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Identidade, diferença e reconhecimento: um olhar sobre os movimentos de mulheres indígenas no Brasil e a pauta de enfrentamento à violência de gênero

Resumo

A partir de aportes teóricos sobre identidade, diferença, reconhecimento e movimentos sociais, o presente artigo objetiva investigar como estão articulados os movimentos de mulheres indígenas no Brasil, bem como as formas que são debatidas a questão do enfrentamento da violência de gênero no seio desses movimentos. Inicialmente, a pesquisa aponta a dificuldade no campo do reconhecimento identitário das indígenas, após enfatiza a mudança paradigmática representada Constituição Federal de 1988 no campo do reconhecimento social e jurídico e, por fim, ressalta a importância de os movimentos de mulheres indígenas empunharem a pauta do reconhecimento identitário e da violência de gênero, denunciando e buscando alternativas contra as violências sofridas. A pesquisa valeu-se da técnica bibliográfica, a partir modo de raciocínio dedutivo e dos métodos de abordagem hermenêutico e crítico-dialético.

Palavras-Chave:
Identidade; Movimentos de Mulheres Indígenas; Violência de gênero

Abstract

Based on theoretical literature on identity, difference, recognition, and social movements, this article aims to investigate how indigenous women's movements in Brazil are articulated. It also investigates the manners in which the fight against gender-based violence is debated within these movements. Initially, the research points out the difficulty within the identity recognition field for the indigenous peoples. Secondly, it shows the paradigmatic shift represented by the Federal Constitution of 1988 in the field of social and legal recognition. Finally, it highlights the importance of the indigenous women's movements to grant the agenda for identity recognition and gender violence, reporting and searching for alternative ways against the violence suffered by indigenous women. The research resorted to the literature review method, based on deductive reasoning and on the hermeneutic and the critical/dialectical approach.

Keywords:
Identity; Indigenous Women's Movements; Gender-based Violence

1. Introdução

As condições de vulnerabilidade e opressão das mulheres na sociedade têm sido uma pauta recorrente nos últimos tempos, especialmente em relação a temas envolvendo violência de gênero - gênero compreendido como o papel social atribuído ao sexo feminino. Frente a situações degradantes da dignidade humana, sejam elas por falta de reconhecimento identitário e/ou econômico, os movimentos sociais são importantes ferramentas de transformação que historicamente possibilitaram a conquista e o reconhecimento de inúmeros direitos humanos fundamentais, superando práticas arbitrárias e contextos de tirania.

A conjuntura não é diferente quando se analisa a atuação dos movimentos indígenas do Brasil, que tiveram - e ainda têm - um papel essencial na defesa de seus direitos e interesses. Ao lado desses movimentos, surgem os movimentos de mulheres indígenas, os quais lutam pela efetivação dos direitos coletivos - identitários e econômicos -, ao mesmo tempo em que também trazem ao debate novas pautas específicas relativas aos direitos das mulheres. Em outras palavras, será que as pautas gerais, econômico-políticas, são suficientes para a superação de diversas vulnerabilidades, ou “dentro delas” é importante manter pautas específicas, por exemplo, descortinando a violência de gênero?

A partir disso, a pesquisa objetiva refletir, com base em aportes sobre identidade, diferença, reconhecimento e movimentos sociais, como estão articulados os movimentos de mulheres indígenas no Brasil, e como é debatida a questão do enfrentamento da violência de gênero no seio desses movimentos. Para tanto, em um primeiro momento, o trabalho discute aspectos sobre as reivindicações por identidade, diferença e reconhecimento, apontando a dificuldade no campo do reconhecimento identitário das indígenas, uma vez que ser mulher e pertencer a um grupo indígena dentro de um contexto colonial e patriarcal revela um quadro de grave opressão, aprofundando a violência de gênero. Após, avança no debate do papel dos movimentos sociais, ressaltando a mudança paradigmática no reconhecimento social e jurídico das diversas identidades indígenas a partir da Constituição Federal de 1988. Por fim, aborda os movimentos de mulheres indígenas no Brasil e a pauta de enfrentamento à violência de gênero, sublinhando a importância de os movimentos de mulheres indígenas empunharem a pauta do reconhecimento identitário, denunciando e buscando alternativas contra as violências sofridas dentro das próprias comunidades, assim como pela sociedade envolvente. Na metodologia, o estudo valeu-se da técnica de pesquisa bibliográfica, a partir modo de raciocínio dedutivo e dos métodos de abordagem hermenêutico e crítico-dialético.

2. Apontamentos sobre identidade, diferença e reconhecimento

A partir do objetivo central deste estudo, impõe-se discutir, inicialmente, as categorias identidade, diferença e reconhecimento, a fim de se poder adentrar no campo de reivindicação dos mesmos. Assim sendo, há que se reconhecer que identidade e diferença são inseparáveis. As identidades são marcadas e constituídas pelas diferenças. Conforme Kathryn Woodward (2000WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.), a identidade é relacional, se distingue por aquilo que não o é, ou seja, depende de algo de fora dela, de outras identidades que fornecem condições para sua existência, depende da diferença. Da mesma forma, Stuart Hall (2000HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.) refere que as identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela e, dessa forma, somente através da relação com o Outro é que podem ser produzidas.

