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Sistema ou CIS-tema de justiça: Quando a ideia de unicidade dos corpos trans dita as regras para o acesso aos direitos fundamentais

Justice system or CIS justice system: when the idea of the uniqueness of trans bodies dictates the rules for access to fundamental rights

Resumo

O presente texto discute como o direito de retificar o prenome e gênero nos documentos oficiais, assegurado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para as pessoas transexuais e travestis, pode ficar comprometido quando os/as operadores/as do sistema de justiça exigem tecnologias de gênero que agudizam uma passabilidade pautada em performatividades de gênero binárias da/na cisgeneridade.

Palavras-chave:
Direito; Transexualidade; Performatividade de gênero; Passabilidade e Direitos Fundamentais

Abstract

The present text discusses how the rights to rectify the first name and gender in official documents, guaranteed by the Brazilian Federal Supreme Court (STF) for transsexuals and travetis, can be compromised when the operators of the justice system demand gender technologies. that heighten a passability based on binary gender performativities of/in cisgenderness.

Keywords:
Law; Transexuality; Gender Performativity; Passing; Fundamental Rights

Não existe uma única forma de ser travesti. Temos diversas travestilidades e possibilidades de ser travesti. Nenhuma é igual à outra (o experimento da expressão de gênero pode ou não ser constitutivo); não generalize. (YORK, OLIVEIRA e BENEVIDES, 2020aYORK, Sara Wagner, OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes e BENEVIDES, Bruna. "Manifestações textuais (insubmissas) travesti." Revista Estudos Feministas, 28, 2020a.)

1 Situando o problema - corpos trans precisam de passabilidade para serem reconhecidos como titulares de direitos humanos?

“- Eu preciso ver a pessoa. Eu preciso ver.”

Muito embora seja ponto pacífico que os direitos de pessoas LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexo), conquistados nos últimos 20 anos (QUINALHA, GREEN; FERNANDES; CAETANO, 2018QUINALHA, Renan; GREEN, James; FERNANES, Marisa; CAETANO, Marcio (Orgs.). História do movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Alameda, 2018.), sejam oriundos do ativismo político de centenas de grupos e associações, e de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), com eficácia erga omnes, nem sempre os pôr em prática é uma tarefa fácil, até mesmo por aqueles/as que deveriam zelar pela sua observância.

Exemplo disso é a primeira frase desta seção deste artigo, proferida por Promotora de Justiça da Vara de Registros Públicos de Salvador, quando soube que transexuais de outros Estados estavam ajuizando ações para a retificação de prenome e gênero em seus documentos de identificação na capital da Bahia. Ora, dizia a Promotora, se após a edição do Provimento nº 73/2018, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), essas pessoas podiam obter administrativamente essa providência, diretamente junto ao cartório de origem do assentamento, ajuizar uma ação para esse fim era algo que deveria ser tido como suspeito.

Em razão disso, a Promotora passou a requerer a realização de audiências, em suas manifestações nos autos, para que pudesse avaliar visualmente, entre outras coisas, os/as autores/as dessas ações.

Ao acionar a necessidade de fazer uma avaliação visual e presencial do corpo das pessoas trans que buscam atendimento na referida vara, como condição para obter a providência registral, essa integrante do Ministério Público demarca a sua posição de poder-saber, conforme ensina Foucault (2004). Para além de uma inocente avaliação estética desses corpos, vemos nesse exemplo como o Poder Judiciário, sob esse argumento, em verdade busca apreciar a performatividade de gênero (BUTLER, 2003) das pessoas transexuais e travestis. Elas, para terem seu direito assegurado, deveriam performar o seu gênero dentro de uma lógica binária, ou seja, ter aquilo que os estudos transfeministas nomearam por passabilidade (VERGUEIRO, 2015VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.) para conquistar o direito, previsto na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275 e Recurso Extraordinário (RE) 670422, de retificação de prenome e gênero, independentemente da realização de cirurgia de redesignação sexual.

Essa posição da Promotora é congruente com a exigência do art. 4º, § 3º, do Provimento nº 73 do CNJ, que exige que a pessoa transexual vá pessoalmente ao cartório requerer a retificação de seu registro civil, não admitindo que seja outorgada procuração a outrem para fazê-lo, o que dá margem a se inferir que esse comparecimento serve para um escrutínio da performatividade de gênero do/a requerente (o que inclui uma avaliação estética desse corpo trans), pelas pessoas que integram o sistema de justiça.

Essa polêmica suscitada acima também encontra um precedente com quem dialoga diretamente, nos debates orais ocorridos entre os Ministros do STF, no Plenário, durante o julgamento do RE 845779, que teve como Relator o Ministro Roberto Barroso, inserido como paradigma da Repercussão Geral nº 778, que discute o acesso de pessoas trans a banheiros. O Relator, que propunha o julgamento favorável do RE, defendeu a seguinte Tese: os/as transexuais têm direito a serem tratados/as socialmente de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive na utilização de banheiros de acesso público. Logo depois do relator, votou o Min. Fachin, que aderiu ao voto proferido. Não obstante, pediu a palavra o Ministro Marco Aurélio para, ressalvando que não estava proferindo voto, mas buscando um esclarecimento, indagou: “na tese lançada, quanto à identidade de gênero... ela se daria considerada a aparência; considerado o registro civil; ou considerado o aspecto psicológico?”1 1 Grifo nosso. O julgamento, ocorrido no dia 20/11/2015, ainda não concluído, está aguardando há 7 anos que o Min. Luiz Fux, que pediu vistas, o libere para julgamento. Os debates podem ser vistos no canal do Youtube do STF, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=t2nr57_Ku6c (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2015). .

E seguiu:

Min. Marco Aurélio: [...] a guardadora do banheiro feminino lhe pediria que ela [a mulher transexual que fora retirada de banheiro feminino e autora da ação] que se dirigisse a um banheiro masculino se ela tivesse a aparência realmente feminina? Roberta Close, por exemplo, que V. Exa. citou, eu tenho certeza, seria admitida num banheiro feminino.

Min. Roberto Barroso: No caso concreto, pelo que ela noticia, ela foi... era... é uma mulher num corpo de homem, portanto com a singularidade que isso envolve. Portanto ela esclarece...

Min. Marco Aurélio: [...] a presunção é de que essa mulher num corpo de homem é que levou a guardadora do banheiro feminino a pedir que ela se dirigisse ao masculino.

[...]

Min. Marco Aurélio: Eu custo a acreditar... eu custo a acreditar, senhor Presidente, que no caso a empregada do shopping, responsável pela guarda do banheiro, não é, adotasse a postura que adotou, se a aparência - porque eu presumo que normalmente ocorre - se a aparência realmente fosse feminina. Não teria direcionado, porque aí seria um escândalo, ela com a aparência feminina, entrando num banheiro masculino... (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2015SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pleno - Suspenso julgamento que discute tratamento social dos transexuais. Youtube, 20 nov. 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=t2nr57_Ku6c.
https://www.youtube.com/watch?v=t2nr57_K...
. Grifos nossos)2 2 . Transcrição feita pelos autores. Os trechos destacados estão entre os intervalos 1h 44min 20seg e 1h 45min 57seg do vídeo. Grifos nossos.

Desse trecho do debate oral, em especial dos termos destacados, observa-se que o Ministro Marco Aurélio Mello, ainda que não tenha deliberado em definitivo sobre o caso, deixou evidente que, para ele, a passabilidade de uma pessoa transexual é um elemento que permitirá que ela goze de mais ou menos direitos na sua esfera de ação social. Portanto, a pessoa transexual que não tem passabilidade, pelo que dá a entender o Ministro, tem menos direitos de exercer e reivindicar o reconhecimento de sua autodeterminação de gênero do que aquele/a que passa.

Da análise conjunta dos episódios acima narrados, vemos que o liame comum entre eles reside em que o Poder Judiciário se entende legitimado a perscrutar e avaliar a aparência e a performatividade de gênero de transexuais, como elemento mitigador do princípio da autodeterminação de identidade de gênero, reconhecido nos precedentes acima referidos.

Esses dois casos apontados demonstram a importância de tecermos considerações críticas, na esfera do direito, sobre as implicações de avaliações estéticas de pessoas transexuais. Esse ato, que nada tem de “inocente” ou “natural”, é formulado pelo/a membro do sistema de justiça visando garantir, implicitamente, uma adequação desses corpos ao chamado “sistema sexo-gênero” binário, conforme Rubin (1975/1993)RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a 'economia política´ do sexo. Recife: SOS Corpo, 1975/1993.. Para tanto, são praticados atos reiterados de violência simbólica que acabam transmutando essa instituição em cistema de (in)justiça, em uma perspectiva transfeminista adotada neste artigo, como veremos a seguir.

Esse debate não deveria estar sendo travado só no Brasil. Theilen (2020)THEILEN, Jens T. Além do gênero binário: repensando o direito ao reconhecimento legal de gênero. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, n. 1, mai. 2020, p. 1-16., após fazer um apanhado de decisões, especialmente da Corte Europeia de Direitos Humanos e do Tribunal Constitucional Federal Alemão, aponta que o direito vem sendo usado para restringir direitos fundamentais com base em julgamentos estéticos dessa população, o que demonstra a necessidade de se refletir sobre o tema com urgência:

A maioria dos regimes jurídicos, incluindo os tribunais que tradicionalmente se mostram bastante ativos no combate a regimes restritivos de reconhecimento legal de gênero, continuam aceitando pré-condições relacionadas à aparência visual das pessoas trans como legítimas, forçando-as, assim, a criar uma ‘realidade social’ ostensivamente condizente, a qual se revela conflitante com a classificação legal a eles atribuída [...] (p. 7)

Poderíamos sintetizar da seguinte forma o problema sobre o qual nos dedicaremos a discutir neste artigo: a avaliação que integrantes do sistema/cistema de justiça fazem sobre um corpo transexual ou travesti pode justificar o limite do gozo de direitos humanos dessas pessoas? Esse é um tema muito pouco explorado na literatura jurídica. Em busca no banco de dados do Google Scholar, usando os termos “direito”, “passabilidade”, “direitos humanos”, não foram encontrados resultados em revistas de conteúdo jurídico estrito, o mesmo ocorrendo em busca na plataforma Scielo.

A resposta a essa pergunta será explorada de maneira pouco ortodoxa em publicações jurídicas. Entendemos que o resultado da análise só será bem sucedido se nós expandirmos o contexto teórico e o conhecimento acerca do local onde esse debate se desenrola, ou seja, precisamos destacar não apenas as decisões e debates orais, assim como demais textos proferidos por membros do sistema de justiça, como também empreender esforço para dissecar as regras explícitas ou não de funcionamento interno deste poder, visando verificar se ele pratica os comandos de tolerância e diversidade que ele mesmo vem reconhecendo.

É convicção dos autores e da autora que a análise apenas dos textos dirigidos às partes de ações judiciais ou aos/às cidadãos/ãs brasileiros/as, nos casos em que haja eficácia erga omnes da decisão, não deveria esgotar o corpus a ser analisado, que também deve enfrentar o ambiente em que esses textos são produzidos, se quisermos ter uma visão global desse fenômeno social.

