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O consentimento no tráfico sexual sob o martelo do Judiciário: as práticas e os discursos dos julgadores

The consent in sex trafficking under the hammer of the Judiciary: judicial practices and discourses

Resumo

Este artigo tem como objetivo principal analisar a resposta judicial sobre o consentimento no tráfico sexual. A análise qualitativa recai sobre as práticas e os discursos dos julgadores em sete acórdãos do Tribunal Regional Federal da 3ª Região como elementos para problematização da relação entre poder punitivo e gênero a partir do arsenal teórico-metodológico da Criminologia Feminista e da Análise Crítica do Discurso. Sustentamos que, nas decisões posteriores a 2016, os julgadores (i) romperam com a categorização, os retratos padronizados e os pânicos morais sobre o tráfico sexual, bem como (ii) guinaram o entendimento sobre o consentimento, que passou a ser considerado relevante para a configuração do crime. Defendemos que os julgadores podem confeccionar novos padrões de entendimentos judiciais antidiscriminatórios e não generalizantes, contudo, falham na elaboração de um efetivo projeto jurídico feminista.

Palavras-chave:
Direito; Gênero; Consentimento

Abstract

This paper aims to analyze the judicial response on consent to sex trafficking. The qualitative analysis falls on the judicial practices and discourses of the Court's judges in seven (07) judgments of the Tribunal Regional Federal da 3ª Região as elements for problematizing the relation between punitive power and gender from the theoretical-methodological arsenal of Feminist Criminology and Critical Discourse Analysis. We sustain that, in decisions after 2016, the judges have (i) broked with the categorization, standardized portraits and moral panics about sex trafficking, as well as (ii) modified the understanding about consent, which became relevant for a configuration of crime. We argue that the judges can create new standards of anti-discriminatory and non-generalizing judicial understandings, however, they fail to develop an effective feminist legal project.

Keywords:
Law; Gender; Consent

Introdução

Trata-se de trabalho1 1 O presente artigo traz os principais resultados das pesquisas realizadas na Universidade Estadual Paulista (UNESP) e na Universidad de Sevilla (US) a partir do fomento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). que tem como principais objetos de análise as práticas e os discursos contidos na resposta do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (doravante TRF3)2 2 A escolha deste Tribunal se justifica pelo fato de ser o TRF que mais possui decisões (quatro) sobre o consentimento com base na lei 13.344/2016. O TRF1 e o TRF4, por exemplo, possuem somente 1 decisão sobre consentimento nos processos 0005165-44.2011.401.3600 e 5000982-06.2013.4.04.7216, respectivamente. Vale ressaltar, também, que a temática não foi levada ainda ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) nem ao Supremo Tribunal Federal (STF) na forma de recurso especial e recurso extraordinário, respectivamente, para discutir o mérito em torno do consentimento. às teses defensivas sobre consentimento no crime de tráfico sexual, que atinge majoritariamente mulheres. Para tal, mobilizamos sete acórdãos3 3 Compõem o banco de análise os acórdãos referentes aos seguintes processos, com recorte temporal de 2012-2020: acórdão 1: 0000743-68.2008.4.03.6124 (BRASIL, 2012); acórdão 2: 0004420-08.2003.4.03.6181 (BRASIL, 2015a); acórdão 3: 0007268-55.2009.4.03.6181 (BRASIL, 2015b); acórdão 4: 0000235-15.2013.4.03.6006 (BRASIL, 2017a); acórdão 5: 0003569-27.2007.4.03.6181 (BRASIL 2017b); acórdão 6: 0003784- 95.2010.4.03.6181 (BRASIL 2017c); acórdão 7: 0001445-79.2010.4.03.6112 (BRASIL, 2019). que compõem o banco de materiais para analisar qualitativamente o conteúdo jurídico e discursivo produzido nas decisões de segunda instância. Ao analisar as práticas jurídicas e as performances linguísticas confeccionadas pelos decisores nos acórdãos, é possível identificar como os julgadores (re)produzem o universo do tráfico sexual, seus personagens e suas imagens e, a partir disso, como (des)regulam as relações de gênero4 4 Apesar de reconhecermos “gênero” como categoria instável e em processo de (des)construção por várias autoras feministas, consideramos útil, para a presente proposta de abordagem, entendê-lo com base no sentido atribuído pela feminista pós-moderna Teresa de Lauretis (1994), que busca desconstruir a tradicional imbricação entre gênero e diferença sexual a partir da ideia de que o gênero seria, na realidade, um produto e um processo de distintas tecnologias - como as epistemologias, o direito, os discursos etc. - capazes de gendrar sujeitos. no campo jurídico5 5 Empregamos a expressão “campo jurídico” a partir do sentido dotado por Carol Smart (2000), quem o define em 3 níveis: (i) como uma parte de um estatuto normativo aberto a interpretações e, então, passível de ser dotado de sentido político; (ii) como uma prática, ou seja, como os operadores aplicam o direito no cotidiano (“operacionalidade do direito”) que pode estar bem distante da teoria (“direito dos livros”); (iii) como entendimento comum sobre o que é direito e como ele rege as condutas das pessoas. . Percebe-se, pois, que o artigo busca a problematização dos decisores, durante o processo do sentenciamento, como atores que (des)controlam as identidades, subjetividades e corporalidades sexuais e, também, como (ii) de (des)protegem os direitos humanos das mulheres.

Diante disso, apresentamos o problema, a relevância, o método de abordagem e a prévia dos resultados da pesquisa.

No Brasil, pode-se observar o desenho jurídico-penal de combate ao tráfico sexual a partir da Lei 13.344/2016. Essa legislação foi responsável por revogar os artigos 231 e 231-A do Código Penal e por adicionar o artigo 149-A, que criminaliza diversas condutas que caracterizam o tráfico sexual, contudo, sem nada dispor sobre a relevância do consentimento para a caracterização do crime. Com efeito, a omissão da legislação quanto ao consentimento no tráfico sexual evidencia o principal campo institucional de análise: o Poder Judiciário, que confecciona a esteira interpretativa e as categorias de entendimento jurisprudencial sobre o consentimento nesse tipo de delito.

O estudo do universo interpretativo do Judiciário sobre a (ir)relevância do consentimento para a caracterização do crime de tráfico sexual se justifica na importância da validez ou invalidez do instituto para a caracterização do crime disposto no artigo 149-A do Código Penal. Identificamos dois fatores cruciais para essa análise: nos crimes contra a liberdade e dignidade sexuais, esse instituto pode ser considerado a base de todo o sistema desses delitos e conferir ou não a dissolução da tipicidade penal; ainda, a categoria polissêmica da vulnerabilidade social pode dissolver os valores jurídicos atrelados ao consentimento e, assim, configurar uma situação de autonomia maculada e inválida.

Não obstante a criminalização do fenômeno em questão, a mobilização do poder punitivo para a tutela penal das mulheres tem sido um movimento de paradoxos, pois a relação entre a mulher e o Direito Penal é correntemente problematizada pelas teorias feministas crítica ao Direito e pelas criminologias feministas, sobretudo no que toca ao modus operandi do Sistema Penal (ANDRADE; 1996ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Violência sexual e sistema penal: proteção ou duplicação da vitimação feminina. Sequência: Estudos jurídicos e políticos, Florianópolis, v. 33, n. 17, p. 87-113, jul. 1996.; ANDRADE, 1999; CAMPOS, 2020CAMPOS, Carmen Heins de. Criminologia feminista: teoria feminista e crítica às criminologias. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.; LARRAURI, 1994LARRAURI, Elena. Mujeres, derecho penal y criminología. Madrid: Siglo XXI de España, 1994.; SMART, 1992SMART, Carol. The Woman of Legal Discourse. Social & Legal Studies, Vol. 1, 1992.; SMART, 2000) na proteção dos direitos humanos das mulheres. Para as autoras que problematizam esse terreno jurídico-penal, por exemplo, os padrões de entendimento nas Cortes e suas eventuais mutações são frequentemente questionadas - e, muitas vezes, radicalmente rechaçadas - como elementos suficientemente estratégicos para uma prática jurídica feminista antidiscriminatória e emancipatória que remodelaria os espaços de sociabilidade hierárquicos e desiguais.

É, pois, nesse quadro de tensões que se encontra o problema principal do presente trabalho. Analisamos se a resposta judicial do TRF3 sobre o consentimento no tráfico sexual (re)produz retratos judiciais de conservação ou subversão das hierarquias, desigualdades e opressões de gênero. Seriam as inovações normativas e os processos de tomada de decisões jurídicas no campo da regulação judicial sobre o consentimento no tráfico sexual capazes de manufaturar desconstruções de gênero através da dissolução e transgressão de categorias identitárias fixas? Melhor problematizando, seriam as Turmas do TRF3 um locus de proteção ou desproteção aos direitos à isonomia e à liberdade sexuais das mulheres? A partir desse questionamento-proposta, situamos nossa análise no âmago das ambiguidades, das contrariedades e dos paradoxos de como o gênero opera no Direito e como o direito opera para produzir o gênero (SMART, 1992SMART, Carol. The Woman of Legal Discourse. Social & Legal Studies, Vol. 1, 1992.).

A partir disso, a análise sobre o processo de confecção dos limites e das interpretações do consentimento pelos julgadores permitirá descortinar a maneira com que o direito está posto no campo da sua operacionalidade6 6 Utilizamos o conceito de Smart (2000) ao fazer referência à “operacionalidade do direito”. através dos decisores da Justiça Criminal, pois os litígios judiciais representam verdadeiras dinâmicas de um complexo jogo no campo institucional de poder entre os atores públicos e privados (SILVA, 2017SILVA, Paulo Eduardo Alves da. Pesquisas em processos judiciais. In: MACHADO, Maíra Rocha. (org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017.). Ou seja, o litígio judicial não representa somente o conflito entre as partes, mas também evidencia os jogos de poder e de controle que permeiam as narrativas e os resultados processuais. Afinal, é possível identificar aspectos morais nos jogos de poderes a partir da atuação das Cortes no deslinde de ações criminais, considerando-se que têm, em sua custódia, parte importante da regulação e do controle das relações sociais, políticas, econômicas e, em especial para nosso trabalho, de gênero.