A identidade era concebida de forma essencialista, como uma categoria fixa e permanente. Consoante Hall (2006HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.), essa idealização passa a ser contestada na pós-modernidade, em que a identidade se torna uma celebração móvel, formada e transformada continuamente. Nesse sentido, é definida historicamente, e não biologicamente, de modo que o sujeito pode assumir diferentes identidades em diferentes momentos, pois “à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao menos temporariamente” (HALL, 2006HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006., p. 13). Sobre o tema, Bauman (2005BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.) observa que a identidade é revelada como algo a ser inventado, a ser livremente construído, e não a ser descoberto. “Uma identidade coesa, firmemente fixada e solidamente construída seria um fardo, uma repressão, uma limitação da liberdade de escolha.” (BAUMAN, 2005BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005., p. 60).

Em harmonia com o pensamento de Silva (2000SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.), a marcação da diferença nos processos de construção das identidades ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social, sempre demarcando fronteiras: “Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre ‘nós’ e ‘eles’” (SILVA, 2000SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2000., p. 82). Desse modo, é preciso considerar que as lutas por afirmação das identidades também são envoltas por relações de poder, tendo em vista que “enquanto o sujeito humano é colocado em relações de produção e de significação, é igualmente colocado em relações de poder muito complexas” (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul (Orgs.). Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995., p. 232). Para Foucault, o poder não é simplesmente uma relação entre parceiros individuais ou coletivos, mas um modo de ação de alguns sobre os outros. Nessa ótica, o exercício do poder consiste em “conduzir condutas”, é um conjunto de ações sobre as ações possíveis, ele opera sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos, ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, governando e estruturando os eventuais campos de ações dos outros, como pondera Foucault (1995).

Como produtos da linguagem, identidade e diferença não podem ser compreendidas fora dos sistemas de significação nos quais adquirem sentido e, desse modo, suas definições estão sujeitas a vetores de força e poder, muitas vezes utilizados para privilegiar certas identidades em detrimento de outras. Identidade e diferença estão estreitamente relacionadas às formas pelas quais a sociedade produz e utiliza classificações e, nesse caso, dividir e classificar significa hierarquizar, o que garante o privilégio de atribuir diferentes valores aos diferentes grupos (SILVA, 2000SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.). Nessa linha, a diferença pode ser concebida como fonte de diversidade, heterogeneidade e hibridismo ou pode ser construída negativamente pela marginalização das pessoas que são definidas como outros, como forasteiros”, concepção ainda muito presente na sociedade atual (WOODWARD, 2000WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.). A principal forma de classificação se estrutura em oposições binárias, de dualismos: indígenas e não indígenas, por exemplo. Com base na obra de Jacques Derrida, Silva (2000SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.) observa que tais binarismos não expressem uma simples divisão do mundo em duas classes simétricas, pois um dos termos sempre recebe um valor positivo enquanto o outro uma carga negativa.

Silva chama a atenção para o fato de que “fixar uma determinada identidade como a norma é uma das formas privilegiadas de hierarquização das identidades e das diferenças. A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença” (SILVA, 2000SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2000., p. 83). Seguindo as ponderações do autor, normalizar significa eleger arbitrariamente uma identidade específica como parâmetro, a partir do qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas, situações recorrentes ao longo da história. Embasados em pseudojustificativas morais, religiosas, culturais e biológicas, determinados grupos passaram a afirmar suas identidades como superiores, como padrões de “normalidade”, desqualificando e atribuindo significados negativos às demais diferenças, a exemplo das identidades nacional, masculina, branca, cristã, europeia, heterossexual, dentre outras.

E é nesse campo de disputas que os povos indígenas estão inseridos. Esse contexto de inferiorização das diferenças identitárias engendrou graves violações e privações de direitos humanos, conjunturas de marginalização e subcidadania que se refletem até os dias atuais. Passou a existir uma espécie de demonização das diferenças, em que as identidades inferiorizadas são diabolizadas como uma ferramenta de repressão, opressão e imposição de certos valores propagados pelos grupos dominantes. Conforme Santos e Lucas, assim foi “com muçulmanos, mulheres, índios, judeus, negros e homossexuais que, de alguma forma, eram figuras que materializavam os pecados capitais que estruturaram fortemente a doutrina cristã da salvação” (SANTOS; LUCAS, 2019SANTOS, André Leonardo Copetti; LUCAS, Doglas Cesar. A (in)diferença no Direito: minorias, diversidade e direitos humanos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019., p. 24).1 1 Na esteira das reflexões dos autores, um dos principais sistemas de dominação se estrutura a partir de uma supervalorização dada ao gênero e à sexualidade, com base na estruturação binária homem-não homem, macho-não macho e heterossexual-homossexual. (SANTOS; LUCAS, 2019).