Essa opção metodológica se dá posto que os autores e a autora veem o processo de tomada de decisão dos/as magistrados/as com algo complexo, que escapa às simplificações que sugerem ser isso algo automático, ou fruto de uma lógica aristotélica de encadeamento de proposições. A ênfase no contexto; a influência do inconsciente e os estigmas internalizados pelos sujeitos, que demonstram que eles não têm domínio completo sobre suas enunciações; os elementos oriundos da psicologia social, que nos ajudam a compreender o processo de julgamento, tudo isso também será aqui levado em conta.

O texto está dividido em duas partes. Na primeira, faremos uma revisão da literatura sobre as teorias centrais sobre gênero, que é um conceito-chave para a construção do nosso argumento, bem como sobre transfeminismo, passabilidade e performatividade de gênero. Em seguida explicaremos o conceito de performatividade de gênero e suas relações com a cisgeneridade e a passabilidade, para entender como operam determinadas pessoas do/no sistema/cistema de justiça. Na segunda parte, faremos uma abordagem livremente inspirada na genealogia foucaultiana aplicada ao âmbito do Poder Judiciário, explorando essa instituição pela perspectiva de quem a integra e as formas peculiares de seu funcionamento, que criam uma certa posição institucional simbólica para os/as seus/suas membros/as.

Parte I - Pressupostos Teóricos

2 A luta pela autodeterminação

É Michel Foucault quem nos explicou como os meandros do próprio reconhecimento são produzidos.

A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação de conhecimentos, o reforço dos controles (...) (FOUCAULT, 2009FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 19ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2009., p. 115).

Apesar de alguns textos e registros documentarem a tentativa de criação de um movimento trans/travesti anterior à década de 19903 3 Consultar, por exemplo, https://memoriamhb.blogspot.com/2022/01/travestis-e-afeminadas-uma-luta-que-vem.html - Acesso em 30 mar. 2022. , vemos que apenas em 1992 foi eleita a primeira travesti para um cargo político no Brasil - Katya Tapeti, e apenas em 1993 ocorreu o primeiro encontro de travestis do Brasil, incluindo representações de diversos estados, para discutir uma agenda de pautas importantes para a luta trans em nível nacional reivindicando direitos perante o Estado. Trata-se do Encontro Nacional de Travestis e Liberados, que depois passou a se chamar ENTLAIDS - Encontro Nacional de Travestis e Transexuais na Luta contra a AIDS, que já realizou 23 edições, a mais recente em Tapes/RS, em 2019.

De lá pra cá, muitas conquistas vieram fruto dessa luta, tendo sido alcançados direitos como o acesso ao SUS, com o respeito ao nome social; a criação do processo transexualizador; o nome social no ENEM e nos órgãos da administração pública; ações no STF, como a retificação registral e a criminalização da LGBTIfobia; assim como o aumento da participação de pessoas trans nas eleições e na política institucional, além criação de ações e projetos pela cidadania trans, como o apresentado por Sara Wagner York, pela ANTRA, aos magistrados do TRF3, em 20214 4 Consultar https://www.instagram.com/p/CPqR3cjnkED/ - Acesso em 30 mar. 2022. . Até chegarmos nesse ponto, um longo processo aconteceu, desde a fundação do Grupo de Afirmação Homossexual, mais conhecido como apenas Somos, fundado em 1978, e considerado o primeiro grupo brasileiro em defesa desses direitos.

Ao analisar o ideário do Somos, MacRae aponta algumas características: o grupo deveria ser formado exclusivamente por homossexuais; as palavras “bicha” e “lésbica” deveriam ser esvaziadas de seu conteúdo pejorativo; na análise das relações de gênero as assimetrias entre homens e mulheres deveriam ser combatidas, bem como a polarização ativo/passivo, efeminado/masculinizado; a “bissexualidade” enquanto identidade ou subterfugio para não assumir a homossexualidade era criticada, embora, em alguns momentos, a prática bissexual fosse até mesmo glorificada como subversão de todas as regras, a monogamia e a possessividade nos relacionamentos eram questionados; o prazer era visto como bem supremo e o autoritarismo deveria ser combatido em todas suas manifestações, tanto fora, quanto dentro do grupo. (FACCHINI, 2002FACCHINE, Regina. Sopa de letrinhas: movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90: um estudo a partir da cidade de São Paulo. Dissertação de mestrado. Unicamp, 2002., p. 68)

Esse espaço nebuloso ou estado nublado, tido como emaranhado de atos e ações, chamado de sexualidade, e que permeia as discussões em gênero e direitos sexuais e reprodutivos, são adensados nos escritos de Foucault (2015) e Goffman (1977GOFFMAN, Erving. The arrangement between the sexes. Theory and society, v. 4, n. 3, p. 301-331, 1977., p. 301). Extraímos desse último autor:

[...] na sociedade industrial moderna, assim como aparentemente em todas as outras, sexo é a base de um código fundamental em consonância com o qual as interações sociais e as estruturas sociais são construídas, um código que também estabelece as concepções que os indivíduos têm concernido a sua própria natureza humana fundamental.

A nitidez do texto demonstra o quão importante esse tópico é para as ciências sociais. O que não quer dizer que a distribuição desses papéis deva ser vista como algo “natural” ou “a histórico”. É justamente contra essa posição de tratar as diferenças sexuais e de gênero como fonte uma forma “natural” de hierarquização dos membros da sociedade que se assentou o pensamento feminista desde o seu início (FRASER, 2017FRASER, Nancy. Feminism, capitalism and the cunning of history. Routledge, 2017.). É com base nessa discussão que a crítica queer (MISKOLCI, 2020MISKOLCI, Richard. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Autêntica, 2020.) argumenta que não existe uma sexualidade exclusivamente balizada por critérios determinados biologicamente (WEEKS, 2002WEEKS, Jeffrey. The invention of sexuality. Sexualities. Critical Concepts in Sociology, v. 2, p. 7-21, 2002.). Aliás, o sujeito “homem” que tem uma documentação retificada, mesmo tendo vulva, diante da lei, passa a ser um homem. O mesmo ocorre para mulheres com pênis. Essas pessoas alargam também os conceitos biopatolologizantes de outrora.

Sob tal base, a feminista lésbica Monique Wittig (2019)WITTIG, Monique. Não se nasce mulher. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, p. 83-92, 2019. chamou a atenção para o fato de que a divisão sexual não é algo dado, mas que enquanto conceito social está em constante disputa, ainda que nos pareça hierarquicamente posto, muito menos que essas formas de organização ou divisão do trabalho sexual tenham sido idênticas desde sempre. A divisão binária dos sexos é, segundo defende a autora, uma forma específica de organização simbólica, que ela denomina de “formação imaginária”, influenciada pela lição marxista sobre o conceito de ideologia, que reinterpreta e regula as formas da realidade e da interação social. No campo discursivo, as teorias feministas demonstram que, na divisão sexual e de gênero, homens são sujeitos e mulheres são construídas argumentativamente como passivas ou como objetos de uma ação que se faz sobre elas (HOLLWAY, 1984HOLLWAY, Wendy. Gender difference and the production of subjectivity. In: HENRIQUES, J. et al. Changing the subject. London: Metheun,1984.; SAFFIOTI, 2019). Algumas frentes trans-excludentes (BAGAGLI, 2018) consideram que mulheres trans teriam sido socializadas como “homens” e assim estariam fora de uma lógica de um feminino como simulacro.

Com vistas a romper com as teses biologicistas, patologizantes e pseudo- naturalistas que envolvem a noção de sexo, passa a emergir na seara feminista e, depois, nos estudos queer, o conceito de gênero, que enfatiza o caráter cultural dessas diferenças, ou seja, que elas dependem menos de estruturas corporais (órgãos, gônadas, etc.) e muito mais de condições de produção simbólica estipuladas ideologicamente na tessitura social.

Nesse ponto, relevante é a atenção que deve ser prestada à filósofa ítalo-americana Teresa de Lauretis (2019) que, por meio de seu artigo sobre as tecnologias de gênero, deixa nítido que as regras preexistentes de organização social são impostas aos corpos, e que esses são produto da interação dos/as atores/atrizes sociais e as condições culturais em que estão inseridos/as. Portanto, a imposição de uma série de características típicas de homem/mulher; macho/fêmea sobre esses corpos é fruto tanto de uma construção sociocultural quanto de um aparato semiótico imposto pelas diferentes esferas de socialização, nas quais se dá a interpelação e a constituição de subjetividades. Nós tanto fabricamos nossos corpos como temos nossos corpos marcados pelas regras sociais do meio em que vivemos, posto que só há corpo depois da cultura (LOURO, 2018LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.), como veremos a seguir.

Para além do gênero como construção simbólica na/da cultura, outro tópico pertinente às teorias feministas e queer diz respeito ao sexo como elemento através do qual se desenvolvem relações de poder. Aqui é inescapável recordar o trabalho de Foucault (2009)FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 19ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2009. que trabalhou o sexo como matéria discursiva, como produção de linguagem que demanda uma sintaxe regulatória própria, e que não tem uma natureza objetivamente válida, como um núcleo ontologicamente estável, mas uma dimensão histórica e, portanto, conflitual.

Enquanto o mito do sexo binário pretende que as categorias homem e mulher sejam uniformes e estáveis, as identidades escapam desse dualismo - que já somam, conforme aprovação legal da Comissão de Direitos Humanos do Estado de Nova Iorque, 31 tipos diferentes (LAMBERT, 2016LAMBERT, Michael. NYC Human Rights Commission Adds 31 Genders to Civil Rights Protections. Out Magazine, 30 mai. 2016. Disponível em: https://www.out.com/news-opinion/2016/5/30/nyc-human-rights-commission-adds-31-genders-civil-rights-protections. Acesso em: 15 jan. 2022.
https://www.out.com/news-opinion/2016/5/...
) - e vem se multiplicando. Isso demonstra que as identidades, na pós-modernidade, são, como defende Hall (2006)HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006., fragmentárias e descentradas, que deixam de ter um “sentido de si”, um núcleo estável, já que os sujeitos assumem cada vez mais identidades nas múltiplas situações pelas quais transitam nas diferentes esferas e situações sociais.

Ainda assim, reina na atualidade uma pressão para que sejam sufocadas as identidades múltiplas que, no campo do gênero, busca reforçar e empoderar o binarismo de gênero como centro simbólico das divisões de papeis sociais, enquanto outras identidades são colocadas à margem e à marginalidade. A teoria queer se coloca contra essa normalização. Seu alvo mais imediato é a oposição à heteronormatividade compulsória da sociedade e as relações de poder que isso implica.

As identidades transexuais e travestis borram o sistema binário de sexo-gênero, por vezes de maneira ostensiva, pulverizando e rompendo qualquer continuidade com essa lógica, gerando o impasse em qualquer tentativa de categorização desses/as sujeitos/as.

