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Decisão judiciária, a autoria e o sentido jurídico: pesquisa empírica comunicativacionista do direito à prisão domiciliar para gestantes e mães de crianças até doze anos

Judicial decision, authorship and legal meaning: empirical communicativist research on the right to house arrest for pregnant women and mothers of children up to twelve years old

Resumo

A Lei nº 13.769/2018, que altera o Código de Processo Penal, regula a prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência. Esta pesquisa foi dedicada a observar a construção do sentido jurídico de situação excepcionalíssima por meio de Habeas Corpus (HC) que requereram a prisão domiciliar de gestantes e mães presas com filhos menores de 12 anos. Essa delimitação levou a termos por corpora 122 decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e 3 do Supremo Tribunal Federal (STF), todas prolatadas entre 20 de dezembro de 2018 a 19 de dezembro de 2019, primeiro ano de vigência da Lei nº 13.769/2018. As decisões foram coletadas dos sítios eletrônicos do STJ e do STF, usando por verbetes de busca: “13.769”, “situação e excepcionalíssima”, “preventiva pela domiciliar” e “prisão domiciliar”. Os dados foram lançados em planilha de Excel e analisados sob a perspectiva teórico-metodológica da comunicativação. A análise tratou dos elementos metodológicos aplicados em pesquisa empírica com decisão jurídica, da construção de sentido jurídico e da autoria, quando o relator, o voto, a unanimidade foram tomados, não como transmissores de informações e decisões, mas como referentes de enunciados. A pesquisa viabilizou reflexões que indicam a necessidade de se promover um afastamento da lógica causal e a aplicação da lógica circular reflexiva, como propõe a perspectiva comunicativacionista, além da impossibilidade de pesquisa empírica com decisão jurídica se não transdisciplinar. Quanto ao sentido jurídico, observamos que não cabe falar em sentido fixado, mas sim em processo constante de construção, reconstrução, desconstrução de sentido, é o que observamos ao constatar que os três argumentos (tráfico de drogas exercido na residência, descumprimento de prisão domiciliar anterior e participação em organização criminosa) que impulsionam a construção de sentido de situação excepcionalíssima não estão contidos no texto legal, nem em qualquer precedente judicial, bem como que eles foram aplicados, não aplicados e reaplicados. Por fim, ao observar que um mesmo ministro, numa mesma sessão, quando é relator vota pela concessão da prisão domiciliar e quanto não é relator vota contrário a ela, consideramos que não cabe manter a autoria como se responsabilidade por estabelecer sentido, antes, o sentido jurídico de algo se faz e se desfaz devido à comunicação jurídica mesma, não devido ao/à autor/a. A pesquisa, com essas contribuições, revela quão importante e necessário se faz desenvolver reflexões metodológicas e epistemológicas sobre pesquisa com decisão jurídica.

Palavras-chave:
Encarceramento feminino; Prisão domiciliar; Decisão jurídica; Teoria dos sistemas; Comunicativação

Abstract

Law nº 13.769/2018, upon altering the Code of Criminal Procedure, regulates house arrest for pregnant women or for mothers responsible for children or the disabled. This research was dedicated to observing the construction of juridical meaning in the context of a very exceptional situation by way of Habeas Corpus (HC) in the appeal for house arrest in cases of pregnancy and imprisoned mothers with children less than 12 years of age. This demarcation has led us to a set of 122 decisions by the Supreme Justice Tribunal (STJ) and 3 by the Supreme Federal Court (STF), all sentencing having occurred between December 20, 2018 and December 19, 2019, representing the first year of validity for Law nº 13.769/2018. The decisions were collected from the electronic sites of the STJ and STF, using the following entries for searching: “13.769”, “situation” and “very exceptional”, “remand” and “house arrest”. The data was distributed onto an Excel spreadsheet and analyzed under the theoretical-methodological perspective of communicativation. The analysis treated methodological elements applied in empirical research on sentencing and the construction of juridical meaning and authorship, where rapporteur, vote and unanimity were not taken as transmitters of information and decisions, but as pertaining to wordings. The study made viable reflections that indicate the necessity for distancing from causal logic, at the same time promoting the application of reflexive circular logic, as proposed by the communicativationist perspective. What one stresses here is the impossibility of empirical research on juridical decision without transdisciplinary reflection. As for juridical meaning, we observe that it is not suited to a fixed meaning, but rather a constant process of construction, reconstruction and deconstruction of meaning. Observation reveals that three deliberations (drug trafficking at the residence, noncompliance with previous house arrest and participation in organized crime), having induced the construction of meaning in the direction of a very exceptional situation, are not contained in the legal text, nor in any judicial precedent, independent of their first-time application, non-application or reapplication. Finally, as a result of observing that within the same proceedings the same minister, whilst rapporteur votes for house arrest and whilst not rapporteur votes against it, we consider that it is not fitting to maintain authorship as though it would be responsible for the establishment of meaning. Preceding this, the juridical meaning of something is made and unmade due to juridical communication itself, not due to the author. The study, with these contributions, reveals how important and necessary it is to develop methodological and epistemological reflections about studies on juridical decision.

Keywords:
incarceration; House arrest; Legal decision; Systems theory; Comunicativation

1 INTRODUÇÃO

Dentre as nossas pesquisas sobre movimentos sociais e direito a partir de decisões jurídicas, localizamos, no movimento feminista, a questão do encarceramento (WOLA, 2016; Conectas, 2018; Jardim et al., 2019JARDIM, D. M. B.; SANTANA, H. C.; CARVALHO, V. R. 2019. A vivência da sexualidade por mulheres no contexto da privação de liberdade. In: M.E. de CALAZANS; B. MALOMALO; E. da S. PIÑEIRO (org.), As desigualdades de gênero e raça na América Latina no século XXI. Porto Alegre: Editora FI, p. 309-328., 309-328). Aumenta a complexidade dessa temática, a prisão domiciliar como alternativa ao encarceramento provisório de gestante e mãe de criança até 12 anos. Este tema ganhou relevo com o Habeas Corpus Coletivo Nº 143.641/2018, que tramitou no Supremo Tribunal Federal (STF), e com a Lei Nº 13.769/2018, que acrescentou os artigos 318-A e 318-B ao Código de Processo Penal.

Para pesquisar a construção de sentido jurídico recorremos à perspectiva teórico-metodológica da comunicativação, para a qual: a lógica circular reflexiva afasta as dicotomias da causalidade e os argumentos consequencialistas como livre arbítrio, opção de vida, natureza feminina, economicismo e inconsequência da mãe; a transdisciplinaridade dentre saberes jurídico, linguístico e sociológico é fundamental para observar a construção de sentido do direito; o sentido é uma operação comunicativa e, como tal, vivencia o processo constante de construção, desconstrução e reconstrução de sentido; autoria não é uma questão de criação, titularidade ou dono do sentido, mas referente discursivo (Stamford da Silva, 2021aSTAMFORD DA SILVA, A. 2021a. Decisão jurídica na comunicativação. São Paulo, Almedina, 368p.).

Esses pressupostos da comunicativação nos leva a tomar o cenário comunicativo como conhecido, afinal todos sabem: que as condições dos estabelecimentos prisionais brasileiros impedem plenamente qualquer pré-natal razoavelmente digno, bem como impedem o desenvolvimento psíquico e social de qualquer criança. Também todos sabemos que crianças sem qualquer culpa estão sendo condenadas a viver nesse ambiente carcerário devido à decisão judicial. Sabemos também que um ministro do STJ e do STF vota num sentido quando é relator e vota em sentido oposto quando não é o relator de Habeas Corpus que tem por pedido a prisão domiciliar de mulher grávida e mãe de criança até 12 anos. Sabemos que essa realidade decisória é justificada por que é necessário que julgamento seja unânime na Turma para garantir legitimidade das decisões colegiadas.

Esse cenário nos motivou a questionar a função do direito de “estabilizar expectativas normativas” (Luhmann, 2005LUHMANN, N. 2005. El derecho de la sociedad. México, Herder, 680p., p. 283) e a validez como aceitação da comunicação (Luhmann, 2005, p. 155). Também devemos a esse cenário termos desenvolvido estas reflexões com três objetivos: apresentar uma via teórico-metodológica de pesquisa com decisão jurídica para lidar com a relação movimentos sociais e direito; observar como o direito observa, o que viabiliza observar a construção do sentido jurídico; desconstruir a perspectiva de autoria como titular, criador, dono do sentido.

Estas reflexões, salientamos, contam com transdisciplinaridade dentre saberes jurídicos, linguísticos e sociológicos. Assim se fez indispensável porque a disciplinaridade é insuficiente para lidar com questões de pesquisa empírica com decisão jurídica, da construção de sentido e de uma perspectiva autoria condizente com as vivências práticas. Essa transdisciplinaridade viabiliza reconhecer o quanto não só de legislação e jurisprudência vive a decisão jurídica, bem como o que o sentido jurídico não é resultante de qualquer autoria, afinal, não é o voto do relator, nem a unanimidade colegiada de um tribunal que estabelece o sentido de um direito. Tratar autoria por qualquer causalidade é tão absurdo quanto atribuir a um falante a existência de um idioma. No caso do direito, consideramos que o sistema jurídico é constituído por um lado marcado (composto pela forma de dois lados: lícito - Recht/ilícito - Unrecht - sistema e ambiente interno) ao mesmo tempo que por um lado não marcado (ambiente externo - Nicth Recht). Como pesquisamos comunicações e não entidades físicas ou ideais, o direito é considerado qualquer comunicação que tematiza o meio de comunicação simbolicamente generalizado: licitude (Stamford da Silva, 2021, p. 107).

Introduzidos nossos pontos teóricos, passemos aos metodológicos. Para pesquisar a construção de sentido de situações excepcionalíssimas quanto ao direito à prisão domiciliar de gestantes e mães com filhos(as) de até 12 anos, procedemos levantamento de decisões no site do STJ e no STF, bem como coletamos legislação e a literatura. Para delimitar os corpora da pesquisa, optamos pelo corte temporal de 20 de dezembro de 2018 a 19 de dezembro de 2019, o primeiro ano de vigência da Lei nº 13.769/2018. Salientamos que estas reflexões estão limitadas às decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, face à delimitação de páginas para publicação de artigo.

A metodologia são as primeiras reflexões justamente para situar o leitor na complexidade temática. Em seguida, expomos os argumentos da memória semântica para, depois, apresentar a análise das decisões e tecer considerações finais. Esclarecemos que argumentos de memória semântica são aqueles que desempenham a função de irritar um sistema de sentido a operar comunicações com sentido. No caso desta pesquisa, distinguimos entre argumentos da sociedade mundial (como os da ONU), argumentos legislativos nacionais e argumentos decisionais porque se fez necessário verificar a comunicação em cada uma dessas cenas de enunciação.