O colonialismo e a questão do paradigma Moderno também foram determinantes nos processos de dominação e exclusão. No contexto da América Latina, a colonização foi avassaladora, especialmente em relação aos povos tradicionais, imprimindo um método civilizatório à luz de premissas europeias, brancas e masculinizadas, noções incorporadas na formação e desenvolvimento das sociedades colonizadas (EINSBERG, 2000). Note-se que, no decorrer da história, vários fatores se conjugaram e contribuíram na hierarquização das diferenças, de forma a privilegiar algumas e inferiorizar outras, gerando preconceito, discriminação, opressão, violência e, até mesmo, mortes contra as identidades marginalizadas, situações que, apesar de muitos avanços sociais e normativos, repercutem de forma muito grave nos dias correntes.

Nesse cenário de demonização da diferença, em que se chega ao ponto de negar a própria humanidade de algumas pessoas ou grupos sociais, é que surgem as lutas por reconhecimento, que buscam o respeito pela dignidade humana e a efetivação de direitos básicos de populações invisibilizadas e/ou marginalizadas. Nesse sentido, serão apresentados, brevemente, três teóricos do reconhecimento: Axel Honneth, Charles Taylor e Nancy Fraser com formas distintas de percepção do reconhecimento envolvendo identidade e diferença.

Axel Honneth (2009HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramatica moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009.), em sua teoria do reconhecimento, retoma o conflito como o gerador de lutas por reconhecimento. O conflito corresponde as experiências de desrespeito sofridas pelos sujeitos como a gramática moral dos conflitos sociais. Para ele existem três esferas de reconhecimento: o amor, o Direito e a estima social, sem as quais não se pode falar em reconhecimento recíproco - a reciprocidade correspondente de terceiros e do próprio Estado. Na primeira esfera, o sujeito precisa ser reconhecido em suas relações amorosas primárias, nas ligações entre pais e filhos, parceiros e amigos. Em relação à segunda esfera de reconhecimento, o Direito possibilita que o sujeito possa conceber suas ações como manifestações legítimas e merecedoras de respeito, garantindo a titularidade de direitos individuais. A estima social, por sua vez, permite que a pessoa sinta suas particularidades valorizadas e reconhecidas pelos seus parceiros de trato.

Por sua vez, Charles Taylor (1994TAYLOR, Charles. A política do reconhecimento. In: TAYLOR, Charles (Org.). Multiculturalismo: examinando a política de reconhecimento. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.) trabalha na perspectiva do reconhecimento equivocado de identidades, o qual pode gerar, por conseguinte, uma distorção identitária que irá inferiorizar, oprimir ou menosprezar pessoas ou grupo social, gerando desigualdades, como é o caso das mulheres e, no presente estudo, dos próprios povos indígenas, ou seja, não se nega as identidades indígenas, mas o seu reconhecimento é equivocado e, por isso, esses povos precisam buscar um reconhecimento que não os oprima e não lhes retire direitos de cidadania, respeitando suas diferenças. Então, pode-se afirmar que a demanda voltada para o reconhecimento tem como base a reivindicação do direito à diferença frente às tentativas de homogeneização identitária.

Já Nancy Fraser (2001FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça da era pós-socialista. In: SOUZA, Jessé (Org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.) alicerça seus estudos na justiça social e na redistribuição democrática, estudando grupos explorados e excluídos e apostando no reconhecimento identitário como uma consequência advinda da justa redistribuição de renda. Para ela, quando as pessoas tiverem acesso a recursos econômicos, o seu status social é modificado, podendo elas participar das decisões do Estado e, com isso, alcançar o reconhecimento identitário. Muito embora ela apregoe, primeiramente, a necessidade de redistribuição que gera o reconhecimento, reconhece que existem casos em que a ordem não seja necessariamente essa, como no caso do reconhecimento das mulheres e dos negros - muitas vezes não estão pautados em questões econômicas. Em sua teoria, Fraser aposta na necessidade de o Estado criar não apenas políticas afirmativas, mas sim políticas transformativas que sejam capazes de, realmente, reverter identidades estereotipadas, respeitando as diferenças.