No presente trabalho, o método de abordagem escolhido para empreitar a pesquisa foi o dialético7 7 As referências metodológicas da pesquisa em questão foram fortalecidas pelo emprego das reflexões de Pablo González Casanova (2004) que permitem compreender a metodologia dialética como um sistema complexo autorregulado. Para o autor, o sistema dialético corresponde a um sistema complexo na medida em que é formado por subsistemas que se interacionam, coevoluem e se interdefinem, numa dinâmica que permite o surgimento de novas relações dialéticas dentro de uma inicial relação dialética. Trata-se de um sistema totalmente dinâmico, mutável e em constante conflito entre os seus subsistemas. Com isso, os processos dialéticos das relações de exploração com luta de classes variam de acordo com os subsistemas históricos e modernos, bem como tradicionais e artificiais. Assim, quando se cogita criar sistemas alternativos de pensamentos e nuevas ciencias nos termos de Casanova, isto é, novas formas de pensar sobre as problemáticas sociais e jurídicas, a atenção deve ser voltada às contradições e dialéticas do sistema de opressão e exploração contemporâneo, composto por seus subsistemas articulados e interativos. . A escolha por esse método deu-se em razão de que a dialética fornece as bases para compreensão dinâmica das contradições dos fenômenos sociojurídicos, de que modo que os fatos jurídicos não são interpretados sem suas correlações econômicas, sociais, culturais, morais e, sobretudo, de gênero. A opção pela dialética possibilita que se compreenda a ação do fenômeno jurídico correlacionado com os contornos socioculturais do objeto de pesquisa em questão. Por isso, a importância da metodologia dialética na presente pesquisa é visibilizar os jogos de poder, que, sem esse método, tornam-se invisíveis ou de difícil visualização (CASANOVA, 2004). Buscamos, então, romper a lógica de opacidade na identificação dos conflitos de poder durante o deslinde processual - que se pretende neutro e isento.

Com o emprego da dialética, surgem as alternativas político-sociais e epistemologias necessárias para construção de espaços democráticos e emancipatórios, capazes de substituir o sistema baseado em relações de marginalização e de exclusão e ressignificá-lo. A partir disso, pode-se engendrar concomitantemente uma epistemologia e uma prática antidiscriminatórias: o projeto jurídico feminista8 8 A ideia de projeto jurídico feminista é desenvolvida por Fabiana Cristina Severi (2017), que propõe um projeto ético e político que aproprie o gênero como categoria analítica na interpretação dos textos legais e na produção das normas jurídicas. Não se trata de um projeto que desvaloriza a importância da lei ou das reformas jurídicas, contudo, não se restringe a elas e “encontra base no repertório de práticas e de teorias críticas desenvolvidas no campo feminista aos poderes violentos da lei”. Para Severi, o projeto jurídico feminista não tem início na aprovação de uma lei, mas deve ter nela um eixo de bricolagem da relação entre feminismo e direito a partir da “fusão de horizontes” entre os campos discursivos da ação feminista e o campo discursivo das ações institucionais do sistema de justiça brasileiro. (SEVERI, 2017SEVERI, Fabiana Cristina. Enfrentamento à violência contra as mulheres e à domesticação da Lei Maria da Penha: elementos do projeto jurídico feminista no Brasil. 2017. Tese (Livre Docência em Direito público) - Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2017.).

Partimos da hipótese9 9 Essa hipótese parte dos resultados de pesquisa encontrados por Ela Wiecko (2008) e por Anamaria Venson (2017), que serão detalhados no tópico 2. de que os julgadores, ao longo das suas práticas e discursos nos acórdãos, defenderiam a irrelevância do consentimento e, para sustentar essa tese, padronizariam as identidades das mulheres, manufaturariam vítimas pré-fabricadas e estigmas nas narrativas processuais e, por sua vez, infantilizariam as mulheres traficadas para ingresso no mercado sexual em outro país. Sustentamos que essa hipótese se confirmou nos acórdãos que contêm decisões anteriores à Lei 13.344/2016, porém, a partir do advento da Lei 13.344/2016, notamos uma guinada no entendimento sobre o consentimento, que passou a ser considerado relevante para a configuração do crime previsto no artigo 149-A do Código Penal. Com isso, defendemos que houve uma revisitação dos padrões fixos de gênero ao não categorizarem e essencializarem as mulheres traficadas para o mercado sexual transnacional invariavelmente como vítimas, reconhecendo-as, também, no universo da liberdade e da emancipação sexuais. Não obstante, ainda há, nas decisões analisadas, escassez de efetivação do projeto jurídico feminista.

O artigo divide-se em três partes.

No primeiro tópico, a partir das literaturas feministas decoloniais, buscamos brevemente superar alguns pânicos morais que circundam o imaginário sociocultural sobre tráfico sexual e que possam compor o catálogo moral dos julgadores e influenciar suas visões sobre o consentimento.

No segundo tópico, promovemos uma suscinta revisão bibliográfica das estratégias teórico-metodológicas da Criminologia Feminista e da Análise Crítica do Discurso que utilizamos para confeccionar o substrato teórico para a análise qualitativa dos acórdãos coletados e desnudar os jogos de poder e de controle sobre a mulher.

No terceiro tópico, apresentamos os resultados das análises sobre as práticas e os discursos confeccionados pelos julgadores nas decisões contidas nos acórdãos. Buscamos identificar o posicionamento judicial sobre o consentimento e se os julgadores incorporaram (ou não) metodologias, sentidos, valores e estratégias que ressignifiquem identidades e padrões fixos para não reproduzir desigualdades.

1. Desmistificando o tráfico sexual e o consentimento sob as lentes do Feminismo de Terceiro Mundo

Tradicionalmente, o imaginário sociocultural sobre tráfico sexual de mulheres tem configurado uma imagem padronizada do seu modus operandi a partir da representação do universo do mercado sexual através da fraude, do engano, de vulnerabilidades e, principalmente, da violência. Para esse retrato imbricado no universo moral ocidental, as mulheres traficadas não possuem qualquer autonomia e liberdade em decidir sobre os seus projetos de vida e, por sua vez, o consentimento válido inexiste10 10 Esse cenário é sustentado no universo acadêmico principalmente por feministas radicais como Rosa Cobo (2017). Cobo, por exemplo, defende que a violência é inerente ao tráfico sexual e que a prostituição é fundamentalmente caracterizada pela dominação masculina, sendo a atividade sexual inerentemente contrária à emancipação de gênero, enquanto autoras representantes do Feminismo Decolonial descontroem essa imagem fixada no imaginário ocidental. Nota-se que correntes apresentadas divergem sobre a potencialidade da mulher de realocar e ressignificar as estruturas de opressão através da sua autonomia no tráfico sexual. . Contudo, é crucial problematizar esse panorama para confeccionar um rompimento teórico com a categorização e a generalização da dinâmica do tráfico sexual e, assim, impedir camuflagens sociológicas (SANTOS; GOMES; DUARTE, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; GOMES, Conceição; DUARTE, Madalena. Tráfico sexual de mulheres: representações sobre ilegalidade e vitimação. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 87, p. 69-94, 2009.), isto é, visões meramente unilaterais e reducionistas sobre o fenômeno.

O tema está situado num verdadeiro terreno em disputa sobre o tráfico sexual e a capacidade da mulher em consentir. Trata-se de polos opostos sobre o entendimento a respeito da capacidade das mulheres em anuir com o tráfico sexual e elaborar seus projetos de vida no tráfico transnacional para o ingresso no mercado erótico11 11 Em consonância com os aportes teóricos do Feminismo Decolonial, distinguimos tráfico humano para exploração sexual e tráfico humano para o mercado erótico a partir de uma diferenciação baseada no consentimento ofertado pelas mulheres a essas duas dinâmicas migratórias. .

Em uma clara oposição aos retratos generalizantes e categóricos, as autoras representantes do Feminismo de Terceiro Mundo (ou feminismo decolonial), como Jo Doezema (2000DOEZEMA, Jo. Loose Women or Lost Women? The Re-emergence of the Myth of White Slavery in Contemporary Discourses of Trafficking in Women. Gender Issues, vol. 18, n. 1, 2000.; 2004) e Kamala Kempadoo (2005KEMPADOO, Kamala. Mudando o debate sobre o tráfico de mulheres. Cad. Pagu, Campinas, SP, n. 25, p. 55-78, dez. 2005.), organizadoras da coletânea Global Sex Workers, afirmam que o tráfico acompanhado da prostituição pode efetivamente ser uma atividade de subversão, pois a mulher, ao ressignificar seu papel sexual e se autodeterminar, rompe com a moral por um ato de afronta à própria ideia de submissão e de infantilização das mulheres que lhes impõe a dominação sexual.

Um dos argumentos que sustentam a opinião de defensoras do Feminismo de Terceiro Mundo é que o tráfico sexual está localizado, na realidade, em uma distorção de sua imagem coletivo bem funcional ao controle das corporalidades e subjetividades das mulheres que buscam se empoderar através do mercado sexual. Nessa dinâmica, Jo Doezema (2000DOEZEMA, Jo. Loose Women or Lost Women? The Re-emergence of the Myth of White Slavery in Contemporary Discourses of Trafficking in Women. Gender Issues, vol. 18, n. 1, 2000.) aponta que a imagem paradigmática da “vítima” de tráfico de pessoas corresponde a uma mulher jovem inocente que é ludibriada ou enganada por maldosos traficantes para integrarem o quadro de abusadas por uma vida sexual sórdida e impossível de escapar. A noção dominante sobre o tráfico sexual se baseia em vítimas para as quais são oferecidos trabalhos na indústria do sexo, mas são enganadas a respeito das condições em que realizarão a atividade erótica.

Por certo, Doezema (2000DOEZEMA, Jo. Loose Women or Lost Women? The Re-emergence of the Myth of White Slavery in Contemporary Discourses of Trafficking in Women. Gender Issues, vol. 18, n. 1, 2000.) ratifica que essa noção comum é eivada de incoerências com a realidade e erros metodológicos de compreensão da dinâmica do tráfico sexual a partir de um mito trafiquista, que obscurece a compreensão de que tráfico sexual pode surgir como instrumento de emancipação das mulheres.

Em outro trabalho, Doezema (2004DOEZEMA, Jo. ¡A crecer! La infantilización de las mujeres en los debates sobre tráfico de mujeres. In: OSBORNE, Raquel. (org.). Trabajador@s del sexo. Derechos, migraciones y tráfico en el siglo XXI. Barcelona: Ballaterra, 2004.) aposta na crucialidade da necessidade de compreensão em torno da dicotomia “escolha” e “força”, isto é, entre prostituição voluntária e forçada, como meio de efetivamente identificar violação de direitos humanos e dominação das mulheres. Aduz, principalmente, que o trabalho sexual pode surgir como espaço de empoderamento e libertação da corporificação de gênero, já que não envolve necessariamente o universo das práticas sexuais contra a vontade da mulher. Alerta que uma retórica simplesmente generalizadora e metodologicamente falha em torno do tráfico de pessoas atua, na realidade, como visão distorcida que rebaixa as mulheres à posição de incapazes de consentirem com seu tráfico. É interessante identificar como Doezema identifica uma grande contradição do feminismo radical, pois negar capacidade decisória das mulheres é, na realidade, diminuí-las, infantilizá-las e categorizá-las como vítimas inocentes e não indivíduos capazes de empoderamento.