2 METODOLOGIA

Distinguindo método, técnica e análise de dados, sugerimos ter por metodologia as atividades realizadas por um pesquisador durante a pesquisa. Com isso, quanto ao método, termos e expressões como método indutivo, dedutivo, hipotético dedutivo etc., não são tratados aqui como disputas pelo signo “saber científico”, mas como caminhos trilhados na coleta de dados, o que nos afasta do debate de se é indução ou dedução o que demarca um saber científico (Stamford da Silva, 2021, p. 264-272). Em pesquisa vivenciamos induções e deduções, afinal conhecimentos teóricos e dados coletados circulam reflexivamente. Nestes termos, não é possível separar indução de dedução, descrição de prescrição, teoria de prática.

Nosso método, foi coletar decisões em sítios de Tribunais usando como termos de busca: “13.769”, “situação E excepcionalíssima” e “preventiva pela domiciliar”. Para definir a amostra, aplicamos como critério temporal o intervalo 2018 a 2019, 2019 porque foi o ano em que catalogamos os dados e porque a Lei nº 13.769 foi publicada em 2018. Outro critério aqui aplicado foi delimitar os dados às decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, por serem os Tribunais que detêm a função de centro comunicativo do sistema jurídico (Luhmann, 2005LUHMANN, N. 2005. El derecho de la sociedad. México, Herder, 680p., p. 359-400).

As decisões que compunham o corpus da pesquisa são as que tinham mulher presa como titular do direito à prisão domiciliar. Coletamos e analisamos decisões colegiadas de mérito, visto que, pela característica de definitividade em confronto com as monocráticas, as colegiadas são tidas como as que firmam o entendimento das turmas e do próprio tribunal sobre a temática em discussão. Vejamos, se.

A amostra foi constituída de 197 decisões, sendo 4 decisões do STF e 193 decisões do STJ. Das decisões do STF, 2 foram concessivas e 2 denegatórias, sendo que em uma foi denegada a ordem por situação excepcionalíssima e em outra por estar-se diante de uma hipótese legal de exclusão (art. 318-A, I e II, do CPP). Assim, apenas três fizeram parte do universo amostral. Das 193 decisões do STJ, 119 foram concessivas, 71 denegatórias e 3 que classificamos como “outras decisões”. Das 71 denegatórias, em 30 houve motivos de situação excepcionalíssima e em 41 hipóteses legais. Por outro lado, as 3 outras situações dizem respeito a casos que não se relacionam com o objeto da pesquisa, qual seja, analisar a concessão de prisão domiciliar para presas provisórias gestantes e mães de filhos(as) menores de 12 anos: AgRg no HC 525.701-SP, que diz respeito à execução definitiva da pena; HC 505.450-SP que, por mais que se tratasse de presa provisória, o filho possuía mais de 12 anos e o RHC 116.662-RS em que o STJ deferiu o pedido, mas para que o TJRS analisasse o pedido de prisão domiciliar, a dizer, o STJ não analisou, neste caso, a concessão da prisão domiciliar.

Para nossa análise, excluímos as decisões denegatórias por hipóteses legais, visto que nestes casos, os tribunais tão somente aplicam as disposições presentes no CPP em seu art. 318-A, I e II. De igual maneira, excluímos as decisões que não tinham pertinência com o objeto analisado pela nossa pesquisa. Sendo assim, nosso universo amostral foi constituído de: 3 decisões do STF; 30 decisões denegatórias por situação excepcionalíssima do STJ; 92 decisões das 119 do STJ que concederam a prisão domiciliar, escolhidas por método de amostragem que será detalhado quando da exposição das análises.

As categorias analíticas foram: Número do processo; Data de julgamento/publicação; Tribunal, Turma julgadora; Relator/Relatora; Decisão tomada no processo; Tipo penal; Parte fática; Argumentação legislativa; Argumentação doutrinária; Argumentação jurisprudencial; Argumentação fática e Observações. Os dados foram retirados dos PDF’s das decisões para alimentar a tabela de Excel.

Quanto às técnicas de pesquisa, empregamos a técnica documental, visto que, doutrina, legislação e jurisprudência são documentos que portam os dados da pesquisa.

A análise contou com observações quantitativas e qualitativas, consideramos a frequência e a textualidade de argumentos. As análises se pautaram pela Comunicativação (Stamford da Silva, 2021), perspectiva teórico-metodológica de observação transdisciplinar de decisões jurídicas. No caso desta pesquisa, nos pautamos por observar a construção do sentido jurídico de situação excepcionalíssima.

A comunicativação, enquanto perspectiva teórico-metodológica, é embasada na circularidade reflexiva aos moldes da teoria da diferenciação presente na teoria da incompletude (Gödel, 2006GÖDEL, K. 2006. Obras completas. Madrid, Alianza, 2006, 469p., p. 103-104), na teoria da Forma de dois lados (Spencer-Brown, 1969), na teoria dos sistemas que observam (Foerster, 2003), no antifundamentalismo (Rorty, 1979RORTY, R. 1979. Philosophy and the mirror of nature. Princeton/New Jersey: Princeton University, 1979, 401p.; Rorty, 2005), na teoria da sociedade como sistema de comunicação (Luhmann, 2005LUHMANN, N. 2005. El derecho de la sociedad. México, Herder, 680p.; Luhmann, 2007) e na teoria da linguagem como trabalho social (Marcuschi, 2008MARCUSCHI, L.A. 2008. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo, Parábola, 296p.).

Na comunicativação, o sentido jurídico é construído pelo direito mesmo, por meio de seu funcionamento autônomo operacional, como explica Luhmann, e não por manipulação de julgadores ou organizações. Ministros ou órgãos colegiados de tribunais não estabelecem o sentido do direito.

Há ao menos três níveis de observações: interacional; organizacional; sistêmico. Quanto à autoria, no nível interacional, ela é tratada como relação entre sujeitos, como ocorre numa audiência, no fluxo processual (petição inicial, contestação e sentença, por exemplo). Na comunicativação, o sujeito, o falante, o ouvinte etc., são referentes comunicacionais, jamais “donos” da comunicação, nem mesmo de um enunciado partilhado. “Sujeito não é assujeitado nem é totalmente individual, e consciente, mas produto de uma clivagem da relação entre linguagem e história” (Marcuschi, 2009, p. 70).

Comunicação, salientamos, não é uma questão de conhecer a origem de uma palavra, de um conceito, nem a vontade, o objetivo, a intenção de alguém. Ter a autoria como referente subjetivo é acreditar que há o dono da comunicação. Partimos de comunicação com célula da sociedade, não célula no sentido atomista, como em Bertrand Russell, nem no sentido biológico, como em Francisco Maturana e Humberto Varela, mas no sentido social humano mesmo, ou seja, como entidade construída socialmente, como a “mais pequena social” (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., p.40). Sistema não existe em estado ôntico, físico nem psíquico, mas como comunicação com sentido. Nessa perspectiva, a comunicação humana é sistema que aprende:

nas máquinas não triviais há, entretanto, uma autonomia de funcionamento interno, pois a “cada operação, esse estado interno muda, de modo que, quando a próxima operação ocorre, a operação anterior não é repetida, mas outra operação pode ocorrer” (FOERSTER, 2003d, p. 312). Recursividade, nestes termos, envolve não uma repetição, a redundância, mas a circularidade reflexiva, afinal, sempre conta com acréscimo de informação. Com a re-entry e a recursividade, o sistema é capaz de aprendizado, tanto consigo mesmo, quanto com seu ambiente; ao observar, no próprio sistema ocorrem intercâmbios de operações e composições de ordem internas tanto quanto externas a ele (FOERSTER, 2003d, p. 308; 319). Trata-se da Eigen Function, Eigen Values, Eigen Behavior, ou seja, da autorreferência, portanto de a comunicação deter sua própria função, seus valores próprios de referência e, inclusive, deter comportamentos próprios no sentido de deter um nível de invariância, o que torna possível a comunicação mesma (Stamford da Silva, 2021, p. 105).

Sendo assim, “cada petição inicial, cada resposta do réu, cada sentença, cada parecer, cada conciliação, cada acordo judicial, cada acórdão é uma nova informação no direito, na comunicação jurídica, no sistema jurídico” (Stamford da Silva, 2021, p. 40).

Claro, não só é possível fazer pesquisa empírica com decisão jurídica com base na teoria dos sistemas. Partimos da perspectiva por ser a única que conhecemos que nos afasta de fundamentalismos, normativismos e moralismos, portanto, que viabilizam pesquisar decisão jurídica sem preconceitos. Evidente que se a pesquisa se ocupa em valorar, em grafar uma decisão (ou um decididor) como certa/o ou errada/o, como justa/o ou injusta/o, portanto, baseada em pressupostos moralistas, não é a teoria dos sistemas marco teórico condizente, pois nesta teoria um sentido nunca pode ser fixado, estabelecido antes de ser usado, antes, o sentido “se regenera permanentemente para a contínua seleção de formas determinadas” (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., p. 39). Lembramos que sentido conta com a Forma de sentido ao mesmo tempo em que com o Meio de sentido. Adicionamos a esta concepção de sentido que “não há texto adâmico” (Bakhtin, 2003BAKHTIN, M. 2003. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 510p., p. 272), que os enunciados que compõem uma argumentação não têm uma origem identificável nem um fim, por isso não há determinação, fixação de um sentido. A isso agregamos também que comunicação nunca começa e nunca termina porque “língua é um trabalho social” (Marcuschi, 2008MARCUSCHI, L.A. 2008. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo, Parábola, 296p., p. 229).

Assim exemplificamos como, aplicando a comunicativação, podemos observar que não é um Desembargador, um Ministro que dá sentido ao direito. Antes, é o direito mesmo que estabelece o sentido jurídico de algo. Ocorre que o sentido é constantemente aberto ao mesmo tempo em que contém memória semântica. Com isso, temos que sentido é o “o limite infinito que viabiliza a comunicação” (Stamford da Silva, 2021, p. 113). Infinito com conclusibilidade, mas não com fim. Há conclusibilidade devido ao limite temporal da comunicação, pois há a suspensão temporal da comunicação, mas não da construção de sentido, assim entendemos ao considerar a comunicação como produção por recursividade com outras comunicações, afinal nos comunicamos “num emaranhado cuja reprodução concorre cada uma das comunicações” (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., p. 58).

Justamente devido à conclusibilidade é que podemos observar a calculabilidade (expectativa cognitiva e normativa) do sentido de um determinado direito. Noutras palavras:

A diversidade de condições para a calculabilidade da desordem comunicativa (a entropia da comunicação) não elimina sua existência. Antes, permite compreender que jurista não sabe o que é direito, sociólogo não sabe o que é sociedade, politólogo não sabe o que é política, filósofo não sabe que é justiça, deontólogo não sabe o que é ética, porém nós nos comunicamos sobre direito, sociedade, política, justiça, ética. O que temos é a impossibilidade de uma precisão quanto ao sentido de algo, a impossibilidade de se estabelecer uma definição definitiva, uma definição essencialista. Há sim uma calculabilidade comunicacional, afinal, no caso da comunicação humana, ela é possível justamente porque somos capazes de adequar, moldar, equacionar, compreender informações. Compreender não implica entender exatamente algo, mas sim equacionar, pois comunicar envolve selecionar, distinguir, envolve elementos estruturais e de variação, sem os quais não seria possível a comunicação, inclusive a humana (Stamford da Silva, 2021, p. 117).

