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Constitucionalismo transformador: entre casas de máquinas e “engenharia social judicial”

Transformative Constitutionalism: between engine rooms and “judicial social engineering”

Resumo

O artigo discute conceitualmente, comparativamente e normativamente o constitucionalismo transformador (“CT”), entendido como um projeto de transformação social por meio do direito constitucional. A partir de uma breve visão das experiências com CT na América Latina, e em países como a África do Sul, discute uma série de problemas que surgem no debate global nas últimas décadas, com ênfase nas instituições necessárias para o cumprimento de suas promessas. Criticando e ampliando o foco típico da teoria constitucional em direitos e tribunais, propõe uma perspectiva institucional, que inclui a reforma de processos políticos decisórios e a criação de instituições inclusivas (a “casa das máquinas”, na expressão de Gargarella) como condições necessárias para a implementação de um projeto transformador. Por fim, discute-se potenciais tensões entre certas concepções de CT e a própria ideia de democracia. Aponta-se riscos de se tratar o constitucionalismo transformador como uma espécie de “engenharia social judicial”, em que juízes definem os próprios fins últimos da comunidade sem deixar espaço para a discussão política democrática sobre o que os compromissos constitucionais exigem em termos de transformação.

Palavras-chave:
Constitucionalismo transformador; Democracia; Direito constitucional comparado; Teoria constitucional; Tribunais Constitucionais

Abstract

The article discusses conceptually, comparatively, and normatively the phenomenon of transformative constitutionalism (TC), understood as a project of social transformation through constitutional law. Presenting an overview of the experiences of the phenomenon in Latin America, as well as in other countries such as South Africa, the paper discusses the relationship between CT and the institutions necessary to fulfill its promises. We adopt a broader institutional perspective on the phenomenon, by discussing recent theories that criticize the exclusive focus on rights and judicial institutions, and by bringing into the debate the reform of political decision-making processes and the creation of inclusive institutions as ways of achieving the transformative project itself. Finally, we discuss potential tensions between certain conceptions of TC and the very idea of democracy, pointing to the risks of conceiving transformative constitutionalism as a kind of "judicial social engineering.”

Keywords:
Transformative constitutionalism; democracy; Comparative constitutional law; Constitutional theory; constitutional courts

1. “Constitucionalismo transformador” como projeto(s) constitucional(is)

A elaboração de um texto constitucional é um processo tanto de criação, quanto de reprodução e adaptação de ideias e modelos que já estão em circulação. As Constituições dos EUA (1787) e da Espanha (1812, a Constituição de Cádiz) inspiraram muitas outras constituições no século XIX, em especial na América Latina; por sua vez, a Constituição do Chile de 1833 adaptou essas ideias de maneira influente nas outras constituições da região no período (Gargarella 2013GARGARELLA, Roberto. Latin American constitutionalism, 1810-2010: the engine room of the Constitution. New York: Oxford University Press, 2013.). O século XX, porém, ampliou largamente o repertório constitucional mundial, em vários aspectos, levando a um progressivo e relativo declínio da proximidade entre novos textos constitucionais e aqueles existentes no século anterior (Law e Versteeg 2012LAW, David S.; VERSTEEG, Mila. The declining influence of the United States constitution. New York University Law Review, v. 87, 2012.).1 1 A pauta de modelos possíveis passa a incluir maior variedade de instituições - como o semipresidencialismo de Weimar (1919), ou o tribunal constitucional da Áustria (1919) -, mas também há transformação nas próprias ideias sobre a que fins constituições podem e devem servir, e como podem ajudar a atingi-los. No caso da América Latina, em particular, a desigualdade - ou a “questão social”, no vocabulário da época - se torna central no debate constitucional já no início do século XX. Embora a "questão social" já estivesse em pauta na região no século XIX, , sua importância nos textos promulgados era mais reduzida. Prevaleceram preocupações de conservadores com a manutenção da ordem social e política, bem como (na esteira dos EUA) preocupações liberais com a limitação do poder estatal (Gargarella 2013).

A partir da constituição do México (1917), a pauta constitucional da região se expande para incluir direitos sociais e direitos a prestações positivas do estado (Grote 2017GROTE, Rainer. The Mexican Constitution of 1917: An Early Example of Radical Transformative Constitutionalism. In: von Bogdandy et al (orgs). Transformative Constitutionalism in Latin America-The Emergence of a New Ius Commune. Oxford University Press, p. 149-169, 2017.). A transformação se dá não apenas no conteúdo das constituições, mas quanto ao papel esperado do estado e às próprias ambições constitucionais. Constituições passam a conter tipos de elementos mais variados do que o "modelo" liberal dos EUA e demais constituições do século XIX, mas também passam a expressar objetivos distintos. O que se pode e o que se deve esperar de um texto constitucional se amplia.

Toda Constituição, em sentido jurídico, é evidentemente uma criatura do mundo do dever ser; não pretende, nem pode perfeitamente descrever nenhuma sociedade. Mais ainda, toda Constituição é, em alguma medida, expressão de aversão a algum tipo de prática política ou social com a qual aquela sociedade conviveu e que deseja impedir que ocorra novamente.2 2 Esses elementos de rejeição a aspectos específicos da ordem política do passado podem ser dominantes ou mais evidentes em alguns textos constitucionais (Scheppele 2003). Mas, no caso de constituições que hoje chamamos de "transformadoras", há algo mais: o texto constitucional é expressão de um projeto político de mudança social por meio de mecanismos constitucionais, que vincula os poderes estatais na atuação positiva em direção ao estado de coisas delineado pela constituição. Em contraste com a constituição dos EUA, aqui a constituição não é feita para preservar a sociedade contra eventuais mudanças negativas em um estado de coisas que basicamente já existia no momento de sua promulgação, nem apenas para impedir a ressurgência de práticas que a comunidade aprendeu a considerar negativas.

Como observa Damaska (1990DAMASKA, Mirjan R. Reflections on American Constitutionalism. American Journal of Comparative Law, v. 38, p. 421, 1990., p. 432), em contraste com muitos de seus contemporâneos na França no período revolucionário, os criadores da constituição dos EUA "não contemplavam mudança alguma nas relações sociais por meio do uso do poder do governo". Uma constituição transformadora iria além disso, nas duas dimensões: ela (i) pretende mudar as condições sociais e políticas existentes, em vez de preservar o status quo; e, nesse sentido, (ii) representa não apenas um repúdio de práticas pontuais passadas, mas a rejeição do próprio status quo - não apenas aversão ao passado, mas aspiração de futuro distinto do presente da comunidade. Justamente por essa relação com o status quo - não de preservação, mas de transformação; não só repúdio às práticas do passado, mas exigência de um futuro específico -, constituições transformadoras colocam perguntas distintas para a teoria constitucional.

Neste artigo, discutiremos conceitualmente, comparativamente e normativamente o constitucionalismo transformador (“CT”). A seção 2 discute conceitos de CT, para além da simples classificação de constituições. Em um sentido mínimo, CT deve ser entendido como um projeto constitucional: dado um texto constitucional e certas aspirações de transformação do status quo, CT caracteriza certas formas de engajamento da comunidade jurídica e das instituições com esse texto na implementação da visão de transformação social de alguma forma já delineada pela constituição. Esse sentido mínimo, porém, é compatível com uma série de variações.

Na seção 3, apresentamos uma visão geral de experiências de CT na América Latina, incluindo debates recentes sobre o papel do sistema interamericano de proteção aos Direitos Humanos. Na seção 4, discutiremos a relação entre CT e as instituições necessárias para esse projeto constitucional. Tribunais constitucionais têm ocupado parte da imaginação de constitucionalistas engajados com CT - seja de seus críticos, seja de seus defensores. Contudo, essa perspectiva centrada em tribunais é limitada do ponto de vista descritivo e problemática de pontos de vista normativos e instrumentais, considerando os próprios objetivos do CT. Na seção 5, ampliar a perspectiva institucional sobre CT, discutiremos teorias recentes que criticam o foco exclusivo em direitos e instituições judiciais e trazem para o debate a reforma de processos políticos decisórios e a criação de instituições inclusivas, como formas de atender ao próprio projeto transformador. Na seção 6, discutiremos algumas potenciais tensões entre certas concepções de CT e a própria ideia de democracia, de um ponto de vista normativo, apontando para os riscos de pensar constitucionalismo transformador como uma espécie de “engenharia judicial social”.

2. Dimensões, variações e modelos de CT

A qualificação "transformador" é às vezes atribuída diretamente a textos constitucionais que expressam compromisso de mudança social dirigida ao modelo de uma sociedade justa e de uma visão do bem comum, delineados no próprio texto. A ambição constitucional é a de transformar a sociedade e suas instituições em direções pré-determinadas pela própria constituição. Textos constitucionais transformadores, nesse sentido, são ao menos tão antigos quanto a entrada da “questão social” na pauta constitucional mundial, com a Constituição do México (1917) e a Constituição de Weimar (1919) e suas promessas de direitos sociais. Nessa perspectiva, é possível pensar em listas mais ou menos expansivas de elementos necessários para a caracterização de uma constituição como transformadora: generosas listas de direitos sociais (Oquendo 2013); o reconhecimento de tratados internacionais de direitos humanos como detendo status constitucional (Antoniazzi et al. 2017ANTONIAZZI, Mariela Morales; ALESSANDRI, Pablo Saavedra. Inter-americanization: its legal bases and political impact. BOGDANDY, Armin von; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer; ANONIAZZI, Mariela Morales, p. 255-276, 2017.); cláusulas e preâmbulos que reafirmam o compromisso de um povo com uma sociedade mais igualitária (Leal 2018); cláusulas que buscam aumentar a participação democrática (Von Bogdandy 2020).

O constitucionalismo liberal se caracteriza por procedimentos, proibições e autorizações ao que o estado pode fazer, institucionalizando, distribuindo e controlando o exercício do poder político (Loewenstein 1986, 214). Constituições transformadoras expressam potencialidades que permaneciam latentes em um modelo estritamente liberal. Como observa Waldron (2016WALDRON, Jeremy. Political political theory: essays on institutions. Harvard University Press, 2016., 33), quando associamos "constitucionalismo" a uma ideia de vinculação de atores estatais a regras e procedimentos, é preciso lembrar que a lógica normativa é trivalente, não bivalente; ações estatais podem ser proibidas, permitidas, ou exigidas. Constituições transformadoras fazem muito mais do que simplesmente dizer o que o estado pode ou não pode fazer, estabelecendo também o que deve ser feito a partir de uma visão específica extraída de interpretações da Constituição.

Hailbronner (2017HAILBRONNER, Michaela. Transformative constitutionalism: Not only in the Global South. The American Journal of Comparative Law, v. 65, n. 3, p. 527-565, 2017.) argumenta que constituições transformadoras concebem a si mesmas como “a comprehensive order for a more just and equal society and a tool to prompt state action to that purpose as much as restrain it”. Substantivamente, CT representa uma mudança não apenas no que uma constituição pode conter, mas também no que ela pode fazer - e, com isso, até mesmo o que uma Constituição pode ser: menos um instrumento de preservar liberdades e modos de vida já existentes, e mais uma ferramenta para transformar uma sociedade em algo que ela ainda não é, mas se obriga a caminhar para ser. Em contraste com o modelo original dos EUA, esses textos expressam uma concepção do direito e do poder do Estado não apenas como “reativo” ou “negativo”, mas passível de ser ativamente utilizado para promover fins públicos desejáveis - e a própria Constituição já exigiria que fossem utilizados nessa chave “positiva”.3 3 Nessa chave, Hailbronner (Hailbronner, 2017, p.536-539) argumenta que constituições transformadoras não são encontráveis apenas em contextos de grande desigualdade social, como em países do “Sul Global”.

Contudo, textos constitucionais podem ser criados, interpretados e vividos ao longo do tempo dentro de diferentes conjuntos de crenças sobre como, quem, e para que devem ser aplicados. Por exemplo, é perfeitamente possível a existência de uma Constituição em um sistema político em que não prevalece a ideologia que tipicamente chamamos de constitucionalismo liberal (Brown, 2002). Da mesma forma, é possível que uma constituição deliberadamente desenhada como transformadora exista em uma comunidade jurídica que a interpreta como uma típica constituição liberal, com instituições que assumam os compromissos com mudança social exigidos pelo texto.4 4 Parece ter sido este, aliás, o caso do Brasil nos anos 90 (Arguelhes, 2020).