Na defesa dessa mesma linha, Kamala Kempadoo (2005KEMPADOO, Kamala. Mudando o debate sobre o tráfico de mulheres. Cad. Pagu, Campinas, SP, n. 25, p. 55-78, dez. 2005.) também negou enfaticamente a vinculação obrigatória entre prostituição e discriminação ou violência de gênero, pois há um amplo e diversificado cenário do mercado sexual e não somente uma realidade do tráfico sexual. Enfatizou que, na realidade, as precárias condições de vida e de trabalho, bem como os pânicos e violências que circundam o mercado num setor informal ou subterrâneo são aspectos que infringem garantias fundamentais das mulheres. Inclusive, nas pesquisas empíricas empreitadas por Kempadoo a respeito do tráfico de mulheres para prostituição, dados sobre a realidade dessa modalidade de tráfico surgem como um rompimento de pânicos morais, pois expõem que a servidão por dívidas e o trabalho sexual contratado se fazem mais presentes no mercado sexual do que a escravidão propriamente dita12 12 É interressante ressaltar que diversas pesquisas no campo antropológico permitem colocar em relevo a autonomia de muitas mulheres no mercado erótico e romper com o mito trafiquista. Uma delas é a de Adriana Piscitelli (2006), realizada entre outubro e dezembro de 2004 e durante setembro de 2005, com foco em Madri, Barcelona e em Bilbau, em que dá voz a mulheres traficadas para prostituição na Espanha. A autora pontua que as mulheres entrevistadas compreendem a oferta de serviços sexuais como um trabalho, em que é possível ganhar mais dinheiro na Europa do que no Brasil e que, inclusive, podem enviar recursos econômicos para seus familiares no Brasil. Percebeu que ínfima parte das entrevistadas apontam para o vínculo de seu tráfico com coação, engano, violência, controle ou restrição da liberdade. Com efeito, algumas mulheres mencionaram enfaticamente: vim porque quis. Também, analisando a visão relativamente positiva que as mulheres traficadas têm de suas experiências sexuais na Europa, Piscitelli identifica que, para além dos ganhos materiais e econômicos com a atividade sexual, as prostitutas brasileiras compreendem que seus serviços sexuais lhes possibilitam uma autonomia nas relações com os companheiros: quem dá as cartas sou eu, conforme relata uma das entrevistadas. Na realidade, a ideia de extrema vulnerabilidade e de escravidão sexual é restrita às mulheres oriundas do Leste Europeu a da África - tratadas em situação análoga à de escravidão - diferentemente das mulheres latinas. .

Em posicionamento semelhante, Maria Luisa Maqueda Abreu (2009ABREU, María Luisa Maqueda. Prostitución, feminismos y derecho penal. Granada: Comares, 2009.) se propõe a denunciar uma carga manipuladora e ideológica desse discurso de vulnerabilidade das prostitutas imigrantes, pois gera um pânico moral: uma representação generalizada do tráfico sexual como escravidão e servidão. Por sua vez, a autora sugere uma racionalização do discurso sobre o tráfico, isto é, uma desexualización del domínio13 13 Expressão cunhada pela autora como uma chave para a racionalização da retórica em torno do tráfico sexual e superação dos pânicos morais que envolvem o tema. , para que se afaste a representação simbólica de escravidão que essa modalidade de tráfico porta no imaginário social e estatal quanto a mulheres migrantes.

Com isso, a Maqueda Abreu (2009ABREU, María Luisa Maqueda. Prostitución, feminismos y derecho penal. Granada: Comares, 2009.) critica a imagem estereotipada14 14 Adicionalmente, Raquel Osborne (2007) traz o conceito de vítimas pré-formatadas para denunciar que o trafiquismo produz estereótipos que, na realidade, colocam as mulheres em situação de inferioridade que lhes nega a autonomia e determinação sexual num contexto de subcidadania erótica a partir do enfoque trafiquista. vinculada às migrações femininas para a atividade sexual na Europa, baseada na ideia de vitimização dessas mulheres tratadas como vítimas inocentes, violentadas e obrigadas a trabalhar contra sua vontade pelas redes de tráfico internacional de pessoas. Esse perverso discurso torna a vulnerabilidade das prostitutas imigrantes presumido e categórico, por sua vez, não abre espaço para compreender que o tráfico sexual pode se caracterizar como parte dos projetos de vida e da vontade da mulher migrante.

Para essa corrente, é necessário romper epistemologicamente com o discurso do paradigma trafiquista sobre a prostituição e ressignificar a retórica sobre o fenômeno, pois esse discurso retira sistematicamente das trabalhadoras migrantes a sua capacidade de negociar e trabalhar na indústria do sexo. Então, as mulheres embutidas no mercado sexual devem ser compreendidas na sua potencialidade de seres autônomos capazes de reverter relações de poder, gestionar sua vida como estratégia de sobrevivência, realocar as dominações e ressignificar as opressões. Esse repensamento partilha da noção de que as desigualdades de gênero podem, em contrapartida, pôr em relevo as ferramentas agenciais para realocar a estrutura de poder perante a capacidade de agência da mulher de desfazer, desmontar e desconstruir as desigualdades.

Apesar da narrativa convincente do feminismo radical sobre o mito trafiquista, essa retórica cumpre uma função estratégica de controle sobre o corpo das mulheres e ignora dois pontos que consideramos cruciais nas análises das experiências das mulheres traficadas no mercado sexual: (i) a variedade com que as mulheres vivenciam as experiências, além do reconhecimento de que possuem múltiplas identidades e subjetividades, ainda que sejam entrecortadas pelos marcadores de diferenças sociais15 15 Partindo-se dessa premissa, reconhece-se que a multiplicidade de identidades, vivências e subjetividades dessas mulheres impede a categorização universal dos fenômenos e favorece a abordagem metodológica “de baixo para cima” e não somente “de cima para baixo”. (CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos feministas. 1, p.171-189, 2002.); (ii) a agência interseccional, isto é, capacidade da mulher marginalizada de realocar as categorias de opressão e, por sua vez, resistir às assimetrias de poder para forjar uma identidade subversiva e empoderadora16 16 Sobre a necessidade de evitar uma análise engessada e consideração de estruturas absolutas que confeccionam indivíduos invariavelmente submetidos, desempoderados e subalternizados, Henning (2015) chama a atenção a necessidade de levar em conta o lado estrutural e o da agência na análise interseccional para uma compreensão mais dinâmica na produção das discriminações e submissões. O autor denomina isso de agência interseccional, em que, por exemplo, o indivíduo pode, de fato, estar em desvantagem em relação a uma marca identitária, mas consegue manipular a vantagem em torno de outros traços para superar conjunturalmente determinadas opressões. (HENNING, 2015HENNING, Carlos Eduardo. Interseccionalidade e pensamento feminista: As contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Mediações: Revista de Ciências Sociais, v. 20, n. 2, p. 97-128, 2015).

O mercado sexual trata-se, na realidade, de um jogo de interesses cujos jogadores são as mulheres migrantes, os clientes e os proxenetas. Assim, esse mesmo jogo possibilita identificar como o campo dos serviços sexuais não está necessariamente vinculado à passividade da mulher no mercado erótico (PISCITELLI, 2006PISCITELLI, Adriana. Sujeição ou subversão? Migrantes brasileiras na indústria do sexo na Espanha. Revista História e Perspectivas, nº 35, Universidade Federal de Uberlândia, agosto-dezembro de 2006.).

Os discursos que homogeneízam as realidades do tráfico se incumbem de vitimizar a mulher traficada ao reduzi-las à posição de infantis e de incapazes. Quando ocorre o etiquetamento de sua imagem somente como vítima, dificulta-se o rompimento com o padrão de sexualidade preestabelecido por uma moral androcêntrica, perpetuando a regulação social e mantendo as corporificações desiguais de gênero. O enfoque trafiquista ignora a capacidade de agência interseccional das mulheres nos seus projetos de vida, assim, infantilizando as mulheres. Trata-se de um discurso paternalista de tutela ao corpo feminino e que não deve prosperar como perspectiva generalizadora.

Conforme detalhado no tópico 3, as contribuições do Feminismo de Terceiro Mundo permitem compreender como os julgadores reproduziram alguns mitos do enfoque trafiquista e pânicos morais que envolvem o tráfico sexual e o consentimento nos acórdãos 1, 2, 3 e 4 que compõem o banco de análise. Contudo, os decisores, nos acórdãos 5, 6 e 7, buscaram se afastar dessa dinâmica padronizada, na medida em que desconstroem retratos padronizados sobre o tráfico sexual, indicando que o mercado erótico é diverso e que as mulheres traficadas nem sempre são vítimas, pelo contrário, podem possuir seus projetos de vida autônomos.

2. Algumas ferramentas teórico-metodológicas da Criminologia Feminista e da Análise Crítica do Discurso

Esse tópico tem como função apresentar os referenciais teórico-metodológicos que compõem o substrato de análise das práticas e dos discursos dos julgadores nas decisões com o amparo da Criminologia Feminista e da Análise Crítica do Discurso para se adequar ao critério da teorização de McCulloch (2009) sobre análises de documentos, segundo o qual é imprescindível a presença de um arcabouço de referencial teórico para interpretação do material dentro de uma perspectiva crítica que exponha conflitos sociais e os jogos de poderes.

2.2. A Criminologia Feminista

O emprego da Criminologia Feminista como recurso teórico-metodológico tem como intuito principal manufaturar a relação entre gênero e as práticas jurídicas empreitadas pelos julgadores nos acórdãos.

O surgimento da Criminologia Feminista tratou de superar tanto o paradigma etiológico17 17 Uma das primeiras análises criminológicas que envolvem o estudo sobre as mulheres é o estudo sobre a mulher delinquente, rebaixada a uma categoria quase subumana e adaptada a uma categoria animalesca pela tradição criminológica predominante no século XIX. A imagem categórica de mulher delinquente, entendida em oposição à mulher normal, foi edificada no paradigma criminológico sobretudo por Cesare Lombroso e Guglielmo Ferrero (2019), expoentes da Criminologia Positivista, que publicaram a obra La Donna Delinquente: La Prostituta E La Donna Normale em 1893 para analisar, dentre outros aspectos, a biologia e a psicologia da delinquência e da prostituição das mulheres. A mulher prostituta é a versão feminina do homem criminoso, que, na visão de Lombroso, é um ser primitivo e menos evoluído do que os homens honestos. A prostituta compõe o quadro da teoria de atavismo e está organicamente predisposta à degenerescência e à loucura moral, por sua vez, encontra-se em similitude com a mulher criminosa. do saber criminológico em relação às mulheres, quanto a limitação teórica-metodológica da Criminologia Crítica18 18 Mesmo o advento da Criminologia Crítica na segunda metade do século XX não revisitou totalmente o paradigma criminológico sobre a mulher porque não incorporou integralmente uma visão feminista em relação à crítica ao direito, apesar de ter um caráter fundamental para se compreender as dinâmicas seletivas, restritas e preconceituosas da aplicação do fenômeno jurídico-penal nos espaços de sociabilidade (LARRAURI, 1994). nos estudos relacionados a gênero e direito, pois todos, de uma maneira ou de outra, recaíram em alguma forma de sexismo (MENDES, 2014MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014.).