Assim, deve-se à calculabilidade a possibilidade de expansão do valor referenciado, ou seja, as sucessivas ocorrências de re-entrada da forma na forma pro- movem recursividade. (Stamford da Silva, 2021, p. 104).

Sob esta perspectiva teórico-metodológica, a análise das decisões nos levou aos seguintes atributos para as variáveis: a) decisão de deferimento, aquelas em que foram convertidas as prisões preventivas em domiciliar; b) decisão de indeferimento devido aos incisos I e II do artigo 318-A; c) decisão de indeferimento por situação excepcionalíssima; d) decisão de indeferimento por outras situações, por exemplo: o processo tratar de execução definitiva da pena e não de prisão provisória.

Construída a planilha com os dados dos corpora, desenvolvemos a pesquisa.

3 O CENÁRIO COMUNICATIVO E A MEMÓRIA SEMÂNTICA

O cenário comunicativo tem por contexto o encarceramento em massa e os movimentos feministas internacionais e nacionais que movimentam debates jurídicos (Queiroz, 2015QUEIROZ, Nana 2015. Presos que menstruam. Rio de Janeiro: Record.; Borges, 2019BORGES, Juliana, 2019. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen. Coleção Feminismos Plurais.; Laragnoite, 2021LARAGNOITE, Isabela 2021. Reflexões sobre o encarceramento feminino no Brasil. Rio de Janeiro: Autografa.). Os argumentos desse cenário integram o que denominamos de memória semântica do sentido de prisão domiciliar para gestantes e mães de crianças com até doze anos. Vejamos o cenário e essa memória.

Quanto ao encarceramento, há 36.400 mulheres presas no Brasil, das quais 35.330 estão em penitenciárias e 1.070 em outras carceragens, a exemplo de delegacias. Das 35.330, 12.923 são presas provisórias (sem condenação), o que equivale a 36,58%, sendo 55% das prisões femininas em razão de casos proscritos na Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas) 1 1 Dados do Levantamento de Informações Penitenciárias, de dezembro de 2018 (Brasil. DEPEN, 2018). .Quanto ao cenário dos movimentos internacionais e nacionais, em maio de 2017, o Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHU) impetrou o Habeas Corpus coletivo nº 143.641, no Supremo Tribunal Federal, requerendo a “revogação da prisão preventiva decretada contra todas as gestantes, puérperas e mães de crianças ou sua substituição pela prisão domiciliar” (Brasil. STF, 2018a, p. 7). A base argumentativa foi: “a leitura correta da Lei 13.257/2016 é a de que não há necessidade de satisfazer-se outras condições, salvo as expressas na própria lei, para a substituição da prisão preventiva pela domiciliar” (Brasil. STF, 2018a, p. 8).

Julgado em 20 de fevereiro de 2018, e publicado no dia 01 de março de 2018, na relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, foi concedida “a ordem para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar - sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP - de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes...” (Brasil. STF, 2018a, p. 47). Ainda nesta decisão, lemos o argumento: “excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pelos juízes que denegarem o benefício” (Brasil. STF, 2018a, p. 47).

Em 20 de dezembro de 2018, entrou em vigor a Lei nº 13.769 acrescentando os artigos 318-A e 318-B ao Código de Processo Penal, prescrevendo a substituição de prisão preventiva por prisão domiciliar para mães gestantes ou as que tenham filhas(os) menores que 12 anos2 2 O artigo 318-A também determinou a prisão domiciliar substitutiva da prisão preventiva às mulheres responsáveis por pessoa com deficiência, mas estes casos não fazem parte do objeto de nossa pesquisa que se restringe às gestantes e às presas mães de crianças. , salvo nos casos de crimes cometidos com violência ou grave ameaça ou cometidos contra os descendentes. Ocorre que a Lei nº 13.769 não positivou a terceira hipótese de exceção da concessão de prisão domiciliar (situações excepcionalíssimas), porém várias decisões estão sendo tomadas usando o argumento situações excepcionalíssimas para lidar com o direito à prisão domiciliar para gestantes ou mães de crianças.

Para melhor tratar desses elementos, separamos cada um dos cenários comunicativos.

3.1 Cenário comunicativo da sociedade mundial

O instituto cautelar da prisão domiciliar para gestantes e mães de crianças de até 12 anos teve sua construção de sentido jurídico pautada pelas Regras de Bangkok, aprovadas pela Assembleia Geral da ONU em 2010, as quais trazem diretrizes referentes ao tratamento das mulheres presas e às medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, por isso a necessidade de medidas alternativas de prisão para aquelas que se encontram em conflito com a lei (Poll, p. 49).

Em 2011, a Lei nº 12.403 trouxe ao CPP (art. 318) a possibilidade de substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar, bem como elencou, entre as 4 hipóteses originais, duas situações que tocam às mulheres presas: pessoa imprescindível aos cuidados especiais de menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; e gestante a partir do sétimo mês de gestação ou no caso de gravidez de alto risco. A especificidade do texto legislativo, sobretudo para a mulher gestante, levou vários doutrinadores a tecer críticas, visto que adviriam hipóteses em que seria recomendável a concessão da prisão domiciliar, pela estrutura carcerária ou mesmo pela condição da gestante, mas que não seria possível por não ser uma gravidez de alto risco ou por ainda não se ter completado os 6 meses de gestação (Alencar e Távora, p. 607; Rangel, p. 914).

Nesse cenário, aos 8 de março de 2016, data simbólica quanto à mulher, além do Conselho Nacional de Justiça - juntamente com o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e a Pastoral Carcerária Nacional - lançar cartilha com as Regras de Bangkok traduzidas para o português como meio de proporcionar acesso à informação para profissionais de diversas áreas (direito, saúde, segurança pública) que lidam com o sistema penitenciário nacional (Brasil. CNJ, 2016), entrou em vigência a Lei nº 13.257/2016, lei das “políticas públicas para a primeira infância” (período de zero a seis anos).

Dentre as alterações ao texto do CPP, pela Lei nº 13.257/2016, está justamente a prisão domiciliar presente no artigo 318. Chamamos atenção para a redação do inciso IV que foi reduzido para “gestante” e pelo acréscimo de duas hipóteses de prisão domiciliar: inciso “V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos” e inciso “VI - homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (anos) de idade incompletos”.

As normativas nacionais e internacionais tiveram por justificativa promover redução no número de mulheres presas preventivamente, trazendo a expectativa da garantia ao direito do filho(a) de ter o acompanhamento da mãe com a prisão domiciliar. Ocorre que as decisões judiciárias tomadas estão aplicando muito timidamente esta alternativa. Como isso é possível, diante da memória semântica legislativa?

Como é possível que

o sistema normativo e jurisprudencial brasileiro detém as condições básicas legais para o atendimento das Regras de Bangkok. Porém, quando é promovida a análise conjunta da teoria e da prática nos presídios femininos, é visível à violação dos direitos humanos, fator que comprova a ineficácia da implementação das políticas públicas viabilizadora para os mandamentos legais (Silva, 2019SILVA, N.S.G. 2019. Marco legal da primeira infância e mães no cárcere: uma análise sob a luz do sistema de garantias. São Cristovão, SE. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Sergipe - UFSE, 139p., p. 43)?

Como é possível que existam leis específicas para proteger as crianças que se encontram no cárcere que sugiram alternativas ao cumprimento da prisão preventiva, mas que na prática não sejam aplicadas e não surtam os efeitos esperados?

Uma hipótese é que a falta de efeito das mudanças trazidas pela lei nº 13.257/2016 se deve ao teor do artigo 318, no qual o juiz poderá conceder a substituição. O verbo poderá não traz nenhuma novidade ao debate jurídico, porém, neste caso, não sendo um poder-dever,

a presença de um dos pressupostos indicados no art. 318, isoladamente considerado, não assegura ao acusado, automaticamente, o direito à substituição da prisão preventiva pela domiciliar. O princípio da adequação também deve ser aplicado à substituição (CPP, art. 282, II), de modo que a prisão preventiva somente pode ser substituída pela domiciliar se se mostrar adequada à situação concreta (Lima, 2015LIMA, R.B.de. 2015. Manual de Processo Penal. 3. ed. Salvador, jusPODIVM, 1826p., p. 998).

Nossa leitura é que não se trata de uma polêmica de interpretação, mas sim é uma questão de cultura legal (Nelken, 2012NELKEN, D. 2012. Using Legal Culture: Purposes and Problems. In: D. NELKEN (org.), Using legal culture. London: Wildy, Simmonds and Hill, p. 1-51.), visto que diversos tribunais de justiça no país, inclusive os tribunais superiores, inventam requisitos para negar a concessão desta prisão domiciliar diversos dos critérios previstos nos incisos IV e V do artigo 318 do CPP, em vigor.

A situação da mulher gestante desperta maior atenção quando constatamos: o encarceramento em massa, a superlotação dos estabelecimentos penais, a total falta de ambiente para pré-natal e de instalações e condições devidas para convivência com criança de zero a seis anos. Ao observar as decisões, localizamos, como decisão norteadora da memória semântica destas reflexões, o HC 143.641-SP/2018.

3.2 Cenário comunicativo do Habeas Corpus Coletivo nº 143.641/SP/STF

Em maio de 2017 o Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHU) ingressou no Supremo Tribunal Federal com o Habeas Corpus coletivo nº 143.641, pontuando que desde o advento da Lei da Primeira Infância, o judiciário brasileiro é provocado a analisar pedidos de prisão domiciliar, sendo que, em aproximadamente metade destes pedidos, a ordem foi denegada sob os argumentos da gravidade do delito ou da necessidade de prova da inadequação do ambiente carcerário.

Sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, este mandamento coletivo foi acolhido e fora determinada a concessão da substituição da prisão preventiva pela domiciliar a todas as mulheres presas, gestantes, puérperas e mães de crianças para “superar tanto a arbitrariedade judicial quanto a sistemática exclusão de direitos de grupos hipossuficientes, típica de sistemas jurídicos que não dispõem de soluções coletivas para problemas estruturais” (Brasil. STF, 2018a, p. 55).

No acórdão julgado pelo STF extraímos o argumento de que a regra deveria ser a concessão da prisão domiciliar e a exceção a sua não concessão, sendo hipóteses de exceção: a) crime com violência ou grave ameaça, que pode ser aferido pela imputação penal a que responde a mulher presa; b) crime contra o descendente - que pode ser extraído da parte fática do crime; e c) outras situações excepcionalíssimas.

A exceção “a” está lastreada nas Regras de Bangkok ao recomendar aos magistrados que

ao sentenciar ou aplicar medidas cautelares a uma mulher gestante ou a pessoa que seja fonte principal ou única de cuidado de uma criança, medidas não privativas de liberdade devem ser preferidas sempre que possível e apropriado, e que se considere impor penas privativas de liberdade apenas a casos de crimes graves ou violentos (Brasil. CNJ, 2016, p. 18).