Note-se que CT não é apenas um outro termo para designar uma visão constitucional “social”. Considere, por exemplo, a constituição da União Soviética de 1936. O texto previa, em seu artigo 11, que “a vida econômica da U.R.S.S. é determinada e dirigida pelo plano econômico do estado com o objetivo de aumentar a riqueza pública, de consistentemente aumentar as condições materiais do povo e elevar o seu nível cultural, de consolidar a independência da U.R.S.S. e fortalecer suas capacidades defensivas”. É difícil não reconhecer neste dispositivo a aspiração por mudanças sociais ao longo do tempo. Contudo, a constituição e o direito constitucional tinham papel nulo no funcionamento do regime nas décadas subsequentes, minando qualquer potencial transformador original da constituição em si.5 5 Fenômeno comparável, aliás, ocorre com a Constituição Russa de 1993 - embora com claros compromissos transformadores em diversos dispositivos, a Constituição nunca cumpriu de fato o papel de ser um instrumento de mudança da sociedade russa a partir da implementação dos direitos políticos e sociais que protege de forma expansiva em seu texto (Partlett e Krasnov, 2019).

A inclusão de direitos sociais e outros dispositivos associados à atuação positiva do estado no texto constitucional é portanto necessária, mas insuficiente. A especificidade do CT está além da existência de um texto que promete saúde, justiça social, educação e proteção à dignidade humana, entre outras cláusulas que seriam transformadoras em sociedades marcadas por desigualdade e exclusão. É necessário considerar também a cultura jurídica, a comunidade profissional e as instituições que interpretam, aplicam e constroem argumentos com base nesse texto. Nessa chave, ganhou destaque no debate global a ideia de “constitucionalismo transformador” (CT) como caracterizador não de textos constitucionais, mas sim de um tipo de projeto constitucional.

Em influente artigo sobre o tema no contexto sul-africano após o fim do apartheid,Klare (1998KLARE, Karl E. Legal culture and transformative constitutionalism. South African Journal on Human Rights, v. 14, n. 1, p. 146-188, 1998.) define CT como “um projeto de longo prazo de promulgação, interpretação e aplicação constitucional (...) para transformar as instituições políticas e sociais e as relações de poder em um país em uma direção democrática, participatória e igualitária”. O CT expressaria “um empreendimento de indução mudança social de larga escala por meio de processos políticos não-violentos baseados no direito”. As ambições transformadoras por trás do texto podem sem dúvida recomendar ou até exigir práticas institucionais e profissionais comprometidas com mudança social. Contudo, a própria relação do projeto constitucional com o texto constitucional pode ser colocada em questão.

Esse questionamento surgiu, por exemplo, no debate Sul-Africano gerado a partir do trabalho de Klare. Van Marle (2009) concebe o CT como uma abordagem crítica perante a Constituição e práticas jurídicas vigentes que, comprometida com transformação social, política e econômica, pode inclusive exigir alterações nas práticas e normas vigentes. Não é o texto constitucional em si que exige ou justifica a adoção de uma determinada postura, mas a opção do intérprete por certas posturas diante do texto (qualquer que sejam os seus detalhes e comandos específicos). Como uma abordagem não necessariamente determinada pela Constituição, o CT estaria associado a uma postura “crítica”, e não “instrumental” ou “pragmática”, com relação ao direito constitucional vigente e às suas práticas e instituições (van Marle, 2009, pp. 293-294).

Posições como essa apontam para uma tensão entre leituras transformadoras da Constituição e a própria cultura jurídica profissional vigente no país, que poderia impedir a efetiva mudança associada ao projeto do CT. Se entendemos o constitucionalismo transformador como uma “prática da interpretação e aplicação de normas constitucionais de forma que promova uma profunda mudança social” (von Bogdandy e Urueña, 2021), sua relação com as práticas interpretativas e institucionais vigentes na aplicação da Constituição pode em si ser problematizada.6 6 O grau de compatibilidade entre o projeto ou prática do CT e o modelo constitucional “liberal” vigente e as práticas interpretativas que ele inspira e exige foram objeto de variados debates no contexto Sul-Africano, espelhando debates mais tradicionais provocadas por teorias críticas do direito (compare, p.ex., Roux, 2009, 2013; van Marle 2009; Modiri, 2013; Venter, 2018) Klare (1998KLARE, Karl E. Legal culture and transformative constitutionalism. South African Journal on Human Rights, v. 14, n. 1, p. 146-188, 1998., p. 152), por exemplo, considera que a Constituição Sul-Africana e o constitucionalismo que ela inspira já são, em si, uma ruptura com o constitucionalismo liberal típico do século XIX, e ainda associado a países como os EUA. Essa leitura, porém, não é consensual. Michelman (2011MICHELMAN, Frank I. Liberal constitutionalism, property rights, and the assault on poverty. Stellenbosch Law Review, v. 22, n. 3, pp. 706-723, 2011.) não vê inconsistência necessária entre o constitucionalismo liberal vigente na cultura jurídica sul-africana e o projeto transformador visível na Constituição, enquanto Sibanda (2011SIBANDA, Sanele, Not Purpose-Made! Transformative Constitutionalism, Post-Independence Constitutionalism and the Struggle to Eradicate Poverty, 22 Stellenbosch Law Review 482, 2011.) aponta exatamente para o modelo liberal dominante como obstáculo ao desenvolvimento das promessas do CT.

Fowkes (2017FOWKES, James. ‘Transformative Constitutionalism and the Global South: A View from South Africa’ in Armin von Bogdandy and others (eds), Transformative Constitutionalism in Latin America: The Emergence of a New Ius Commune, OUP, 2017.) lê esse debate como expressão de duas visões sobre o CT - uma enfocando fins transformadores, e outra meios transformadores. Para fazer uma analogia com o debate brasileiro, considere o caso do chamado “constitucionalismo da efetividade” (Souza Neto, 2006SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria constitucional e democracia deliberativa: Um Estudo sobre o Papel do Direito na Garantia das Condições para a Cooperação na Deliberação Democrática . Rio de Janeiro: Renovar, 2006., pp. 260-283). Em uma série de trabalhos ao longo dos anos 90, Barroso (2009BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira. Editora Renovar, 2009.) propôs uma chave de leitura da nova constituição focada na premissa de que seus dispositivos, inclusive os que expressavam objetivos mais gerais para a atuação do estado, deveriam ser tratados de maneira semelhante a normas de direito privado, penal ou processual, que tipicamente não seriam deixadas de lado como meros conselhos, recomendações ou orientações para legisladores futuros. Dar efetividade à constituição, inclusive quanto às suas cláusulas mais ambiciosas em termos de direitos sociais, significaria então pensar sobre a sua aplicação de maneira tão rigorosa, do ponto de vista dogmático, quanto à que a comunidade profissional daria ao Código Civil ou ao Código de Processo Penal. Os fins da nova constituição podem ser revolucionários, mas seria também revolucionário - e eficaz - extrair dos dispositivos o máximo conteúdo jurídico vinculante possível. Contudo, isso seria feito por meio de operações dogmáticas que não seriam, elas mesmas, revolucionárias ou transformadoras em relação ao arsenal tradicional da área do direito.

Ou seja: para que as promessas transformadoras da nova constituição pudessem de fato fazer diferença, seria preciso operacionalizá-las com recursos tradicionais de outras áreas do direito, como o direito civil e o direito processual. Trata-se de tensão similar à apontada por Fowkes (2017FOWKES, James. ‘Transformative Constitutionalism and the Global South: A View from South Africa’ in Armin von Bogdandy and others (eds), Transformative Constitutionalism in Latin America: The Emergence of a New Ius Commune, OUP, 2017.) no debate Sul-Africano: de um ponto de vista pragmático, os fins transformadores podem - em certas condições e em certos períodos da experiência nacional após a promulgação de uma nova constituição - ser mais eficazmente atingidos com a utilização de meios tradicionais ou até conservadores. Contudo, em outras circunstâncias, os fins transformadores podem exigir a reformulação e abandono de aspectos centrais do raciocínio jurídico e das práticas profissionais dominantes.7 7 Por essas mesmas razões, é discutível qual a melhor metodologia ou postura interpretativa para levar adiante promessas transformadoras da Constituição. Decisões da Corte Constitucional da África do Sul provocaram uma série de debates sobre se, diante de uma constituição “transformadora”, os juízes constitucionais deveriam enfocar mais os valores originais subjacentes ao texto ou desenvolver suas próprias concepções, em evolução ao longo do tempo, do que esses dispositivos exigem (Fowkes, 2017, 106-107)

O debate sul-africano foi decisivo para pautar o debate em língua inglesa, dos anos 90 para cá, no contexto da onda de democratização que se seguiu ao fim da Guerra Fria (Hailbronner, 2017HAILBRONNER, Michaela. Transformative constitutionalism: Not only in the Global South. The American Journal of Comparative Law, v. 65, n. 3, p. 527-565, 2017.). Contudo, como veremos a seguir, ideias e fenômenos associados ao CT como projeto de transformação social são muito anteriores e mais abrangentes. O caso Sul-Africano é útil não por expressar a "descoberta" de uma novidade, mas por mostrar continuidade entre diferentes momentos do debate global e experiências regionais de CT ao longo do século XX. Atravessando essas diferentes experiências, podemos pensar em um conceito minimalista ou “fino” de CT, combinando as seguintes características: (i) um texto constitucional com dispositivos que, para serem cumpridos, demandem mudança social, (ii) vinculando a ação estatal positiva à promoção dessa mudança prevista no texto, e que (iii) encontra eco em ideias e práticas de atores relevantes dentro daquele sistema jurídico. Constituições transformadoras operam nas duas primeiras dimensões, mas o CT como projeto expressa um triplo alinhamento: um texto animado por ambições transformadoras que vinculam a ação estatal e que é levado a sério, nesses termos, pela comunidade de seus intérpretes e aplicadores.

Nessa perspectiva, CT já estava presente em experiências constitucionais latino-americanas, na experiência do "constitucionalismo dirigente" da Constituição Portuguesa de 1976 - e até mesmo no constitucionalismo alemão do pós-guerra. Diferentes concepções variam quanto ao tipo e ao escopo das ambições transformadoras - mais maximalista ou mais minimalista, dependendo da natureza e da escala de atuação estatal e do tipo de objetivo que a orienta. Também variam os mecanismos institucionais e jurídicos que vinculam a ação estatal à transformação exigida pela constituição. Atravessando essas variedades de CT, porém, encontramos um terreno comum: um projeto ou empreendimento de transformação política e social que é pactuado por meio do direito constitucional, depende de operações ligadas ao direito constitucional para se tornar realidade, e adota e exige a utilização de mecanismos típicos do direito constitucional para a promoção desses objetivos.

É possível haver variação, dentre diferentes concepções “espessas” de CT, quanto a: (A) natureza da mudança exigida e (B) tipos de mecanismos institucionais adotados ou exigidos para que ela ocorra. Quanto à substância da transformação pretendida -, a visão constitucional pode se ligar a ideais mais ou menos ambiciosos. De maneira geral, promoção de direitos humanos, democracia e estado de direito costumam fazer parte de quaisquer concepções de CT (von Bogdandy, 2020; Mello, 2019MELLO, Patrícia Perrone Campos. Constitucionalismo, transformação e resiliência democrática no Brasil: o Ius Constitucionale Commune na América Latina tem uma contribuição a oferecer? Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 9, n. 2, pp.253-285, 2019..), embora o que exatamente uma concepção de CT entenda por cada um desses rótulos possa variar.8 8 Hailbronner (2017) propõe uma análise que, deixando de lado as diferenças de projeto político associado ao CT (com papéis e graus diferentes para atuação do estado, por exemplo), concentre-se no elemento jurídico distintivo: seriam transformadoras as “expansive constitutions which encompass positive and socioeconomic rights and which no longer view private relationships as outside constitutional bounds” (p. 528). Talvez a principal divisão aqui seja entre concepções voltadas para ações estatais dedicadas ao atendimento de necessidades básicas, em contraste com concepções voltadas para a redução da desigualdade (Moyn, 2018MOYN, Samuel. Not enough. Harvard University Press, 2018.).

