercer uma resistência fluida, mutante, inventiva, que seja capaz de escapar das artimanhas do poder biopolítico que também é mutante, e, mais, que é internalizado por processos de subjetivação ao qual todos estão desde sempre expostos. Nesse cenário, é mais do que apropriado abraçar um esforço ético, reflexivo, poder-se-ia dizer, filosófico, em busca da adoção consciente forma-de-vida, de uma autêntica “estética da existência”.

  • 1
    Em tradução livre: “em máquinas produtivas e reprodutivas por meio de processos de regulação, disciplina e subjetivação”.
  • 2
    Em tradução livre: “metamorfoseia-se de uma ameaça para tornar-se a base para uma norma expandida e diversificada de família que assegura a educação sadia das crianças em um tempo de aumento das taxas de divórcio e diminuição da fertilidade”.
  • 3
    Em tradução livre: “sua proposta nos dirige a um terreno criado para além do candombe, na medida em que, embora as ações de LTNC consistam em executar esta música, os tambores se tocam e os corpos se movem (mobilizam) para “outra coisa” - como referiu um de seus participantes - que excede o recreativo, o lúdico ou a pertença conjunta, e cujas razões se imprimem, em cada ocasião, por distintas causas sociais, sendo essas as que imprimem razões em cada ocasião”.
  • 4
    Em tradução livre: “se promove o valor do aberto e não hierárquico/vertical e se propicia que qualquer pessoa convoque e ‘tome a palavra’”.
  • 5
    Apesar disso, a escolha do uso do termo não é livre de críticas. Débora Boenavides (2016), por exemplo, entende que a ressignificação do termo abrange apenas a sua acepção machista, sendo que, no Brasil, ele é também impregnado por valores racistas - pois era utilizado para designar pessoas escravizadas que se negavam a trabalhos forçados - e classistas - para indicar tanto prostitutas quanto trabalhadores sem ofício e sem renda.
  • 6
    Em tradução livre: “os jovens são perigosos por que em suas manifestações sociais criam novas linguagens, e através de corpos coletivos, mediante o riso, o humor, a ironia, dessacralizam, e, às vezes, logram abolir as estratégias coercitivas”.
  • 7
    Em tradução livre: “conjunto de sujeitos que se unem em sua diferença e ressignificam os discursos de revolução e resistência que foram conhecendo seja pelo que lhes ensinam na escola, pela “cultura geral” ou pela influência de seu grupo de pares”.

Referências bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2020
  • Aceito
    11 Jan 2021
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