3 Performatividade de gênero, cisgeneridade e passabilidade

A partir da sua obra Problemas de gênero, Judith Butler (1990/2003)BUTLER, Judith. Problemas de gênero - feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990/2003. fez uma série de reflexões sobre o sistema sexo-gênero e criou o que ficou conhecida como teoria da performatividade de gênero. Uma das reflexões diz respeito à separação estanque entre sexo (natural) e gênero (cultural). No entanto, diversas outras feministas, antes de Butler, já tinham problematizado o sistema sexo-gênero. Uma das mais conhecidas foi Gayle Rubin (1975/1993)RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a 'economia política´ do sexo. Recife: SOS Corpo, 1975/1993.. Ela chamava atenção para o fato de que pensar o sexo e a sexualidade como uma continuidade do gênero é algo típico de um pensamento heterossexual. Para Rubin, as homossexualidades tornaram essa visão mais complexa, ou melhor, provocaram um curto-circuito nesse sistema, um estranhamento.

Butler, por exemplo, retomou a clássica frase de Simone de Beauvoir (1973/2009)BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1973/2009. (“não se nasce mulher, torna-se mulher”) para dizer que se, por um lado, a feminista francesa contribuiu para desnaturalizar o que hoje chamamos de gênero, por outro lado nos deu a entender que, em algum momento, o corpo da mulher esteve isento das normas de gênero. Em outras palavras: se alguém se torna mulher, em algum momento aquele corpo estava sem gênero, era uma página em branco, a cultura ainda não teria incidido sobre aquele ser. Butler defende que essa é uma ideia errônea porque nós nunca estivemos livres das normas culturais sobre os nossos corpos (sejam elas de gênero, ou não). Pelo contrário, nós só passamos a existir enquanto sujeitos no momento em que os outros determinam que somos homens ou mulheres. Como veremos adiante, isso fica ainda mais nítido quando pensamos sobre as identidades das pessoas transexuais e travestis.

Quando a gestante realiza a ultrassonografia e a profissional de saúde identifica o sexo do bebê, a partir daquele momento, sem nenhuma liberdade, o bebê passa a ter um gênero e todas as normas de gênero passam a incidir sobre aquele ser que sequer nasceu. Esse tipo de reflexão abriu o caminho para Butler questionar a divisão estanque entre sexo e gênero. Ou seja, o sexo, uma vez identificado, será sempre generificado e o gênero, pelas normas da nossa sociedade, é desde sempre sexualizado. A sociedade determina o gênero das pessoas pela genitália.

No entanto, questiona Butler, ninguém nos garante que aquela mulher seja, necessariamente, alguém que possui um sexo lido como feminino. Vide, por exemplo, as pessoas intersexo, que podem nascer com diversas ambiguidades, sejam elas nas genitálias e/ou em demais órgãos tidos como “reprodutores”5 5 Sobre a intersexualidade, ler o dossiê publicado na Revista Periódicus, v. 2, n. 16, especialmente dedicado à intersexualidade (PERIÓDICUS, 2021). . Através do pensamento de Butler, podemos concluir que pensar o gênero como algo determinado pelo sexo é uma operação que exclui, de forma violenta, uma série de outras identidades de gênero, em especial as travestis, transexuais e outras identidades trans.

Mas de onde vem a ideia inicial de performativo? Depois de fazer uma longa reflexão teórica sobre vários estudos feministas, da psicanálise, da antropologia e da filosofia, Butler chega ao capítulo final de Problemas de gênero para defender a tese de que o gênero é performativo. De John Austin (1990)AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990., Butler usa a conhecida tese dos atos performativos. O linguista defendeu que algumas palavras não apenas descrevem algo, mas que elas também têm o poder de criar aquilo que enunciam. Por exemplo: quando um juiz ou sacerdote diz “eu vos declaro marido e mulher”, a partir daquele momento essas pessoas envolvidas passam, efetivamente, a ser aquilo que o enunciado determinou.

A mesma associação Butler fez para a frase “é menino ou é menina” proferida, atualmente, antes mesmo do parto, no momento da ultrassonografia realizada nas gestantes. A partir desse momento, aquele pequeno feto já passa a ter um gênero e sobre ele incidem as normas de gênero construídas e impostas pela sociedade. Antes de chegar nesse momento, Butler já havia esmiuçado o mecanismo de funcionamento da heterossexualidade compulsória e da heteronormatividade, revelando como ambas se sustentam através da exigência da linha coerente entre sexo-gênero-desejo e prática sexual. Assim, Butler defende que, além de obrigar que todos sejamos heterossexuais (heterossexualidade compulsória) ou que, mesmo que não sejamos heterossexuais, pelo menos estejamos enquadrados dentro das normas tidas como heterossexuais (heteronormatividade6 6 Sobre os conceitos de heterossexualidade compulsória e heteronormatividade, ver Colling e Nogueira (2015). ), a sociedade também nos obriga a ter um gênero tido como compatível com a materialidade dos nossos corpos.

Butler argumenta que essas exigências, realizadas através de discursos, atos, gestos e atuações, são performativas, ou seja, criam os sujeitos que enunciam. Para que essas ações tenham êxito é necessário que elas sejam constantemente repetidas e vigiadas. O sistema/cistema de justiça, aqui em análise, é mais uma das tantas instâncias dessa vigilância. De um modo mais simples, poderíamos dizer que nós, na medida em que crescemos e desenvolvemos as nossas identidades, repetimos formas identitárias que já existiam antes de nascermos e essas formas é que irão nos constituir enquanto sujeitos. O que nós fazemos, geralmente, é entrar na roda das repetições das normas de gênero e sexualidade.

Mas, com a influência das reflexões de poder de Michel Foucault (2009)FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 19ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2009. (onde existe poder, existe resistência/contrapoder), e dos trabalhos de Eve Kosofsky Sedgwick (2007)SEDGWICK, Eve Kosofsky. A epistemologia do armário. Cadernos Pagu, Campinas, SP, v. 28, Dossiê Sexualidades Disparatadas, 2007., entre outros/as autores/as, Butler destaca que nem todas as pessoas se sujeitam a essas normas e que esses mesmos “gêneros distintos são parte do que ‘humaniza’ os indivíduos na sociedade contemporânea”. E continua: “de fato habitualmente punimos os que não desempenham corretamente o seu gênero. Os vários atos de gênero criam a ideia de gênero, e sem esses atos não haveria gênero algum” (BUTLER, 2003, p. 199).

Quando pensamos por essa chave de leitura, percebemos que nossas identidades de gênero, em boa medida, nos foram impostas. Não tivemos liberdade para escolher o nosso gênero. As leis de identidade de gênero existentes em países como Argentina (COLLING, 2015COLLING, Leandro. Que os outros sejam o normal - tensões entre ativismo queer e o movimento LGBT. Salvador: EDUFBA, 2015a.) e a histórica decisão do STF, no Brasil, ao permitir que as pessoas transexuais e travestis possam mudar o nome e gênero em seus documentos de identificação, acabam por reconhecer essa imposição e criam o direito de que as pessoas possam se autoidentificar da maneira que assim desejarem. Essas decisões, frutos de um longo processo de lutas, reconhecem que temos, em nossa sociedade, uma diversidade de gêneros. No entanto, falta a compreensão de que os gêneros podem ser performados de diversas maneiras, para além de uma perspectiva binária.

Quem está mais conformado dentro de um binarismo de gênero e que, ao mesmo tempo, se identifica com o gênero que foi designado em seu nascimento, tem sido chamado, nos últimos anos, de cisgênero ou cisgênera. O conceito, criado por ativistas e pesquisadoras trans, é usado para evidenciar que todas as pessoas possuem identidades de gênero. As reflexões também produziram o conceito de cisgeneridade ou cisnormatividade (VERGUEIRO, 2015VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.; YORK, 2020), que designa como as normas exigem que todas as pessoas sejam cisgêneras em nossa sociedade.

Beatriz Pagliarini Bagagli conceitua cisgênero da seguinte forma: “[...] uma explicação simples é que se você se identifica como o gênero que lhe foi designado em seu nascimento, você é cis” (BAGAGLI, 2014BAGAGLI, Beatriz Pagliarini. O que é cisgênero. Transfeminismo. 23 mar. 2014. Disponível em: <http://transfeminismo.com/o-que-e-cisgenero/>. Acesso em: 12 jan. 2022.
http://transfeminismo.com/o-que-e-cisgen...
). Jaqueline Gomes de Jesus diz que “[...] cisgênero é um conceito que abarca as pessoas que se identificam como o gênero que lhes foi determinado socialmente, ou seja, as pessoas não-transgênero [...]” (JESUS, 2014JESUS, Jaqueline Gomes de. Interlocuções teóricas do pensamento transfeminista. In: JESUS, J. G. de. et al. Transfeminismo: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Metanóia, p 3-18, 2014.).

Viviane Vergueiro define cisgeneridade:

[...] como um conceito analítico que eu posso utilizar assim como se usa heterossexualidade para as orientações sexuais, ou como branquitude para questões raciais. Penso a cisgeneridade como um posicionamento, uma perspectiva subjetiva que é tida como natural, como essencial, como padrão. A nomeação desse padrão, desses gêneros vistos como naturais, cisgêneros, pode significar uma virada descolonial no pensamento sobre identidades de gênero, ou seja, nomear cisgeneridade ou nomear homens-cis, mulheres-cis em oposição a outros termos usados anteriormente como mulher biológica, homem de verdade, homem normal, homem nascido homem, mulher nascida mulher, etc. Ou seja, esse uso do termo cisgeneridade, cis, pode permitir que a gente olhe de outra forma, que a gente desloque essa posição naturalizada da sua hierarquia superiorizada, hierarquia posta nesse patamar superior em relação com as identidades Trans, por exemplo. (RAMÍREZ, 2014RAMÍREZ, Boris Guzmán. Colonialidade e cis-normatividade. Entrevista com Viviane Vergueiro. Iberoamérica Social: revista-red de estudios sociales (III), 2014, pp. 15 - 21., p. 16)

Muitas pessoas transgridem de uma forma mais intensa as normas de gênero, a exemplo das travestis, transexuais, pessoas não binárias, com gênero fluido etc. Existem uma série de expressões, constantemente criadas e recriadas, com as quais as pessoas preferem ser identificadas em relação aos seus gêneros. No Brasil, em geral, quando se fala em travestis imediatamente se pensa em pessoas que “nasceram homens e se vestem de mulher” e fazem algumas intervenções no corpo, como uso de silicone (em especial nos seios e nas nádegas). Mas qualificar as travestis como “homens que se vestem de mulher” é algo transfóbico porque desrespeita essas pessoas em sua identidade. As travestis são pessoas que tiveram um corpo lido como masculino e que se identificaram fortemente com o universo feminino e, por isso, realizam variadas mudanças corporais e comportamentais. A identidade dessas pessoas é feminina e o indicado é que todos/as respeitam essa identidade e, por isso, o correto é dizer “as” travestis (YORK et al., 2020b________. "TIA, VOCÊ É HOMEM? Trans da/na educação: Des (a) fiando e ocupando os" cistemas" de Pós-Graduação." Dissertação de Mestrado orientada por Fernando Pocahy pelo Programa de Pós-graduação Educação -ProPEd / UERJ. 2020b.), e não “os” travestis7 7 Nos últimos 15 anos, as identidades transexuais e travestis deixaram de ser pensadas como variações da homossexualidade para serem entendidas como variações das identidades de gênero (ver COLLING, 2018). Essa transformação foi fundamental para a aprovação das leis de identidade de gênero no mundo e também foi importante para a decisão do STF, no Brasil, de permitir a retificação do prenome e gênero nos documentos das pessoas que se identificam como transexuais e travestis. .