O Ministro Ricardo Lewandowski argumentou que 68% das mulheres presas estão em virtude de delitos que não possuem violência e grave ameaça, dentre eles o tráfico de drogas, bem como que a repressão cai sobre parcela vulnerável da população, em especial sob pequenos traficantes, vulgarmente denominados de “mulas do tráfico”.

A terceira hipótese para negativa da prisão domiciliar é a situação excepcionalíssima. Dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) informou que cerca de 14.750 mulheres presas provisoriamente no Brasil teriam direito a responder o processo em prisão domiciliar quando do julgamento do habeas corpus pelo STF (Brasil. STF, 2018b, p. 10).

Ocorre que essa terceira hipótese de denegação da ordem tem levado os magistrados a analisar as situações caso a caso, minando os principais efeitos de uma decisão em tutela coletiva, qual seja, o de aplicação em massa da determinação contida na decisão de um tribunal superior o que vem gerando mais uma desigualdade entre as mulheres presas: as que possuem advogado (a) particular têm sido privilegiadas em relação às que não possuem como aponta Isabela Cunha em artigo publicado na Revista Diplomatique, por terem alguém que se dedicará de forma mais detida ao caso concreto (Cunha, 2019). Por sua vez, a terceira hipótese ainda tem causado outra ineficácia ao mandamento coletivo do STF, a de suscitar decisões conflitantes no judiciário visto que os juízes vêm negando a prisão domiciliar ao criar diversos argumentos à memória semântica.

Como constatamos que, nos 60 dias seguintes ao julgamento deste habeas corpus - prazo determinado, pelo ministro do STF, aos tribunais de justiça para a implantação da ordem -, apenas 304 revogações de prisão preventiva foram noticiadas pelo DEPEN (Vital, 2018VITAL, D. 2018. Com brecha do Supremo, tribunais resistem a aplicar HC coletivo a mães presas. Disponível: https://www.conjur.com.br/2018-mai-26/brecha-stf-tjs-resistem-aplicar-hc-coletivo-maes-presas. Acesso em: 19/06/2020.
https://www.conjur.com.br/2018-mai-26/br...
). Em dezembro de 2018, este número chegou a 3.073 casos (Brasil. CNJ, 2019) que representam 21% das mulheres que se enquadravam nos requisitos da decisão.

Buscando dar mais eficácia à decisão, o ministro Ricardo Lewandowski em 24 de outubro de 2018, ainda no bojo HC Coletivo, listou argumentos que não são constituintes do sentido de situação excepcionalíssima: mulher respondendo por crime de tráfico de drogas; de ter sido flagrada levando entorpecentes para estabelecimento prisional; de ter praticado o tráfico em sua residência; de ter passagem pela vara da infância por infração cometida quando adolescente; de não possuir trabalho formal (Brasil. STF, 2018b, p. 7). Ocorre que estes argumentos estão sendo utilizados pelos tribunais, inclusive o próprio STF, para denegar a prisão domiciliar. Como isso é possível? Tem o STF realmente a função de organização central da memória semântica do direito?

3.3 Cenário comunicativo da Lei Nº 13.769/2018

Uma semana após a decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 143.641/SP, a senadora Simone Tebet apresentou ao Senado o Projeto de Lei nº 64 de 2018 que teve, entre seus objetivos, disciplinar a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar das mulheres gestantes e mães de crianças, trazendo alterações, assim, ao Código de Processo Penal. Em sua justificação, foi citado expressamente o habeas corpus coletivo julgado pelo Supremo Tribunal Federal, demonstrando que o Projeto de Lei buscou positivar a decisão do Supremo no tocante à prisão preventiva de gestantes e mães de crianças.

Após os trâmites do processo legislativo e as alterações promovidas no texto do Projeto de Lei, em 20 de dezembro de 2018 a Lei nº 13.769 entrou em vigência, acrescentando, entre outras alterações, ao Código de Processo Penal os artigos 318-A e 318-B com a seguinte redação:

Art. 318-A. A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que:

I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa;

II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.

Art. 318-B. A substituição de que tratam os arts. 318 e 318-A poderá ser efetuada sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 deste Código.

Observamos que o artigo 318-A destaca expressamente os incisos que envolvem presas gestantes (inciso IV) e mães com filhos de até 12 anos (inciso V) para prover a substituição de prisão preventiva por prisão domiciliar, com exceção dos casos de presas por crime com violência ou grave ameaça à pessoa, ou por crimes contra seu filho ou dependente.

As situações excepcionalíssimas não foram positivadas nesta lei. Salientamos que esta hipótese não esteve presente em nenhum momento da tramitação do projeto, muito embora o julgado do STF figure em sua justificação.

Para quem considera que texto legislativo é suficiente, questionamos como é possível não se conceder a prisão domiciliar, invariavelmente, salvo diante das situações dos incisos I e II do artigo 318-A, afinal

A força impositiva da necessidade de ser reconhecido e efetivamente aplicado o benefício restou traçada na literalidade do texto legal do artigo 318-A, que substituiu o termo poderá por será, de modo que, nestes casos, não compete ao magistrado confrontar a possibilidade da prisão domiciliar com as necessidades da prisão preventiva (Landim et al., 2019LANDIM, M.N.P.; MOURA, G.K.P.; ROCHA, J.B. 2019. Tribuna da Defensoria: Indeferimentos de prisão domiciliar devem ser revistos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jan-01/indeferimentos-prisao-domiciliar-revistos-lei. Acesso em: 06/04/2019.
https://www.conjur.com.br/2019-jan-01/in...
)?

Ao analisar os artigos 318-A e 318-B do CPP, tudo indicaria que a intenção legislativa foi criar um poder-dever para o magistrado, excetuando da concessão da prisão domiciliar tão somente as situações de crimes cometidos com violência ou grave ameaça, ou contra o próprio filho (Cunha, 2018CUNHA, R. S. 2018. Breves comentários às Leis 13.769/18 (prisão domiciliar), 13.771/18 (femenicídio) e 13.772/18 (registro não autorizado de nudez ou ato sexual). Disponível em: https://s3.meusitejuridico.com.br/2018/12/9c20f715-breves-comentarios-as-leis-13769-18-prisao-domiciliar-13771-18-feminicidio-e-13772-18.pdf. Acesso em: 09/11/2019.FOERSTER, H.v. 2003. Understanding understanding: essays on cybernetics and cognition. New York, Springer, 380p.
https://s3.meusitejuridico.com.br/2018/1...
). Tal obrigatoriedade na concessão encontra eco no próprio Conselho Nacional de Justiça ao trazer recomendações para as audiências de custódia de gestantes e mães de crianças presas (Brasil. CNJ, 2020).

Ocorre que aludida obrigatoriedade não eliminou a discricionariedade dos juízes na análise do caso, como compreende o Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais, do Júri e de Execuções Penais do estado do Paraná, no estudo Maternidade no Cárcere e Lei n. 13.769/2018:

De toda forma, muito embora o legislador tenha silenciado, a possibilidade do Juízo fundamentar o indeferimento de qualquer medida cautelar é norma que figura como uma consequência lógica do próprio sistema que rege a aplicação das cautelares. Afinal, toda e qualquer medida cautelar de natureza pessoal está sujeita à cláusula de reserva de jurisdição. Daí porque, ao menos numa primeira aproximação, não parece ser possível generalizar-se de forma a concluir que essas medidas poderão ser concedidas de forma automática (Brasil. MPPR, 2019, p. 34).

No âmbito jurisprudencial, no HC 158.123/SP o Ministro do STF Alexandre de Moraes vota:

A nova alteração na legislação processual penal, com a inclusão, pela Lei 13.769, de 19/12/2018, dos arts. 318-A e 318-B, não implica reconhecer que a prisão domiciliar terá incidência irrestrita ou automática para toda gestante, mãe ou responsável por criança ou pessoa com deficiência. Deve o julgador, como em todo ato restritivo de liberdade, proceder ao exame da conveniência da medida à luz das particularidades do caso concreto (Brasil. STF, 2019, p. 12).

Para animar o debate, outros julgados defendem a obrigatoriedade do artigo 318-A do CPP para a concessão da prisão domiciliar, como votou o Ministro Rogério Schietti Cruz, do STJ:

É bem verdade que a alteração legislativa buscou inserir no diploma processual penal norma consentânea com o entendimento jurisprudencial já mencionado, ao prever, como regra, a prisão domiciliar à mulher que esteja gestante ou seja responsável por criança ou pessoa com necessidades especiais. Além disso, a utilização do verbo "será" permite, em certa medida, concluir que, excetuadas as duas hipóteses expressamente previstas no texto legal - prática do delito mediante violência ou grave ameaça ou contra seu filho ou dependente -, a custódia provisória sempre deverá ser substituída pelo recolhimento domiciliar (Brasil. STJ, 2019, p. 12).

A discricionariedade e a literalidade da Lei nº 13.769/2018 lembra o que Lenio Streck chama de “jogo interpretativo ad hoc”: “quando interessa, vale a palavra da lei, a sua sintaxe, o verbo nuclear, etc.; quando não interessa, as palavras são fugidias, líquidas, amorfas... Aí então se busca a vontade da norma, a vontade do legislador, a ponderação de valores, enfim, os mais diversos álibis teóricos que visam a confortar a decisão” (Streck, 2012).

Observamos o quanto a literalidade não está posto em texto legislativo nem em precedente judicial. Não cabe insistir em que há um poder do decididor capaz de criar o sentido jurídico de algo. O sentido jurídico aparece, recorda e desvanece, é esquecido imediatamente. E volta a aparecer na medida em que é usado. É que a memória semântica é uma faculdade de diferenciar o esquecer e o lembrar, afinal, “a faculdade de enlaçar novas operações às lembradas, pressupõe que, mediante o esquecimento, se liberam capacidades do sistema, bem como novas situações podem levar a recorrer seletivamente a condensações de operações passadas” (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., p. 90).

O sentido jurídico, nessa perspectiva, não é uma consequência causal de um texto legislativo, de um precedente judicial, de um voto do julgador, de uma decisão unânime de um órgão colegiado de tribunal, mas sim construção de sentido do direito. Essa construção implica que a forma de sentido conta com uma invariância - estrutura, seleção, memória, semântica, Eigen Values, Eigen Behavior (Foerster, 2003, p, 316) - ao mesmo tempo em que com uma variância de sentido (cognição, aprendizado, mudança). Em duas frases: sentido tem “dimensão temporal que impede a petrificação objetivamente coisificada da dimensão social” (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., p. 35) e “comunicação é o auto-comportamento de um sistema operacional recursivo que é duplamente fechado em si mesmo” (Foerster, 2003, p. 322).

É com essa visão de sentido, de direito como sistema de comunicação que analisamos os dados.

4 ANÁLISE DAS DECISÕES JURÍDICAS

4.1 Supremo Tribunal Federal (STF)

Na busca por decisões que tratavam de prisão domiciliar para mães presas preventivamente, localizamos quatro decisões no site do Supremo Tribunal Federal, tomadas em 2019. Destas decisões, duas concederam a prisão domiciliar e, nas outras duas, a ordem de Habeas Corpus foi denegada, sendo que 1 caso foi baseado na hipótese legal do Art. 318-A, I, do CPP e, a outra, usou o argumento da situação excepcionalíssima.