No caso da Constituição da Colômbia, por exemplo, Cepeda Espinosa e Landau (2020, p. 6) consideram que a visão normativa transformadora vai além de redução de pobreza material (por meio da proteção a direitos socioeconômicos que exigem prestação positiva estatal), incluindo a redução da desigualdade material. A experiência da África do Sul já foi lida em chaves mais focadas com pobreza, do ponto de vista da dignidade humana e de um direito individual ao mínimo existencial (Bilchitz 2013BILCHITZ, David. Constitutionalism, the Global South, and Economic Justice. In Constitutionalism of the Global South: The Activist Tribunals of India, South Africa, and Colombia, ed. Daniel Bonilla Maldonado. New York: Cambridge University Press, 2013.), mas também em perspectivas mais ligadas ao combate à desigualdade material como um problema em si (ver, p.ex., Klare 1998KLARE, Karl E. Legal culture and transformative constitutionalism. South African Journal on Human Rights, v. 14, n. 1, p. 146-188, 1998., pp. 153-154; Liebenberg & Goldblatt, 2007LIEBENBERG, Sandra; GOLDBLATT, Beth. The interrelationship between equality and socio-economic rights under South Africa's transformative constitution. South African Journal on Human Rights, v. 23, n. 2, pp. 335-361, 2007.). Por sua vez, o ius constitutionale commune identificado por diversos autores na jurisprudência da corte interamericana de direitos humanos, como veremos a seguir, estaria mais focado no combate à exclusão social e à seletividade na aplicação dos compromissos constitucionais (von Bogdandy et al, 2017).

Por fim, modelos de CT podem variar no quanto apostam ou não em tribunais como atores centrais para garantir o comprometimento e a ação positiva estatal com essa mudança. Na verdade, as ferramentas e arranjos institucionais disponíveis vão muito além de tribunais constitucionais fortes. Para usar os termos de Brinks e Blass (2017), constituições transformadoras necessariamente irão transformar questões de política ordinária em questões de política constitucional - mas não necessariamente irão expandir o escopo da justiça constitucional. Um texto transformador regulará de antemão a política futura (colocando questões de política ordinária como de política constitucional), vinculando-a determinados objetivos já pré-determinados. Mas os mecanismos institucionais adotados para atingir esses objetivos podem ou não incluir um tribunal constitucional forte e independente com uma concepção ampliada do escopo do controle judicial de constitucionalidade.9 9 Por exemplo, embora a constituição do México de 1917 já possa ser considerado um exemplo pioneiro de CT como projeto de transformação (Grote, 2017), o controle judicial de constitucionalidade no país ocorria dentro de uma esfera muito limitada até os anos 90. Mais recentemente, constituições como as de Venezuela (2004), Ecuador (2009) e Bolívia (2008) são claramente transformadoras em seus dispositivos, mas sem centralizar poder independente nos respectivos tribunais constitucionais. São textos que, embora também adotem controle de constitucionalidade, procuram reconfigurar a própria representação política como parte da estratégia de transformação prevista na Constituição.

Por fim, vale considerar a Constituição Portuguesa de 1976 como um caso limite de CT maximalista A Revolução dos Cravos (25 de abril de 1974) resultou na a Constituição de 1976 - uma combinação das visões de diferentes espectros ideológicos no processo de transição, como os Democratas Cristãos, Social-Democratas, Socialistas e Comunistas. A plataforma do acordo constitucional, ainda que refletisse um acordo político, foi fortemente influenciada pelo marxismo e de “forte natureza programática” (Machado 2012, p. 275).

O primeiro texto da constituição assumiu postura explícita de comprometimento em construir uma sociedade socialista em conformidade com o marxismo (Machado 2012, p. 276). Além de um extenso catálogo de direitos sociais e econômicos, a Constituição previa que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes” (art. 1º), e que “a República Portuguesa (...) tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras” (art. 2º ).

Segundo a constituição, essa tarefa seria cumprida gradualmente, ao longo do tempo, por meio de medidas positivas. O artigo 9, C incluía entre as tarefas fundamentais do estado “Socializar os meios de produção e a riqueza, através de formas adequadas às características do presente período histórico, criar as condições que permitam promover o bem estar e a qualidade de vida do povo, especialmente das classes trabalhadoras, e abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem .”

Quanto aos meios institucionais, em seus artigos 142 e seguintes, a Constituição criava um “Conselho de Revolução” com poder para “velar pela emissão das medidas necessárias ao cumprimento das normas constitucionais, podendo para o efeito formular recomendações” (Art. 146, B). E, nos termos do artigo 279, “quando a Constituição não estiver a ser cumprida por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais, o Conselho da Revolução poderá recomendar aos órgãos legislativos competentes que as emitam em tempo razoável”. Além disso, uma Comissão Constitucional, de caráter mais claramente judicial, teria poderes para controlar constitucionalidade e “dar pareceres” nos casos de omissão mencionados acima (art. 284).

Desde sua criação, a Constituição Portuguesa passou por inúmeras alterações substantivas que responderam a pressões externas e internas. A primeira revisão (1/82), com 249 artigos, ocorreu no contexto da entrada do país na União Europeia. Mitigou a doutrina marxista de apropriação coletiva e socialização dos meios de produção e riqueza, assim como a natureza programática da constituição, ainda que mantendo como objetivo a transição para o socialismo. Por outro lado, mesmo após essas alterações, a Constituição manteve seu compromisso transformador - ainda que, agora, para objetivos menos ideologicamente carregados, como planejamento econômico, bem-estar da população, qualidade de vida e participação (Machado 2012, pp. 275 - 276). Nesse contexto, Canotilho (2001CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2. ed. Coimbra, 2001.) fez um balanço de seus trabalhos anteriores sobre o "constitucionalismo dirigente" fundado no projeto constitucional de 1976. Segundo o autor, mesmo após as reformas, "alguma coisa ficou da programaticidade constitucional" original: a constituição ainda fornece premissas materiais fundantes para a criação de políticas públicas, e omissões legislativas ainda devem encontrar algum tipo de resposta por mecanismos constitucionais (2001, XXXIX-XXX).10 10 Em perspectiva normativa, Canotilho já havia observado que constituições não podem e não deveriam tentar ser "leis totais" da sociedade, como se todas as decisões políticas relevantes já tivessem sido exaustivamente tomadas no âmbito da decisão constituinte nacional (1998, p. 1192). Também apresentando um conceito "minimalista" de constitucionalismo dirigente, Bercovici considera dirigente "a constituição que define fins e objetivos para o Estado e a sociedade" (1999, 35); "o problema da Constituição dirigente é um problema de transformação da realidade” (1999, p. 38), mas ela “não estabelece uma linha única de atuação para a política, reduzindo a direção política à execução dos preceitos constitucionais (...) a Constituição dirigente não substitui a política, mas se torna a sua premissa material" (1999, 38).

3. Constitucionalismo Transformador na América Latina

Muito antes da experiência da África do Sul (1996), projetos constitucionais transformadores surgem na América Latina com a Constituição Mexicana de 1917. Foi seguida pelas constituições de Bolívia (1938), Cuba (1940), Uruguai (1942), Equador e Guatemala (1945) e Costa Rica (1949), além da grande reforma constitucional feita na Argentina em 1949 (Gargarella 2013GARGARELLA, Roberto. Latin American constitutionalism, 1810-2010: the engine room of the Constitution. New York: Oxford University Press, 2013., p. 148; 2021, p. 177 - 184). Essas constituições já traziam uma generosa lista de direitos sociais. As cartas constitucionais existentes no continente herdam essa tradição, sendo ainda fortemente marcadas pelas violações de direitos humanos decorrentes de ditaduras militares nos anos 60, 70 e 80, e pelas crises sociais decorrentes da popularização do neoliberalismo na região nos anos subsequentes (Gargarella 2013, p. 163).

Com o risco de simplificação, é possível ler as constituições da região em dois blocos. Algumas enfrentam primariamente o trauma das ditaduras militares (constitucionalismo do cone sul), enquanto outras lidam também com crises sociais posteriores à popularização do neoliberalismo nos anos 90 (constitucionalismo andino). No primeiro grupo, se pudéssemos traçar um contínuo, em um extremo estaria a Constituição Chilena de 1980. Ainda que se tratando de um elemento importante para viabilizar a transição (Alberts et al 2012ALBERTS, Susan; WARSHAW, Chris; WEINGAST, Barry R. Democratization and Countermajoritarian Institutions. Cambridge University Press, 2012.), foi desenhada por comissão designada pelo próprio Pinochet, permanecendo em vigor após a transição, impondo, mesmo após diferentes reformas constitucionais, diferentes desafios a governos democráticos (Gargarella 2013GARGARELLA, Roberto. Latin American constitutionalism, 1810-2010: the engine room of the Constitution. New York: Oxford University Press, 2013., p. 149), além de ter se mostrado resiliente diante de recentes tentativas de substituição.

No outro polo, estaria a Constituição Brasileira de 1988 promulgada ao fim da ditadura de 1964. Explicitamente comprometida em combater violações de direitos humanos e na proteção da democracia e do estado democrático de direito, prevê também (Art. 3º), entre inúmeras cláusulas de clara vocação social, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais'' como se tratando de um dos “objetivos fundamentais” da República. Aqui também estariam os casos de Argentina e Uruguai, países que, ainda que optando por manter suas constituições, fizeram profundas reformas no período posterior ao fim das suas respectivas ditaduras militares.

Essas constituições foram promulgadas e reformadas antes do estresse social agudo advindo dos programas neoliberais dos anos 80 e 90. Esse cenário de crise social assume diferentes contornos em diferentes países. Nos casos venezuelano, equatoriano e boliviano, resulta em agudas rebeliões populares (Gargarella 2013GARGARELLA, Roberto. Latin American constitutionalism, 1810-2010: the engine room of the Constitution. New York: Oxford University Press, 2013., p. 154) que levaram em parte à elaboração das constituições Venezuelana (1999), Equatoriana (2008) Boliviana (2009) - o bloco do “constitucionalismo andino” ou do “novo constitucionalismo latino-americano”.

Os dois blocos têm fortes intersecções, como o reconhecimento de direitos civis e políticos (privacidade, devido processo legal, liberdade de expressão, de religião e voto), econômicos e sociais (educação, moradia e saúde). Também protegem grupos tradicionalmente discriminados, reconhecem a característica multicultural de suas sociedades e se comprometem com a igualdade e o fim da discriminação de todo tipo, exigindo ações positivas para esse fim (Uprimny 2011, pp. 1587 - 1594). Fortalecem ainda os instrumentos legais para proteção de direitos fundamentais com o robustecimento da jurisdição e cortes constitucionais e instituições de controle, como o Ministério Público, a Defensoria Pública e as controladorias gerais. Por outro lado, mantêm a tradição de centralizar muitos poderes no Executivo (Uprimny 2011, pp. 1594 - 1599; Gargarella, 2017).

Essa separação em dois blocos deixa de fora uma das constituições mais importantes do constitucionalismo transformador Latino-Americano, a Constituição Colombiana de 1991. Ainda que promulgada em um momento de profundo estresse social pela situação da guerra contra o narcotráfico no país, não foi antecedida por ditadura militar e foi promulgada muito antes das constituições andinas. Trata-se de tradição jurídica que, dos anos 90 para cá, vem apostando na relação entre CT e um judiciário atuante, em uma vasta gama de assuntos. Entre esses temas de acentuada intervenção judicial, podemos citar: a proteção de minorias, como comunidades LGBT e povos originários; a manutenção de políticas afirmativas para trabalhadores informais e de cotas afirmativas de gênero; a correção situações abusivas em mercados específicos como no caso dos planos de saúde; outras dimensões de fortalecimento da própria democracia e enfrentamento de disfunções dos poderes políticos (Cepeda Espinosa e Landau 2021ESPINOSA, Manuel José Cepeda; LANDAU, David. A broad read of Ely: Political process theory for fragile democracies. International Journal of Constitutional Law, v. 19, n. 2, p. 548-568, 2021., pp. 15-17) .