Essas vivências de desrespeito identitário, de reconhecimento equivocado de identidades e/ou de má distribuição de renda - a exemplo dos povos indígenas e, mais especificadamente, das mulheres indígenas -, muitas vezes vistas como contraditórias, são complementares e fomentam lutas e ações coletivas por transformação social2 2 Para aprofundamento do tema ver artigo: VERONESE, Osmar; ANGELIN, Rosângela. Ser diferente é normal e constitucional: Sobre o direito à diferença no Brasil. RDP, Brasília, Volume 17, n. 93, 292-314, maio/jun. 2020. . Barroso e Osorio (2016BARROSO, Luís Roberto; OSORIO, Aline. “Sabe com quem está falando?”: Notas sobre o princípio da igualdade no Brasil contemporâneo. Direito & Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 07, N. 13, 2016, p. 204-232.) observam que a igualdade efetiva requer redistribuição e reconhecimento, nenhum desses eixos é isoladamente suficiente, pois a adoção de uma concepção bidimensional de justiça que abarque ambas as demandas é mais eficaz justamente porque tais eixos de injustiça estão entrelaçados. Nesse sentido, os movimentos sociais são organizações da sociedade civil que pautam esses temas, servindo de espaço de resistência e transformação social.

3. Movimentos sociais, espaço de resistência e de transformação social

Os movimentos sociais materializam demandas por reconhecimento, pois buscam por reconhecimento jurídico e social de diversos grupos historicamente marginalizados, mediante estratégias articuladas que objetivam romper com sistemas simbólicos de dominação, inferiorização das diferenças e exclusão social, a exemplo dos movimentos pelos direitos das mulheres, movimentos feministas, movimentos LGBTQI+, movimentos de povos indígenas, movimentos culturais, movimentos religiosos, dentro outros.

Os movimentos sociais surgem, muito por força dos sindicatos, nos Estados liberais e industrializados, devido à precarização das condições de trabalho. A atuação dos sindicatos deixou marcas em duas importantes Constituições no ocidente: a Constituição Mexicana (1917) e a Constituição alemã de Weimar (1919), as quais abrem as portas do constitucionalismo ao Estado Social, albergando direitos sociais, especialmente direitos trabalhistas e previdenciários, e comprometem o Estado a intervir na economia, ao contrário do que apregoava o Estado Liberal, criando limites de atuação e previsões de intervenção no capital (ANGELIN, 2019ANGELIN, Rosângela. Constituição Federal de 1988: Trinta anos de (Des)Caminhos de uma Utopia em Direitos Humanos. In: NASCIMENTO, Valeria Ribas do; SALDANHA, Jânia Maria Lopes. Os direitos humanos e o constitucionalismo em perspectiva: expectros da DHDU e da Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2019, p. 357-374.).

Como objeto de estudo, os movimentos sociais despontam com o nascimento da sociologia, que sempre foi o campo por excelência na análise da ação social. Conforme lições de Maria Glória Gohn, o conceito de movimentos sociais tem sofrido inúmeras alterações no decorrer da história. Por exemplo, por volta das décadas de 1950-1960, “manuais de ciências sociais e parte dos estudos específicos abordavam os movimentos no contexto das mudanças sociais, e os viam como fontes de conflitos e tensões, fomentadores de revoluções, revoltas e atos considerados anômalos” (GOHN, 2010aGOHN, Maria da Glória. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010a., p. 24).

Nesse período histórico, “movimentos sociais e revoluções eram termos utilizados como sinônimos, e sempre que se falava em movimento a categoria ‘trabalhador’ era destacada” (GOHN, 2010aGOHN, Maria da Glória. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010a., p. 24). O termo movimento era utilizado em acepções amplas, envolvendo períodos históricos grandes, o que acabava por englobar as guerras, os movimentos nacionalistas, as ideologias radicais (como nazismo e fascismo), ideologias religiosas, etc. A corrente histórico-estrutural, ligada às abordagens de Marx, construiu uma das principais matrizes teóricas e influenciou a análise clássica ou tradicional dos movimentos sociais no século XX, inspirando estudos que se concentravam no movimento do proletariado, particularmente nas lutas sindicais, em que o próprio conceito de luta de classes tinha centralidade, matriz com exponencial importância no mundo até os anos de 1970 (GOHN, 2010a).

A partir de novas ações que começaram a abrir espaços sociais e culturais para atores que até então não tinham visibilidade, como mulheres, jovens, estudantes, indígenas e negros, bem como do desenvolvimento da corrente culturalista-identitária, surgiram novos olhares sobre a temática dos movimentos sociais, conjuntura que começou a destacar a identidade e o lado positivo dos movimentos, especialmente como fomentadores de mudanças sociais e produtores de novos significados (GOHN, 2010aGOHN, Maria da Glória. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010a.).