Considerar como travesti uma pessoa que nasceu homem e “se veste de mulher”, ou “uma mulher num corpo de homem”, como consta no debate entre os ministros do STF, é algo, no fundo, transfóbico, pois estamos tratando de uma identidade com a qual determinadas pessoas se identificam e, além disso, seguindo os passos dos estudos aqui acionados, também podemos questionar: o que é um corpo de homem? Quem determina o que é um corpo de homem? Essa leitura é feita como e com base em que?

Mesmo as identidades travestis (YORK, 2020a) possuem uma longa história e luta política. Todas as distinções que quisermos fazer entre travestis, transexuais e pessoas trans em geral são muito precárias e arriscadas porque existe uma variedade de modos de ser entre essas pessoas. As pessoas que se identificam como transexuais, diferente das travestis, em geral são caracterizadas pela sociedade como aquelas que desejam fazer a chamada “cirurgia de mudança de sexo”. No entanto, essa explicação está errada porque em vários estudos acadêmicos realizados no Brasil, a exemplo daqueles produzidos por Berenice Bento (2006)BENTO, Berenice Bento. A reinvenção do corpo. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2006., nos quais verifica-se que existem muitas pessoas que reivindicam a identidade transexual, mas que não desejam fazer a completa intervenção cirúrgica de “mudança de sexo”. Muitas vezes, essas pessoas se contentam em realizar parte do processo transexualizador, a exemplo de implantar ou retirar os seios, tomar hormônios para que cresçam ou desapareçam pelos no corpo, etc. Deve se levar em conta a partir da autodeclaração, não qualquer critério que imponha ao sujeito qualquer intervenção para assim o sê-lo.

Em 1993 (I Encontro Nacional de Travestis e Liberados que Atuam na Prevenção da Aids - ENTLAIDS - ENTLAIDS), as travestis lá reunidas já reivindicavam o fim da estigmatização da palavra travesti e a unicidade de tais corpos. Anos depois, Berenice Bento (2006)BENTO, Berenice Bento. A reinvenção do corpo. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2006. fez um pioneiro estudo sobre as identidades transexuais e os problemas que essas pessoas enfrentavam (e ainda enfrentam) nos ambulatórios específicos existentes no Sistema Único de Saúde. Bento aponta que o saber médico quer identificar uma pessoa “transexual verdadeira” para ter acesso aos procedimentos oferecidos pelo ambulatório. O que estamos tratando neste artigo aponta que, agora, o cistema de justiça é quem está trabalhando dentro dessa mesma lógica, ou seja, somente uma pessoa “verdadeiramente transexual”, aquela que performa uma identidade de gênero tida como ideal para aquela autoidentificação, é quem poderá ter direito a mudar de nome e gênero em sua documentação, no uso de banheiros, e outros espaços de luta para que essas pessoas possam acessá-los.

Toda essa discussão sobre o que seria uma pessoa trans “de verdade” também pode ser pensada através da ideia de passabilidade. Uma pessoa trans tem passabilidade quando parece ser um homem ou mulher cis, ou seja, quando performa de maneira tida como congruente com a identidade masculina ou feminina e com ela os elementos que subjetivamente alocam-na a determinado registro imagético. Quem performa fora do binarismo, portanto, não teria passabilidade e, para os objetivos deste texto, não teria direito de mudar de nome e gênero em seus documentos. Viviane Vergueiro (2015VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015., p. 158) propõe pensar a passabilidade como uma “categoria útil de análise para vivências nas diversidades corporais e de identidades de gênero, tanto como uma exigência cisnormativa, como uma estratégia possível de resistência a cissexismos em determinados contextos.”

Outro ponto que vale ressaltar é o termo usado por York (2020c________; OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes; BENEVIDES, Bruna. Manifestações textuais (insubmissas) travesti. Revista Estudos Feministas, v. 28, 2020c.) e Santos, Fernandes e York (2021)SANTOS, Edmea; FERNANDES, Terezinha; YORK, Sara Wagner. Ciberfeminismo em tempos de pandemia de Covid-19: lives (trans) feministas. In: Escrevivências ciberfeministas e ciberdocentes: narrativas de uma mulher durante a pandemia Covid-19. São Carlos: Pedro & João Editores, 2022. para conceitualizar a visão da cisgeneridade sobre o corpo trans único, como estando em uma paralaxe trans. Paralaxe Trans é o conceito utilizado para designar o modo de captura do corpo trans como simulacro. Assim, qualquer corpo trans seria ou estaria sob e/ou com as mesmas propriedades. Uma travesti de 60 anos do centro urbano ou um homem trans negro periférico seriam nomeados igualmente pessoa trans. Com o propósito de apontar para alguns limites cruciais na adoção dessa estratégia, Vergueiro alertava-nos sobre “a dependência da passabilidade como única ou principal estratégia de resistência a violências cissexistas” e pergunta: “quem fica de fora, nas não passabilidades? (...) Trata-se de um tema, em minha opinião, de extrema importância epistêmica" (VERGUEIRO, 2015VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015., p. 158).

Parte II - O Poder Judiciário frente aos Direitos LGBTI

Nessa segunda parte de nosso texto, faremos uma análise livremente inspirada no que Foucault (2018)________. A arqueologia do saber. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018. chamou de “genealogia”. Através de uma coletânea heterogênea de dados, que vão desde precedentes de jurisprudência a atos normativos de Escolas de Magistrados e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), vídeo de sessão plenária do STF, no julgamento do RE 845779, notícias, artigos em diferentes campos - direito, psicologia social, ciências humanas - entre outros, buscaremos compreender o contexto em que os direitos da população LGBTI+ são absorvidos, pensados, interpretados e manifestados, seja em documentos judiciais; seja no comportamento administrativo, especialmente na gestão de pessoas, dando-se destaque ao CNJ; seja na busca de efetiva equidade dos direitos humanos nos eixos “mulheres”, “raça” e “identidade de gênero” dentro do Poder Judiciário.

A posição dos autores e da autora se baseia em três pilares teóricos: a) assim como os indivíduos podem ser analisados através de sua atividade enunciativa, isso também pode ser feito com instituições, fazendo-se recurso, para tanto, da produção textual por ela em emitida e, ainda, pelo seu silêncio em determinados temas; b) também defendemos que o contexto é crucial para a análise dos fenômenos sociais, e o direito não está alheio a isso. Portanto, entender como funcionam alguns aspectos institucionais do Judiciário, e as condições de produção, circulação e consumo das verdades jurídicas (WARAT, 1994WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito. SA Fabris Editor, 1994.) também podem ser preocupações da teoria das condições de produções semióticas no campo do direito; c) a luta pela hegemonia ideológica nos aparelhos do Estado não é algo uniforme. Os membros que o compõem podem apresentar um comportamento ambíguo, e até mesmo contraditório, ou seja, apresentar decisões afinadas com uma pauta progressista de reconhecimento de direitos de minorias e, em outros casos, apresentar posições marcadamente conservadoras.

Entendemos que compreender essas disputas; mapear e indicar as ações conflitantes e disruptivas; descrever os meandros do funcionamento do Poder Judiciário - que, em certa medida, condicionam e limitam a interpretação dos seus membros; verificar até que ponto os direitos LGBTI são efetivamente “levados a sério”, para usar uma expressão consagrada por Dworkin; são incursões metodológicas que pretendemos abraçar.

Para cumprir os objetivos deste trabalho exploratório, elegemos 2 eixos para realizar a análise: a) fora e dentro; b) voluntariedade.

O primeiro tópico a ser abordado diz respeito ao comportamento do Poder Judiciário voltado para quem não o integra. Trata-se de analisar a sua produção voltada para a dirimir conflitos em ações judiciais, ou seja, voltado para as partes. O segundo tópico diz respeito ao público que decide as ações: buscaremos entender quem são os/as juízes/as, como são recrutados/as, que tipo de preparo recebem, e como entendem o ato de julgar. Aqui será dada especial atenção ao regramento legal da carreira judicial e à produção de normas do CNJ, a quem cabe, em última instância, estabelecer princípios retores da administração judiciária em todo o país.8 8 O CNJ, criado pela Emenda Constitucional (EC) nº 45/2004, tem por missão, entre outras, segundo o art. 103-B da Carta Magna, § 4º, caput, § 4º [...] o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes [...] O terceiro tema a ser abordado é a voluntariedade. Aqui analisaremos se as medidas administrativas voltadas para a implementação de políticas afirmativas nos tópicos “mulheres”, “raça” e “direitos LGBTI+” são feitas de maneira uniforme.

Um Poder que propala a igualdade de todos/as e o direito subjetivo de qualquer cidadão/ã à intimidade e autodeterminação de identidade de gênero e orientação sexual deveria adotar tais princípios como retores de seus membros. Será que as coisas são assim?

4 Poder Judiciário e Direitos LGBTI - a face externa

A análise que se segue perscruta o Poder Judiciário na sua atuação pública, ou seja, no seu munus de exercer a jurisdição. Serão analisados trabalhos que estudam os discursos que integram os votos no julgamento de ações concretas, seja inter partes, sejam objetivas.

Importante destacar, antes de mais nada, que se as pessoas LGBTI+ têm direitos no Brasil, em sua grande parte isso se deve ao Poder Judiciário9 9 Para uma revisão extensa desses direitos, que fogem ao escopo deste trabalho, ver VECCHIATTI (2019). , em resposta às pressões e processos oriundos de ativistas do movimento social organizado.

O Poder Legislativo brasileiro, que conta com uma bancada conservadora numerosa, não consegue avançar na análise e votação de nenhum projeto de lei nesse sentido. E, se o fizesse, seriam grandes as chances de veto pelo atual ocupante da Presidência da República, que se diz paladino da moral cristã e da família tradicional cisheteronormativa (YORK, 2020). Sendo assim, é inequívoco constatar que o Poder Judiciário exerce um importante papel como garantidor de direitos LGBTI+.

A introdução desses direitos se deu por meio de uma opção política da Corte Maior de assumir, a seu encargo, a tarefa de colmatar essas lacunas e remediar essa notória inércia do Legislativo. Alerte-se que a referência anterior ao termo “política” não é feita no sentido de política partidária, o que seria absurdo, tendo em vista a necessidade axiológica de imparcialidade do Judiciário10 10 Sobre a dimensão política da jurisdição constitucional e suas limitações, vide Barroso (2021) e Streck (2008), que destacam esse tópico no bojo do que chamam de Teoria Material da Constituição e seus reflexos nos julgamentos dentro de um Estado Democrático de Direito. para que possa existir um Estado Democrático de Direito efetivo, e não um simulacro de estatismo fascista.

O conceito clássico de tripartição de funções nos levou a crer que só Executivo e Legislativo fazem política. A hoje mítica frase de Montesquieu, de que o juiz (e todo o Poder Judiciário) seria apenas “a boca da lei”, ou seja, o meio pelo qual a lei seria observada no plano dos fatos, sem que o seu aplicador pudesse exercer inovação no seu texto, é mais uma reminiscência da história das ideias jurídicas do que uma realidade.

Com a introdução das cláusulas gerais e indeterminadas e, especialmente, princípios constitucionais, a atividade jurisdicional está cada vez mais impregnada do exercício de política, aqui entendida como espaço no qual se debatem as melhores escolhas para efetivar as garantias eleitas pelo legislador constituinte num ambiente de vagueza semântica.