É nessa dinâmica, então, que se encontra a necessidade de uma reconstrução social do gênero, expressão cunhada por Alessandro Baratta (1999BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de. (org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999.) para superar as dicotomias artificiais das relações simbólicas culturalmente estabelecidas sobre gênero nas esferas funcionais, isto é, na ciência e no direito. Baratta, assim como diversos expoentes da criminologia, aduziu que é necessário um rompimento epistemológico com a Criminologia Crítica, passando a compreender o Sistema Penal também sob as lentes de uma visão feminista.

Por sua vez, a Criminologia Feminista superou as limitações metodológicas da Criminologia Positivista e da Criminologia Crítica quanto ao estudo de opressão estrutural das mulheres pelo Sistema de Justiça Criminal, certo que passou investigar a aplicação do direito com o imprescindível suporte de um recorte de gênero, num objeto de estudo ampliado que desvela as contradições entre o poder punitivo e o feminino a partir do gender turn nas análises criminológicas (CAMPOS, 2020CAMPOS, Carmen Heins de. Criminologia feminista: teoria feminista e crítica às criminologias. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.).

Dentro do campo epistemológico da Criminologia Feminista, um dos principais referenciais teórico-metodológicos é a criminóloga britânica Carol Smart (1992SMART, Carol. The Woman of Legal Discourse. Social & Legal Studies, Vol. 1, 1992.) que apresenta a visão de que o direito, na realidade, é gendrado19 19 Na obra original, a autora utiliza o termo “gendered”, que pode ser traduzido no português para “gendrado”. . A ideia de gendramento do direito permite compreendê-lo em processos que atuam de múltiplas maneiras sem partir do pressuposto irredutível de que todos os acontecimentos no universo jurídico são para exploração das mulheres e benefícios dos homens. Essa estratégia teórico-metodológica de considerar que o direito é gendrado permite a superação da exigência de estabelecer categorias fixas de Homem e Mulher, por sua vez, abre-se espaço para uma noção mais fluida de gênero sem fixá-los numa dimensão biológica nem sociocultural.

Para Smart (1992SMART, Carol. The Woman of Legal Discourse. Social & Legal Studies, Vol. 1, 1992.), essa estratégia teórico-metodológica é especialmente importante porque nos permite identificar como o sistema jurídico tenta fixar gêneros em moldes rígidos de significado. Com isso, possibilita-se enxergar como o direito insiste numa versão específica de diferenciação por gênero sem partir de um pressuposto de uma visão meramente construcionista de gênero. Isso significa empreender estratégias teórico-metodológicas para analisar o direito como um processo de produção de identidades de gêneros fixas e não meramente como um reprodutor de sujeitos previamente gendrados: “o direito é visto como um domínio que traz à existência tanto posições de sujeitos gendrados quanto subjetividades ou identidades com as quais o indivíduo é relacionado ou associado (o que talvez seja mais controverso)”20 20 Em nossa tradução livre. .

Em outro trabalho, Smart (2000SMART, Carol. La teoría feminista y el discurso jurídico. In: BIRGIN, Haydée. El Derecho en el Género y el Género en el Derecho. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2000.) aprofunda a noção de que o direito está embutido num processo de produção de identidades de gêneros fixos. Assim, o direito é um instrumento que constrói posturas subjetivas dotadas de gêneros, isto é, corresponde a uma estratégia criadora de distinções sexuais. Apresenta, basicamente, que o gendramento dos sujeitos ocorre pela construção do ideal de Mulher - por sinal, bem diferente do que são as reais mulheres, que são formadas de identidades múltiplas.

Smart (2000SMART, Carol. La teoría feminista y el discurso jurídico. In: BIRGIN, Haydée. El Derecho en el Género y el Género en el Derecho. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2000.) detalha que ocorre também pela construção jurídico-discursiva de um tipo de Mulher (a criminosa e a prostituta, por exemplo, dentro da dualidade virtuosa x má e respeitável x abominável) quanto de Mulher (em oposição ao Homem) que, por vezes, aparecem entrelaçados num movimento duplo. Por exemplo, a categoria de criminosa é um tipo de mulher diferente das outras, mas que está contida na categoria anterior de Mulher oposta ao Homem. Ainda, a prostituta é concebida como uma mulher ruim, mas, ao mesmo tempo, representa a oposição da Mulher ao Homem. Com isso, Smart foca, para além de um processo de como o direito reproduz o gênero, de como o direito cria o gênero ao trazer à vida identidades fixas.

Essa dinâmica denunciada por Smart é manufaturada de forma semelhante por Elena Larrauri (1994LARRAURI, Elena. Mujeres, derecho penal y criminología. Madrid: Siglo XXI de España, 1994.), ao contribuir para o saber criminológico feminista com a ideia de que o fenômeno jurídico-penal constrói o gênero. A autora dita que o direito assume, molda e reflete determinada imagem da mulher. Ao fazer isso, o direito reflete não apenas as diferenças biológicas, mas as diferenças socioculturais patriarcais, os estereótipos a respeito de comportamentos de cada gênero, ainda, ao construir o gênero, o direito tende a atribuir às mulheres características desvalorizadas a partir da estruturação de dualismos. Diante disso, Larrauri coloca sob suspeita a capacidade do fenômeno jurídico atuar material e simbolicamente na proteção às mulheres.

Para além do direito ser entendido como um sistema de confecção de gênero na dimensão de Smart e de Larrauri, o referencial teórico-metodológico por nós adotado abarca as contribuições de análise de Vera Regina Pereira de Andrade (1996ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Violência sexual e sistema penal: proteção ou duplicação da vitimação feminina. Sequência: Estudos jurídicos e políticos, Florianópolis, v. 33, n. 17, p. 87-113, jul. 1996.) sobre o Sistema de Justiça Criminal como locus para lidar com crimes relacionados à sexualidade. O estudo das contradições entre gênero e agências de criminalização secundária perpassa o debate sobre a (des)proteção da mulher perante as Cortes quando se busca mobilizar o direito para a tutela penal.

Diante disso, Vera Regina (1996) revela que a Justiça Criminal ao buscar, formalmente, tutelar a violação sexual, materialmente, acaba por reproduzir determinadas estruturas, instituições, simbolismos e mecanismos de controle social de gênero. Denuncia, portanto, as dificuldades de compatibilizar as demandas das agendas feministas com a lógica do sistema penal, isto é, o papel do direito no gendramento das modificações sociais, sobretudo, na proteção da mulher sob uma ótica emancipatória e antidiscriminatória.

Adicionalmente, para Vera (1999), o sistema penal duplica, no lugar de proteger, a vitimização da mulher, que se torna vítima de uma violência institucional multifacetada, por exemplo, através da criação de estereótipos. Identifica, então, o Sistema Penal como um subsistema de controle social, seletivo e desigual tanto por promover uma violência estrutural das relações sociais capitalistas (desigualdade de classe) quanto da violência das relações patriarcais (desigualdade de gênero). Com isso, denuncia que o fulcro da questão é a própria compreensão sobre a proteção e questiona até que ponto é um avanço para o feminismo a imagem social da mulher como uma eterna vítima merecedora da tutela masculina ou estatal.

Ainda no debate sobre proteção vs. vitimização pelo Sistema Penal, a junção entre os campos epistemológicos do feminismo e da Criminologia no âmbito das teorias críticas ao direito tem apresentado críticas contundentes ao trato que o Sistema de Justiça Criminal, em especial o Poder Judiciário, tem oferecido às mulheres traficadas para a prostituição ou exploração sexual. Nessa dinâmica, as pesquisas Anamaria Venson21 (2017VENSON, Anamaria Marcon. Tráfico internacional de pessoas para exploração sexual? Uma análise de processos-crime (1995-2012). Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 2, p. 571- 591, ago. 2017.) e Ela de Castilho22 (2008CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. A criminalização do tráfico de mulheres: proteção das mulheres ou reforço da violência de gênero? Cad. Pagu, Campinas, n. 31, p. 101-123, dez. 2008.), por exemplo, têm sugerido que os modelos de resposta às demandas criminais levadas ao Sistema de Justiça Criminal brasileiro trazem no seu âmago um conjunto de problemas relacionados à promessa do fenômeno jurídico de combater a discriminação e a desigualdade de gênero. Com isso, a atuação desse braço do Sistema Penal tem oscilado entre os polos de proteção e desproteção de seus direitos sexuais23 23 É fundamental destacar que as pesquisas de Venson e Castilho foram desenvolvidas no cenário legislativo até o ano de 2012, portanto, não refletem necessariamente o conteúdo das decisões judiciais editadas pós-2012. .

Conforme detalhado no tópico 3, o recurso teórico metodológico da Criminologia Feminista permite compreender como os julgadores confeccionam as diferenças de gênero durante as narrativas processuais e podem vitimizar institucionalmente as mulheres a partir da violação a seus direitos de igualdade de gênero nos acórdãos 1, 2, 3 e 4. Em contrapartida, é possível compreender como o direito é um campo de jogos de poder em que as relações de gênero podem ser subvertidas a partir da confecção de entendimentos menos discriminatórios sobre o consentimento nos acórdãos 5, 6 e 7.

2.3. A Análise Crítica do Discurso

O uso da Análise Crítica do Discurso (doravante ACD) como recurso teórico-metodológico tem como intuito principal manufaturar a relação entre as performances linguísticas confeccionadas nas decisões com as concepções morais do emissor do discurso, isto é, dos julgadores.

A ACD corresponde ao estudo linguístico das estratégias do discurso dos poderes hegemônicos ou de contestação das estruturas dominantes numa lógica de “poder” e “contrapoder” e de “ideologia” e “contraideologia” (FAIRCLOUGH, 2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: UnB, 2001.). A ACD tem a função de “descortinar” as dinâmicas de poder, valores sociais e as representações e identidades - todos engendrados nas formações discursivas. Isto é, pretende-se denunciar como as práticas linguístico-discursivas estão vinculadas estreitamente às estruturas sociopolíticas de poder (MELO, 2011MELO, Iran Ferreira de. Análise Crítica do Discurso: modelo de análise linguística e intervenção social. Estudos Linguísticos, São Paulo, 40 (3): p. 1335-1346, set-dez 2011.).