Em casos mais complexos, a atuação da Corte acabou gerando poderes inéditos, como a doutrina do “estado de coisas inconstitucional”, criada para lidar com os desplazados pelos conflitos armados entre o Estado e narcotraficantes, ou o poder de julgar emendas inconstitucionais, criado quando o tribunal impediu o Presidente Álvaro Uribe de alterar a constituição para obter um terceiro mandato (Cepeda Espinosa e Landau 2021ESPINOSA, Manuel José Cepeda; LANDAU, David. A broad read of Ely: Political process theory for fragile democracies. International Journal of Constitutional Law, v. 19, n. 2, p. 548-568, 2021., p. 13).

Os países Latino-Americanos compartilham um padrão mínimo elevado no que tange à vocação social de suas experiências concretas de CT, mas podem oscilar dentro desse terreno comum em algumas dimensões, principalmente no quanto equipam grupos excluídos para demandar seus direitos. Há relevante variação quanto às formas e graus de reconhecimento de demandas históricas dos povos originários (Wolkman 2014) - bem como na questão do meio-ambiente, com países como Equador reconhecendo direitos à própria natureza (Uprimny 2011, p. 1591), e nos direitos sociais, onde países como Bolívia e Equador protegem o direito a algo como o bem viver ou o pleno viver (Wolkman e Venâncio 2017). Assim, podem expressar visões distintas e até mesmo conflitantes dos direitos sociais (Von Bogdandy 2020, p. 415).

Considerando essas potenciais intersecções nos diferentes países da região, surge na última década um movimento intelectual de identificação e promoção do que se convencionou chamar de um “Ius Constitutionale Commune na América Latina” (ICCAL) (Von Bogdandy 2015). O termo tem sido utilizado para referir-se a uma variedade específica de CT nos países latino-americanos, que encontra em decisões do sistema interamericanos e proteção a direitos humanos um de seus principais motores. Essa espécie de CT teria se desenvolvido conforme a promulgação de constituições transformadoras na região (seguindo as ondas constitucionais já mencionadas) interagiram com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (incluindo Comissão e Corte interamericanas) já existente, mas neutralizado por ordens constitucionais anteriores (autoritárias ou não comprometidas com a transformação social), para impulsionar a solução de traumas sociais e políticos crônicos da região. Sua preocupação primeira seria fortalecer valores-chave como democracia, Estado de direito e direitos humanos, dos quais amplos setores da sociedade estariam excluídos, principalmente pela normatividade frágil e déficit institucional sistêmico típicos dos sistemas constitucionais da região (2015, pp. 7-15) .

Em sua dimensão teórica, a adoção e fortalecimento do ICCAL passa pelo esforço em abandonar as três ideologias formadoras do constitucionalismo latino-americano, ou seja, o conservadorismo, o liberalismo e o radicalismo (2015, p. 6). Em uma dimensão metodológica, envolve esforços em matéria de direito constitucional comparativo para, colocando a garantia de direitos como preocupação última do direito constitucional e adotando caráter incremental no tempo, , observar a evolução desse constitucionalismo nos diferentes países e suas diferentes experiências interagindo com um sistema supranacional, para aprimorar e corrigir experiências domésticas (Von Bogdandy 2015, p. 6). Em uma dimensão prática, sugere preocupação concomitante com o direito positivo (localizada em suas constituições transformadoras); com o discurso jurídico sobre esse mesmo direito por juristas da região (2015, p. 10-17); e com uma jurisprudência doméstica que reconheça os direitos estabelecidos por essas constituições em sua dimensão conceitual e enquanto prática coletiva (e não em sentenças contemplando indivíduos), assim como pelo reconhecimento judicial de cláusulas e entendimentos que permitam abertura à internacionalização.

Essa concepção coloca o CT em dependência de instituições judiciais. Seu sucesso dependerá de uma maior ou menor incidência desse sistema regional no cotidiano do constitucionalismo doméstico; do diálogo ou não entre as diferentes cortes domésticas na formação de sua jurisprudência; e da importância dos poderes institucionais dados pelas constituições de cada país aos seus aos seus judiciários (Mello 2019MELLO, Patrícia Perrone Campos. Constitucionalismo, transformação e resiliência democrática no Brasil: o Ius Constitucionale Commune na América Latina tem uma contribuição a oferecer? Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 9, n. 2, pp.253-285, 2019.., p. 256).

A visão proposta por juristas ligados ao movimento do ICCAL tem recebido algumas críticas. Algumas sugerem que um direito constitucional comum não deve se focar na interpretação que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) faz de valores considerados universais, mas em gerar procedimentos discursivos inclusivos, ou seja, sugerindo a necessidade de um sistema democrático a nível supranacional que vá além da juridificação do sistema político (Alterio 2018ALTERIO, Ana Micaela. El Ius Constitutionale Commune Latinoamericanum y los desafíos de la judicialización de la política. Estudios de filosofía práctica e historia de las ideas, v. 20, n. 1, p. 1-21, 2018.). Outros notam a necessidade de uma maior conexão entre a jurisprudência dos tribunais e a atividade legislativa, além de uma maior união supranacional (Herrera 2019HERRERA, Juan C. Judicial Dialogue and Transformative Constitutionalism in Latin America: The Case of Indigenous Peoples and Afro-descendants. Revista Derecho del Estado, n. 43, p. 191-233, 2019.). E, por fim, é possível questionar a compatibilidade do ICCAL com a política democrática doméstica e o funcionamento regular de instituições nacionais de separação de poderes (Arguelhes, 2019). Algumas dimensões dessas críticas serão exploradas nos próximos tópicos.

4. Transformações, direitos e instituições

4.1. O papel de tribunais: centralidade e/ou limites

O projeto do constitucionalismo transformador se expressa nas dimensões de promulgação, interpretação e enforcement de constituições (Liebenberg, 2015LIEBENBERG, Sandra. Social Rights and Transformation in South Africa: Three Frames, South African Journal on Human Rights, 31:3, pp. 446-471, 2015.), implicando em todas elas compromisso com mudanças em estruturas sociais, políticas e/ou econômicas. Na sua dimensão de enforcement, o CT deixa evidente que o caminho em direção ao ideal de sociedade precisa ser pavimentado com mecanismos que garantam a sua efetividade. Mesmo que se expresse em um vocabulário de direitos, no texto constitucional, CT precisa de instituições e procedimentos voltados para a transformação de promessas constitucionais em realidade (Fowkes, 2017FOWKES, James. ‘Transformative Constitutionalism and the Global South: A View from South Africa’ in Armin von Bogdandy and others (eds), Transformative Constitutionalism in Latin America: The Emergence of a New Ius Commune, OUP, 2017., 111).

A principal crítica nesse sentido, focada na experiência constitucional latino-americana, vem sendo desenvolvida por Roberto Gargarella em uma série de trabalhos ao longo das últimas duas décadas. Em sua leitura, há um foco excessivo, na história do constitucionalismo latino-americano, na generosa enumeração textual de direitos como forma de promover mudanças na sociedade. Esse foco teria um efeito perverso - não em termos de governabilidade, na linha de críticas de algumas perspectivas mais liberais, mas em termos do próprio impacto desses mesmos direitos na vida das pessoas que supostamente se pretende transformar. Para Gargarella, pensar na tarefa de elaboração de uma constituição "transformadora" apenas em termos de uma lista de direitos é perder de vista a constituição como regulação do poder político - como e por quem ele pode ser conquistado e exercido. Comparando a parte “orgânica” de uma constituição a uma "casa de máquinas", Gargarella considera que pouco adianta alterar listas de direitos e deixar intocados os mecanismos pelos quais se conquista e se exerce o poder político naquela comunidade.

Nessa perspectiva, o fato de constituições latino-americanas "progressistas" terem deixado as respectivas "casas de máquinas" intocadas ajudaria a explicar a falta de responsividade da política nacional às próprias listas de direitos e às promessas de transformação social consagradas nesses textos (Gargarella, 2013GARGARELLA, Roberto. Latin American constitutionalism, 1810-2010: the engine room of the Constitution. New York: Oxford University Press, 2013.).11 11 Essa crítica valeria inclusive para o "novo constitucionalismo" associado aos textos constitucionais de Venezuela, Equador e Bolívia - que, para Gargarella (2017), expressam a inserção de ideias novas nas mesmas "casas de máquinas" de sempre. É importante notar, porém, que a primeira experiência "transformadora" na América Latina - o caso do México, desde a constituição de 1917 foi levada a cabo basicamente por atores políticos por várias décadas; por exemplo, as reformas agrárias levadas a cabo pelo governo Cárdenas (Grote 2017GROTE, Rainer. The Mexican Constitution of 1917: An Early Example of Radical Transformative Constitutionalism. In: von Bogdandy et al (orgs). Transformative Constitutionalism in Latin America-The Emergence of a New Ius Commune. Oxford University Press, p. 149-169, 2017., 168). Concordando-se ou não com o diagnóstico de Gargarella sobre as reformas que (não) foram de fato feitas quanto à "casa de máquinas", existe na tradição latino-americana algumas experiências que mostram apostas nas instituições políticas como motor de implementação de promessas constitucionais.12 12 As constituições recentes de Venezuela, Equador e Bolívia, por exemplo, apostam na criação de novas formas de participação política para além do voto individual, reconhecendo ainda práticas de democracia comunitárias de povos tradicionais (Uprimmy 2011, pp.1594-1595) - ainda que Gargarella possa ter razão quanto à ineficácia ou insuficiência dos mecanismos meios adotados nessas constituições para concretizar essa aposta.

Se listar direitos e promessas é insuficiente, de que instituições o CT precisa de fato? Segundo Von Bogdandy (2020, p. 411), o constitucionalismo transformador se materializa na forma de interações horizontais (entre instituições domésticas dos países da região) e verticais (entre essas instituições e o sistema de proteção de direitos humanos supranacional). Essas relações ultrapassam não só os tribunais, abrangendo outros atores do sistema de justiça, como promotores, advogados e instituições de natureza administrativa de resolução de litígios, seus litigantes, como ONGs e indivíduos, incluindo até mesmo atores importantes como o Banco Mundial (Von Bogdandy e Ebert 2018). Nessa perspectiva, o CT na América Latina não funcionaria por meios judiciais, mas por meios legais - incluindo aqui dimensões da comunidade jurídica profissional e organismos internacionais que não estejam formalmente ligados ao estado.

Ou seja, ainda que os meios sejam legais, seu uso não está restrito a atores estatais. O projeto constitucional transformador exigiria que meios constitucionais e legais sejam empregados por variados atores comprometidos em levar adiante a visão transformadora da constituição. De maneira semelhante, Roa Roa (2020________., El rol del juez constitucional en el constitucionalismo transformador latinoamericano (The Role of Constitutional Courts in Latin American Transformative Constitutionalism) Max Planck Institute for Comparative Public Law & International Law (MPIL) Research Paper No. 2020-11, 2020.) observa que, no contexto latino-americano, o CT exige de todos os atores, estatais ou não, uma "vocação transformadora". Desenvolvendo essa linha de raciocínio, seria possível considerar que o CT depende, em alguma medida, da existência de um constitucionalismo difuso (Gomes, 2016GOMES, Juliana Cesário Alvim. Por um Constitucionalismo Difuso: cidadãos, movimentos sociais e o significado da Constituição. Salvador: JusPodium, 2016.), com movimentos sociais e cidadãos participando ativamente da tarefa (e das disputas) de interpretação de concretização do texto constitucional.

Contudo, ainda que essas considerações possam ser verdadeiras do ponto de vista do que é conceitualmente possível ou normativamente desejável quando falamos do CT, no debate dos anos 90 para cá há uma tendência a dar papel central às instituições e atores ligados ao sistema de justiça - advogados, ativistas e tribunais (Fowkes, 2017FOWKES, James. ‘Transformative Constitutionalism and the Global South: A View from South Africa’ in Armin von Bogdandy and others (eds), Transformative Constitutionalism in Latin America: The Emergence of a New Ius Commune, OUP, 2017., 115). Mais ainda, tende-se a enfocar primariamente um tipo específico de instituição estatal: juízes e tribunais.13 13 Não há dúvidas de que parte significativa das expectativas com relação ao constitucionalismo transformador dos anos 90 para cá foi depositada no judiciário nacional ou em tribunais constitucionais especializados (p.ex., Klare, 1998; Fowkes, 2017; no caso da América Latina: von Bogdandy, 2015; Mello, 2019; Roa Roa 2020; Olsen e Kozicki, 2019), ou em tribunais transnacionais (von Bogdandy et al, 2017).