O cálculo/eleição do bem comum, ou da solução mais apropriada para atender a comandos principiológicos, nunca esteve tão em voga no exercício da jurisdição quanto na pós-modernidade, o que demanda, em certa medida, o desempenho de um cálculo político. Essa afirmação está afinada com a afirmação de Barroso (2010)BARROSO, Luis R. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, DF, v. 12, n. 96, p. 3-41, fev./mai. 2010., para quem “questões de princípio devem ser decididas, em última instância, por cortes constitucionais, com base em argumentos de razão pública”.

Dentro dessa perspectiva de desempenho de atividade política do Judiciário, o processo de mutação constitucional, em sede de Direitos Humanos, tem se mostrado frutífero. Conforme Ávila e Rios (2016)ÁVILA, Ana Paula Oliveira; RIOS, Roger Raupp. Mutação constitucional e proibição de discriminação por motivo de sexo. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 13, p. 21-47, 2016., a mutação ocorre por meio de um processo informal de modificação do texto original da Carta Magna, inovação essa introduzida no bojo do processo interpretativo prévio à aplicação do direito. Através dela, dois resultados podem ser verificados: uma primeira forma se dá quando “o resultado interpretativo contraria o sentido semântico do texto constitucional” e, a outra, no caso de, ante o silêncio do ordenamento, “inova[r] completamente na ordem jurídica (a Constituição é omissa e o Tribunal afirma positivamente um direito), exercendo atribuição reservada não meramente ao legislador ordinário, mas ao próprio poder constituinte” (ÁVILA e RIOS, 2016ÁVILA, Ana Paula Oliveira; RIOS, Roger Raupp. Mutação constitucional e proibição de discriminação por motivo de sexo. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 13, p. 21-47, 2016., p. 31).

Para tornar esses casos mais nítidos, podemos mencionar, como exemplo de ambos, o precedente do STF nas Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132 e ADI 4277: a) nesse julgamento, a Corte declarou que, mesmo havendo texto expresso na Constituição, em seu art. 226, §3º, que só admitia união estável “entre homem e mulher”11 11 § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. ; e ainda que o Código Civil, art. 1.517, tivesse declarado que apenas “o homem e a mulher com dezesseis anos podem casar”, tais restrições de gênero deveriam ser reputadas inconstitucionais com base no princípio da isonomia e da liberdade sexual dos sujeitos de direito; b) nos mesmos julgamentos, o STF criou norma, ao colmatar o espaço deixado pela falta de uma lei específica que permitisse as uniões homoafetivas, tornando isso possível em face da eficácia contra todos das decisões proferidas nos remédios constitucionais citados.

Não obstante tantos avanços na interpretação/aplicação do direito, visando um compromisso ético-político de preservar as pessoas LGBTI+, em nossa sociedade, pela Corte Suprema Brasileira, várias monografias produzidas em nosso país demonstram que essa parcela da população ainda é objeto de frequente violência simbólica em vários outros julgamentos. O direito ainda é um local onde se perpetuam a violência de gênero, de identidade de gênero e de orientação sexual.

Não por outras razões, Borrillo (2010)BORRILLO, Daniel. O sexo e o Direito: a lógica binária dos gêneros e a matriz heterossexual da Lei. Meritum, v. 5, n. 2, p. 289-321, 2010. denuncia o direito como instrumento através do qual são circuladas, distribuídas e implementadas lógicas binárias de reprodução da matriz sexo-gênero, que acirram e buscam manter os privilégios da cisgeneridade:

Raramente mencionado explicitamente, o sexo é onipresente no direito como instituição de origem patriarcal, na qual a subordinação das mulheres e das crianças, como também a injunção à heterossexualidade, constituem os pilares do poder jurídico (BORRILLO, 2010BORRILLO, Daniel. O sexo e o Direito: a lógica binária dos gêneros e a matriz heterossexual da Lei. Meritum, v. 5, n. 2, p. 289-321, 2010., p. 296).

Além desse trabalho, temos diversos outros exemplos para mencionar. Sem pretensão de fazer uma revisão completa de bibliografia, podemos citar:

  1. Serra (2018)SERRA, Victor Siqueira. Pessoa afeita ao crime: criminalização de travestis e o discurso judicial criminal paulista. Dissertação (Mestrado) - Direito, UNESP, 2018. colheu, ao usar como palavra-chave o termo “travesti”, no banco de jurisprudência do TJSP, 100 Acórdãos e, após a sua leitura, verificou que, na enorme parte deles, os magistrados usam termos transfóbicos em face dessas pessoas, seja na recusa de tratá-las como mulheres, com emprego recorrente de pronome masculino ao se referir a elas (“o” travesti, p. ex.); seja nas associações das travestis como pessoas afeitas ao crime, ou tendentes a uma vida criminosa inerente às suas personalidades; seja através do questionamento, ainda que nem sempre explícito, de sua humanidade.

  2. Moreira et al (2019) usaram uma amostragem mais ampla, pesquisando Acórdãos de todos os tribunais do sudeste do Brasil que se referiam não apenas a pessoas transexuais, mas também a outras categorias LGBTI. Nesse estudo, os autores chegam à seguinte conclusão:

    [...] percebemos que, nas diferentes categorias analisadas [gay, lésbica, bissexual, travesti/transexual], a sexualidade não heterossexual ainda é predominantemente permeada por discursos que a colocam como práticas desviantes do plano normal atreladas a situações de ofensas e criminalidade (MOREIRA et al., 2019, p. 61).

  3. por fim, podemos destacar as falas nos debates orais do julgamento do RE 845779, já mencionadas no início deste artigo. Além daquela já destacada na introdução, do Min. Marco Aurélio, temos ainda dois outros momentos que devem ser trazidos à lume.

Como já foi advertido, apenas o Relator desse RE, Min. Roberto Barroso, e o Min. Edson Fachin proferiram votos na sessão, favoráveis à tese de que proibir uma pessoa transexual de usar o banheiro de acesso público do gênero com o qual se identifica é um ato ilícito. No curso desses debates, e após esses votos, o Min. Luiz Fux - que pediu vistas dos autos, o que já dura quase 7 anos - e o então Presidente da Suprema Corte, Min. Ricardo Lewandowski, teceram comentários que, a seguir transcritos, e analisados de forma objetiva, e sem a intenção de perscrutar a intencionalidade dos enunciadores, reforçam posições de violência simbólica contra travestis e mulheres transexuais.

Assim se manifestaram os dois últimos Ministros citados:

Min. Luiz Fux: [...] nos processos objetivos que discutem valores morais, é preciso de alguma maneira que a sociedade seja ouvida para que nós não perguntemos a nós: quem somos nós acima dos valores morais? [...] é preciso que nós tenhamos os ouvidos atentos ao que a sociedade pensa. E aí eu fui a vários artigos populares e encontrei, por exemplo, algumas indagações feitas por pessoas até bem preparadas sob o ângulo humanista e até sob o ângulo jurídico, até um professor de direito constitucional. Então ele pergunta assim: sendo assim, sua filha ou sua mulher será obrigada.... [...]a usar o mesmo banheiro que um homem vestido de mulher, desde que este alegue que se acha mulher? [...] Ainda outras indagações populares, o povo falando sobre essa questão, é.... imagine como ficará o pai mais conservador que tem uma filha, sabendo que ela está na escola e qualquer pessoa que alegue possuir gênero idêntico ao dela vai poder frequentar o mesmo banheiro que a sua filha? [...] E aí começam os fatos mais graves... pessoas que se vestem de mulher para o cometimento de pedofilia; pessoas que se vestem de mulher para abusos sexuais [...]

Min. Ricardo Lewandowski: [...] eu fiquei um pouco... preocupado também com a proteção da intimidade e da privacidade de mulheres e de crianças do sexo feminino que estão numa situação de extrema vulnerabilidade tanto sob o ponto de vista físico quanto psicológico quando estão num banheiro.12 12 Supremo Tribunal Federal, 2015, transcrição dos autores. As falas transcritas ocorrem entre os instantes 2h 08min e 2h 17min do vídeo.

Os sentidos possíveis que podem ser extraídos de tais falas são nítidos: travestis e transexuais fazem uma escolha aleatória, não de expressar uma identidade de gênero, mas de viver uma situação precária e que é transitória. O “homem que se veste de mulher”, como se referem os Ministros, não perde a qualidade masculina, ou seja, dá-se a entender que a subjetividade da mulher transexual e travesti é algo que se faz por performar algo negativo, desviante, não natural. E que pode ser desfeita a qualquer momento, como quem põe ou tira roupas de mulher. Nas falas também vai-se além, associando travestis ao cometimento de crimes, fazendo-se cogitações desse tipo para, inequivocamente, provocar a repulsa de quem está ouvindo e adesão à tese que representa uma violência simbólica manifesta.

Outrossim, não se pode olvidar que selecionar e destacar, dentre todas as possíveis falas que circulam no meio eletrônico, exclusivamente aquelas que se filiam as que defendem uma solução ultraconservadora para tentar justificar a partilha dos banheiros por transexuais, tampouco é uma obra casual. Trata-se de uma estratégia argumentativa e persuasiva que tenta dissimular a filiação ideológica do enunciador que, valendo-se de terceiros (com os quais os Ministros parecem concordar, tanto que só eles foram eleitos para serem mencionados nas suas falas), buscam direcionar o debate, estimulando que ele seja pautado pela avaliação de gosto e o espanto ou incômodo de pessoas cisgênero com a proximidade de pessoas trans.

De fato, podemos encontrar no trabalho de Miller et al. (2017)MILLER, Patrick R. et al. Transgender politics as body politics: Effects of disgust sensitivity and authoritarianism on transgender rights attitudes. Politics, Groups, and Identities, v. 5, n. 1, p. 4-24, 2017. importantes considerações acerca de como a proximidade factual ou hipotética do enunciador com corpos transexuais pode gerar uma interpretação/aplicação diferente dos direitos inerentes a essa minoria. Após aplicar questionários a adultos norte-americanos, questionando a adesão dos entrevistados sobre direitos hipotéticos a pessoas transexuais (direitos ao casamento; direito a isonomia jurídica; a proteção contra discriminação no emprego, etc.), nesse caso a maioria dos entrevistados mostrou-se favorável a isso. No entanto, quando a mesma pergunta era feita a esses mesmos entrevistados, acerca de sua opinião pela implementação de ações concretas que os forçariam a conviver com corpos transexuais ou exigir que outras pessoas também os tolerassem, como na partilha de banheiros; a permissão para que casais homoafetivos ou indivíduos LGBTI+ pudessem adotar crianças, os respondentes mostraram-se contra os mesmos.

Esse estudo reforça a existência de uma perspectiva dêitica na exegese dos direitos humanos de transexuais, que poderia ser assim resumido: Transexuais, tenham direitos, mas longe de mim ou crianças.

A análise dos votos que foram destacados, dos Ministros Marco Aurélio, Luiz Fux e Lewandowski demonstra isso. Todos são, recorrentemente, favoráveis a direitos LGBTI+ em tese, mas a possibilidade de obrigarem outras pessoas a se aproximar e dividir banheiros com transexuais é uma medida que os deixa em dúvida.