Em outras palavras, a ACD almeja estudar e descortinar o papel do discurso na (re)produção da dominação. Isso porque os elementos codificadores da língua não são os únicos que compõem o discurso, uma vez que os objetos de investigação da análise do discurso também perpassam, entre outros, o campo das relações de poder e os processos de criação e de representação de identidades sociais.

Fazem-se pertinentes as reflexões construídas por um dos principais expoentes da ACD: Norman Fairclough (2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: UnB, 2001.), que concentrou esforços na identificação e análise dos significados da linguagem quanto à capacidade dos textos de representar e construir as ações e os atores sociais. Segundo o linguista, a partir da análise do discurso, é possível retirar do texto três significados que agem associada e concomitantemente: o significado textual - o texto como expressão das proposições linguísticas do emissor; o significado interpessoal - o texto como estabelecedor de relações sociais e identidades; o significado representacional - o texto como representação e idealização de aspectos e de imagens da sociedade, a exemplo de relações, poderes e ideologias sociais24 24 Consideramos o significado textual e o significado representacional dos textos são os mais importantes para compreender os discursos nos acórdãos que compõem o banco de análise, pois possibilitam compreender como o sujeito do discurso pode representar, criar ou desconstruir identidades dentro de jogos de poderes dentro das relações dialéticas de subsistemas interativos e conflitantes. .

Além disso, Fairclough (2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: UnB, 2001.) apresenta que a base de estudo da ACD é a natureza dialética social do discurso, pois aduz que o discurso representa a realidade social, mas, também, é constituído por ela, numa lógica de representação-construção do mundo material. Isso porque o discurso pode reproduzir as práticas sociais do universo material, mas a resistência às dominações do discurso pode alterá-lo e construir uma nova realidade, de acordo com as práticas linguísticas do sujeito da linguagem. Com isso, esses desempenhos de conservação ou subversão engendrados pelos atores sociais quando da produção do discurso derivarão, sobretudo, da sua classe, sexo, nacionalidade, etnia, cultura e universo moral.

Nota-se, então, que essa linha linguística sustenta a análise dos acórdãos em razão de seu aspecto multidisciplinar e de seu foco no desvendamento das relações entre linguagem, poder e discriminação que possibilita, também, considerar o advento de uma prática linguística emancipatória. Isso possibilita coletar o material discursivo das decisões judiciais e identifica-lo como elemento linguístico-discursivo que está num locus em que o Judiciário tem em sua custódia as relações de poder de gênero e as maneja (de forma emancipatória ou não) para o deslinde das ações. Com isso, identificamos a ACD como um recurso estratégico para uma proposta de estudo voltada para a relação entre gênero e discurso do direito, ambos imbricados em estruturas sociopolíticas de poder e de formação de marcadores de desigualdades25 25 Para Pinheiro (2013), o emprego da ACD aos textos legais permite revelar as eventuais parcialidades que estão opacas sob a retórica de imparcialidade no campo jurídico. Apesar da pretensão de que o direito e a linguagem por ele instrumentalizada sejam neutros e sem crivos morais, há um liame que conecta as significações de um texto jurídico aos seus elementos sócio-históricos. .

Com isso, é interessante identificar como a Análise Crítica do Discurso no campo jurídico permite revelar alguns contornos específicos de como agem os operadores do direito na construção da linguagem, sobretudo dos julgadores quando editam as decisões presentes em acórdãos. Os agentes da Lei, para além de sua função jurisdicional, cumprem também o papel de sujeitos da linguagem, propensos ou não à subversão das ideologias dominantes. Na realidade, são sujeitos públicos da linguagem, cuja ação linguística pode reproduzir-construir o universo material (FAIRCLOUGH, 2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: UnB, 2001.). Com o recurso da ACD, é possível identificar e analisar as concepções ideológicas (e eventuais subversões) que subjazem as decisões dos julgadores através da operacionalização e manipulação das performances linguísticas ao longo do acórdão.

Conforme detalhado no tópico 3, o recurso teórico-metodológico da ACD permite compreender como os julgadores manufaturam performances linguísticas que demarcam o gênero, bem como o rebaixamento e infantilização das mulheres a partir do trato discursivo de “meninas” e “garotas” às mulheres traficadas nos acórdãos 1, 2, 3 e 4. Em contrapartida, nos acórdãos 5, 6 e 7, os decisores elaboram discursos que rompem com a ideologia infantilizante ao empregar o termo “mulher” para referenciar às pessoas traficadas, revelando a capacidade do sujeito do discurso em ressignificar as performances linguísticas e subverter os poderes dominantes.

3. Descortinando as práticas e os discursos nos acórdãos

A temática da resposta judicial às interpretações da legislação deve ser analisada em virtude da necessidade de situar o assunto no âmbito das visões e cegueiras de gênero no campo jurídico. Essa dualidade é mobilizada por Silvia Pimentel (2009PIMENTEL, Sílvia. A superação da cegueira de gênero: mais do que um desafio-um imperativo. Revista Direitos Humanos, v. 2, p. 27-30, 2009.) suas pesquisas sobre Direito e gênero para buscar entender se, na realidade, o Judiciário transcende a barreira meramente formalista de igualdade de gênero para atingir o âmago do universo material de isonomia sexual. Na visão da autora, a superação das cegueiras de gênero dos operadores do direito é um imperativo para garantir uma cultura emancipatória dos direitos humanos das mulheres e, por sua vez, não reforçar a discriminação e a violência existentes contra elas. Diante disso, a omissão legislativa quanto ao consentimento faz com que ele seja levado ao crivo da interpretação jurisdicional e, por sua vez, componha esse quadro de tensões entre visões e cegueiras no Judiciário.

Para a análise da resposta judicial nos acórdãos do TRF3, no campo das visões e cegueira, optamos pelo método qualitativo, pois é o mais adequado para exprimir informações melhor detalhadas sobre os fenômenos discursivos e jurídicos e ajudar na edificação de novas categorias de entendimento, afinal, o estudo se dirige a como os julgadores instrumentalizam conceitos, valores, institutos, princípios, linguagem e discurso nas narrativas decisórias para manufaturar seu posicionamento sobre o consentimento.

Como resultado da análise, iniciamos apresentando a modificação do entendimento sobre o consentimento pelos julgadores do TRF3 com o advento da Lei 13.344/2016. Nos acórdãos 1, 2, 3 e 426 26 A decisão contida no acórdão 4 foi editada durante a égide da Lei 13.344/2016, contudo, os desembargadores não aplicaram essa legislação pois consideram a pena do artigo 149-A mais rígida do que a pena do artigo 231 (revogado) do Código Penal. o consentimento da mulher traficada para prostituição no estrangeiro foi considerado irrelevante para configuração do delito de tráfico sexual. Em contrapartida, nos acórdãos 5, 6 e 7, o consentimento foi considerado relevante para configuração do crime em questão e deve ser analisado no caso prático. Diante disso, detalhamos três pontos cruciais que intermediaram essa passagem de entendimento judicial sobre o consentimento a partir da comparação das narrativas e das práticas jurídicas dos acórdãos pré-Lei 13.344/2016 e pós-Lei 13.344/2016: (i) manutenção do formalismo legal; (ii) continuidade da falta de análise de gênero; (iii) rompimento com a imagem padronizada do tráfico sexual e com o retrato infantilizado das mulheres.

(i) Manutenção do formalismo legal

O formalismo legal, ou seja, um apego ao formalismo do tipo penal em vigência, foi uma estratégia utilizada para corroborar tanto a tese de irrelevância do consentimento nos acórdãos pré-Lei 13.344/2016 quanto a tese de relevância do consentimento nos acórdãos pós-13.344/2016, sem a possibilidade, contudo, de compreender causas supralegais para dissolver a tipicidade do crime como o consentimento. Verificou-se uma visão jurídica adstrita ao tipo legal, em que os desembargadores se apegaram somente ao texto do artigo 231 do Código Penal e do artigo 149-A para ensejar a condenação ou a absolvição, sem considerarem a possibilidade de instrumentalizar o consentimento como causa de exclusão da tipicidade.

No âmbito pré-Lei 13.344/2016, esse apego ficou claro, principalmente, nos acórdãos 2 e 3. Em relação ao acórdão 2, o desembargador argumentou que as condutas que caracterizam o crime de tráfico sexual seriam “promover, intermediar ou facilitar” e, então, o consentimento não descaracteriza a tipicidade do crime em questão; outro desembargador, no acórdão 3, apresentou que o consentimento é irrelevante, porque basta que a pessoa a se prostituir “saia do território nacional [...] basta o ir ou vir exercer a prostituição” para configurar o delito previsto no artigo 231, também não importando se a pessoa tem ciência ou não de que realizaria a prostituição no estrangeiro. Percebe-se que formalismo da lei orientou a argumentação dos julgadores a partir da interpretação do tipo legal. Assim, não se cogitou compreender o consentimento como causa de exclusão da tipicidade e, por sua vez, abrir possibilidades para tal entendimento a depender do caso concreto.

No âmbito pós-Lei 13.344/2016, a mudança da compreensão sobre o consentimento nos acórdãos 5, 6 e 7 somente foi mobilizada pelos julgadores em virtude da mudança do tipo penal. Apesar da continuidade da omissão do consentimento no tipo penal que criminaliza o tráfico sexual, a Lei 13.344/2016 alterou a redação dispositivo penalizante, de modo que os julgadores entenderam que o artigo 149-A do Código Penal prevê a violência, a grave ameaça, a fraude, a coação e o abuso como circunstâncias elementares do tipo penal. Isto é, caso a conduta do réu não se enquadre a esta modalidade, o comportamento é atípico, não configurando o crime disposto pelo dispositivo. Como consequência lógica, aquela conduta que conte com o consentimento válido não é tipificada, porque as circunstâncias elementares do tipo não ocorreram, então, não se configura o delito.

Com isso, os desembargadores compreenderam que o advento do artigo 149-A, com a revogação dos artigos 231 e 231-A, gerou abolitio criminis “parcial” em relação ao tráfico de pessoas, posto que não aboliu completamente o crime, mas alterou as condutas que o caracterizam, como as condições elementares do crime. Os julgadores ressaltaram que as anteriores causas de aumento do crime - como ameaça, coação, fraude, violência etc. - passaram a figurar o polo de condições elementares do tipo, então, as condutas que não se amoldam a essas circunstâncias não são tipificadas pela legislação penal.