Nesse sentido, von Bogdandy (2020) considera que o constitucionalismo transformador requer pouco em termos de hardware (infraestrutura institucional e financeira) e muito em termos de software (uma atitude dos profissionais e instituições do direito com relação às regras existentes). Para o autor, havendo uma constituição com direitos básicos, instituições democráticas básicas de representação e um judiciário independente, o constitucionalismo transformador já seria possível em termos de hardware. Em termos de software, a dificuldade estaria em uma sociedade, incluindo comunidade jurídica, disposta a interpretar as normas segundo uma percepção que enxergasse a sociedade como mantenedora de deficiências estruturais passíveis de serem minimamente endereçadas através de processos legais individualizados em que essas deficiências estruturais se manifestem (Von Bogdandy 2020). Ao interpretar as normas aplicáveis ao caso segundo um direito constitucional comprometido com a transformação, esses mecanismos seriam suficientes para realizar o constitucionalismo transformador.

Nessa perspectiva, juízes são atores centrais, ainda que não exclusivos. Tribunais são instituições especializadas em identificar e remediar violações a direitos; tribunais constitucionais, em especial, são instituições desenhadas para identificar e remediar violações à constituição de maneira mais geral (Fowkes, 2017FOWKES, James. ‘Transformative Constitutionalism and the Global South: A View from South Africa’ in Armin von Bogdandy and others (eds), Transformative Constitutionalism in Latin America: The Emergence of a New Ius Commune, OUP, 2017.). Assim, se a Constituição obriga certas transformações sociais por meio da positivação de direitos, e se a constituição é um texto jurídico, é inevitável que tribunais constitucionais ocupem um papel central na sua implementação. Para Roa Roa (2020________., El rol del juez constitucional en el constitucionalismo transformador latinoamericano (The Role of Constitutional Courts in Latin American Transformative Constitutionalism) Max Planck Institute for Comparative Public Law & International Law (MPIL) Research Paper No. 2020-11, 2020.), por exemplo, o CT exigiria um amplo poder judicial de interpretar e aplicar a constituição de maneira ampla, inclusive para declarar inconstitucionais ações e omissões dos outros poderes. Um sistema de controle de constitucionalidade de escopo reduzido ou excessivamente deferente a decisões técnicas ou políticas seria insuficiente por várias razões: para proteger de direitos sociais , como condição necessária para a própria democracia; para mitigar a tradição "hiperpresidencialista" do constitucionalismo da região; para proteger minorias étnicas e de gênero que estão em situação de vulnerabilidade (Roa Roa, 2020 pp. 5-6).

Em contraste com experiências constitucionais transformadoras de outros períodos do século XX, como a do México já discutida acima, o zeitgeist contemporâneo de fato enfatiza a centralidade da atuação judicial em contextos que combinam constituições transformadoras e sociedades profundamente desiguais. Nos últimos anos, não só o judiciário teve os limites de sua atuação e jurisdição ampliados pelas novas constituições latino-americanas, como se beneficiou de mudanças no campo das ideias sobre interpretação e aplicação de constituições que expandiram o escopo e as formas de atuação judicial sobre decisões políticas, como o chamado neoconstitucionalismo (von Bogdandy 2020, p. 406; Couso, 2010), ou a ideia do controle de convencionalidade, com juízes nacionais interpretando e aplicando (ou se recusando a aplicar) legislação nacional a partir de sua compatibilidade com convenções internacionais de direitos humanos (von Bogdandy 2020, p. 412; Roa Roa 2020________., El rol del juez constitucional en el constitucionalismo transformador latinoamericano (The Role of Constitutional Courts in Latin American Transformative Constitutionalism) Max Planck Institute for Comparative Public Law & International Law (MPIL) Research Paper No. 2020-11, 2020. p. 4).14 14 Especificamente no caso do Brasil, podemos destacar ainda a doutrina da efetividade (Souza Neto, 2006) Quanto a este segundo conjunto de ideias, Mello (2019, p. 264) observa que seu propósito "era justamente permitir que o judiciário fosse acionado para promover a implementação das promessas constitucionais, uma das postulações do constitucionalismo transformador". Ainda que o constitucionalismo da efetividade operasse, do ponto de vista metodológico, mais próximo de concepções normativas formalistas da decisão judicial, o sentido geral do empreendimento teórico era de ampliação do espaço para atuação estatal com vistas a dar concretude a previsões constitucionais.

Se o CT envolve direcionar a política ordinária a partir de critérios já estabelecidos na constituição, a intervenção judicial se torna particularmente atraente em contextos nos quais a alocação de poder econômico e político já é assimétrica. Grupos e indivíduos em situação de exclusão, sejam ou não minorias do ponto de vista estatístico, são justamente os que mais se beneficiaram das mudanças exigidas pela constituição - mas são também estes grupos que menos conseguem direcionar decisões políticas majoritárias para a promoção de seus direitos.

Nessa perspectiva, centrado no papel de instituições judiciais e seu potencial transformador, Roa Roa (2021ROA ROA, Jorge Ernesto. La ciudadanía dentro de la sala de máquinas del constitucionalismo transformador latinoamericano. Revista Derecho del Estado, (49), pp. 35-58, 2021.) procura responder à crítica de Gargarella quanto à ausência de reformas na "casa de máquinas". Observa que o constitucionalismo latino-americano recente teria procurado, sim, transformar os mecanismos de exercício do poder político, argumentando que a dramática expansão do acesso à jurisdição constitucional representa uma reforma na "casa de máquinas". Essa ampliação de acesso pode ser criação direta da constituição, mas pode também ser resultado de interpretações dos próprios tribunais.15 15 Ver, p.ex., o uso expansivo do mecanismo de "tutela" pelo Tribunal Constitucional da Colômbia (Iturralde, 2013). Mas, em qualquer das duas hipóteses, se tribunais constitucionais conseguem fazer valer promessas constitucionais, ampliar o escopo de sua atuação e facilitar o acesso à sua jurisdição pode ser - neste argumento - uma maneira de promover mudança social direcionando (ou “bypassando”) o próprio processo de tomada de decisão política e de formulação de políticas públicas por agentes eleitos.

O argumento de Roa Roa e similares parte da premissa de que tribunais são capazes de levar adiante as promessas do constitucionalismo transformador, de maneira eficaz, sustentada no tempo e sem gerar outros tipos de problemas práticos e normativos. Para além dessas críticas mais tradicionais quanto à legalidade ou à legitimidade de decisões judiciais sobre formulação de políticas públicas (Von Bogdandy 2020, p. 430), podemos questionar essa premissa do ponto de vista puramente do impacto ou efeito esperado da atuação judicial. CT coloca tribunais diante de questões altamente controversas do ponto de vista político e social, envolvendo muitas vezes escolhas técnicas ou orçamentárias, e que tipicamente demandarão a criação de infraestruturas que não existem ou, no estágio atual, são muito imperfeitas. (Fowkes 2017FOWKES, James. ‘Transformative Constitutionalism and the Global South: A View from South Africa’ in Armin von Bogdandy and others (eds), Transformative Constitutionalism in Latin America: The Emergence of a New Ius Commune, OUP, 2017. p. 111). Mesmo defensores do papel central do judiciário diante de constituições transformadoras são cautelosos em apontar que isso não garante a materialização dos avanços esperados (ver, p.ex., Roa Roa, 2020, p.7; Olsen e Kozicky, 2021, pp.98-100). Como tem sido, então, o desempenho dessas instituições, como agentes de transformação?

Primeiro, é possível questionar se a atuação de tribunais tem qualquer impacto prático em uma determinada área. Muitas vezes, no campo do direito, a simples mudança no discurso judicial ou na adoção, em decisões, de argumentos e teses é tomada como indicador que há uma transformação em curso - mas esses discursos fortes são compatíveis com a permanência intocada do status quo material e jurídico vigente (Arguelhes 2020ARGUELHES, Diego Werneck. Transformative Constitutionalism: A View from Brazil. In: The Global South and Comparative Constitutional Law. Edited by: Philipp Dann, Michael Riegner, and Maxim Bönnemann, Oxford University Press, 2020., p. 184). Por exemplo, no caso da decisão do STF que declarou um "estado de coisas inconstitucional" no sistema prisional brasileiro, podemos nos perguntar se e como a adoção dessa tese (retoricamente forte e em tese radical) melhorou a situação quanto a alguns problemas que procurava remediar, inclusive quanto ao compliance por parte dos atores políticos.16 16 Quanto ao aspecto da compliance nesse caso, ver p.ex. as leituras distintas de Baía, 2019 e Denari, 2021).

No caso da América Latina, a importância da atuação judicial se dá em parte por disfunções ou resistências de atores políticos em assumir as tarefas constitucionais para si. Mesmo assim, há particular dificuldade em se encontrar na região casos claros de sucesso de atuação judicial transformadora diante de completas omissões de outros poderes. Juízes têm contribuições a dar, mas a ação e cooperação dos poderes políticos é necessária. Nesse sentido, diversos trabalhos vêm tentando ampliar nossa compreensão do que seriam impactos positivos da intervenção judicial, para além de uma melhora direta e objetivamente aferível nos indicadores ligados aos direitos em jogo (ver, p.ex., Garavito 2011; Xoley, 2017). Juízes podem contribuir indiretamente, fazendo outras instituições assumirem suas responsabilidades dentro do projeto constitucional (por exemplo, trazendo um tema de policy para o centro do debate nacional (Prado, 2013PRADO, Mariana Mota. The Debatable Role of Courts in Brazil's Health Care System: Does Litigation Harm or Help? The Journal of Law, Medicine, and Ethics, v.41 (1), 2013.), ou empoderando setores locais da sociedade civil para pressionar instituições políticas a agir (Parra, 2017)).

Mesmo assim, CT só pode ser bem sucedido no longo prazo se for acompanhado de progresso social e econômico estável - algo que só pode de fato ser produzido por meio de processos políticos estruturados ao longo do tempo (Sonnenvend, 2020, 144). Por mais que se adote um conceito ampliado de quais são os efeitos positivos da atuação judicial, e por mais indiretos que possam ser esses feitos, não é possível imaginar o sucesso do CT como projeto com juízes agindo sozinhos ou contra as instituições políticas ao longo do tempo.

Segundo, é possível questionar se a atuação judicial na proteção às promessas e direitos constitucionais não gerariam efeitos perversos. Nesse cenário, juízes conseguem alterar a realidade, mas de maneiras que, ao longo do tempo ou no efeito agregado, acabam sendo negativas sob o ponto de vista dos próprios critérios colocados pela Constituição. Talvez o conjunto mais desenvolvido de dados sobre esse tipo de argumento esteja na vasta literatura sobre a judicialização do direito à saúde no caso brasileiro.17 17 Para uma revisão dos achados empíricos sobre o tema no caso do Brasil, ver Wang, 2021. Ferraz (2020) argumenta que decisões judiciais sobre acesso a medicamentos acabaram produzindo efeitos regressivos. Ela beneficiariam desproporcionalmente certos grupos demográficos com algum acesso e conhecimento quanto ao sistema de justiça, prejudicando indiretamente grupos mais excluídos que dependeriam de investimentos em políticas gerais de saúde para proteção de seus direitos. A litigância individual envolvendo medicamentos e tratamentos, com alto grau de sucesso no caso brasileiro, teria resultado em desigualdades, uma vez que esses direitos estariam garantidos a litigantes individuais, em prejuízo da universalidade, em cenário de recursos escassos. Com isso, o acesso a um bem público, saúde, fica condicionado à variação de capacidade no acesso ao judiciário, tipicamente mais encontrável em uma minoria da população. Como aqueles que podem litigar com sucesso tendem a já vir de grupos socioeconômicos privilegiados, essa dinâmica pode acentuar desigualdades (Ferraz, 2009, 2010).