A ativação, no ato de julgar, de estereótipos, inclusive estigmatizantes, é uma estratégia comum de economia psíquica, conforme análises no campo da psicologia social (vide BANAJI, HARDIN e ROTHMAN, 1993BANAJI, Mahzarin R.; HARDIN, Curtis; ROTHMAN, Alexander J. Implicit stereotyping in person judgment. Journal of personality and Social Psychology, v. 65, n. 2, p. 272, 1993.). A esse respeito, as crenças sobre diferentes grupos sociais já formadas pelo sujeito no seu inconsciente são usadas, conscientemente ou não, em julgamentos desses grupos. Apesar de todos nós usarmos estereótipos nesse processo de escolha, para acelerá-lo, é inegável que não falar sobre os possíveis preconceitos só irá fazer com que essas características negativas sejam disseminadas, o que irá propiciar o reforço dessa hierarquização. E não se pode negar que os estereótipos associados a travestis e transexuais comumente circulantes na sociedade ocidental ainda são extremamente negativos.

Exemplos de como o ato de julgar estimula e reforça esses estigmas podem ser mencionados nas obras de Wood, Carrillo e Monk-Turner (2019)WOOD, Frank; CARRILLO, April; MONK-TURNER, Elizabeth. Visibly unknown: Media depiction of murdered transgender women of color. Race and Justice, p. 1-19, 2019., que, após análise de notícias divulgadas na mídia, relativas ao assassinato de 23 mulheres transexuais negras, nos EUA, encontraram frequentes remissões a elas no masculino e, pior, destacam que as mensagens das matérias indicavam que “as suas vidas eram descartáveis”. Outro artigo, de DeJong et al (2021), após analisar a repercussão jornalística da morte de 26 pessoas trans, todas assassinadas, conclui que a abordagem é feita de maneira a enfatizar a marginalização do estilo de vida supostamente eleito pelas vítimas.

Justamente por todos esses fatores é importante debater essa disparidade e complexidade do ato de julgar, o que demonstra que os direitos LGBTI e a sua interpretação/aplicação pelos juízes não é feita de maneira monolítica, ou utilizando núcleos estáveis. Existem modulações no julgamento desses direitos, que podem ser reportadas ao grau de proximidade com que o julgador tem que se posicionar frente ao corpo do/a transexual. Quanto mais próximo da teoria, mais direitos. Quanto mais perto desses corpos o julgador terá que ficar, ou terá que tolerar que ele circule no mesmo ambiente que o seu, menos eficácia se dará aos direitos humanos dessas pessoas transexuais e menor será o gradiente de acolhimento e reconhecimento dessas identidades.

5 As entranhas do Poder Judiciário - conhecendo quem interpreta e decide os direitos LGBTI.

Os autores e a autora deste texto partem do pressuposto de que não apenas o que é dito nas sentenças e Acórdãos deve ser levado em conta como critério de julgamento das identidades transexuais. Também o perfil institucional, ou seja, o perfil de quem decide, e quais os parâmetros sócio-econômico-ideológicos desses membros, tem um relevante papel na compreensão de como é absorvido o discurso sobre identidades de gênero e orientação sexual, bem como ele é interpretado.

De todos os possíveis ângulos que poderíamos tratar o tema (existem em nosso país diversas obras que fazem uma impecável análise em ciência política, estudando as elites do Judiciário, vide ALMEIDA, 2010ALMEIDA, Frederico Normanha Ribeiro de. A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da justiça no Brasil. 2010. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo., 2014________. As elites da justiça: instituições, profissões e poder na política da justiça brasileira. Revista de Sociologia e Política, v. 22, p. 77-95, 2014.; COSTA FILHO, 2013COSTA FILHO, José Vinicius da. Quem controla o judiciário?: Uma análise sobre o perfil dos membros do Conselho Nacional de Justiça (2005-2011). 2013. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco., entre outras), vamos destacar apenas um: a forma de recrutar e preencher os cargos de juiz/juíza em nosso país, por entender que ele posicionará os sujeitos discursivos da interpretação/aplicação do direito na estrutura social que determina, em parte, do que pode ser dito, ou seja, o tipo de ideário comum partilhado por esses/as profissionais.

Segundo a Constituição Federal em vigor, arts. 93, I e art. 94, só existem duas formas de se galgar o cargo de juiz/juíza, em sentido amplo (incluindo neste termo Desembargadores/as e Ministros/as): pela via do concurso público de provas e títulos ou pela eleição, pelo Chefe do Executivo Federal ou Estadual, de um nome em lista tríplice da OAB ou Ministério Público, para ocupar o chamado “quinto constitucional”13 13 Para efeito de simplificação do tema, iremos tratar a eleição de membros dos Tribunais Superiores e do STF como inseridos no segundo caso, tendo em vista que não há uma exigência de que façam parte da carreira judicial - ainda que nem sempre isso aconteça. No entanto, tanto no processo de escolha de membros do quinto constitucional, quanto o de Ministros, tem um forte componente político que os une e, por isso, a nossa opção metodológica. . Nos limitaremos ao primeiro caso.

A seleção se inicia com a publicação do Edital com as regras do concurso, que cobre um número enormemente extenso de matérias, com provas sucessivas em, pelo menos, 4 etapas, entre objetivas, dissertativas, orais e curriculares. Visando dar uma abordagem o mais objetiva possível do público que se inscreve (e é aprovado) nesses concursos, nos valemos do texto produzido por André Gambier Campos (2021)CAMPOS, André Gambier. O que explica a aprovação dos candidatos nos concursos públicos da Magistratura do Trabalho? A relevância das experiências sociais e profissionais. Rio de Janeiro: IPEA, 2021. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10949/1/td_2711.pdf. Acesso em: 16 jan. 2021.
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream...
, Técnico de Planejamento do IPEA, que analisou o perfil socioeconômico dos/as candidatos/as inscritos/as no I Concurso Público Nacional Unificado da Magistratura do Trabalho (CPNU), que teve início em 2017, distribuído em 6 fases distintas. Dos/as 13.604 candidatos/as inscritos/as, menos de 10% foi aprovado na primeira etapa (9,9% apenas), e tão-somente 1,7% logrou êxito, ao final. O concurso durou entre junho/2017 e dezembro/2018.

Uma apuração feita nesse estudo entre os/as candidatos/as aprovados/as na última fase do concurso, a prova oral, constatou que os/as entrevistados/as haviam se dedicado por um período anterior ao início do certame de, em média, 33,8 meses (pouco mais de 2 anos e 9 meses). Os/as aprovados/as na primeira etapa contavam com 29,2 meses (quase 2 anos e meio), em média, de horas dedicadas à preparação. Quando se pesquisou as despesas dos/as candidatos/as aprovados/as - com cursos preparatórios, coaching, livros, material de escritório, computadores, etc. - o estudo estimou que esses/as gastaram, também em média, R$ 38.426,62.

A maioria daqueles/as que lograram êxito, ou seja, 95,9%, disseram ter custeado eles/as mesmos/as tais despesas, demonstrando que já tinham inserção anterior no mercado de trabalho e que se prepararam, tanto intelectual, quanto financeiramente, para essa disputa. Interessante notar que a média etária da maior parte dos/as aprovados/as foi de apenas 31 anos ou mais (59,8%).

Quanto à renda média desses novos/as juízes/juízas do trabalho, a maior parte, ou seja, 36,8%, indicaram estar na maior faixa dentre as contidas no formulário, de R$ 4.569,00, ou mais, por mês. Esses dados deixam evidente que o recrutamento de juízes/as no Brasil, para além do seu rigor técnico, que não está em questão aqui, forma um nicho profissional em que a maioria dos/as aprovados/as é oriunda das classes média ou alta. Dificilmente alguém sem esse perfil consegue aprovação.

O panorama acima traçado, ainda que diga respeito a um certo e determinado concurso público para juízes/as do trabalho, parece espelhar o que acontece em qualquer concurso público para juiz/juíza no Brasil, seja de que estrato federativo for.

A partir dessas constatações, poderíamos afirmar que os/as membros/as do Poder Judiciário são conservadores/as, não com base em pesquisas empíricas ou entrevistas, mas com base nas lições da história de nosso país que, desde a época imperial, demonstram que o serviço público vem sendo alvo de captura pelas elites econômicas (FAORO, 2008FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 4. ed. São Paulo: Globo, 2008.), seja nos cargos de confiança, seja através de seleções supostamente imparciais que, ao fim e ao cabo, privilegiam quem tem recursos e tempo para se preparar para elas.

Para piorar, é notório que nesses concursos a capacidade mnemônica é supervalorizada - talvez isso explique porque pessoas com cerca de 31 anos sejam a maior parte dos/as aprovados/as - e que os cursos de direito, longe de promoverem uma educação crítica, buscam um desempenho instrumental, visando a aprovação em provas para obtenção de carteira da OAB ou concursos públicos.

Ao fim e ao cabo do concurso público para juiz/juíza, e com base no estudo acima referido e nas análises acerca do tipo de educação que esses/as candidatos/as recebem, temos um/a profissional da elite econômica, que conhece, por vezes de cor, várias passagens de artigos de leis e decretos, mas que não tem bagagem crítica para desempenhar esse mister de maneira a ir além da mera repetição desses textos (SILVA, 2016SILVA, Diogo Bacha e. Ativismo judicial ou contrarrevolução jurídica?: em busca da identidade social do Poder Judiciário. Revista de informação legislativa: RIL, v. 53, n. 210, p. 165-179, abr./jun. 2016.).

Os autores e a autora deste texto entendem que esse tipo de seleção, ainda que respeite critérios objetivos, é problemática pois não prepara profissionais para lidarem com a diversidade e nem enfatiza o lado humanístico da educação jurídica. O rigor do concurso público - o que se revela na baixíssima aprovação, inferir a 2% dos inscritos - e o extenso rol de matérias cobradas parecem querer dar a ilusão aos/às gestores da administração judiciária que os/as juízes/as já tomam posse preparados/as tecnicamente para exercer o ofício, e que isso seria suficiente. Não se problematiza o fato de se lidar com um estrato elitista e, muitas vezes, conservador em termos de moral pública.

Não deveria gerar surpresa, por exemplo, que um magistrado de vara de família declare, em audiência, que não está “nem aí para a lei Maria da Penha”14 14 O termo citado vem de caso amplamente divulgado na mídia, no qual um magistrado paulista, atuando em vara de família, que foi gravado em audiências durante a pandemia, fez tal declaração, minimizando as acusações de partes do gênero feminino contra seus companheiros/maridos em ações em curso. Sobre o caso: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/12/18/nao-to-nem-ai-para-a-lei-maria-da-penha-ninguem-agride-ninguem-de-graca-diz-juiz-em-audiencia-corregedoria-do-tj-apura-caso.ghtml. . Se contextualizamos a forma como se recrutam esses profissionais; se não há preparação e humanização deles no cargo; não deveria causar perplexidade que posições machistas possam servir como critério de julgamento, se estamos imersos numa sociedade machista.

Sendo assim, não assumimos como algo “natural” a aparente falácia imperante no meio jurídico, que aceita como crível que um profissional, por mais intelectualizado que seja, possa despir os seus preconceitos quando veste a toga e julga os seus casos.