Contemporaneamente, a discussão sobre os movimentos sociais está inserida em um contexto mais amplo, englobando crise da modernidade e emergência de novas formas de racionalidades, com destaque “às transformações societárias decorrentes da globalização, às alterações nos padrões das relações sociais, dado o avanço das novas tecnologias, e às inovações que têm levado ao reconhecimento de uma transição paradigmática” (GOHN, 2010aGOHN, Maria da Glória. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010a., p. 41). Nessa perspectiva, os novos requerimentos da modernidade, a ressignificação do sujeito racional, a busca por articulações entre global e local, novas formas de participação democrática, políticas de identidade e diferença, autonomia e emancipação estão entre as principais abordagens deste milênio sobre ações coletivas e os movimentos sociais, de acordo com as reflexões de Gohn (2010aGOHN, Maria da Glória. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010a.). Considerando o atual desenvolvimento da temática, Gohn apresenta uma nova conceituação de movimentos sociais, como sendo

ações sociais coletivas de caráter sócio-político e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas. Na ação concreta, essas formas adotam diferentes estratégias que variam da simples denúncia, passando pela pressão direta (mobilizações, marchas, concentrações, passeatas, distúrbios à ordem constituída, atos de desobediência civil, negociações etc.), até as pressões indiretas (GOHN, 2010bGOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais na atualidade: manifestações e categorias analíticas. In: In: GOHN, Maria da Glória (Org.). Movimentos Sociais no início do século XXI: antigos e novos atores sociais. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2010b., p. 13).

Para Alain Touraine (2006TOURAINE, Alain. Na fronteira dos movimentos sociais. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 21, n.1, p. 17-28, jan./abr. 2006.), é importante observar os movimentos sociais como ações coletivas que colocam em pauta modos de dominação social generalizada, atuando sobre o conjunto dos principais aspectos da vida social. Outra característica indispensável é a autonomia dos movimentos sociais, identificados como organizações independentes, autônomas e não institucionalizadas, comprometidas com a transformação social. Todavia, muitos movimentos sociais perdem força e legitimidade em razão da submissão ou vinculação a partidos políticos e órgãos do Estado, afastando-se dos objetivos iniciais e institucionalizando práticas organizadas de cima para baixo, como ressalta Gohn (2010aGOHN, Maria da Glória. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010a.).

De outra banda, apesar de frequentemente serem utilizadas como expressões sinônimas, os movimentos sociais se diferem das mobilizações sociais. De acordo com Gohn (2010aGOHN, Maria da Glória. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010a., p. 65), a mobilização social “refere-se a ativações que visam mudança de comportamentos ou adesão a dados programas ou projetos sociais”, apresentando-se como uma categoria gêmea da participação social. Uma mobilização social pode chamar a atenção da coletividade para alguma causa ou acontecimento social, podendo se resumir a uma caminhada ou paralisação, por exemplo. Os movimentos sociais, por sua vez, contam com estrutura interna, pautas traçadas, ações coordenadas, objetivos a curto, médio e longo prazo, com o foco na transformação social. “O termo movimento é substituído inicialmente por mobilização e aparece somente do processo - basicamente fruto de um trabalho de colaboração, coesão, com ações propositivas. Movimento é um resultado e não o foco inicial da ação coletiva” (GOHN, 2010aGOHN, Maria da Glória. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010a., p. 67).

Atualmente, os movimentos sociais têm reinventado suas estratégias e modos com o uso das tecnologias de informação e comunicação, especialmente da internet. Consoante Ilse Scherer-Warren (2007, p. 16), os movimentos sociais da sociedade globalizada “buscam se empoderar por meio de organizações em rede, articulando as iniciativas locais com apoios, formas de comunicação e manifestações mais amplos”. Enfim, reservadas as peculiaridades de cada época, não se pode olvidar que os movimentos sociais são indispensáveis ferramentas de transformação social, determinantes em todos processos de reconhecimento e conquista de direitos ao longo da história, sejam eles voltados para o reconhecimento identitário ou para a redistribuição de renda, abrindo espaço para que os sujeitos sejam atores sociais de sua própria história em busca um mundo melhor, a exemplo do movimento de mulheres indígenas, abordado, na sequência deste artigo.

4. Movimentos de mulheres indígenas no Brasil e a pauta de enfrentamento à violência de gênero

Desde o início da colonização, em nome da expansão-imposição de um determinado modo de vida, os povos indígenas do Brasil são alvos de violência, discriminação, marginalização e tentativas assimilatórias, práticas motivadas pela falta de reconhecimento das diferenças culturais e identitárias. Para Mércio Pereira Gomes (2012GOMES, Mércio Pereira. Os índios e o Brasil: passado, presente e futuro. São Paulo: Editora Contexto, 2012.), desde 1500, o Brasil e os povos indígenas formam uma dupla incombinável, pois a relação entre ambas as histórias é claramente inversa: à medida que o primeiro cresce, o outro decresce. Já nos primeiros contatos, a imagem dos indígenas foi sendo construída negativamente, foram tachados de povos bárbaros, irracionais, sem cultura, desprovidos de fé ou religião, narrativas incorporadas ao imaginário social ao longo do tempo e que se refletem até os dias atuais nas formas de discriminação, preconceito, exclusão, falta de reconhecimento ou reconhecimento equivocado.