Outros tipos de argumentos de “efeitos perversos” do protagonismo judicial no CT podem ser encontrados na literatura. Bernal (2018), por exemplo, observa que, no caso Colombiano a ênfase excessiva em litigância e na atuação judicial pode ter levado atores sociais e institucionais a investir menos do que deveriam no processo político e eleitoral, prejudicando as chances de que essa mudança seja estável no longo prazo. Além disso, se consideramos que uma das tarefas esperadas do poder judicial em países altamente desiguais é contribuir para o fortalecimento das próprias instituições políticas, a aposta excessiva nos juízes pode acabar enfraquecendo a construção, no longo prazo, do arcabouço institucional necessário para que a própria política democrática funcione de maneira menos excludente e mais eficaz no cumprimento da constituição (Fowkes, 2017FOWKES, James. ‘Transformative Constitutionalism and the Global South: A View from South Africa’ in Armin von Bogdandy and others (eds), Transformative Constitutionalism in Latin America: The Emergence of a New Ius Commune, OUP, 2017., p.115). Ainda que se considere que tribunais constitucionais cumprem um papel importante para mitigar ou corrigir “disfunções” do processo político que bloqueiam o cumprimento das promessas constitucionais (p.ex., Cepeda Espinosa e Landau, 2021ESPINOSA, Manuel José Cepeda; LANDAU, David. A broad read of Ely: Political process theory for fragile democracies. International Journal of Constitutional Law, v. 19, n. 2, p. 548-568, 2021.), é possível que, a partir de um certo grau ou frequência de intervenção, a intervenção judicial mine a própria responsabilidade e autoridade das instituições consideradas “disfuncionais”.

De maneira geral, tribunais constitucionais independentes não estão imunes às circunstâncias e mudanças políticas - em especial quanto à sua composição e a possíveis retaliações por agentes políticos. A interpretação constitucional se transforma, ao longo do tempo, pela influência de processos eleitorais e políticos. O que tomamos hoje como um dado inescapável da proteção mínima a direitos fundamentais pode ser alterado conforme diferentes gerações de políticos indiquem juízes alinhados com suas próprias concepções. É possível haver descompassos entre visões transformadoras expressas na comunidade jurídica e as ideias dominantes em instituições judiciais, cuja composição reflete leituras e expectativas diferentes do que a própria constituição exige (Arguelhes, 2020ARGUELHES, Diego Werneck. Transformative Constitutionalism: A View from Brazil. In: The Global South and Comparative Constitutional Law. Edited by: Philipp Dann, Michael Riegner, and Maxim Bönnemann, Oxford University Press, 2020.).

Por exemplo, no contexto imediatamente posterior à nova constituição, o Supremo Tribunal Federal relutou em decidir temas ligados às promessas transformadoras da constituição de 1988 em termos de direitos fundamentais e em algumas questões centrais para o repúdio à ordem constitucional da ditadura (Arguelhes, 2022ARGUELHES, Diego Werneck. Ellwanger e as transformações do Supremo Tribunal Federal: um novo começo? Direito & Praxis, 13 (3), 2022.). Em contraste, no mesmo período, a Corte Constitucional da Colômbia se notabilizou pela extensão de seus poderes, abertura crescente de sua jurisdição e grande atuação sobre temas ligados à agenda social de governos (Bonilla Maldonado 2013MALDONADO, Daniel Bonilla (ed), Constitutionalism of the Global South: The Activist Tribunals of India, South Africa, and Colombia, CUP, 2013.). Mais recentemente, porém, os cenários parecem ter se alterado, ao menos relativamente: mudanças de composição desde os anos 90 acompanharam crescente disposição para protagonismo judicial no caso do STF (Arguelhes, 2022) - e, dos anos 2000 em diante, mudanças no perfil dos indicados para o tribunal constitucional parecem ter levado a uma relativa (ainda que não radical) postura de maior contenção no caso da Colômbia (Landau, 2012).

Esses casos sugerem mostram que as capacidades judiciais manter a política vinculada a certas visões transformadoras ao longo tempo não devem ser idealizadas. Pensando em ciclos mais longos, juízes não conseguem se colocar à margem da política para obrigá-la a simplesmente implementar fins já dados de antemão. O judiciário também acaba participando da própria definição desses fins, mesmo quando o faz como interpretação de compromissos já presentes no texto constitucional. Essa tarefa de definição de fins, de inevitável conteúdo político, não se dá de maneira totalmente insulada das flutuações mais gerais da política nacional ao longo dos anos, apesar da independência judicial no curto prazo.

De maneira geral, defensores do CT não costumam se abrir para a possibilidade de que outras instituições, ainda que imperfeitas, possam ser melhores do que o judiciário na promoção de certos objetivos constitucionais (Fowkes (2017FOWKES, James. ‘Transformative Constitutionalism and the Global South: A View from South Africa’ in Armin von Bogdandy and others (eds), Transformative Constitutionalism in Latin America: The Emergence of a New Ius Commune, OUP, 2017., 111). De um ponto de vista estritamente consequencialista - isto é, da promoção de estados de coisas mais adequados ao que exige a visão transformadora da constituição - algum grau deferência aos outros poderes pode ser a melhor maneira de levar adiante certas políticas gerais de combate à exclusão e desigualdade.18 18 Esse ponto é reconhecido inclusive por entusiastas do papel judicial em contextos de CT. Nesse sentido, por exemplo, Roa Roa (2020), reconhece que, idealmente, o papel do juiz constitucional deve ser mais “dialógico” na relação com as instituições políticas. No debate brasileiro, ver p.ex. Olsen e Kozicki, 2019, p.98-100; e Mello, 2019, p.259). Apesar disso, ainda que não falte na academia voltada para o debate institucional discussões sobre criação e funcionamento de instituições não judiciais, até mesmo pela interação de todas as instituições, a literatura de direito constitucional dos anos 90 para cá foi construída em torno da legitimação, crítica e desenho da atividade judicial. Refletir sobre arranjos institucionais capazes de realizar o constitucionalismo transformador sem enfatizar excessivamente o judiciário é um desafio intelectual central para juristas latino-americanos.

4.2. Um Constitucionalismo Transformador de Instituições?

Nas últimas décadas, em meio a debates sobre o cumprimento ou frustração das promessas de constituições transformadoras, as próprias democracias constitucionais entraram em crise. Enquanto as ciências sociais se dedicaram a dar diferentes explicações para a ascensão de líderes populistas reacionários (Rodrik 2018, Norris e Inglehart 2019, Przeworski 2019), a área do direito constitucional se dedicou a mapear diferentes estratégias de erosão do arcabouço democrático (Graeber et al 2018; Ginsburg e Huq, 2018GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz. How to save a constitutional democracy. Chicago: University of Chicago Press, 2018.). Alguns trabalhos, no entanto, começaram a sugerir conexões entre limitações do constitucionalismo contemporâneo e crises da democracia. Ainda que nossa compreensão da onda autoritária no mundo esteja em construção, déficits de representação podem ter impacto direto no exercício do voto por cidadãos em democracias.

Nessa perspectiva, alguns trabalhos sugerem um CT voltado para a construção de um arcabouço constitucional mais inclusivo no que tange à participação popular. Indo além da definição d critérios substantivos para o uso do poder político, da criação de tribunais fortes para implementar essas promessas por meio de decisões de controle de constitucionalidade, propõem um debate sobre como o poder político é conquistado e exercido. Vamos sublinhar três desses trabalhos, que apontam novas visões, possibilidades institucionais e atores a serem considerados no debate sobre constituições e transformação social.

Em seu mais recente livro, Gargarella (2021GARGARELLA, Roberto. El derecho como una conversación entre iguales. Siglo Veintiuno Editores, 2021.) prossegue com sua crítica antiga: apesar da evolução dos direitos sociais no constitucionalismo latino-americano, o arranjo institucional teria se mantido o mesmo. Seria um constitucionalismo de duas cabeças: criaram-se constituições com níveis de inclusão inéditos em termos de direitos, mas com as mesmas instituições elitistas e concentradoras de poder do constitucionalismo social visto no continente na segunda metade do Séc. XX. Sugere que a erosão causada pelo crescimento de movimentos populistas autoritários não se resolve com impeachments ou outros ajustes nos mecanismos de freios e contrapesos. A organização constitucional seria parte central do problema. As sociedades multiculturais, pluralistas e heterogêneas de hoje não poderiam ser representadas pelas instituições criadas por elites há duzentos anos para representar seus interesses. Tampouco poderiam se limitar (apesar de algumas inovações institucionais no sentido da participação direta) ao momento do voto (Gargarella 2021, p. 313-317) Vítimas de falta de imaginação institucional, estaríamos então presos em visão elitista de representação pautada pela desconfiança democrática das elites do passado com relação a instituições majoritárias (Gargarella, 2012, p. 314).

Essa desconfiança resultaria em excessivos controles sobre as maiorias, em desenho de checks and balances pensado para evitar a guerra entre facções, mas que inviabiliza o diálogo, colocando os próprios direitos como imposição contra as maiorias, e não uma conquista comum (Gargarella 2021GARGARELLA, Roberto. El derecho como una conversación entre iguales. Siglo Veintiuno Editores, 2021., p. 320). Afirma que a interpretação judicial estaria hoje vinculada a “legalismos esotéricos" e "sofisticados, porém moralmente distrativos”, que tornam qualquer coisa possível em nome de um direito constitucional apresentado apenas como conhecimento técnico (Gargarella 2021, p. 325).

A solução estaria em instituições de deliberação inclusiva com igualdade de status entre os participantes, ou seja, em que fosse possível uma conversação entre iguais, capaz de responder ao principal desafio atual, as desigualdades, e não aos de outras ordens constitucionais em outro momento do tempo. Estaríamos assim protegendo direitos sociais sem reconhecer, a seus titulares, a voz para participar desse processo. Para ilustrar seu raciocínio, o autor traz experiências como as Assembleias Inclusivas no Canadá, a condução das discussões sobre o aborto na Irlanda, e as Audiências Públicas na Argentina (2021, p. 323).

Por sua vez, Vergara (2020VERGARA, Camila. Systemic corruption: constitutional ideas for an anti-oligarchic republic. Princeton University Press, 2020.) reconstrói antigas tradições constitucionais para pensar em instituições mais inclusivas. Toma como ponto de partida a opressão dos “muitos sem poder” pelos “poucos poderosos” para resgatar um pensamento constitucional - de Maquiavel e Condorcet a Luxemburgo e Arendt - que permita pensar o que chama de poder plebeu. Trata-se do poder de instituições que permitem participação dos que não possuem poder econômico e político em processos deliberativos decisivos para maior igualdade de todos (Vergara 2020, p. 250).

Como os arranjos constitucionais de hoje não possuem nenhuma instituição para representação dos menos favorecidos, nossas democracias conteriam apenas instituições pelas quais as elites controlam umas às outras. Democracias representativas seriam algo como regimes monocráticos com separação de funções, sem contrapoder ao crescente poder oligárquico e corrupto dos governos representativos. As eleições não seriam garantia do caráter representativo dos ocupantes das cadeiras legislativas e da cadeira do chefe do Poder Executivo. Precisaríamos então de instituições nas quais “plebeus” possam vetar medidas opressivas de governos representativos ou censurar diretamente seus representantes (Vergara 2020VERGARA, Camila. Systemic corruption: constitutional ideas for an anti-oligarchic republic. Princeton University Press, 2020., p.3-4).

Na mesma linha crítica de Gargarella à pouca imaginação institucional, propõe um “ramo plebeu” ou “poder plebeu” (“Plebeian Branch”) formado por (a) uma “rede soberana de conselhos locais”, dedicada a fiscalizar as ações governamentais por meio da agregação de deliberações a nível local sobre assuntos que afetem o interesse geral do distrito, estado ou da própria república (Vergara 2020VERGARA, Camila. Systemic corruption: constitutional ideas for an anti-oligarchic republic. Princeton University Press, 2020., p. 251) e; (b) um “Tribunato” dedicado a fazer cumprir a vontade dos conselhos e a combater a corrupção (Vergara 2020 p. 243).