Quando passamos em escrutínio o curso de preparação na carreira, isso fica ainda mais nítido. Os/as aprovados/as no concurso para juiz/juíza devem, obrigatoriamente, frequentar curso que deve durar 480 horas/aula, no espaço de até 4 meses. Os conteúdos dessa formação não são livres, posto que regulada pela Resolução nº 2 da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados Ministro Sávio de Figueiredo Teixeira (ENFAM), vinculada ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Não está prevista a abordagem de direitos LGBTI nesse rol. Isso fez com que, por exemplo, os/as novos/as juízes/as que tomaram posse, em dezembro/2020, na Bahia, encerrassem a sua preparação inicial na carreira sem que se tocassem em temas concernentes a gênero, salvo o binário, especialmente quanto à violência doméstica de mulheres cisgênero.

A Resolução do CNJ nº 423, editada em 05/10/2021, ampliou ainda mais as matérias a serem cobradas no concurso para a magistratura e incluiu um tópico específico sobre Direito da Antidiscriminação, contemplando especificamente os concernentes às questões LGBTI. Essa inclusão, apesar do aparente avanço, se analisada em si mesma, só reforça o caráter enciclopédico do concurso. E como não há preparação à posteriori ao concurso, apenas fica afirmada e confirmada a pouca formação humana nessa seara por parte dos/as aprovados/as.

Para concluir, é importante ressalvar que o ato de julgar não se dá num processo objetivo de submissão do fato à norma, como se se tratasse de algo meramente mecânico ou burocrático. Como tivemos a oportunidade de dizer acima, a figura do/a juiz/juíza pensada pelo Barão de La Brède, como “boca da lei” (MONTESQUIEU, 2000MONTESQUIEU, O espírito das leis. Martins Fontes, 2000.), que a aplicava sem precisar interpretá-la ou só o fazia quando absolutamente necessário, e com extrema parcimônia, não é mais congruente com a pós-modernidade e seus imperativos morais e principiológicos, que exigem do/a juiz/juíza uma atividade cada vez mais criativa na produção da solução de cada caso.

Portanto, é preciso denunciar essa ilusão que existe no interior do sistema de justiça, que pensa que o rigor da seleção de seus/suas juízes/as é suficiente para não problematizar o ato de julgar. Nenhum/a juiz/juíza deveria ser tido/a como capaz de exercer a capacidade estóica de autocontrole pelo simples fato de ser inteligente o suficiente para estar no 1% dos/as aprovados/as num concurso. Invariavelmente, eles/as trazem para dentro deles/delas o que de melhor e pior de têm em si, o que é inerente à categoria humana.

Sendo assim, se todos/as somos clivados/as pelo inconsciente; e se nenhum livro de direito irá alterar essa natureza, é preciso que se observe que, para além do rigor da técnica, há que se cuidar os problemas humanos implicados no ato de julgar, especialmente quando se trata de direitos LGBTI+, coisa que não se faz no sistema de justiça, que vive a ilusão do/a juiz/juíza senhor/a de si, autocentrado/a e livre de falhas.

6 A vontade de diversidade na gestão interna do Poder Judiciário, segundo o CNJ.

Um poder que prega diversidade e direitos para a população LGBTI deveria, logicamente, oportunizar a sua implementação como pauta de gestão de pessoas dos membros que o compõem. Não é isso que ocorre na prática.

O Poder Judiciário, especialmente através de atos de gestão administrativa do CNJ, tem buscado se alinhar e desenvolver políticas afirmativas em sede de direitos humanos. Exemplo disso é a recente decisão desse órgão de exigir que todos os Tribunais do país estejam alinhados à Agenda 2030 da ONU, conforme Resolução nº 325/2020, que contempla Metas e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável; assim como a Resolução nº 400/2021, também do CNJ, que prevê a adoção de medidas de equidade na gestão de pessoas, com pleno respeito à identidade de expressão de gênero (art. 16, §5º).

Se, no entanto, analisarmos três temas representativos de diversidade, quais sejam, participação feminina (sexo); raça; e identidade de gênero, veremos que inexistem políticas afirmativas sequer pensadas para/em relação aos últimos.

Nessa nossa análise, privilegiamos, dentre as normas editadas pelo CNJ, aquelas que atendem a dois requisitos: voluntariedade e efetividade.

O primeiro elemento aponta que houve uma decisão administrativa livre, sem que houvesse comandado legal direito e/ou específico para que fosse implementada a ação afirmativa. O segundo aponta que a prática não se mantém no nível teórico ou enquanto carta de princípios da administração judiciária, mas se constitui em diretriz voltada para a ação, ou seja, visando a produção de dados quantificáveis na instituição.

No que diz respeito ao eixo sexo (entendido aqui no sentido “biológico” pelo sistema/cistema), desde a gestão da Min. Cármen Lúcia, na Presidência do STF e CNJ, houve uma ênfase nesse tocante. Foi editada a Resolução nº 255/2018, que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, que exige que sejam criados mecanismos e comissões em todos as Cortes do país voltadas para estimular a equidade de gênero na ocupação de cargos de chefia, assessoramento, bancas de concurso e exposição, em eventos institucionais. Já a Resolução nº 376/2021 passou a exigir que todas as referências a ocupantes de cargos do Poder Judiciário sejam feitas com obrigatória flexão de gênero, quebrando a ficção do gênero masculino universal.

No quesito raça, a Resolução nº 203/2015, mesmo sem que houvesse comando legal, como no caso anteriormente citado, determinou que fossem reservados 20% de todos os cargos veiculados em Editais de concursos públicos, em todas as esferas do Poder Judiciário (para juízes/as e servidores/as), para negros/as e membros de povos originários, o que gerou um aumento percentual expressivo dos juízes/as pretos/as: de 12%, em 2013, esses passaram para 21% entre 2019/2020, conforme a Pesquisa sobre Negros e Negras no Poder Judiciário (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2021________. Pesquisa sobre Negros e Negras no Poder Judiciário. Brasília, DF: CNJ, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/rela-negros-negras-no-poder-judiciario-150921.pdf. Acesso em: 18 jan. 2022.
https://www.cnj.jus.br/wp-content/upload...
). Além disso, foi criado um Grupo de Trabalho de Políticas Judiciárias sobre Igualdade Racial no âmbito do Poder Judiciário, por meio da Resolução nº 108/2020, que vem se reunindo periodicamente e criando ações inovadoras.

Esses avanços não se fizeram sentir no campo dos direitos LGBTI+ dos/as membros/as deste Poder. Se levado em conta os critérios de voluntariedade e eficácia, e após acurada análise dos atos editados pelo CNJ, não foi encontrado nenhum com impacto significativo na preparação e implementação de qualquer política afirmativa no interior do Judiciário.

Para começar, ao contrário da situação das mulheres e negros, em que são estimulados, por meio dos atos administrativos acima referidos, a quantificação e elaboração contínua de relatórios para levantamento de dados apontando o progresso dessas medidas, nunca houve um censo demográfico para apurar as identidades de gênero do Poder Judiciário.

Assim como no plano nacional, em que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, responsável pelo recenseamento da população, se recusa a incluir em seu questionário perguntas voltadas ao dimensionamento da população LGBTI+ - com a notória exceção da indagação a respeito de se o/a respondente é casado/a com pessoa do mesmo sexo - o último Censo do Poder Judiciário, elaborado pelo CNJ, cujos resultados foram divulgados em 2014, tampouco se preocupou em indagar a orientação sexual ou identidade de gênero, seja de juízes/as, seja de servidores/as (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2014CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Censo do Poder Judiciário. VIDE - Vetores Iniciais de Dados Estatísticos. Brasília, DF, 2014. Disponível em: VIDEcenso.indd (cnj.jus.br). Acesso em: 18 jan. 2022.).

Importante frisar que o mesmo não se deu no que diz respeito à percepção dos diferentes sexos e gêneros. Prova disso é que foram elaboradas no questionário perguntas sobre a percepção das mulheres do Poder Judiciário e os problemas práticos que lhes afligiam. As pessoas LGBTI do Judiciário não tinham sequer como indicar a sua identidade de gênero, eis que a pergunta sobre o assunto só tinha duas alternativas: homem e mulher. Esse tipo de silêncio, mais uma vez frisamos, não é aleatório ou acidental. A mensagem é nítida: não existem (supostamente) pessoas com identidade de gênero fora do padrão binário no sistema de justiça.

Antes que possamos ser censurados em nossa análise, e seja apontada a Resolução nº 270/201815 15 Essa Resolução dispõe sobre o uso do nome social pelas pessoas trans, travestis e transexuais usuárias dos serviços judiciários, membros/as, servidores/as, estagiários/as e trabalhadores/as terceirizados/as dos tribunais brasileiros/as. como ação afirmativa em favor das pessoas LGBTI do Judiciário, devemos lembrar que esse diploma só veio à lume depois do julgamento, no STF, da ADI 4275 e RE 670.422, que exigiu respeito ao nome como direito fundamental de pessoas transexuais. Sendo assim, carece de voluntariedade, sob a perspectiva de nossa análise, que isso seja apontado como algo efetivamente inovador.

Destaque-se, a respeito, que nesse ponto nem mesmo o CNJ vem obedecendo a sua própria Resolução 270, e vem consentindo e admitindo que diversos atos de transfobia/travestifobia sejam praticados pelo Poder Judiciário.

É esse o resultado da apuração que os autores e a autora fizeram quanto a programa Banco Nacional de Monitoramento de Prisão (BNMP), versão 2.0. Segundo consta do Manual de Instrução do mesmo, a sua função é “[ser] instrumento para “humanizar” o sistema carcerário, e tem como finalidade ajudar na gestão da população carcerária do Brasil [...].

Na prática, não existe nenhum campo para o nome social de um/a preso/a travesti ou transexual. Caso seja ordenada a sua prisão, o seu nome de registro é que constará do documento. Já vimos um mandado em que o nome social do detento estava no campo alcunha. Tolerar que se equivalha o nome social de réu em ação penal a uma alcunha, termo dicionarizado como “cognome [...] de valor depreciativo, dado a alguém devido a característica física ou moral” (AULETE, 2022ALCUNHA. In: AULETE DIGITAL, 2022. Disponível em: https://www.aulete.com.br/alcunha. Aceso em: 20 jan. 2022.
https://www.aulete.com.br/alcunha....
), é uma violência de gênero que, de tão grande, nos poupamos de dimensionar.16 16 Nos referimos ao mandado de prisão de Naiara Kawasaki - cujo nome registral nos recusamos a fornecer em respeito à identidade de gênero da parte, nos autos da ação penal em tramitação na 8ª Vara Criminal de Salvador, número de tombo 0319716-63.2016.8.05.0001, Mandado de Prisão com número de Tombo no BNMP 2.0 0319716-63.2016.8.05.0001.01.0001-15.

Destaque-se que mesmo a decisão do STF sobre o tema ter sido proferida em 2018, a inércia do CNJ em dar uma solução para o problema retratado demonstra o ponto de vista defendido aqui.