Analisamos, então, as decisões de deferimento, bem como a de indeferimento por situação excepcionalíssima, os dados gerais são:

Quadro 1:
casos do STF

Quanto ao referente autoria: no caso julgado pela 2ª Turma, o Ministro Ricardo Lewandowski foi o relator. Os dois julgados pela 1ª Turma tiveram o Ministro Marco Aurélio como relator.

Em 2018, no Habeas Corpus 143.641/SP (Brasil. STF, 2018b), o Ministro Ricardo Lewandowski elencou, após diversas argumentações dos autores deste HC, os elementos que não comporiam o sentido de situações excepcionalíssimas, pois os tribunais estaduais e mesmo o Superior Tribunal de Justiça contam com decisões muito diversas ao ponto de se afirmar que a concessão ou denegação da prisão domiciliar dependerá da Turma ou do desembargador relator ou do ministro relator. Como é possível essa situação na comunicação jurídica?

Ora, comunicar é observar e, como tal, é uma operação de diferenciação, afinal, ao observar se distingue ao mesmo tempo em que se assinala algo como distinto de tudo o mais. Distinguir, no entanto, não é estabelecer um conteúdo, é diferenciar enquanto unidade na diferença, ela é forma de dois lados. A diferenciação tem meio e forma; um lado marcado (a forma de sentido) ao mesmo tempo em que um lado não marcado (meio de sentido). Nessa via, sentido só ocorre quando em uso. Isso implica que o sentido conta com uma memória semântica, o que resulta não se tratar de transmissão de informação, mas de recursividade da comunicação. Acatando a concepção de comunicação como constituída pelas operações informar, partilhar e entender, temos que não é possível saber qual operação será a que vai suceder numa comunicação.

Com isso, não cabe atribuir a um Ministro, a um órgão colegiado (uma Turma ou o Pleno do Supremo Tribunal Federal) a criação do direito. Ministro, Turma, Pleno do STF são referentes comunicativos e, não, a comunicação mesma. Como há pelo menos três níveis de observações: interacional; organizacional; sistêmica, vejamos como, no nível interacional, observamos o relator e seu voto. Antes, não nos ocupamos em defender o voto ou o relator, nem o argumento, observamos comunicações, como argumentos compõem a construção de sentido jurídico.

Em relação às três decisões, no AgRg no HC 168.374/MA e no HC 158.123/SP, foi concedida a prisão domiciliar à mãe de filhos menores de 12 anos e, no HC 176.108/SP, foi negada a concessão.

O Ministro Marco Aurélio foi Relator do HC 158.123/SP (de 11 de junho de 2019) e do HC 176.108/SP (de 26 de novembro de 2019). No primeiro, seu voto foi pela concessão da prisão domiciliar, porém restringe a concessão ao exigir “Advirtam-na da necessidade de permanecer com a residência indicada ao Juízo, atendendo aos chamamentos judiciais, de informar eventual transferência e de adotar a postura que se aguarda de cidadã integrada à sociedade” (Brasil. STF, 2019, p. 9). Esse voto não foi o acatado pela Turma, mas sim o voto do Ministro Alexandre de Moraes, o qual também foi favorável à prisão domiciliar, porém “em menor extensão”, ou seja, sem as advertências constantes no voto do Ministro Marco Aurélio.

Ainda nessa decisão, o sentido do direito conta com a informação de que a “nova regra não implica reconhecer que a prisão domiciliar terá incidência irrestrita ou automática. Deve o julgador [...] proceder ao exame da conveniência da medida à luz das particularidades do caso concreto” (Brasil. STF, 2019, p. 12). Esse argumento corrobora com a hipótese de o sentido do direito não ser fixado por decisão anterior, portanto, precedente é informação que pode ser partilhada numa comunicação jurídica, mas não, por si só, é já constitutiva de sentido jurídico, muito menos previsão de decisão futura.

Aumenta a força dessa nossa hipótese quando, no HC 176.108/SP, o Ministro Marco Aurélio vota pela não concessão da prisão domiciliar e seu voto foi aprovado por unanimidade. Como explicar que em junho de 2019 um Ministro tenha partilhado voto num sentido e, cinco meses depois, este mesmo ministro partilha voto contrário?

Uma resposta pode ser: porque os ministros têm poder e julgam ao seu bel prazer. A nossa é que a comunicação jurídica envolve recursividade, a qual não implica fixação de sentido ao futuro, inclusive porque a validade do direito é um símbolo operacional referente à unidade do direito, a validez não é uma norma, nem um princípio, nem um poder, nem qualquer outra “condição a priori de conhecimento” (Luhmann, 2005LUHMANN, N. 2005. El derecho de la sociedad. México, Herder, 680p., p. 159).

A validez tem um estatuto ambivalente, é a “forma na qual as operações fazem referência a sua participação no sistema, já que estão adjudicadas ao contexto de outras operações do mesmo sistema desde o momento em que o produzem” (Luhmann, 2005LUHMANN, N. 2005. El derecho de la sociedad. México, Herder, 680p., p. 159). Sendo assim, o direito altera a validez de um direito independente de alterações normativas, sejam legislativas ou jurisprudenciais. “O símbolo da validez reage à dinâmica própria do sistema jurídico e se faz indispensável só quando o sistema já não está suficientemente diferenciado para poder se modificar a si mesmo” (Luhmann, 2005, p. 161). Validez lida com as expectativas normativas do direito, mas, não por isso, é um conteúdo fixo de sentido, mas sim um símbolo que porta a temporalidade de um sentido jurídico. Inclusive, “a única prova de validez se encontra na contínua modificação do estado de validez do sistema, no permanente enlaçamento de operação em operação” (Luhmann, 2005, p. 167).

Aplicando essa concepção, temos que a explicação para o Ministro Marco Aurélio ter partilhado votos opostos num período de cinco meses é que a comunicação só se realiza comunicativamente. Claro, podemos buscar uma causa, a exemplo de haver diferenças nas condições fáticas, o que levaria a que cada caso é um caso. Ocorre que no HC 158.123/SP (de 11 de junho de 2019), a mulher presa é mãe de duas filhas, sendo que a mais nova nasceu na carceragem e, no caso do HC 176.108/SP (de 26 de novembro de 2019), também há duas filhas, uma tem cinco anos e a outra dois anos. Os fatos não são suficientes para explicar os votos opostos.

Também olhando o suporte fático, ambas as mães estavam presas acusadas de participar de tráfico de drogas. O que identificamos estar em questão é o uso da residência para prático de delito como integrante do sentido de situação excepcionalíssima. Sobre o tema, localizamos o voto do Ministro Ricardo Lewandowski, no HC 143.641/SP-2018:

não configura situação excepcionalíssima, apta a evitar a concessão da ordem no caso concreto, o fato de o flagrante ter sido realizado pela suposta prática de tráfico de entorpecentes na residência da presa, porque não é justo nem legítimo penalizar a presa e aos que dela dependem por eventual deficiência na capacidade de fiscalização das forças de segurança. Efetivamente, a suspeita de que a presa poderá voltar a traficar caso retorne à sua residência não tem fundamento legal e tampouco pode servir de escusa para deixar de aplicar a legislação vigente, que protege a dignidade da mulher e da sua prole (Brasil. STF, 2018b, p. 6-7).

Assim temos que o argumento prática de tráfico na residência é descartado como sentido situação excepcionalíssima para o Ministro Ricardo Lewandowski, no HC 143.641/SP e também na decisão do AgRg no HC 168.374/MA. Porém, para o Ministro Marco Aurélio, sim, a prática de tráfico na residência integra o sentido de situação excepcionalíssima, visto que ele nega a prisão domiciliar no HC 176.108/SP por este argumento.

No nível organizacional, temos dois ministros do STF tomando decisões opostas, ainda que integrem turmas diferentes. O crime de tráfico de drogas constitui o suporte fático em todas as decisões. O argumento “tráfico na residência” esteve presente no caso do AgRg no HC 168.374/MA e no HC 176.108/SP, em ambos, a decisão foi por unanimidade acompanhando o voto do relator. Porém, no AgRg no HC 168.374/MA, decidido pela 1ª Turma, o relator, Ministro Ricardo Lewandowski, votou pela concessão da prisão domiciliar e, no HC 176.108/SP, decidido pela 2ª Turma, o relator, Ministro Marco Aurélio, votou pela não concessão da prisão domiciliar. Como é possível essa situação comunicativa no STF? Nossa resposta é: devido à comunicação mesma, ou seja, porque não há uniformidade de sentido, a recursividade não garante um padrão de decisão, mas expectativas cognitivas e normativas, todavia, demanda tempo e, o tempo do sistema não é o mesmo tempo da enunciação.

Tampouco é suficiente falar em leitura errada ou visão de mundo falha. As análises dessas decisões do STF nos levam a considerar que não traz contribuições pesquisar decisão jurídica pautado por normativismos e moralistas, afinal, qualificar decididores como leitor correto ou justo não ajudará uma compreensão da decisão jurídica. Assim é porque, como comunicação, o sentido do direito nunca é determinado, mas sim vivencia o “círculo autorreferencial, dado que cada operação tem que se repetir a cada momento” (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., p. 275), por isso observamos o constante processo de construção, destruição, reconstrução, desconstrução de sentido, afinal, a comunicação nunca termina (Stamford da Silva, 2021, p. 37). Nunca terminar implica que movimentos sociais, por mais que vivenciam desgastes e desmotivação cotidianamente, não têm alternativa senão seguir comunicando e comunicando mais e mais, sem desistir, parar ou se descuidar de seguir comunicando as violências que sofrem.

Não por isso, o direito é desatento ao futuro. Admitir que não se pode predeterminar as decisões futuras não se confunde com incalculabilidade, afinal, por mais que “o sistema jurídico opere sempre como um sistema a posteriori” (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., p. 256) e seus programas sejam abertos ao futuro, o direito tem por função as expectativas cognitivas e normativas, inclusive contra fáticas. É que há o futuro-presente e o presente-futuro, diferença que envolve a confiança no direito, confiança esta que promove, no social, expectativas normativas contrafáticas, pois o direito não deixa de ser direito diante do ilícito, trata-se da questão da programação como símbolo semântico da “aplicação correta (ou equivocada) de critérios à adjudicação do que é conforme (ou não conforme) ao direito” (Luhmann, 2007, p. 266). É que “o sistema opera em forma do encadeamento de acontecimentos individuais, construindo assim tempo próprio que se pode sincronizar mais ou menos com o tempo de seu ambiente” (Luhmann, 2007, p. 271), e assim:

Os códigos permitem distinguir o pertencimento/não pertencimento ao sistema; e os programas, que atribuem o certo e o errado, são objeto de julgamentos quanto à validade/não validade. Um observador pode designar e descrevê-los como estruturas. Mas empiricamente eles são dados apenas com as operações do sistema. São momentos de autopoiese do sistema e, não, coisas em si (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., p. 271).