(ii) Continuidade da falta da análise de gênero

A manutenção da ausência da análise de gênero está diretamente relacionada com o apego ao formalismo jurídico dos julgadores para a sustentação da irrelevância do consentimento. A omissão dos julgadores na utilização da categoria de análise gênero foi marcante em todos os acórdãos analisados e revelou a ausência de uma análise feminista da Lei, isto é, a busca para produzir um sentido feminista às normas positivadas na perspectiva do projeto jurídico feminista (SEVERI, 2017SEVERI, Fabiana Cristina. Enfrentamento à violência contra as mulheres e à domesticação da Lei Maria da Penha: elementos do projeto jurídico feminista no Brasil. 2017. Tese (Livre Docência em Direito público) - Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2017.). Além de existir o apego ao texto legal do dispositivo penal que criminaliza o tráfico sexual, o processo de interpretação da norma penal não foi perpassado pela análise de gênero. A opinião dos desembargadores sobre a (ir)relevância do consentimento, por sua vez, não foi compreendida como algo que necessitaria ser entrecortado por uma interpretação feminista.

A ausência da análise de gênero está vinculada ao jogo discursivo entre o dito e o não dito empreitado durante as performances linguísticas dos julgadores. Não somente o dito, mas também o não dito está integrado ao campo de ideologias e de aportes morais (FAIRCLOUGH, 2001FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: UnB, 2001.). A seleção cuidadosa dos materiais linguísticos, isto é, dos elementos factuais, dos argumentos jurídicos e das estratégias de convencimento envolve a prática consciente ou inconsciente do julgador para dotar a Lei de sentido e, por sua vez, produzir a sua decisão de maneira persuasiva.

Entretanto, esse processo de dotar de sentido a lei foi intermediado pelo não dizível no campo do gênero, na medida em que os julgadores, como sujeitos emissores do discurso, optaram por omitir ou não explicitar uma performance linguística de gênero. Isso se tornou bem explícito pelo não dito sobre assuntos feministas como, por exemplo, patriarcado, gênero, estruturas de opressão e capacidade de agência etc. ao longo dos acórdãos.

A falta da instrumentalização do gênero como uma categoria que confeccionasse um novo sentido ao texto legal se vincula à falha dos julgadores na desconstrução de perspectivas positivistas do direito. Sem o uso do gênero como uma releitura da norma jurídica pelos julgadores, não foi possível desnaturalizar determinadas categorias legais, isto é, problematizar o texto legal e desafiar o poder do direito. A falta de incorporação do gênero impossibilitou uma revisitação e uma leitura feminista dos artigos 231 e 149-A do Código Penal sobre a importância do instituto do consentimento para possibilitar a liberdade e a igualdade sexuais das mulheres nos casos em que autonomamente decidir sobre o seu projeto de vida: migrar e realizar prostituição no estrangeiro. Isto é, em nenhum momento compreendeu-se o consentimento como causa supralegal e sob um sentido feminista de garantia dos direitos das mulheres.

Diante disso, a mobilização da argumentação sem a codificação das relações de gênero sugere o desmantelamento da tese de impessoalidade, neutralidade e universalidade que circundaria o universo do sentenciamento (SEVERI, 2017SEVERI, Fabiana Cristina. Enfrentamento à violência contra as mulheres e à domesticação da Lei Maria da Penha: elementos do projeto jurídico feminista no Brasil. 2017. Tese (Livre Docência em Direito público) - Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2017.). O apagamento da categoria de gênero em uma temática estritamente vinculada a dominações e a subversões sociais traz luz à ideologia jurisdicional dominante e o foro íntimo dos julgadores, isto é, o apagamento da categoria de análise gênero nas narrativas dos acórdãos. A partir dessa cegueira de gênero (PIMENTEL, 2008), identificamos que o conteúdo decisório e o material textual traduziram certa reafirmação das estratificações de gênero haja vista a necessidade de uma interpretação feminista das normas para uma real cultura jurídica emancipatória e antidiscriminatória.

(iii) Rompimento com a imagem padronizada do tráfico sexual e com o retrato infantilizado das mulheres

Os retratos sobre o tráfico sexual e sobre as mulheres traficadas ora foram empregados como técnicas para ensejarem a tese de irrelevância nos acórdãos 1, 2, 3 e 4, ora como recursos para defenderem a relevância do consentimento nos acórdãos 5, 6 e 7. Percebemos que os julgadores constroem retratos sobre o modus operandi do tráfico sexual como recursos argumentativos a benefício da formação da tese sobre a (ir)relevância do consentimento. Ora edificam, ora rompem com identidades fixas de gênero.

No âmbito dos acórdãos pré-Lei 13.344/2016, um recurso empregado pelos desembargadores para promover a consolidação da irrelevância do consentimento nas decisões foi a categorização das mulheres traficadas como indivíduos infantilizados que não possuem capacidade própria para optar pelo tráfico sexual e se empoderarem por meio da atividade prostitucional, uma vez que não possuem real dimensão e noção sobre esse universo compreendido como perverso pelos julgadores. As mulheres estão sempre à mercê dos proxenetas. Isto é, houve uma reprodução-construção do enfoque trafiquista denunciado pelo Feminismo Decolonial (ABREU, 2009ABREU, María Luisa Maqueda. Prostitución, feminismos y derecho penal. Granada: Comares, 2009.; DOEZEMA, 2000DOEZEMA, Jo. Loose Women or Lost Women? The Re-emergence of the Myth of White Slavery in Contemporary Discourses of Trafficking in Women. Gender Issues, vol. 18, n. 1, 2000.; DOEZEMA, 2004; KEMPADOO, 2005KEMPADOO, Kamala. Mudando o debate sobre o tráfico de mulheres. Cad. Pagu, Campinas, SP, n. 25, p. 55-78, dez. 2005.; PISCITELLI, 2006PISCITELLI, Adriana. Sujeição ou subversão? Migrantes brasileiras na indústria do sexo na Espanha. Revista História e Perspectivas, nº 35, Universidade Federal de Uberlândia, agosto-dezembro de 2006.).

A ideia de infantilização das mulheres também foi manufaturada nos acórdãos a partir da conexão do tráfico sexual com a pobreza e a falta de oportunidades. Fez-se presente a inclinação opinativa de que a vulnerabilidade econômica é elemento inerente às mulheres traficadas para o mercado sexual, corroborando a concepção recorrente de vínculo de degradação econômica com a prostituição viabilizada.

Para além da imagem de vínculo das mulheres traficadas com a vulnerabilidade econômica, a imagem categórica das “vítimas” foi confeccionada através de uma espécie de maniqueísmo entre os “aliciadores” e as “vítimas” em polos de inerentes agressores e vulneráveis, respectivamente. Os acusados teriam função de induzir e atrair as “garotas” como uma forma de convencimento para o ingresso no mercado do sexo e que, ainda, os aliciadores as enganariam e fraudariam o processo migratório para inseri-las no universo da escravidão, conforme, por exemplo, o julgador no acórdão 3: “O ilícito começa com o aliciamento e termina com a pessoa que explora a vítima, compra-a e a mantém em escravidão, ou submete a práticas similares à escravidão, ou ao trabalho forçado ou outras formas de servidão” (BRASIL, 2015b).

Os julgadores manufaturaram a imagem de mulheres que poderiam até concordar com o seu tráfico sexual, contudo, existiria um consentimento maculado, porque não teriam uma dimensão das condições nas quais exerceriam a prostituição, tampouco saberiam das dívidas que contrairiam ao chegar no local do exercício da prostituição.

Isso, por exemplo, é bem evidente no acórdão 1, quando o julgador explica o motivo do consentimento da “vítima” não excluir a responsabilidade do traficante ou do explorador: “[...] pois que ainda que tenham consciência de que exercerão a prostituição, não têm ideia das condições em que a exercerão e, menos ainda, da dívida que em geral contraem antes de chegar ao destino” (BRASIL, 2012). De forma semelhante, o decisor no acórdão 3 também confecciona essa visão: “É comum que as mulheres, quando do deslocamento, tenham conhecimento de que irão exercer a prostituição, mas não têm elas consciência das condições em que, normalmente, se veem coagidas a atuar ao chegar no local de destino. Nisso está a fraude” (BRASIL, 2015b).

Isso subjaz a ideia dos julgadores de que as mulheres não teriam capacidade de agência, isto é, de realocar estruturas de opressão e se beneficiar a partir dessa estratégia agencial. Como vítimas do tráfico sexual, as mulheres teriam sido motivadas a ingressar no mercado sexual a partir de sua fragilidade facilmente manipulada em benefício dos aliciadores. Com efeito, a vulnerabilidade não seria um motor para ingresso na prostituição, mas sim um fator manipulado pelos aliciadores.

Por certo, essa visão manufaturada pelos julgadores desconsidera a multiplicidade das formas de ingresso no mercado sexual transoceânico e reproduz o mito trafiquista sobre o modus operandi do fenômeno, afinal, os decisores geralmente manufaturam narrativas generalizantes com pouca preocupação ao caso prático em análise e ignoraram a capacidade de agência das mulheres em migrar para o mercado erótico. Houve um esforço constante de adequar as narrativas das mulheres a padrões enrijecidos sobre o tráfico sexual. Ou seja, o posicionamento dos julgadores vai de encontro à ideia de agência interseccional (HENNING, 2015HENNING, Carlos Eduardo. Interseccionalidade e pensamento feminista: As contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Mediações: Revista de Ciências Sociais, v. 20, n. 2, p. 97-128, 2015) e às pesquisas empíricas sobre a própria pluralidade do tráfico sexual (PISCITELLI, 2006PISCITELLI, Adriana. Sujeição ou subversão? Migrantes brasileiras na indústria do sexo na Espanha. Revista História e Perspectivas, nº 35, Universidade Federal de Uberlândia, agosto-dezembro de 2006.).

A infantilização das mulheres traficadas para o mercado do sexo perpassou também o campo das performances linguísticas dos julgadores. Nesse sentido, verificou-se a presença constante dos termos “meninas” e “garotas” para se referir às mulheres traficadas para a exploração sexual, o que conota o grau de rebaixamento atribuído às vítimas na narrativa processual: não são compreendidas como mulheres, mas sim no universo da inocência e da infantilidade. Isso favoreceu a construção do estereótipo de vulnerabilidade das mulheres traficadas, na medida em que o uso desses termos (re)produziu uma imagem coletiva simplificada das vítimas. Os julgadores manufaturam essa visão especialmente no acórdão 3: “induzido e atraído as garotas à prática da prostituição, fazendo com que permanecessem nesta prática, tirando proveito da exploração da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros e fazendo-se por ela sustentar, no todo ou em parte” (BRASIL, 2015b).

A construção dessa imagem estereotipada das vítimas foi elementar para rechaçar as teses de consentimento e, por sua vez, confeccionar a condenação dos acusados. Isso porque, sob o discurso de enlace intrínseco entre tráfico sexual e condição de vulnerabilidade imutável das mulheres traficadas, esteve, na realidade, a construção de um estereótipo como instrumento argumentativo para mobilizar a condenação. Os elementos estereotipados foram funcionais à condenação dos acusados e um recurso persuasivo para fundamentação da opinião, pois foram frequentemente instrumentalizados institucionalmente no âmbito dos acórdãos para corroborar a visão dos desembargadores e sustentar a tese de irrelevância do consentimento. As mulheres estereotipadas foram utilizadas de formas pragmáticas na narrativa processual porque, na realidade, corresponderam a peça-chave para a fundamentação das decisões.