Com isso, concluímos que, ao contrário do que se supunha, o Poder Judiciário, globalmente, tem se mantido inerte em permitir que o seu espaço institucional seja usado para a implementação de políticas afirmativas ou que sejam adotadas ações que levem ao aperfeiçoamento de medidas que tendam à diversidade de gênero e orientação sexual na sua gestão interna.

(In)conclusão

O presente texto teve a pretensão de refletir sobre o futuro dos direitos das pessoas LGBTI+. Iniciamos o nosso percurso com uma provocação suscitada no interior do sistema de justiça sobre a possibilidade de limitação do princípio de autodeterminação de gênero por questões de passabilidade do corpo transexual e travesti ao gênero com o qual se identifica. Em seguida, após lançar mão de conceitos basilares de gênero e performatividade de gênero, tentamos compreender como integrantes do Poder Judiciário encaram o seu papel, na estrutura social, de serem garantistas dos direitos dessas pessoas.

Para tanto, foi necessário dissecar essa instituição, usando um conjunto de saberes eclético, que destacou a face discursiva dos textos emanados desse estrato da burocracia estatal, através de julgamentos de ações judiciais; bem como enfrentamos a tarefa de traçar um perfil sociopolítico do recrutamento de juízes/as e, por fim, tentamos compreender como eles/as são preparados/as para desempenhar as suas funções e de que modo políticas afirmativas de equidade são valorizados nesse ambiente.

Os tópicos abaixo buscam sintetizar os pontos de vista defendidos:

  1. O princípio constitucional de autodeterminação de gênero tem assento constitucional e status de direito fundamental. Não sendo a pessoa um instrumento, mas um fim em si mesma, conforme o pensamento kantiano; e tendo ela o direito de expressar a sua subjetividade através de formas que escapam à divisão binária de gênero, restringir esse direito com base em critérios de moralidade conservadora, segurança ou intimidade de terceiros/as, ou seja, com argumentos sem base factual e que reproduzem preconceitos e estigmas, é uma forma nociva de fazer hermenêutica constitucional (vide RAMOS, 2021; BARROSO, 2020________. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.);

  2. Pessoas travestis e transexuais são SEMPRE sujeitos/as de direito, não apenas quando performam gênero de determinada maneira, ou seja, com aptidão a não levantar suspeitas quanto à possível existência (atual ou pretérita) de terem nascido com pênis ou vagina;

  3. Assim como no princípio o feminismo reivindicava os direitos das mulheres e, para tanto, padronizava a mulher como uma categoria ontológica branca e classe média, com nível superior, heterossexual, também o Poder Judiciário tende a criar uma imagem dos diferentes tipos de identidade de gênero de maneira padronizada. Não obstante, esse tipo de pensamento apenas reforça normas sociais de hierarquias e dominação desses corpos que o direito à autodeterminação deveria defender;

  4. Assim como existem homens mais femininos ou mais viris, mulheres mais masculinas, e travestis ou mulheres trans não hormonizadas e que não têm interesse de fazer cirurgia de redesignação sexual, o princípio da autodeterminação de identidade de gênero não pode recusar o reconhecimento da titularidade da proteção constitucional a direitos humanos apelando para supostos (d)efeitos de performatividade. Do contrário, estaríamos a, continuamente, praticar a exclusão e marginalização de uma parcela de nossa população, que estaria relegada não apenas ao desprezo social, mas também jurídico;

  5. Existe uma ambiguidade no tratamento dos direitos LGBTI pelo Poder Judiciário. No plano geral, das ações constitucionais de eficácia erga omnes, ele é progressista; no plano das ações individuais, ele tende a espoliar os direitos daqueles que não performatizam o seu gênero de forma binária e cisnormativa. Isso demonstra que a proximidade do membro do sistema de justiça com o corpo transexual é um fato que altera a forma como ele/a interpreta e aplica direitos, e isso precisa ser levado em conta;

  6. Eis o desafio do Judiciário frente ao futuro dos direitos LGBTI+: preparar e humanizar os membros do sistema de justiça para lutar contra os seus preconceitos (conscientes ou não) contra pessoas transexuais e travestis. Apenas passar num concurso rigoroso não despe as pessoas de estigmas que elas levam consigo e para os seus julgamentos;

  7. O Poder Judiciário, para avançar no escopo a que se propôs na jurisdição constitucional de direitos LGBTI+, precisa exercer uma revisão crítica da forma como pauta princípios inerentes a essa minoria, especialmente na sua própria gestão de pessoas. Não se respeita algo que não se vê no cotidiano. E a verdade é que não existem travestis e transexuais circulando nos corredores dos Fóruns e Tribunais.

  8. Portanto, assim como o Poder Judiciário se transformou num espaço de mudança social e criação de oportunidade para mulheres e negros/as, é preciso reconhecer que a diversidade buscada pela Agenda 2030, ou Resolução 400/CNJ, só estará completa se puder haver a inclusão de identidades de gênero divergentes do padrão binário;

  9. É chegada a hora, ainda, de iniciar um processo de demarcação de espaços em que exista uma ação deliberada e consciente de “desfazer o gênero” (DEUTSCH, 2007DEUTSCH, Francine M. Undoing gender. Gender & society, v. 21, n. 1, p. 106-127, 2007.; BUTLER, 2004________. Undoing Gender. New York: Routledge, 2004.), no qual não seja permitido que sujeitos sejam responsabilizados por performatividades de gênero supostamente falhas;

  10. Entendemos que só há futuro para as identidades não binárias fora do padrão estigmatizante de gênero na medida em que compreendermos que as subjetividades não são compostas por blocos uniformes, mas por multidões multifacetadas (PRECIADO, 2011PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais". Revista Estudos Feministas, 2011, 19: 11-20.), e que a resistência contra essas forças normalizadoras precisa encontrar um aliado nos/as juízes/as;

O corpo não é uma matéria passiva. E o trabalho simbólico que se faz sobre ele nada tem de natural, sendo reflexo de uma estrutura dispersa de regras de subjetivação. Respeitar a dinâmica dessa subjetivação e atentar para o direito à diferença é o que tornará a realidade social, que partilhamos, mais diversa. Como nos diz Butler (2004________. Undoing Gender. New York: Routledge, 2004., p.7): “a autodeterminação de gênero se torna um conceito plausível apenas no contexto de um mundo social que apoia e permite [um exercício] de autonomia”.

  • 1
    Grifo nosso. O julgamento, ocorrido no dia 20/11/2015, ainda não concluído, está aguardando há 7 anos que o Min. Luiz Fux, que pediu vistas, o libere para julgamento. Os debates podem ser vistos no canal do Youtube do STF, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=t2nr57_Ku6c (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2015SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pleno - Suspenso julgamento que discute tratamento social dos transexuais. Youtube, 20 nov. 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=t2nr57_Ku6c.
    https://www.youtube.com/watch?v=t2nr57_K...
    ).
  • 2
    . Transcrição feita pelos autores. Os trechos destacados estão entre os intervalos 1h 44min 20seg e 1h 45min 57seg do vídeo. Grifos nossos.
  • 3
  • 4
    Consultar https://www.instagram.com/p/CPqR3cjnkED/ - Acesso em 30 mar. 2022.
  • 5
    Sobre a intersexualidade, ler o dossiê publicado na Revista Periódicus, v. 2, n. 16, especialmente dedicado à intersexualidade (PERIÓDICUS, 2021).
  • 6
    Sobre os conceitos de heterossexualidade compulsória e heteronormatividade, ver Colling e Nogueira (2015)_______; NOGUEIRA, Gilmaro. Relacionados, mas diferentes: sobre os conceitos de homofobia, heterossexualidade compulsória e heteronormatividade. In: RODRIGUES, A.; DALLAPICULA, C.; FERREIRA, S. R. S.. (Org.). Transposições: lugares e fronteiras em sexualidade e educação. Vitória: EDUFES, p. 171-183, 2015b..
  • 7
    Nos últimos 15 anos, as identidades transexuais e travestis deixaram de ser pensadas como variações da homossexualidade para serem entendidas como variações das identidades de gênero (ver COLLING, 2018_______. Impactos e/ou sintonias dos estudos queer no movimento LGBT do Brasil. In: Renan Quinalha; James Green; Marisa Fernandes; Marcio Caetano. (Org.). História do movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Alameda, v. 1, p. 515-531, 2018.). Essa transformação foi fundamental para a aprovação das leis de identidade de gênero no mundo e também foi importante para a decisão do STF, no Brasil, de permitir a retificação do prenome e gênero nos documentos das pessoas que se identificam como transexuais e travestis.
  • 8
    O CNJ, criado pela Emenda Constitucional (EC) nº 45/2004, tem por missão, entre outras, segundo o art. 103-B da Carta Magna, § 4º, caput, § 4º [...] o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes [...]
  • 9
    Para uma revisão extensa desses direitos, que fogem ao escopo deste trabalho, ver VECCHIATTI (2019)VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. A Constituição de 1988 e a evolução dos direitos da população LGBTI+. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, v. 6, n. 01, 61 p., 2019..
  • 10
    Sobre a dimensão política da jurisdição constitucional e suas limitações, vide Barroso (2021) e Streck (2008), que destacam esse tópico no bojo do que chamam de Teoria Material da Constituição e seus reflexos nos julgamentos dentro de um Estado Democrático de Direito.
  • 11
    § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
  • 12
    Supremo Tribunal Federal, 2015SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pleno - Suspenso julgamento que discute tratamento social dos transexuais. Youtube, 20 nov. 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=t2nr57_Ku6c.
    https://www.youtube.com/watch?v=t2nr57_K...
    , transcrição dos autores. As falas transcritas ocorrem entre os instantes 2h 08min e 2h 17min do vídeo.
  • 13
    Para efeito de simplificação do tema, iremos tratar a eleição de membros dos Tribunais Superiores e do STF como inseridos no segundo caso, tendo em vista que não há uma exigência de que façam parte da carreira judicial - ainda que nem sempre isso aconteça. No entanto, tanto no processo de escolha de membros do quinto constitucional, quanto o de Ministros, tem um forte componente político que os une e, por isso, a nossa opção metodológica.
  • 14
    O termo citado vem de caso amplamente divulgado na mídia, no qual um magistrado paulista, atuando em vara de família, que foi gravado em audiências durante a pandemia, fez tal declaração, minimizando as acusações de partes do gênero feminino contra seus companheiros/maridos em ações em curso. Sobre o caso: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/12/18/nao-to-nem-ai-para-a-lei-maria-da-penha-ninguem-agride-ninguem-de-graca-diz-juiz-em-audiencia-corregedoria-do-tj-apura-caso.ghtml.
  • 15
    Essa Resolução dispõe sobre o uso do nome social pelas pessoas trans, travestis e transexuais usuárias dos serviços judiciários, membros/as, servidores/as, estagiários/as e trabalhadores/as terceirizados/as dos tribunais brasileiros/as.
  • 16
    Nos referimos ao mandado de prisão de Naiara Kawasaki - cujo nome registral nos recusamos a fornecer em respeito à identidade de gênero da parte, nos autos da ação penal em tramitação na 8ª Vara Criminal de Salvador, número de tombo 0319716-63.2016.8.05.0001, Mandado de Prisão com número de Tombo no BNMP 2.0 0319716-63.2016.8.05.0001.01.0001-15.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2022
  • Aceito
    21 Abr 2022
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