Quanto às consequências sociais dessa diversidade de decisões, evidente que, para as partes, podemos falar em sofrimento de consequências pessoais, principalmente para as crianças com menos de 12 anos, filhas de mães presas. Apenas não nos ocupamos em julgar como consequência de escolhas de vida, da opção da mãe, não recorremos a qualquer hipótese de livre arbítrio.

4.2 Superior Tribunal de Justiça (STJ)

Em resposta à busca por decisões que tratavam de prisão domiciliar para mulheres presas e gestantes, no sítio eletrônico do Superior Tribunal de Justiça, obtivemos como resposta 193 decisões, das quais 71 indeferiram o pedido, 119 deferiram a prisão domiciliar e 3 foram afastadas por não terem relação com o objeto da pesquisa.

Das 71 decisões de indeferimento, 30 tiveram por argumento situações excepcionalíssimas e 41 foram por hipóteses legais (Art. 318-A, incisos I e II). Para definição da amostra das decisões de deferimento, foi utilizado o sítio eletrônico surveymonkey.com, com grau de confiança de 95% e margem de erro de 5, do que resultou uma população de 92 decisões. A escolha dessas 92 decisões foi aleatória por meio do sítio sorteador.com.br.

Assim, analisamos 122 decisões do STJ: as 30 decisões de indeferimento por situações excepcionalíssimas e 92 das 119 decisões de deferimento.

Iniciemos o tratamento das 122 decisões com os dois gráficos abaixo.

Gráfico 1:
Julgados indeferidos do STJ conforme seus ministros-relatores

Gráfico 2:
Julgados deferidos do STJ conforme seus ministros-relatores

Comparando os gráficos 1 e 2, observamos que o ministro da 5ª turma Reynaldo Soares da Fonseca julgou, ao todo, 27 decisões, sendo 19 decisões de deferimento e, assim, foi o ministro da 5ª Turma que mais julgou decisões pelo deferimento; e 8 decisões de indeferimento, sendo, igualmente, o ministro da 5ª Turma que mais julgou decisões indeferidas.

Na 6ª turma, o Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgou todas as 18 decisões de sua relatoria pelo deferimento da prisão domiciliar, negando qualquer argumento de situação excepcionalíssima. Observamos, também, que o Min. Joel Ilan Paciornik (5ª Turma) deferiu a ordem em todos os cinco casos de sua relatoria.

Por outro lado, o Min. Leopoldo de Arruda Raposo, desembargador convocado do TJPE para substituir o Min. Félix Fischer da 5ª Turma, julgou 6 casos, em 5 deles denegou a prisão domiciliar e em apenas 1, a concedeu.

Esses dados nos levam a considerar que nas duas turmas criminais do Superior Tribunal de Justiça, a 5ª e a 6ª Turmas, encontramos decisões pela concessão irrestrita da prisão domiciliar, as quais tiveram por argumento o texto da Lei 13.769/2018 para não acatar qualquer hipótese de situações excepcionalíssimas, e, quando a decisão foi pela denegação da ordem de prisão domiciliar, os argumentos foram asseados em hipóteses de situações excepcionalíssimas.

Observamos também que, das 122 decisões analisadas, em 121 os julgamentos foram por unanimidade, e em apenas 1 decisão por maioria. No único caso de maioria (HC 482.057-PB), a ministra Laurita Vaz, relatora, foi seguida por mais 3 ministros e indeferiu a concessão da prisão domiciliar, por sua vez, o ministro Nefi Cordeiro, voto vencido, pugnou pela concessão da ordem.

Quanto à autoria, à unanimidade nas decisões das Turmas do STJ, chama atenção a relação entre voto e decisão tomada, pois ministros relatores que julgaram pela concessão da prisão domiciliar, não votaram contra os relatores quando os votos eram pela não concessão. É o caso do Min. Antônio Saldanha Palheiro, da 6ª Turma, que nos 18 casos relatados por ele, seu voto foi pela concessão da prisão domiciliar, porém nos casos em que não foi relator e o voto do relator foi pela não concessão da prisão domiciliar, este Ministro votou à unanimidade.

Numa análise baseada na justificação argumentativa, como explicar que o Ministro Antônio Saldanha Palheiro vota pela concessão da prisão domiciliar ao mesmo tempo em que acompanha o voto do relator quanto este julga indeferindo? Observamos que isso não ocorre num caso isolado, mas em doze casos: HC 465.158-SP, HC 491.905/SE, HC 477.572/CE, HC 482.057/PB, HC 498.374/RJ, HC 472.945/RJ, HC 506.408/ES, HC 519.609/RS, HC 524.942/RN, RHC 116.139/MT, RHC 118.058/PR e RHC 104.998/MG.

Essa situação nos afasta de qualquer hipótese de autoria como criador do sentido jurídico. Na comunicativação, o sentido do direito não tem qualquer relação com autoria e, não apenas porque a comunicação desaparece quando não está em uso (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., p. 35; 365; 692), mas porque o sentido jurídico não se estabelece, antes, ele vive em constante construção.

A mesma situação fora encontrada com o Ministro Leopoldo de Arruda Raposo, que foi um dos que mais votaram pela não concessão da prisão domiciliar. Nos 8 julgados de relatoria de outros ministros, a ordem de prisão domiciliar foi concedida. O Ministro Leopoldo compôs as turmas de julgamento e esses oito casos foram decididos à unanimidade, são eles: RHC 118.237/MG, HC 516.606/SP, HC 528.382/SP, RHC 114.646/RR, HC 470.962/SP, HC 536.889/SP, HC 538.662/SP e HC 539.920/SP.

Essa situação nos leva a considerar que pesquisar decisão jurídica requer mais que analisar conteúdo de textos de decisões tomadas, mais que contextos. Insistimos na indispensável transdisciplinaridade, pois é ela que nos viabiliza ter por compreensão um exercício de convivência social e, não, exclusivamente, uma atividade colaborativa interacional entre autor-texto-leitor ou falante-texto-ouvinte (Marcuschi, 2008MARCUSCHI, L.A. 2008. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo, Parábola, 296p., p. 231), uma vez que “leitor não é um sujeito consciente e dono do texto” (Marcuschi, 2008, p. 231). Agregamos essa concepção linguística à teoria social sistêmica, para a qual comunicação não se refere a um sujeito concreto, a sua intencionalidade, antes, “a última palavra não existe” (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., p. 105) e o sentido é uma forma de dois lados cujo meio é “autoregenerador da seleção contínua de certas formas de sentido” (Luhmann, 2007, p. 39). Assim, não é o Ministro, seu voto capaz de determinar o sentido jurídico de algo. É o próprio sistema do direito que seleciona que sentido jurídico construir (Stamford da Silva, 2021, p. 40).

Essa transdisciplinaridade, inclusive, é que nos permite compreender a situação de um mesmo ministro, quando relator, votar de uma maneira e, quando não é relator, votar contrário ao seu voto como relator. Sentido não é conteúdo estabelecido, mas sim produzido na seletividade recursiva, ou seja, sentido é possível porque ao assinalar deixa coexpressado e cocompreendido a remissão a outras possibilidades (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., p. 31). Esta situação evidencia a necessidade de nos afastarmos da ideia de autoria como criadora do sentido e nos aproxima da concepção de que direito é sistema que aprende (STAMFORD DA SILVA, 2020STAMFORD DA SILVA, A. 2020. O sistema jurídico aprende. A comunicativação aplicada ao princípio da insignificância no direito. Disponível em: http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/rmd/article/view/14231/10848. Acesso em: 27/04/2020.
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).

O mesmo ocorre quanto à concessão da prisão domiciliar ser considerada sorteio: se cair para o ministro x, será deferida; se cair para o ministro y, será indeferida. Essa hipótese é refutada justamente poque sentido não é um produto de um autor, nem de um coletivo, um órgão colegiado com são as turmas e os plenos de tribunais. Que uma pessoa só não estabelece sentido já está claro. Quanto ao coletivo, vejamos observações no nível das organizações. Neste nível, observamos que as decisões são tomadas sem discussão entre os ministros, o sentido organizacional ganha espaço, como observamos quando o voto do relator é acompanhado pelos demais sem qualquer reflexividade, pelo menos nos casos dos Habeas Corpus pesquisados. Essa prática forense é defendida pelos juristas como necessária por ser o meio para se obter “maior aderência”, legitimação da decisão. Uma decisão unanime afasta a hipótese de insatisfação dos envolvidos, bem como da sociedade. Ocorre que quando se pesquisa comunicação, a construção de sentido, há um estranhamento ao observar que um ministro a tem um voto quanto é o relator e voto aposto a este voto quanto não o é. Esse estranhamento não está na questão da autoria, fique claro, mas sim no sentido jurídico mesmo.

Em se tratando de observar comunicação a construção de um sentido organizacional é cobrada, a final, o sentido jurídico de algo viabiliza a função de expectativas normativas, as quais, salientamos, não se confunde com previsão do futuro, pois “direito é o que o direito determina como direito (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., p. 201), contudo, o direito não é indiferente ao seu ambiente, assim como “não é indiferente a si mesmo” (Luhmann, 2007, p. 201), pois “o direito não está determinado hierarquicamente, mas heterarquicamente, ou seja, de maneira colateral, em redes de vizinhança” (Luhmann, 2007, p. 202). Com isso, alertamos que o direito opera reflexivamente, ele “opera com base na segurança da expectativa normativa”, o que implica que o direito não determina comportamentos sociais, mas apenas expectativas normativas, assim é porque

As organizações de tomada de decisão do sistema jurídico não podem controlar sua própria incorporação em uma cultura jurídica motivacional; e, portanto, nem mesmo percebem quando começam a submeter esses fundamentos sociais de sua própria atividade a um processo de erosão (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., p. 205).

Ainda que não tenhamos dados cotidianos sobre como funciona a pauta do STJ nem do STF, nem como os votos são confeccionados cotidianamente, nem como os assessores elaboram os votos dos ministros (CAMPOS MELLO, 2017CAMPOS MELLO, Patrícia Perrone. Nos bastidores do STF. São Paulo: Forense, 2017.), nem como são as sessões das Turmas do STJ e do STF etc., os dados oficiais constantes no Relatório do próprio STJ de 2020, revelam que ano a ano são impetrados mais Habeas Corpus no STJ, os quais reproduzimos para dimensionar a complexidade da questão. O quantitativo de Habeas Corpus (HC) julgados, segundo os Relatórios Estatísticos do Superior Tribunal de Justiça (Brasil. STJ, 2020), em 2019, mês a mês, foram: Janeiro, 245; Fevereiro, 7.801; Março, 5.789; Abril, 5.973; Maio, 6.763; Junho, 5.980; Julho, 1.270; Agosto, 8.964; Setembro, 7.049; Outubro, 7.507; Novembro, 6.273; Dezembro, 5.640. Assim, o total, no ano de 2019, foi de 69.227 habeas corpus julgados. Por sua vez, O quantitativo de Recursos em Habeas Corpus (RHC) julgados foram: Janeiro, 20; Fevereiro, 1.867; Março, 1.235; Abril, 1.420; Maio, 1.774; Junho, 1.547; Julho, 95; Agosto, 2.306; Setembro, 1.596; Outubro, 1.795; Novembro, 1.369; Dezembro, 1.270, totalizando, no ano de 2019, 16.294 recursos em habeas corpus julgados.