As próprias reduções Jesuíticas dos Guarani, cujo êxito em muitos campos é inegável (como na música, no sistema de produção, na organização social), possuíam uma estrutura de poder masculina, trazida pelos jesuítas, embebida na tradição cristã ocidental que imputava às mulheres incapacidade para gerir-se, necessitando, por isso, o constante acompanhamento masculino. “Em casa, elas estavam sob a tutela do pai; no casamento, do marido” (RAMOS, 2016RAMOS, Antonio Dari. Tribunal de Gênero: mulheres e homens indígenas e cativos na Antiga Província Jesuítica do Paraguai. São Leopoldo: Oikos, 2016., p. 138). A mulher Guarani, nas reduções, é distanciada, tanto do altar e das funções litúrgicas, como do trânsito nos espaços de poder (RAMOS, 2016, p. 140), experiência a demonstrar raízes históricas encravadas no seio da tradição, com rígida demarcação dos papéis sociais masculinos e femininos, cujos reflexos estão presentes até hoje na estruturação social desses povos indígenas. Não se rompem tradições seculares com facilidade.

Até a promulgação da Constituição Federal de 1988, os povos indígenas como um todo foram praticamente desconsiderados pelo ordenamento jurídico pátrio. Todas as normas não reconheciam a diversidade cultural e identitária existente, pregavam a incorporação e a assimilação dos indígenas à sociedade dominante, o que também contribuiu para a perpetuação de um imaginário social discriminatório e excludente. Nesse contexto, o enfrentamento da temática na Constituinte (1987-88) foi desafiador, ao promover a igualdade em um cenário multicultural, tendo que, para tanto, reconhecer as diferenças, muito em razão da “luta dos grupos culturalmente dominados que objetivavam ascensão social lutando contra o fim da exclusão proporcionada pela discriminação”. (DORNELLES; DE BRUM; VERONESE, 2017DORNELLES, Ederson Nadir Pires; DE BRUM, Fabiano Prado; VERONESE, Osmar. Indígenas no Brasil: (In) Visibilidade Social e jurídica. Curitiba, Juruá, 2017., p. 39).

Somente a Constituição Cidadã de 1988 supera visões integracionistas e assimilatórias em relação aos povos indígenas, reconhecendo o direito à diferença e as identidades tradicionais. Souza Filho descreve alguns avanços do texto constitucional de 1988, nesse sentido:

(1) ampliou os direitos dos índios reconhecendo sua organização social, seus usos, costumes, religiões, línguas e crenças; (2) considerou o direito à terra como originário, isto é, anterior à lei ou ato que assim o declare; (3)conceituou terra indígena incluindo não só aquelas necessárias à habitação, mas à produção, preservação do meio ambiente e as necessárias à sua reprodução física e cultural; (4) pela primeira vez, em nível constitucional, admitiu-se no Brasil que existem direitos indígenas coletivos, seja reconhecendo a organização social indígena, seja concedendo à comunidade o direito de opinar sobre o aproveitamento dos recursos naturais e o de postular em juízo; (5) tratou com mais detalhes, estabelecendo assim melhores garantias, da exploração dos recursos naturais, especialmente os minerais, para o que exige prévia anuência do Congresso Nacional; (6) proibiu a remoção de grupos indígenas, dando ao Congresso Nacional a possibilidade de estudo das eventuais e estabelecidas exceções; (7) mas acima de tudo chamou os índios de índios e lhes deu o direito de continuarem a sê-lo (SOUZA FILHO, 2012SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O renascer dos povos indígenas para o Direito. 8ª reimpressão. Curitiba: Juruá Editora, 2012., p. 90-91).

Nesse viés, há que se considerar que os movimentos indígenas tiveram um papel fundamental na virada paradigmática proporcionada pela Constituição de 1988. Diante de atrocidades praticadas durante a ditadura civil-militar, por volta de 1970, ao lado dos movimentos indigenistas, os indígenas brasileiros começam a organizar seus próprios movimentos na defesa de seus direitos. As chamadas Assembleias Indígenas, que passaram a reunir lideranças de diversos povos, a partir de 1974, com apoio do CIMI, podem ser entendidas como a gênese do movimento indígena no Brasil (BICALHO, 2010BICALHO, Poliene Soares dos Santos. Protagonismo indígena no Brasil: movimento, cidadania e direitos (1970-2009). 2010. 464 f., il. Tese (Doutorado em História). Universidade de Brasília, Brasília, 2010.). Mais tarde, a partir de 1979, começa a ser criada a União das Nações Indígenas (UNI), primeira organização formal articulada pelos próprios indígenas, com a finalidade de unir os povos e criar uma frente comum de autodefesa e afirmação perante a sociedade brasileira, mas que aos poucos foi enfraquecendo. No decorrer da década de 1980, associações de comunidades indígenas foram surgindo para representar os interesses de seus povos, concebendo novas formas de autoafirmação indígena, de modo que a própria Assembleia Nacional Constituinte de 1988 contou com a participação do movimento indígena, de antropólogos, ONG’s e entidades religiosas apoiadoras da causa (GOMES, 2012GOMES, Mércio Pereira. Os índios e o Brasil: passado, presente e futuro. São Paulo: Editora Contexto, 2012.). Corroborando o histórico do surgimento dos movimentos indígenas no Brasil, Luciano Baniwa pondera:

No Brasil, existe de fato, desde a década de 1970, o que podemos chamar de movimento indígena brasileiro, ou seja, um esforço conjunto e articulado de lideranças, povos e organizações indígenas objetivando uma agenda comum de luta, como é a agenda pela terra, pela saúde, pela educação e por outros direitos. Foi esse movimento indígena articulado, apoiado por seus aliados, que conseguiu convencer a sociedade brasileira e o Congresso Nacional Constituinte a aprovar, em 1988, os avançados direitos indígenas na atual Constituição Federal (BANIWA, 2006, p. 59).