Tornou-se bem nítido que o processo de formação das imagens padronizadas das vítimas representou a ideia de Smart (1992SMART, Carol. The Woman of Legal Discourse. Social & Legal Studies, Vol. 1, 1992.; 2000) e de Larrauri (1994LARRAURI, Elena. Mujeres, derecho penal y criminología. Madrid: Siglo XXI de España, 1994.) que o direito constrói identidades gendradas, isto é, edifica retratos de gênero e seus papéis correspondentes: a vítima fragilizada (Mulheres) e os proxenetas (Homens) cruéis num mundo perverso do tráfico sexual. Inclusive, esse cenário é terreno propício para questionar, também, o fenômeno jurídico-penal como mecanismo de proteção às mulheres, afinal, buscou muito mais categorizá-las e rebaixá-las do que garantir seus direitos humanos na dimensão de Vera Andrade (1996ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Violência sexual e sistema penal: proteção ou duplicação da vitimação feminina. Sequência: Estudos jurídicos e políticos, Florianópolis, v. 33, n. 17, p. 87-113, jul. 1996.; 1999).

Em contrapartida, no âmbito dos acórdãos pós-Lei 13.344/2016, um dos recursos argumentativos empregados pelos julgadores para sustentar a tese de relevância do consentimento foi a quebra do panorama padronizado sobre o modus operandi do tráfico sexual. Se as narrativas sobre o tráfico sexual foram construídas a partir de um universo de perversidade e de vulnerabilidade nos acórdãos anteriores à Lei 13.344/2016, os julgadores agora evidenciam que o campo da prostituição é multifacetado e não se restringe somente a situações de escravidão sexual, pelo contrário, deve-se admitir a possibilidade de liberdade sexual das pessoas, de modo que a validez do consentimento deve ser analisada ao caso prático.

Os julgadores sugeriram que o tráfico sexual pode configurar um projeto de vida migratório e que as pessoas traficadas não são necessariamente vitimadas por traficantes, conforme desenvolve o julgador nos acórdãos 5 e 6: “[...] a prostituição individualizada não é crime, no Brasil, de modo que muitas mulheres (e homens) seguem para o exterior justamente com esse propósito, e não são vítimas de traficante algum” (BRASIL, 2017a; 2017b).

Os julgadores defenderam a ideia de analisar variáveis como a idade do “profissional do sexo”, a maneira do exercício da prostituição e o consentimento da pessoa que integra o mercado sexual: “Tudo depende do modo como esta é exercida, da idade do profissional do sexo e do seu consentimento” (BRASIL, 2017a; 2017b). A imagem de prostituição consentida passa a ser confeccionada pelos magistrados por não estar sempre vinculada à exploração, então, a concepção paradigmática da “vítima” foi revisitada e alterada, afinal, “Nem sempre a prostituição é uma modalidade de exploração, tendo em vista a liberdade sexual das pessoas, quando adultas e praticantes de atos sexuais consentidos.” (BRASIL, 2017a; 2017b).

Essa ressignificação pode ser interpretada como uma resistência às visões comuns e moralizantes sobre o tráfico sexual, na medida em que os julgadores traçaram múltiplos retratos sobre o tráfico sexual, como também elevaram as pessoas prostitutas (entendidas como homens e/ou mulheres nos acórdãos) ao patamar de profissional do sexo. Ou seja, para além de identificarem a capacidade de autonomia no tráfico sexual, os magistrados desentranham da prostituição os ranços moralistas e degradantes que outrora circundavam o retro jurídico do mesmo Tribunal. Esse percurso argumentativo pode ser entendido como uma espécie de desconstrução do gênero em identidades fixas.

Um outro instrumento argumentativo para romper com a ideia de infantilização e redução das mulheres à posição de vítimas foi o trato linguístico. Isto é, os julgadores se opuseram linguisticamente à noção dominante de rebaixamento das mulheres traficadas para o mercado erótico. Diferentemente da tradição observada nos acórdãos pré-Lei 13.344/2016, os decisores, nos acórdãos 5, 6 e 7, utilizaram a nomenclatura “mulheres” e não “garotas” ou “meninas” como referência às pessoas traficadas.

Considerações finais

O processo de investigar e descortinar as práticas e os discursos no Poder Judiciário com os recursos teórico-metodológicos da Criminologia Feminista e da Análise Crítica do Discurso fomentou uma visão crítica sobre os invólucros morais e sobre as instituições que constroem e descontroem o gênero e as performances linguísticas. Para além disso, permitiu identificar os regimes de controle de gênero exercidos pelo TRF analisado.

A análise dos acórdãos pré-Lei 13.344/2016 evidenciou que os decisores mais se incumbiram de fortalecer os estereótipos nas práticas e nos discursos do que romper com as dinâmicas de poder e de controle sobre as mulheres traficadas. Percebemos que os decisores não somente reproduziram o enfoque trafiquista denunciado pelo Feminismo de Terceiro Mundo, como também construíram o gênero e moldes identitários fixos na dimensão do que denunciam Carol Smart e Elena Larrauri, colocando as mulheres traficadas em padrões rígidos de identidade e de subjetividade a partir dos retratos padronizados. Ainda, suas performances linguísticas na dimensão de Norman Fairclough evidenciaram também um rebaixamento das mulheres traficadas.

Em contrapartida, as decisões contidas nos acórdãos pós-Lei 13.344/2016 romperam com alguns retratos outrora fixados nos acórdãos e, por sua vez, afastaram-se do enfoque trafiquista. É interessante identificar que, apesar de não integrada a uma leitura intrinsecamente feminista, a alteração legislativa possibilitou a modificação do posicionamento dos julgadores e da forma com que confeccionam os discursos e as práticas nos acórdãos. Com isso queremos dizer que a mudança de lei apresentou consequências pragmáticas que valorizem a liberdade e a isonomia das mulheres, pois abriu margem para performances linguísticas mais emancipatórias e menos infantilizadoras, bem como para o rompimento de alguns sensos comuns e retratos padronizados sobre o tráfico sexual.

Por certo, não identificamos nos acórdãos um projeto jurídico feminista na dimensão de Fabiana Severi. A produção normativa e a confecção das decisões não foram intermedidas pela análise de gênero e de conceitos chaves do universo dos feminismos, contudo, os resultados de pesquisa nos possibilitam pensar que o próprio formalismo jurídico dos julgadores pode ser engendrado como mecanismo de lutas no campo do direito para uma prática jurídica emancipatória e antidiscriminatória.