Essa rede de assembleias locais teria o poder de repelir qualquer decisão de qualquer poder que considerassem uma forma de dominação, mas também de exercitar o poder constituinte e revisar o framework constitucional (Vergara 2020VERGARA, Camila. Systemic corruption: constitutional ideas for an anti-oligarchic republic. Princeton University Press, 2020., p. 245). Seus membros poderiam iniciar, vetar e repelir políticas, ações executivas, decisões judiciais e nomeações; poderiam iniciar o processo constituinte, propor emendas à constituição e aceitar ou rejeitar um projeto de constituição. A ideia inicial seria de que todo adulto fosse elegível para participar desde que não ocupasse nenhuma posição de autoridade política, judicial, cultural, religiosa ou corporativa (Vergara 2020, p. 251)

Já o “Tribunato” zelaria pela decisão majoritária tomada pelas assembleias locais. Apresenta propostas para iniciar, vetar, repelir leis, políticas, ações executivas, decisões judiciais e nomeações; fiscalizar o cumprimento da vontade popular; analisar questões procedimentais das assembleias locais e iniciar o processo constituinte convocando as assembleias locais (Vergara 2020VERGARA, Camila. Systemic corruption: constitutional ideas for an anti-oligarchic republic. Princeton University Press, 2020., p. 257). O “Tribunato” também garantiria o exercício dos mandatos vindos da rede de assembleia e poderá investigar denúncias de corrupção na política, tendo o poder de iniciar e recomendar penas em processos de impeachment (Vergara 2020, p. 249).

Esses exemplos são detalhados apenas o suficiente para ilustrar o tipo de problema que pretendem resolver. Em debates concretos sobre o desenho e a implementação de qualquer nova instituição ou redesenho das instituições existentes, surgiriam certamente novos problemas, gerados inclusive pela própria reforma. Pensar em novas instituições com esse nível de ambição e escopo pode parecer excessivamente desafiador, especialmente considerando o foco típico de constitucionalistas em tribunais como o ponto de partida e de chegada da implementação das promessas constitucionais. Contudo, as ideias mencionadas já foram tentadas em alguma instância, ainda que em escala menor, em países latino-americanos que investiram em assembleias locais de cidadãos. É possível aprender com os seus efeitos e resultados ao longo do tempo.

Mais ainda, temos exemplos, na própria Constituição brasileira, de inovações institucionais que - embora aparentemente menos impactantes sobre a conquista e o exercício do poder político - podem ter sido decisivas para a criação de políticas públicas sobre desigualdades. Temos uma Constituição que já estabelece em seu texto original uma série de escolhas quanto a políticas públicas que seriam tipicamente material de disputas eleitorais ordinárias, não da política constitucional (Arantes e Couto, 2019). Como garantir a implementação dessas promessas de políticas sociais, às vezes com alto grau de especificidade?

Considere, nesse sentido, um recente volume com trabalhos de cientistas sociais e economistas para analisar o impacto da Constituição e suas promessas na vida do país, em áreas como educação, saúde, seguridade e assistência social e trabalho (Menezes Filho e Portela, 2019). Esses trabalhos empíricos analisam não o efeito de decisões judiciais, mas sim de arranjos institucionais sobre políticas públicas - como o Sistema Único de Saúde (SUS), mecanismos de vinculação orçamentária e regras de financiamento de políticas públicas sobre educação, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). São regras que configuram uma “sala de máquinas” constitucionalmente ampliada, para além da regulação das estruturas básicas pelas quais se ganha e se exerce o poder político. Estabelecem procedimentos, prioridades e estruturas de tarefas, cooperação e recursos para formulação de políticas públicas em variados níveis da federação.

Embora a narrativa dominante no direito constitucional brasileiro enfoque o papel do Judiciário no combate à desigualdade material e exclusão, esses estudos mostram que muitos avanços substantivos de promoção de igualdade e justiça social na sociedade brasileira desde 1988 resultam de mecanismos como os descritos acima, e não de decisões judiciais “transformadoras”. Ao criar estruturas para formulação e financiamento de políticas públicas, sintonizadas nos três níveis da federação, a Constituição de 1988 nos dá importantes exemplos de como criar instituições para promover transformação na política e na sociedade - inovações que, sem confiar excessivamente no poder judicial, tampouco envolvem alterações mais radicais na “casa de máquinas” do poder político..

Por fim, trabalho recente de Riegner (2022RIEGNER, Michael. Canonizing the corporation: Liberal, social and transformative varieties of constitutionalism. In: Choudhry/Kumm (orgs.), Global Canons in an Age of Uncertainty: Debating Foundational Texts of Constitutional Democracy and Human Rights (no prelo, 2022).) permite considerações adicionais sobre o escopo da pauta do CT - agora do ponto de vista dos atores não-estatais que devem ser incluídos na discussão. Segundo o autor, os cânones do Direito Constitucional têm ignorado as Empresas como atores do Direito Constitucional, tratando-as como criaturas exclusivamente do direito privado (2022, p. 02). Algumas constituições de países do “Sul Global” regulam aspectos do funcionamento de empresas privadas. Mas, ainda assim, de maneira geral o tratamento dado às corporações ainda está limitado às dicotomias típicas da área - como estado contra o indivíduo, o público contra o privado, o político contra o econômico, autoridade contra direitos, soberania contra propriedade, democracia contra mercados e plano internacional contra plano nacional. Na jurisprudência dos EUA, Riegner cita o exemplo do caso Chevron para salientar a centralidade de corporações para viabilizar valores como soberania econômica, justiça distributiva e mudanças sociais. Em países como Equador, discussões sobre os parâmetros constitucionais para a atuação de empresas privadas foram decisivos para problemas envolvendo legados coloniais e disparidades socioeconômicas (Riegner 2022, p. 14). Pensar no papel de atores não-estatais economicamente centrais é ser uma das possibilidades hoje abertas na fronteira do pensamento sobre constituições e transformação social.

5. Constitucionalismo Transformador e Democracia: entre a inclusão política e a “engenharia judicial”?

A teoria constitucional procura avaliar e compreender as implicações da nossa vinculação, hoje, a um determinado passado - ao que gerações anteriores consideraram correto, útil, necessário ou justo, e que chega até nós sob a forma de normas constitucionais. Essa vinculação e sua compatibilidade com democracia é objeto de discussão há décadas no campo da teoria constitucional e da teoria da democracia (Holmes, 1993HOLMES, Stephen. Pre-commitment and the paradox of democracy. in Elster e Slagstad (orgs.), Constitutionalism and Democracy, pp.195-240, 1993.). Mas o fenômeno do CT coloca desafios adicionais de justificação normativa em uma democracia. O constitucionalismo liberal deixa o futuro em aberto, mesmo colocando fora de discussão política a utilização de certos meios que violem direitos ou concentrem poder excessivo na mão de certos grupos ou instituições. São decisões políticas passadas da comunidade que limitam o que pode ser feito para fazer (e promover) as escolhas políticas de hoje. No caso de CT, porém, trata-se de decisões passadas que procuram vincular a comunidade a um futuro imaginado por essa geração anterior: estamos vinculados não apenas a preservar coisas importantes para a geração constituinte, mas a construir um futuro ainda inexistente, mas já delineado na constituição..

Surge aqui potencial tensão entre o CT e a solidez da democracia. CT opera por uma intensa constitucionalização (e, com frequência, judicialização) da atividade política. Por um lado, do ponto de vista substantivo, essa constitucionalização pode operar de forma a promover condições sociais e institucionais que melhoram a qualidade da democracia. Em especial, na medida em que combate à exclusão e desigualdade social é ambição central para muitas experiências de CT, apostar em projetos de transformação pode atuar sobre uma das possíveis causas de processos de erosão democrática. É o caso, por exemplo, de reformas institucionais que promovam acesso e condições materiais mais inclusivas para a conquista e o exercício do poder político em uma comunidade, como nos exemplos discutidas na seção 5 deste trabalho.

Por outro, porém, CT por definição reduz o espaço da decisão política ligada aos ciclos eleitorais ordinários. Embora isso seja verdadeiro quanto ao constitucionalismo em geral, o caso do CT é específico: expressa uma dupla desconfiança da política. Desconfia não apenas dos legisladores e dos cidadãos que os escolhem, mas da própria atividade política como discussão diária e recorrente sobre quais fins devem ser perseguidos pela comunidade. Todo constitucionalismo desconfia da política e impõe limites aos meios à sua disposição, mas CT parece desconfiar da própria atividade política como prática de debate e escolha de fins em que o resultado está em aberto.

Mais ainda, CT com frequência deposita grande confiança nos juízes e em tribunais constitucionais como oráculos com autoridade para determinar quais seriam os fins efetivamente desejados pela constituição. Teoricamente, essa confiança seria contingente e provisória - até que a sociedade ou suas instituições atinjam o nível de transformação mínima exigido pela constituição, como quer que seja definido por aquela concepção. Contudo, mesmo a concepção mais minimalista de CT abre espaço, na prática, para o risco de uma primazia estável do poder judicial como veículo principal de transformação. Em especial, concepções que não definem espaços que tribunais não podem e não devem ocupar correm o risco de se tornar exercícios de “engenharia social judicial” - em que tanto os fins a serem perseguidos, quanto os meios a serem empregados para promovê-los se reduzem meramente à atividade de interpretação constitucional.

Adotar mecanismos para “abrir” a interpretação constitucional a outras vozes e atores da sociedade civil (Gomes, 2016GOMES, Juliana Cesário Alvim. Por um Constitucionalismo Difuso: cidadãos, movimentos sociais e o significado da Constituição. Salvador: JusPodium, 2016.) não resolve esse problema. O ponto aqui não é a necessidade de democratizar e pluralizar o espaço da interpretação constitucional, mas sim o problema de a interpretação constitucional - ainda que plenamente aberta à sociedade civil, em condições de igualdade para diferentes vozes - acabar ocupando todo o espaço da política como discussão sobre fins. Um CT que não deixe espaço relevante para a política ordinária, ou para algum tipo de política constitucional não judicializada, com reconhecimento da possibilidade de discordância quanto ao sentido e conteúdo último das promessas constitucionais transformadoras, pode ser particularmente difícil de reconciliar com democracia como prática política. Em regimes democráticos, não pode haver ponto final para a discussão sobre que rumos o país deve seguir. Há uma tensão com concepções de CT que deixam para a política ordinária apenas a questão instrumental de quais os melhores meios para se atingir fins já completamente pré-determinados (Arguelhes, 2019).

Nessa perspectiva, embora CT possa agir sobre uma das possíveis causas da crise da democracia (desigualdade), existe um perigo reverso: . Se empoderar instituições independentes da política, reduzindo o espaço da política tanto como escolha de fins, quanto de meios, CT pode ter como efeito perverso e inesperado aumentar a alienação dos cidadãos com relação aos processos de tomada de decisões fundamentais da comunidade. Para além de argumentos normativos, o problema aparece também em perspectiva sociológica, se considerarmos análises recentes correlacionando a ascensão de instituições não-majoritárias - como burocracias transnacionais, no caso da União Europeia, e bancos centrais e tribunais constitucionais - e o crescimento da força de movimentos políticos populistas de feição autoritária.

Segundo Zurn (2021), a transferência de poder político, nas últimas décadas, para instituições independentes da política pode ter contribuído para minar a representatividade do sistema partidário e para incentivar a votação de políticos extremistas e antissistema. Esses políticos e quem os apoia se sentiriam excluídos do discurso público e alijados do poder de tomar decisões relevantes sobre suas vidas, enquanto instituições alinhadas a elites liberais cosmopolitas ganham mais e mais poder. Concorde-se ou não com esse discurso, essa percepção pode hoje ser encontrada em muitos grupos sociais e políticos. E se é verdade que ela alimenta mobilizações que ameaçam a própria democracia, é importante considerar o quanto transformar o CT em um exercício de “engenharia judicial social” agrava o problema.

Esse problema se aplica inclusive na implementação de direitos tipicamente negativos. É preciso preservar algum espaço para discordância inclusive quanto a alguns contornos de implementação de direitos em geral - ou, no mínimo, reconhecer que nem toda decisão “progressista” sob um determinado ângulo é consensual ou inequivocamente expressão de CT, a ponto de não admitir divergência possível fora do campo do direito constitucional.

Por exemplo, Mello (2019MELLO, Patrícia Perrone Campos. Constitucionalismo, transformação e resiliência democrática no Brasil: o Ius Constitucionale Commune na América Latina tem uma contribuição a oferecer? Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 9, n. 2, pp.253-285, 2019.., 270-271) cita algumas decisões do STF como exemplos de atuação transformadora para consolidar o estado de direito, criando condições para aplicação transparente, independente e não-seletiva da lei penal, especialmente em casos envolvendo condutas de atores política ou economicamente poderosos. Dentre elas, a autora cita: (i) a admissão da constitucionalidade da execução provisória da pena sem o trânsito em julgado da condenação, (ii) a redução do alcance das previsão constitucional de foro por prerrogativa de função para certas autoridades públicas, e (iii) condenações e outras medidas restritivas de caráter penal adotadas contra parlamentares envolvidos em ilícitos.