A exposição desses quantitativos não se deve a querermos justificar a situação de um mesmo ministro julgar de uma maneira quando é relator e votar contrário aos seus próprios votos quando não é relator. Não nos arvoramos a resolver essa questão apostando na burocracia, apenas consideramos que não cabe insistir em atribuir ao poder de um autor a explicação da decisão jurídica, antes, evidencia o quanto o sentido do direito não pode ser reduzido a autoria decisória. O sentido jurídico é construído pelo próprio direito, o que nos leva a concordar que o direito é sistema que aprende. Ser sistema não significa ser uma entidade física ou mental com vivência objectual, mas sim, necessariamente, fenomenológica, afinal, sistema não passa de um termo empregado para explicar a complexidade da comunicação humana, portanto, a sociedade como sistema de sentido e, justamente por isso é que haver coerência interativa entre desembargadores e ministros e seus assessores na confecção dos votos é uma cobrança para que o sentido do direito venha a poder efetivamente constituir expectativas normativas. Inclusive, para um controle, se poderia recorrer a mecanismos de big data, os quais auxiliam na verificação de contrasenso e evitaria o modelo de jurisprudência lotérica. Como todos sabemos, não é impossível haver uniformidade decisória, nem jamais pleitearemos essa hipótese autorrefutável, afinal entendimento pacificado não existe, mas sim, há expectativas cognitivas e normativas, as quais contam com gerenciamento decisório organizacional. Cobrar ratio decidendi, uniformidade jurisprudencial, precedentes pacíficos, racionalidade justificada não passa de jargão, de argumento usado para silenciar o outro, o que não tem qualquer relação com a forma de sentido (Stamford da Silva, 2021, p. 164). Cobrar ratio decidendi, uniformidade jurisprudencial, precedentes pacíficos, a racionalidade justificada não passa de jargão, de argumento usado para silenciar o outro, o que não tem qualquer relação com forma de sentido.

Passemos, por conseguinte, às observações dos argumentos usados quando se trata de situação excepcionalíssima. Para isso, lançamos em planilha Excel os dados coletados nas decisões e confeccionamos os gráficos que passamos a analisar.

Gráfico 3:
Hipóteses de situação excepcionalíssima nos casos indeferidos no STJ

O argumento mais utilizado como situação excepcionalíssima para negar a prisão domiciliar, foi tráfico exercido na residência da paciente, o qual está aplicado isoladamente em 9 casos e, junto a outros argumentos, em 7 casos. Por conseguinte, o argumento descumprimento de condicionantes de prisão domiciliar ou liberdade provisória que a paciente tenha sido beneficiária foi o segundo mais aplicado como sentido de situação excepcionalíssima, estando isoladamente usado em 5 decisões e, em 6 delas, junto a outros argumentos. Haver onze argumentos usados como situação excepcionalíssima nos levam a observar que a construção de sentido de situação excepcionalíssima conta com um lado não marcado ainda muito presente, mais atual que potente, afinal vão muito além dos argumentos da memória semântica, que são as duas situações previstas no Art. 318-A do CPP, conforme a Lei nº 13.769/2018: I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa; II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.

Da análise das 92 decisões de deferimento, observamos que, em 52 delas, as hipóteses de situação excepcionalíssima estiveram presentes, mas não tiveram o condão de obstar a concessão da prisão domiciliar. Para melhor visualização, confeccionamos o gráfico pizza 4 abaixo.

Gráfico 04:
Situações excepcionalíssimas presentes nas decisões de deferimento do STJ

A comparação dos dados do gráfico 3 e do gráfico 4 nos levaram a questionar como foi possível argumentos usados como situações excepcionalíssimas servirem para tomadas de decisões que denegaram, mas em outros casos não obstaram a concessão da prisão domiciliar. Para isso, vejamos nossas observações sobre os argumentos mais usados: tráfico na residência; participação em organização criminosa; descumprimento de prisão domiciliar ou de liberdade provisória decretada anteriormente; filhos sob cuidados de parentes.

O tráfico na residência esteve presente em 16 decisões que indeferiram a prisão domiciliar e, foi circunstância encontrada em 28 decisões que concederam a prisão domiciliar. A aparição maior nas decisões de deferimento se deve à mudança, nos ministros relatores, do entendimento quanto à aplicação “automática da lei” e a ampliação do sentido de situação excepcionalíssima. Como observamos nos Ministros: Antonio Saldanha Palheiro - 5 decisões deferidas em que o Tráfico na Residência foi hipótese isolada (HC 485.331/PR, HC 498.501/SP, HC 502.424/BA, HC 495.889/PR, RHC 111.566/SC) mais 3 casos de deferimento em que o Tráfico na residência apareceu com outros fatores (HC 503.393/SP - junto a hipótese de descumprimento de prisão domiciliar anterior, HC 489.534/PR - junto a hipótese de filho sob cuidados de parentes e RHC 107.186/MS - junto a hipótese de paciente foragida); Jorge Mussi - 2 decisões em que o tráfico na residência foi circunstância isolada (HC 486.804/RJ, HC 516.030/PR); Joel Ilan Paciornik (HC 503.747/ES); Ribeiro Dantas (AgRg no HC 494.641/MG) - com uma 1 decisão cada tratando de tráfico na residência isoladamente.

No entanto, em outros casos, os ministros relatores deferiram a ordem de prisão domiciliar em hipóteses de tráfico na residência, mas também indeferiram em outros processos alegando situação excepcionalíssima. Como observamos nos votos do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Em dois votos deferiu a ordem em casos de tráfico na residência (RHC 108.424/MG, julgado em 21 de maio de 2019, e HC 510.718/MA, julgado em 18 de junho de 2019) e noutros seis votos indeferiu usando o mesmo argumento (RHC 104.811/GO, julgado em 19 de fevereiro de 2019, RHC 104.145/MS, julgado em 26 de fevereiro de 2019, HC 477.179/RS, julgado em 12 de março de 2019, HC 467.402/RS, julgado em 19 de março de 2019, HC 480.369/MG, julgado em 04 de abril de 2019 e RHC 109.049/SP, julgado em 07 de maio de 2019).

No caso do Ministro Rogério Schietti Cruz, que teve duas decisões de indeferimento por situação excepcionalíssima contra 5 decisões de deferimento, o argumento foi a quantidade de drogas apreendidas. No HC 506.408/ES (em que a ordem foi denegada), a paciente era primária e foram apreendidas 356 pedras de crack, 32 pinos de cocaína e 234 buchas de maconha, além de R$ 2.743,00. No HC 495.889/PR, que deferiu a prisão domiciliar, a apreensão foi de apenas 1 pedra de crack. Seguindo nossas observações sobre este argumento, nos casos de relatoria da Ministra Laurita Vaz a quantidade de drogas apreendida levou ao indeferimento. No HC 482.057/PB (indeferido), a paciente era primária, mas estava na posse de 24,8 Kg de maconha. No HC 513.554/SP (deferido), a paciente era primária e a quantidade apreendida foi de 174g de cocaína e 9,4g de THC. Mas no HC 509.885/SP (em que a ordem foi concedida), com a paciente, também primária, foram apreendidos 3Kg de cocaína, 6Kg de maconha e R$ 16.000,00.

Em outro caso de relatoria da Ministra (HC 118.058/PR), observamos que o peso para o indeferimento foi o fato de a paciente integrar Organização Criminosa, tendo em vista que a quantidade apreendida foi de 20g de cocaína e 300g de maconha, menor do que na hipótese anterior de deferimento (HC 509.885/SP).

A participação em organização criminosa esteve presente em 17 casos de deferimento. Em relação a situações excepcionalíssimas, a participação em organização criminosa foi argumento utilizado em 7 decisões.

Mais uma vez, a presença de casos de participação em organização criminosa nas decisões de deferimento em número superior às decisões indeferidas, se deve, em parte, à mudança de ministro relator: 5 julgados do Ministro Antonio Saldanha Palheiro (HC 446.308/SP, HC 487.270/TO, HC 510.945/PA, HC 419.236/SP, HC 520.874/PR), 1 julgado do Min. Félix Fischer (HC 499.207/GO), 2 decisões de Jorge Mussi (RHC 114.646/RR e HC 538.662/SP) e 1 de Nefi Cordeiro (AgRg no HC 492.062/SP)

Comparando as decisões por situação excepcionalíssima, em duas das decisões do Ministro Rogério Schietti Cruz o voto foi pelo deferimento da prisão domiciliar em caso de organização criminosa de maneira isolada e, numa, esse mesmo argumento teve por decisão o deferimento (HC 484.287/MT). Chamamos atenção para que, neste caso de deferimento, o Ministro concedeu a ordem e utilizou o fato da paciente ter participação em organização como condicionante para a imposição de medidas cautelares para além da prisão domiciliar e não obstativa da concessão da domiciliar.

O descumprimento de prisão domiciliar ou de liberdade provisória decretada anteriormente foi usado como argumento em 11 decisões de indeferimento, sendo este argumento usado isolada ou conjuntamente a outros argumentos (tráfico na residência, participação em organização criminosa e paciente foragida). Em 3 decisões de deferimento esta hipótese também subsistiu de maneira isolada e em 4 situações foi associada ao tráfico na residência.

Em apenas 1 das 7 decisões de deferimento, houve a presença de um ministro diferente das de indeferimento, foi o caso do HC 503.393/SP - relatoria do ministro Antonio Saldanha Palheiro, a hipótese foi associada ao tráfico na residência. Por outro lado, algumas decisões de indeferimento por esta hipótese teve a relatoria de ministros que não deferiram a concessão da prisão domiciliar na mesma situação. Foram os casos dos Ministros Jorge Mussi (RHC 118.796/MG), Laurita Vaz (HC 494.129/CE) - em ambos os casos a hipótese de descumprimento foi causa isolada, e Leopoldo de Arruda Raposo (HC 524.613/SP) e Reynaldo Soares da Fonseca (HC 477.179/RS e HC 467.402/RS) - nestes 3 casos, o descumprimento foi associado ao tráfico na residência.

O ministro Sebastião Reis Júnior teve 1 decisão indeferida (HC 498.374/RJ) e 2 decisões deferidas (HC 530.666/PR e HC 501.800/AC, esta última associada ao tráfico na residência). Observamos que, em parte, nos casos do Min. Sebastião Reis Júnior, a quantidade de droga foi o diferencial, mesmo sendo relativamente baixa em ambos os casos - no HC 498.374/RJ (indeferido) - 39,88g de cocaína e 23,19g de maconha, enquanto que no HC 530.666/PR (deferido) - 3g de crack e R$ 50,00. Porém ao comparar a decisão de indeferimento com o HC 501.800/AC (deferido), notamos que a quantidade não foi mais o diferencial, visto que, neste último, a ordem foi deferida não obstante a apreensão de 526g de maconha, quantidade maior do que no HC 498.374/RJ em que a ordem foi indeferida.