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  • 1
    O presente artigo traz os principais resultados das pesquisas realizadas na Universidade Estadual Paulista (UNESP) e na Universidad de Sevilla (US) a partir do fomento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
  • 2
    A escolha deste Tribunal se justifica pelo fato de ser o TRF que mais possui decisões (quatro) sobre o consentimento com base na lei 13.344/2016. O TRF1 e o TRF4, por exemplo, possuem somente 1 decisão sobre consentimento nos processos 0005165-44.2011.401.3600 e 5000982-06.2013.4.04.7216, respectivamente. Vale ressaltar, também, que a temática não foi levada ainda ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) nem ao Supremo Tribunal Federal (STF) na forma de recurso especial e recurso extraordinário, respectivamente, para discutir o mérito em torno do consentimento.
  • 3
    Compõem o banco de análise os acórdãos referentes aos seguintes processos, com recorte temporal de 2012-2020: acórdão 1: 0000743-68.2008.4.03.6124 (BRASIL, 2012); acórdão 2: 0004420-08.2003.4.03.6181 (BRASIL, 2015a); acórdão 3: 0007268-55.2009.4.03.6181 (BRASIL, 2015b); acórdão 4: 0000235-15.2013.4.03.6006 (BRASIL, 2017a); acórdão 5: 0003569-27.2007.4.03.6181 (BRASIL 2017b); acórdão 6: 0003784- 95.2010.4.03.6181 (BRASIL 2017c); acórdão 7: 0001445-79.2010.4.03.6112 (BRASIL, 2019).
  • 4
    Apesar de reconhecermos “gênero” como categoria instável e em processo de (des)construção por várias autoras feministas, consideramos útil, para a presente proposta de abordagem, entendê-lo com base no sentido atribuído pela feminista pós-moderna Teresa de Lauretis (1994LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.), que busca desconstruir a tradicional imbricação entre gênero e diferença sexual a partir da ideia de que o gênero seria, na realidade, um produto e um processo de distintas tecnologias - como as epistemologias, o direito, os discursos etc. - capazes de gendrar sujeitos.
  • 5
    Empregamos a expressão “campo jurídico” a partir do sentido dotado por Carol Smart (2000SMART, Carol. La teoría feminista y el discurso jurídico. In: BIRGIN, Haydée. El Derecho en el Género y el Género en el Derecho. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2000.), quem o define em 3 níveis: (i) como uma parte de um estatuto normativo aberto a interpretações e, então, passível de ser dotado de sentido político; (ii) como uma prática, ou seja, como os operadores aplicam o direito no cotidiano (“operacionalidade do direito”) que pode estar bem distante da teoria (“direito dos livros”); (iii) como entendimento comum sobre o que é direito e como ele rege as condutas das pessoas.
  • 6
    Utilizamos o conceito de Smart (2000SMART, Carol. La teoría feminista y el discurso jurídico. In: BIRGIN, Haydée. El Derecho en el Género y el Género en el Derecho. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2000.) ao fazer referência à “operacionalidade do direito”.
  • 7
    As referências metodológicas da pesquisa em questão foram fortalecidas pelo emprego das reflexões de Pablo González Casanova (2004) que permitem compreender a metodologia dialética como um sistema complexo autorregulado. Para o autor, o sistema dialético corresponde a um sistema complexo na medida em que é formado por subsistemas que se interacionam, coevoluem e se interdefinem, numa dinâmica que permite o surgimento de novas relações dialéticas dentro de uma inicial relação dialética. Trata-se de um sistema totalmente dinâmico, mutável e em constante conflito entre os seus subsistemas. Com isso, os processos dialéticos das relações de exploração com luta de classes variam de acordo com os subsistemas históricos e modernos, bem como tradicionais e artificiais. Assim, quando se cogita criar sistemas alternativos de pensamentos e nuevas ciencias nos termos de Casanova, isto é, novas formas de pensar sobre as problemáticas sociais e jurídicas, a atenção deve ser voltada às contradições e dialéticas do sistema de opressão e exploração contemporâneo, composto por seus subsistemas articulados e interativos.
  • 8
    A ideia de projeto jurídico feminista é desenvolvida por Fabiana Cristina Severi (2017SEVERI, Fabiana Cristina. Enfrentamento à violência contra as mulheres e à domesticação da Lei Maria da Penha: elementos do projeto jurídico feminista no Brasil. 2017. Tese (Livre Docência em Direito público) - Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2017.), que propõe um projeto ético e político que aproprie o gênero como categoria analítica na interpretação dos textos legais e na produção das normas jurídicas. Não se trata de um projeto que desvaloriza a importância da lei ou das reformas jurídicas, contudo, não se restringe a elas e “encontra base no repertório de práticas e de teorias críticas desenvolvidas no campo feminista aos poderes violentos da lei”. Para Severi, o projeto jurídico feminista não tem início na aprovação de uma lei, mas deve ter nela um eixo de bricolagem da relação entre feminismo e direito a partir da “fusão de horizontes” entre os campos discursivos da ação feminista e o campo discursivo das ações institucionais do sistema de justiça brasileiro.
  • 9
    Essa hipótese parte dos resultados de pesquisa encontrados por Ela Wiecko (2008) e por Anamaria Venson (2017VENSON, Anamaria Marcon. Tráfico internacional de pessoas para exploração sexual? Uma análise de processos-crime (1995-2012). Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 2, p. 571- 591, ago. 2017.), que serão detalhados no tópico 2.
  • 10
    Esse cenário é sustentado no universo acadêmico principalmente por feministas radicais como Rosa Cobo (2017COBO, Rosa. La prostitución en el corazón del capitalismo. Madrid: Catarata, 2017.). Cobo, por exemplo, defende que a violência é inerente ao tráfico sexual e que a prostituição é fundamentalmente caracterizada pela dominação masculina, sendo a atividade sexual inerentemente contrária à emancipação de gênero, enquanto autoras representantes do Feminismo Decolonial descontroem essa imagem fixada no imaginário ocidental. Nota-se que correntes apresentadas divergem sobre a potencialidade da mulher de realocar e ressignificar as estruturas de opressão através da sua autonomia no tráfico sexual.
  • 11
    Em consonância com os aportes teóricos do Feminismo Decolonial, distinguimos tráfico humano para exploração sexual e tráfico humano para o mercado erótico a partir de uma diferenciação baseada no consentimento ofertado pelas mulheres a essas duas dinâmicas migratórias.
  • 12
    É interressante ressaltar que diversas pesquisas no campo antropológico permitem colocar em relevo a autonomia de muitas mulheres no mercado erótico e romper com o mito trafiquista. Uma delas é a de Adriana Piscitelli (2006PISCITELLI, Adriana. Sujeição ou subversão? Migrantes brasileiras na indústria do sexo na Espanha. Revista História e Perspectivas, nº 35, Universidade Federal de Uberlândia, agosto-dezembro de 2006.), realizada entre outubro e dezembro de 2004 e durante setembro de 2005, com foco em Madri, Barcelona e em Bilbau, em que dá voz a mulheres traficadas para prostituição na Espanha. A autora pontua que as mulheres entrevistadas compreendem a oferta de serviços sexuais como um trabalho, em que é possível ganhar mais dinheiro na Europa do que no Brasil e que, inclusive, podem enviar recursos econômicos para seus familiares no Brasil. Percebeu que ínfima parte das entrevistadas apontam para o vínculo de seu tráfico com coação, engano, violência, controle ou restrição da liberdade. Com efeito, algumas mulheres mencionaram enfaticamente: vim porque quis. Também, analisando a visão relativamente positiva que as mulheres traficadas têm de suas experiências sexuais na Europa, Piscitelli identifica que, para além dos ganhos materiais e econômicos com a atividade sexual, as prostitutas brasileiras compreendem que seus serviços sexuais lhes possibilitam uma autonomia nas relações com os companheiros: quem dá as cartas sou eu, conforme relata uma das entrevistadas. Na realidade, a ideia de extrema vulnerabilidade e de escravidão sexual é restrita às mulheres oriundas do Leste Europeu a da África - tratadas em situação análoga à de escravidão - diferentemente das mulheres latinas.
  • 13
    Expressão cunhada pela autora como uma chave para a racionalização da retórica em torno do tráfico sexual e superação dos pânicos morais que envolvem o tema.
  • 14
    Adicionalmente, Raquel Osborne (2007OSBORNE, Raquel. El sujeto indeseado: las prostitutas como traidoras de género. In: HERNANDÉZ, Carmen Briz; GARAIZÁBAL, Cristina; JULIANO, María Dolores. (org.). La prostitución a debate por los derechos de las prostitutas. Madrid: Talasa, 2007.) traz o conceito de vítimas pré-formatadas para denunciar que o trafiquismo produz estereótipos que, na realidade, colocam as mulheres em situação de inferioridade que lhes nega a autonomia e determinação sexual num contexto de subcidadania erótica a partir do enfoque trafiquista.
  • 15
    Partindo-se dessa premissa, reconhece-se que a multiplicidade de identidades, vivências e subjetividades dessas mulheres impede a categorização universal dos fenômenos e favorece a abordagem metodológica “de baixo para cima” e não somente “de cima para baixo”.
  • 16
    Sobre a necessidade de evitar uma análise engessada e consideração de estruturas absolutas que confeccionam indivíduos invariavelmente submetidos, desempoderados e subalternizados, Henning (2015HENNING, Carlos Eduardo. Interseccionalidade e pensamento feminista: As contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Mediações: Revista de Ciências Sociais, v. 20, n. 2, p. 97-128, 2015) chama a atenção a necessidade de levar em conta o lado estrutural e o da agência na análise interseccional para uma compreensão mais dinâmica na produção das discriminações e submissões. O autor denomina isso de agência interseccional, em que, por exemplo, o indivíduo pode, de fato, estar em desvantagem em relação a uma marca identitária, mas consegue manipular a vantagem em torno de outros traços para superar conjunturalmente determinadas opressões.
  • 17
    Uma das primeiras análises criminológicas que envolvem o estudo sobre as mulheres é o estudo sobre a mulher delinquente, rebaixada a uma categoria quase subumana e adaptada a uma categoria animalesca pela tradição criminológica predominante no século XIX. A imagem categórica de mulher delinquente, entendida em oposição à mulher normal, foi edificada no paradigma criminológico sobretudo por Cesare Lombroso e Guglielmo Ferrero (2019LOMBROSO, Cesare; FERRERO, Guglielmo. A Mulher Delinquente: A Prostituta e a Mulher Normal. Publicação Independente. 2019.), expoentes da Criminologia Positivista, que publicaram a obra La Donna Delinquente: La Prostituta E La Donna Normale em 1893 para analisar, dentre outros aspectos, a biologia e a psicologia da delinquência e da prostituição das mulheres. A mulher prostituta é a versão feminina do homem criminoso, que, na visão de Lombroso, é um ser primitivo e menos evoluído do que os homens honestos. A prostituta compõe o quadro da teoria de atavismo e está organicamente predisposta à degenerescência e à loucura moral, por sua vez, encontra-se em similitude com a mulher criminosa.
  • 18
    Mesmo o advento da Criminologia Crítica na segunda metade do século XX não revisitou totalmente o paradigma criminológico sobre a mulher porque não incorporou integralmente uma visão feminista em relação à crítica ao direito, apesar de ter um caráter fundamental para se compreender as dinâmicas seletivas, restritas e preconceituosas da aplicação do fenômeno jurídico-penal nos espaços de sociabilidade (LARRAURI, 1994LARRAURI, Elena. Mujeres, derecho penal y criminología. Madrid: Siglo XXI de España, 1994.).
  • 19
    Na obra original, a autora utiliza o termo “gendered”, que pode ser traduzido no português para “gendrado”.
  • 20
    Em nossa tradução livre.
  • 21
    Anamaria Venson se debruçou na análise do trato do Sistema Penal às mulheres traficadas para exploração sexual no mercado transnacional ao analisar doze processos-crime referentes ao período de 1995-2012. Como resultado, constatou-se que os agentes do sistema penal geralmente têm uma noção de imutabilidade da vulnerabilidade dessas mulheres, tomando-a como regra geral e sem devida verificação ao caso concreto. Perante esse retrato padronizado, a prostituição não foi compreendida, então, como um instrumento de trabalho emancipado, e sim como um universo de abuso à vulnerabilidade das mulheres traficadas e de crime cometido pelas redes de tráfico de drogas. As mulheres foram, por conseguinte, invariavelmente vinculadas ao engano e à posição de vulneráveis. A pesquisadora concluiu com a denúncia à marcante presença de moralismo e estigmatização que circundam não somente a compreensão do tráfico sexual, mas também a aplicação da legislação penal.
  • 22
    Ela Wiecko investigou a temática do tráfico de mulheres para prostituição em outro país, debruçando-se sobre a análise de 23 decisões judiciais proferidas entre 2004 e 2008, com o intuito de verificar se o Sistema de Justiça Criminal busca romper com a discriminação de gênero e com a revitimização. A pesquisadora identificou nas narrativas jurídicas que a prostituição viabilizada pelo tráfico geralmente não é entendida como um labor e nem mesmo demanda esforço, sendo exercida por mulheres em contexto de miséria e em degradação moral, sem capacidade para o consentimento.
  • 23
    É fundamental destacar que as pesquisas de Venson e Castilho foram desenvolvidas no cenário legislativo até o ano de 2012, portanto, não refletem necessariamente o conteúdo das decisões judiciais editadas pós-2012.
  • 24
    Consideramos o significado textual e o significado representacional dos textos são os mais importantes para compreender os discursos nos acórdãos que compõem o banco de análise, pois possibilitam compreender como o sujeito do discurso pode representar, criar ou desconstruir identidades dentro de jogos de poderes dentro das relações dialéticas de subsistemas interativos e conflitantes.
  • 25
    Para Pinheiro (2013PINHEIRO, Lucia Freitas Veralúcia. Violência de Gênero, Linguagem e Direito: Análise de Discurso Crítica em Processos na Lei Maria da Penha. Jundiaí: Paco, 2013.), o emprego da ACD aos textos legais permite revelar as eventuais parcialidades que estão opacas sob a retórica de imparcialidade no campo jurídico. Apesar da pretensão de que o direito e a linguagem por ele instrumentalizada sejam neutros e sem crivos morais, há um liame que conecta as significações de um texto jurídico aos seus elementos sócio-históricos.
  • 26
    A decisão contida no acórdão 4 foi editada durante a égide da Lei 13.344/2016, contudo, os desembargadores não aplicaram essa legislação pois consideram a pena do artigo 149-A mais rígida do que a pena do artigo 231 (revogado) do Código Penal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2020
  • Aceito
    08 Fev 2021
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