Diante do favorável cenário institucional, após a Constituição de 1988, o movimento indígena se fortaleceu e inúmeras associações indígenas passaram a ser criadas em todo território brasileiro. Hoje, além dos eixos comuns que mobilizam o movimento indígena brasileiro, como a demarcação e proteção dos territórios, preservação dos recursos naturais, saúde, educação e saneamento, existem movimentos e organizações comunitárias, locais e regionais que lutam pelos direitos e interesses das populações tradicionais, de acordo com as peculiaridades de cada povo, etnia e região do país. Merece destaque o trabalho da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), uma instância de referência nacional do movimento indígena que tem o “propósito de fortalecer a união de nossos povos, a articulação entre as diferentes regiões e organizações indígenas do país, além de mobilizar os povos e organizações indígenas contra as ameaças e agressões aos direitos indígenas” (APIB, s.a).

Muitos movimentos sociais não têm dispensado a atenção necessária à condição de ser mulher, que traz consigo questões e demandas próprias em cada organização social. No seio de sociedades patriarcais, como a brasileira, as mulheres ainda enfrentam muitos entraves, preconceitos e violências, problemáticas que podem ser ainda mais agravadas por outros fatores. Note-se que a realidade de uma mulher branca e abastada é diferente da realidade de uma mulher negra e pobre, que por sua vez também é diferente do cotidiano de uma mulher indígena. Diferentes realidades originam diferentes demandas, o que não significa que alguma delas esteja livre de enfrentar preconceitos ou violências em razão do gênero. No enfoque da mulher indígena, por exemplo, é possível perceber uma espécie de dupla vulnerabilidade que engloba as caraterísticas de ser mulher e de ser indígena, ou seja, gênero e etnia, como assevera Sacchi:

De um lado, há a situação de exclusão, racismo e desvantagem em que vivem os povos indígenas no interior dos estados-nações e a dificuldade no acesso à justiça. De outro, há as especificidades relativas às discriminações das mulheres de grupos etnicamente diferenciados. É um quadro bastante difícil de se sobrepor, que comporta várias frentes: o acesso à justiça interna, em suas comunidades, com seus pares, povos e organizações; o alcance da justiça do Estado; e a conquista dos direitos humanos enquanto mulheres, junto aos demais movimentos de mulheres/feministas com demandas bastante diferenciadas. (SACCHI, 2014SACCHI, Ângela. Violências e Mulheres Indígenas: justiça comunitária, eficácia das leis e agência feminina. Patrimônio e Memória, São Paulo, Unesp, v. 10, n. 2, p. 62-74, julho-dezembro, 2014., p. 68).

Cientes de sua importância nas lutas tradicionais, grupos de mulheres indígenas passam se organizar em prol das demandas comunitárias e também pelo reconhecimento do seu espaço e protagonismo. Verdum (2008VERDUM, Ricardo. Mulheres indígenas, direitos e políticas públicas. In: VERDUM, Ricardo (Org.). Mulheres indígenas, direitos e políticas públicas. Brasília: Inesc, 2008.) aponta que as duas primeiras organizações de mulheres indígenas brasileiras surgiram na década de 1980: a Associação de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (AMARN) e a Associação de Mulheres Indígenas do Distrito de Taracuá, Rio Uaupés e Tiguié (AMITRUT). As demais organizações passam a ser constituídas a partir de 1990, mesmo período em que encontros entre mulheres indígenas de diferentes etnias começam a acontecer. Daí em diante, diversas associações, organizações e movimentos de mulheres indígenas passam a ser organizar pelo Brasil, como a Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé, a Organização das Mulheres Indígenas de Roraima, os Departamentos de Mulheres da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, dentre outras. No ano de 1996 foi realizado o I Encontro Estadual das Mulheres Indígenas de Roraima, em Maturuca, TI Raposa Serra do Sol, oportunidade em que as indígenas assumiram os compromissos de combater o alcoolismo, lutar pela terra e auto sustentabilidade, revitalizar a cultura e continuar o projeto de corte e costura (SACCHI, 2003SACCHI, Ângela. Mulheres indígenas e participação política: a discussão de gênero nas organizações de mulheres indígenas. Revista Anthropológicas, ano 7, volume 14, p. 95-110, 2003.).