Filhos sob cuidados de parentes foi circunstância presente em 9 decisões de deferimento e, em apenas um caso, foi usado para indeferir por constituir o sentido de situação excepcionalíssima, trata-se da decisão de relatoria da Ministra Laurita Vaz (HC 483.257SP), que julgou indeferido porque a criança estava sob cuidados da mãe da paciente. Na ocasião, a paciente primária tinha sido presa com 302 pinos de cocaína e 1Kg de maconha. Por sua vez, 2 decisões foram deferidas pela Ministra Laurita Vaz em que os filhos das mulheres presas também estavam sob cuidados de parentes (HC 484.265/RJ e HC 495.346/PR), no primeiro caso houve a apreensão de 189g de cocaína e 1,950 Kg de maconha e, no segundo caso, quase 2Kg de cocaína. Percebemos, ao comparar as 3 decisões, certa incoerência da ministra, não havendo a princípio uma justificativa para que, no primeiro caso (HC 483.257/SP), houvesse o indeferimento, tendo em vista em que nas duas decisões deferidas a quantidade apreendida foi em número maior do que na decisão de indeferimento e os filhos estavam, igualmente, sob cuidados de parentes.

Nossas observações quanto à fluidez no uso dos argumentos, pois um mesmo argumento foi usado para denegar a prisão domiciliar e em outros casos mesmo presente não obstou a concessão, são que o direito não é uma resultante de fatos, de intenções, de poder do decididor, mas comunicação e, como tal, o direito comunica que um mesmo argumento pode vir a ser usado para conceder tanto quanto para negar a ordem, principalmente quando a temporalidade semântica ainda não vivenciou recursividades para produzir expectativas normativas, mas apenas expectativas cognitivas. O direito é um sistema que aprende (Stamford da Silva, 2020), ele vive seu processo de aprendizado, pois o direito

permanece indiferente à institucionalização da expectativa normativa. Do ponto de vista jurídico, não importa. Ninguém pode usar a força (ou a falta dela) para insistir que os outros mantenham expectativas normativas como um argumento, muito menos uma afirmação. Os limites do sistema de tomada de decisão não deixam essas informações passarem, eles as filtram (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., p. 205).

Sendo assim, observamos esse descompasso como mudança de entendimento dos ministros quanto aos argumentos serem ou não situação excepcionalíssima para denegar a prisão domiciliar.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados analisados indicam a inviabilidade de buscar causalidades para compreender a decisão jurídica. Um pesquisador não é um caçador de sentido. A decisão jurídica não é uma consequência do poder de um julgador, da intencionalidade, nem é uma representação de um fato social transformado em jurídico pela decisão jurídica, nem mesmo uma questão de leitura correta da legislação, da jurisprudência, do fato social colorado juridicamente, para usar expressão de Pontes de Miranda.

O sentido jurídico vivencia recursividades não para formar um conteúdo pacificado, não para fixar um entendimento, não para estabelecer a moldura cognitiva do direito. O sentido do direito é forma de dois lados e, como tal, conta com uma memória semântica ao mesmo tempo em que conta com as constantes irritabilidades de seu ambiente interno e externo. O lado marcado do sentido não determina como o sentido será usado na próxima comunicação, apenas viabiliza que expectativas cognitivas assumam a função de orientação normativa, de validez jurídica, o que não se confunde com determinar o comportamento social ou individual mesmo. É o próprio sistema funcional de comunicação social que observa, seleciona e indica o que, numa comunicação, é captado por ele mesmo como informação. Não se trata, salientamos, de determinar ou pré-estabelecer um conteúdo. Operar por comunicação porta indeterminabilidade e determinabilidade ao mesmo tempo.

No caso do direito, essa situação leva às “fórmulas de contingência”, pois legislação e precedente não determinam decisões futuras. A positivação do direito aumenta, reforça a contingência, justamente por viabilizar outras possibilidades de funcionamento. Com isso, direito se diferencia justamente por protagonizar justiça, portanto, por diferenciar justiça de violência, por mais que cotidianamente não faltam violências. Ocorre que justiça não é uma questão de se estabelecer princípios, a justiça do direito não se refere à legitimação do direito por meio de uma moral, nem de justificações racionais, de decisões jurídicas formulárias. Fosse assim, o direito se reduziria a disputas por razões, pela escolha de um lado em detrimento do outro. Ocorre que o direito, justamente porque se diferencia da violência, constrói o sentido como forma de dois lados. Isso é o que leva a sociedade saber que está diante de uma injustiça, é o que viabiliza o conhecimento e o reconhecimento das adversidades, das indignações diante de violências, mesmo daquelas justificadas moralmente, como ocorre quando preconceitos sociais e jurídicos aparentam legitimar discurso de ódio. Nestes casos, lembramos que essa mesma legitimação justifica as resistências. Com isso, temos que pleitos de movimentos sociais precisam irritar o direito à mudança, não apenas a operar comunicações. Para isso, a única alternativa é comunicar, comunicar e comunicar por comunicação. Como o tempo social é diverso do tempo sistêmico, o tempo do sistema jurídico na estabilização de sentido é próprio do direito, com isso, temos que a reversibilidade e a irreversibilidade dependem da temporalização da complexidade deste sistema (Luhmann, 1998LUHMANN, N. 1998. Sistemas sociales. Lineamientos para una teoría general. México, Herder, 445p., p. 63; 67) e, mais, trata de “estabilidade em forma dinâmica” (Luhmann, 2007, p. 34).

Nessa perspectiva, decisão justa não se deve à repetição de experiências anteriores simplesmente porque não é possível recuperar completamente uma vivência, não há conteúdo definitivo, há sim sentido, portanto, a distinção, fixação de uma distinção momentânea, assim é devido ao paradoxo do sentido, ou seja, porque “A forma é precisamente a própria distinção, na medida em que insta a designação (e, portanto, a observação) de um lado ou de outro e, por isso mesmo, não pode ela mesma (bem diferente do conceito hegeliano) realizar sua própria unidade” (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., 41). Essa temporalidade remete ao paradoxo da “unidade do que tem que se desempenhar como diversidade” (Luhmann, 2005, p. 278). A forma de sentido é possível devido à generalidade, ao excedente de informações internas no sistema que capacita o sistema a vivenciar adaptações a cada observação, não por reprodução, mas por recursividade, com memória semântica ao mesmo tempo em que com acréscimo de informações. A redundância não é repetitividade idêntica, mas sim recursividade e, enquanto recursividade, necessariamente conta com elementos novos, com algum acréscimo de informação.

A justiça do direito, da decisão jurídica

não reside na conveniência dos programas de fins, nem em suas limitações imanentes, como no custo-benefício ou na proporcionalidade dos meios. Ela seria um condicionamento adicional que especificaria, por exemplo, quais características devem estar presentes para que um programa de fim possa ser aplicado, ou seja, a justiça não estaria na compatibilidade ecológica de medidas jurídicas (licenças, proibições ambientais etc.), mas na compatibilidade jurídica das políticas do meio ambiente (Luhmann, 2005LUHMANN, N. 2005. El derecho de la sociedad. México, Herder, 680p., p. 294).

Se “o direito não tem porque desistir da ideia de justiça” (Luhmann, 2007LUHMANN, N. 2007. La sociedad de la sociedad. México, Herder, 964p., p. 278), esta pesquisa nos conduz a considerar que quanto um ministro votar pela prisão domiciliar quando é relator e vota contra a prisão domiciliar quanto não é relator não se trata de incoerência autoral, nem sistêmica, mas sim ao estado de aprendizado do direito mesmo, portanto, de instabilidade na forma de sentido jurídico. Para superar este estado, demanda tempo e mais e mais comunicações. Não se trata de memória semântica porque essa memória é “organização de acesso à informação” (Luhmann, 2005, p. 175) e, não, lembrança do passado, inclusive, salientamos, o esquecimento viabiliza maior adaptabilidade do sistema, posto que a não reutilização de expectativas normativas amplia a capacidade de generalizar vias de seleção de como operar o que se observa.

Não desconhecemos que essa situação não é exclusiva do objeto desta pesquisa: a prisão domiciliar. Várias outras situações vivenciam a “condição lotérica”. Porém, não depositamos na dependência do relator a mulher ter seu habeas corpus favorável ou indeferido o pedido de prisão domiciliar, mas sim ao direito mesmo, ou seja, à ausência de recursividade. Não porque recursivamente se estabelecerá um conteúdo, mas porque só recursivamente o direito aprenderá e comunicará o lado marcado e o lado não marcado. Neste caso, cabe lembrar que o centro semântico do direito, na sociedade moderna, é formado pelos tribunais superiores (Luhmann, 2005LUHMANN, N. 2005. El derecho de la sociedad. México, Herder, 680p., p. 383), aos quais competem a estabilização semântica e a promoção da função de expectativa normativa do direito da sociedade.

Se podemos arriscar um futurismo, arriscamos que quanto mais os tribunais superiores brasileiros comunicarem o loterismo decisório, mais o direito comunicará esse loterismo, o qual promoverá “operações autoimunitárias”, ou seja, operações de autodissolução do sistema mesmo. Autoimunidade é “a conduta sistêmica mediante a qual um sistema põe em marcha um processo de dissolução de si mesmo” (Mascareño, 2020MASCAREÑO, Aldo. 2020. De la inmunidad a la autoinmunidad: la disolución del orden social. Astrolabio Nueva Época, 25: 98-118., p. 99; 114). Ora, se o sistema jurídico comunica que as decisões dos tribunais superiores não exercem a função de promover expectativas normativas contrafáticas, significa que ele mesmo está comunicando o quanto se fez incapaz de agir e reagir às irritações de seu ambiente, a se manter em diferenciação. Com uma desdiferenciação funcional constante, elevada, o sistema jurídico comunica essa diferenciação funcional, o que resultará em o sistema colapsar e a organização judiciária degradar a força do direito face à desdiferenciação levar a ausência de diferenciação entre direito e violência.

Com esta pesquisa, concluindo, alçamos os objetivos propostos: apresentamos reflexões sobre a indispensável transdisciplinaridade para pesquisar decisão jurídica; justificamos a comunicativação como via teórico-metodológica de pesquisa com decisão jurídica para lidar com a relação movimentos sociais e direito; observamos como o direito observa e; apresentamos a necessidade de revisitar a perspectiva de autoria para se compreender a prática da decisão jurídica.

Que venham mais e mais pesquisas com decisão jurídica.

Referências bibliográficas

  • 1
    Dados do Levantamento de Informações Penitenciárias, de dezembro de 2018 (Brasil. DEPEN, 2018).
  • 2
    O artigo 318-A também determinou a prisão domiciliar substitutiva da prisão preventiva às mulheres responsáveis por pessoa com deficiência, mas estes casos não fazem parte do objeto de nossa pesquisa que se restringe às gestantes e às presas mães de crianças.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2022
  • Aceito
    29 Mar 2023
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