Independentemente do mérito dessas decisões, apresentá-las como avanços judiciais rumo a transformações já exigidas por um constitucionalismo transformador fundado na Constituição de 1988 pode ser problemático. São temas complexos tanto do ponto de vista da interpretação constitucional, quanto de seus eventuais impactos sobre desigualdade e accountability no sistema penal e político. Envolveram, em cada decisão, uma série de ajustes e escolhas feitos pelos ministros e ministras nos detalhes de arranjos vigentes sobre esses temas, com impacto em trade offs de valores socialmente relevantes sobre os quais pode haver discordância razoável. Em uma leitura possível, nesses casos, o Supremo Tribunal Federal puxou para si a responsabilidade de promover transformação social de maneira completa - isto é, definindo no detalhe tanto os meios, quanto os fins - do status quo rumo ao ideal constitucional, ao conforme a percepção de seus ministros e de suas ministras de qual seria esse ideal e dos meios necessários ao seu atingimento.

Se essa descrição da atuação do STF faz sentido, teríamos aqui um problema de “engenharia social judicial”. Em vez de se limitar a delinear os contornos das opções legislativas possíveis, ou de encontrar maneiras de comprometer os legisladores a lidar com suas próprias omissões, o tribunal fez escolhas detalhadas sobre como a comunidade deve perseguir fins conflitantes - como conciliar em arranjos específicos, por exemplo, preocupações com igualdade na aplicação da lei e seletividade do sistema penal, de um lado, e a presunção de inocência e o direito à ampla defesa.

É problemático, em uma democracia, tratar essas escolhas judiciais - qualquer que seja o seu fundamento jurídico - como mera implementação de transformações de teor já totalmente conhecido e exigido de antemão pela Constituição, apenas aguardando revelação nos votos de juízes e juízas. Como argumentamos acima, o CT pode ser um fator de consolidação ou de enfraquecimento de uma política democrática igualitária e inclusiva. Mas, para enfrentar essa tensão, é preciso pensar em expressões institucionais de projetos constitucionais transformadores que se ocupem de equalizar o acesso e exercício do poder político, sem apostar simplesmente em ocupar a “casa de máquinas” com juízes e litigantes, nem reduzir a política à interpretação constitucional.

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  • 1
    A pauta de modelos possíveis passa a incluir maior variedade de instituições - como o semipresidencialismo de Weimar (1919), ou o tribunal constitucional da Áustria (1919) -, mas também há transformação nas próprias ideias sobre a que fins constituições podem e devem servir, e como podem ajudar a atingi-los.
  • 2
    Esses elementos de rejeição a aspectos específicos da ordem política do passado podem ser dominantes ou mais evidentes em alguns textos constitucionais (Scheppele 2003).
  • 3
    Nessa chave, Hailbronner (Hailbronner, 2017HAILBRONNER, Michaela. Transformative constitutionalism: Not only in the Global South. The American Journal of Comparative Law, v. 65, n. 3, p. 527-565, 2017., p.536-539) argumenta que constituições transformadoras não são encontráveis apenas em contextos de grande desigualdade social, como em países do “Sul Global”.
  • 4
    Parece ter sido este, aliás, o caso do Brasil nos anos 90 (Arguelhes, 2020ARGUELHES, Diego Werneck. Transformative Constitutionalism: A View from Brazil. In: The Global South and Comparative Constitutional Law. Edited by: Philipp Dann, Michael Riegner, and Maxim Bönnemann, Oxford University Press, 2020.).
  • 5
    Fenômeno comparável, aliás, ocorre com a Constituição Russa de 1993 - embora com claros compromissos transformadores em diversos dispositivos, a Constituição nunca cumpriu de fato o papel de ser um instrumento de mudança da sociedade russa a partir da implementação dos direitos políticos e sociais que protege de forma expansiva em seu texto (Partlett e Krasnov, 2019PARTLETT, William; KRASNOV, Mikhail. Russia’s Non-Transformative Constitutional Founding. European Constitutional Law Review, v. 15, n. 4, pp. 644-667, 2019.).
  • 6
    O grau de compatibilidade entre o projeto ou prática do CT e o modelo constitucional “liberal” vigente e as práticas interpretativas que ele inspira e exige foram objeto de variados debates no contexto Sul-Africano, espelhando debates mais tradicionais provocadas por teorias críticas do direito (compare, p.ex., Roux, 2009ROUX, Theunis. Transformative Constitutionalism and the Best Interpretation of the South African Constitution: Distinction Without a Difference? 20 Stellenbosch Law Review 258, 2009., 2013; van Marle 2009; Modiri, 2013; Venter, 2018)
  • 7
    Por essas mesmas razões, é discutível qual a melhor metodologia ou postura interpretativa para levar adiante promessas transformadoras da Constituição. Decisões da Corte Constitucional da África do Sul provocaram uma série de debates sobre se, diante de uma constituição “transformadora”, os juízes constitucionais deveriam enfocar mais os valores originais subjacentes ao texto ou desenvolver suas próprias concepções, em evolução ao longo do tempo, do que esses dispositivos exigem (Fowkes, 2017FOWKES, James. ‘Transformative Constitutionalism and the Global South: A View from South Africa’ in Armin von Bogdandy and others (eds), Transformative Constitutionalism in Latin America: The Emergence of a New Ius Commune, OUP, 2017., 106-107)
  • 8
    Hailbronner (2017HAILBRONNER, Michaela. Transformative constitutionalism: Not only in the Global South. The American Journal of Comparative Law, v. 65, n. 3, p. 527-565, 2017.) propõe uma análise que, deixando de lado as diferenças de projeto político associado ao CT (com papéis e graus diferentes para atuação do estado, por exemplo), concentre-se no elemento jurídico distintivo: seriam transformadoras as “expansive constitutions which encompass positive and socioeconomic rights and which no longer view private relationships as outside constitutional bounds” (p. 528).
  • 9
    Por exemplo, embora a constituição do México de 1917 já possa ser considerado um exemplo pioneiro de CT como projeto de transformação (Grote, 2017GROTE, Rainer. The Mexican Constitution of 1917: An Early Example of Radical Transformative Constitutionalism. In: von Bogdandy et al (orgs). Transformative Constitutionalism in Latin America-The Emergence of a New Ius Commune. Oxford University Press, p. 149-169, 2017.), o controle judicial de constitucionalidade no país ocorria dentro de uma esfera muito limitada até os anos 90. Mais recentemente, constituições como as de Venezuela (2004), Ecuador (2009) e Bolívia (2008) são claramente transformadoras em seus dispositivos, mas sem centralizar poder independente nos respectivos tribunais constitucionais. São textos que, embora também adotem controle de constitucionalidade, procuram reconfigurar a própria representação política como parte da estratégia de transformação prevista na Constituição.
  • 10
    Em perspectiva normativa, Canotilho já havia observado que constituições não podem e não deveriam tentar ser "leis totais" da sociedade, como se todas as decisões políticas relevantes já tivessem sido exaustivamente tomadas no âmbito da decisão constituinte nacional (1998, p. 1192). Também apresentando um conceito "minimalista" de constitucionalismo dirigente, Bercovici considera dirigente "a constituição que define fins e objetivos para o Estado e a sociedade" (1999, 35); "o problema da Constituição dirigente é um problema de transformação da realidade” (1999, p. 38), mas ela “não estabelece uma linha única de atuação para a política, reduzindo a direção política à execução dos preceitos constitucionais (...) a Constituição dirigente não substitui a política, mas se torna a sua premissa material" (1999, 38).
  • 11
    Essa crítica valeria inclusive para o "novo constitucionalismo" associado aos textos constitucionais de Venezuela, Equador e Bolívia - que, para Gargarella (2017), expressam a inserção de ideias novas nas mesmas "casas de máquinas" de sempre.
  • 12
    As constituições recentes de Venezuela, Equador e Bolívia, por exemplo, apostam na criação de novas formas de participação política para além do voto individual, reconhecendo ainda práticas de democracia comunitárias de povos tradicionais (Uprimmy 2011, pp.1594-1595) - ainda que Gargarella possa ter razão quanto à ineficácia ou insuficiência dos mecanismos meios adotados nessas constituições para concretizar essa aposta.
  • 13
    Não há dúvidas de que parte significativa das expectativas com relação ao constitucionalismo transformador dos anos 90 para cá foi depositada no judiciário nacional ou em tribunais constitucionais especializados (p.ex., Klare, 1998KLARE, Karl E. Legal culture and transformative constitutionalism. South African Journal on Human Rights, v. 14, n. 1, p. 146-188, 1998.; Fowkes, 2017FOWKES, James. ‘Transformative Constitutionalism and the Global South: A View from South Africa’ in Armin von Bogdandy and others (eds), Transformative Constitutionalism in Latin America: The Emergence of a New Ius Commune, OUP, 2017.; no caso da América Latina: von Bogdandy, 2015; Mello, 2019MELLO, Patrícia Perrone Campos. Constitucionalismo, transformação e resiliência democrática no Brasil: o Ius Constitucionale Commune na América Latina tem uma contribuição a oferecer? Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 9, n. 2, pp.253-285, 2019..; Roa Roa 2020________., El rol del juez constitucional en el constitucionalismo transformador latinoamericano (The Role of Constitutional Courts in Latin American Transformative Constitutionalism) Max Planck Institute for Comparative Public Law & International Law (MPIL) Research Paper No. 2020-11, 2020.; Olsen e Kozicki, 2019), ou em tribunais transnacionais (von Bogdandy et al, 2017).
  • 14
    Especificamente no caso do Brasil, podemos destacar ainda a doutrina da efetividade (Souza Neto, 2006SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria constitucional e democracia deliberativa: Um Estudo sobre o Papel do Direito na Garantia das Condições para a Cooperação na Deliberação Democrática . Rio de Janeiro: Renovar, 2006.) Quanto a este segundo conjunto de ideias, Mello (2019MELLO, Patrícia Perrone Campos. Constitucionalismo, transformação e resiliência democrática no Brasil: o Ius Constitucionale Commune na América Latina tem uma contribuição a oferecer? Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 9, n. 2, pp.253-285, 2019.., p. 264) observa que seu propósito "era justamente permitir que o judiciário fosse acionado para promover a implementação das promessas constitucionais, uma das postulações do constitucionalismo transformador". Ainda que o constitucionalismo da efetividade operasse, do ponto de vista metodológico, mais próximo de concepções normativas formalistas da decisão judicial, o sentido geral do empreendimento teórico era de ampliação do espaço para atuação estatal com vistas a dar concretude a previsões constitucionais.
  • 15
    Ver, p.ex., o uso expansivo do mecanismo de "tutela" pelo Tribunal Constitucional da Colômbia (Iturralde, 2013).
  • 16
    Quanto ao aspecto da compliance nesse caso, ver p.ex. as leituras distintas de Baía, 2019 e Denari, 2021).
  • 17
    Para uma revisão dos achados empíricos sobre o tema no caso do Brasil, ver Wang, 2021.
  • 18
    Esse ponto é reconhecido inclusive por entusiastas do papel judicial em contextos de CT. Nesse sentido, por exemplo, Roa Roa (2020________., El rol del juez constitucional en el constitucionalismo transformador latinoamericano (The Role of Constitutional Courts in Latin American Transformative Constitutionalism) Max Planck Institute for Comparative Public Law & International Law (MPIL) Research Paper No. 2020-11, 2020.), reconhece que, idealmente, o papel do juiz constitucional deve ser mais “dialógico” na relação com as instituições políticas. No debate brasileiro, ver p.ex. Olsen e Kozicki, 2019, p.98-100; e Mello, 2019MELLO, Patrícia Perrone Campos. Constitucionalismo, transformação e resiliência democrática no Brasil: o Ius Constitucionale Commune na América Latina tem uma contribuição a oferecer? Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 9, n. 2, pp.253-285, 2019.., p.259).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2022
  • Aceito
    27 Out 2022
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