Já em 2002, ocorreu em Manaus o I Encontro das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira, com objetivo de “promover a participação das mulheres indígenas nas diversas instâncias assim como assegurar seus direitos, e também contribuir para o avanço do movimento indígena” (SACCHI, 2003SACCHI, Ângela. Mulheres indígenas e participação política: a discussão de gênero nas organizações de mulheres indígenas. Revista Anthropológicas, ano 7, volume 14, p. 95-110, 2003., p. 98). Consoante Verdum (2008VERDUM, Ricardo. Mulheres indígenas, direitos e políticas públicas. In: VERDUM, Ricardo (Org.). Mulheres indígenas, direitos e políticas públicas. Brasília: Inesc, 2008., p. 11), “na Região Nordeste, a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) realizou, no início de 2007, seu primeiro encontro regional de mulheres (guerreiras) indígenas”. Na região Sul, na cidade de Curitiba/PR, também no ano de 2007, a Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpin-Sul) realizou um primeiro encontro regional de mulheres indígenas das etnias Kaingang, Guarani e Xoklem. Nessa oportunidade, o machismo dentro das aldeias foi relatado como uma das dificuldades enfrentadas pelas indígenas nas suas comunidades (FREITAS, 2008FREITAS, Maria Inês de. Mulheres indígenas e a luta por direitos na Região Sul. In: VERDUM, Ricardo (Org.). Mulheres indígenas, direitos e políticas públicas. Brasília: Inesc, 2008., p. 50). Mais tarde, em 2009, durante o III Encontro de Mulheres indígenas da Amazônia, foi criada a União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB). No ano de 2019 foi realizada em Brasília a I Marcha das Mulheres Indígenas, evento que contou com a participação de cerca de 2.500 indígenas de mais de 130 povos indígenas, tendo como tema Território: nosso corpo, nosso espírito (CIMI, 2019). Do Documento Final da I Marcha das Mulheres Indígenas, destacam-se as seguintes passagens:

Enquanto mulheres, lideranças e guerreiras, geradoras e protetoras da vida, iremos nos posicionar e lutar contra as questões e as violações que afrontam nossos corpos, nossos espíritos, nossos territórios. Difundindo nossas sementes, nossos rituais, nossa língua, nós iremos garantir a nossa existência. A Marcha das Mulheres Indígenas foi pensada como um processo, iniciado em 2015, de formação e empoderamento das mulheres indígenas. Ao longo desses anos dialogamos com mulheres de diversos movimentos e nos demos conta de que nosso movimento possui uma especificidade que gostaríamos que fosse compreendida. O movimento produzido por nossa dança de luta, considera a necessidade do retorno à complementaridade entre o feminino e o masculino, sem, no entanto, conferir uma essência para o homem e para a mulher. O machismo é mais uma epidemia trazida pelos europeus. Assim, o que é considerado violência pelas mulheres não indígenas pode não ser considerado violência por nós. Isso não significa que fecharemos nossos olhos para as violências que reconhecemos que acontecem em nossas aldeias, mas sim que precisamos levar em consideração e o intuito é exatamente contrapor, problematizar e trazer reflexões críticas a respeito de práticas cotidianas e formas de organização política contemporâneas entre nós. Precisamos dialogar e fortalecer a potência das mulheres indígenas, retomando nossos valores e memórias matriarcais para podermos avançar nos nossos pleitos sociais relacionados aos nossos territórios (CIMI, 2019, s.p.).

Dentre as pautas de luta firmadas no documento estão: a garantia da demarcação das terras indígenas e da posse plena dos territórios; a prestação do direito à saúde e forma diferenciada; a efetivação do direito à diferença e do acesso à justiça; a promoção da representatividade das mulheres indígenas nos espaços políticos, dentro e fora das aldeias; o combate à discriminação dos indígenas nos espaços de decisão, especialmente das mulheres, que são vítimas não apenas do racismo, mas também do machismo; a necessidade de uma legislação específica que combata a violência contra a mulher indígena, culturalmente orientada à realidade dos povos; o prosseguimento ao empoderamento das mulheres indígenas por meio da informação, formação e sensibilização dos nossos direitos, garantindo o pleno acesso das mulheres indígenas à educação formal; o fortalecimento do movimento indígena com a integração de conhecimentos de gênero e geracionais.

Com a pandemia de Covid-19, a Marcha não foi realizada de forma presencial. A II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas foi realizada de 7 a 11 setembro de 2021, com o tema “Mulheres originárias: Reflorestando mentes para a cura da Terra”. Conforme informações do CIMI (2021), a marcha contou com a presença de aproximadamente 5 mil indígenas de todo o Brasil, pertencentes a 185 povos, que ocuparam as ruas de Brasília. O movimento também marcou a luta das mulheres indígenas contra a tese do marco temporal, que está em votação no Supremo Tribunal Federal.

Em fevereiro de 2020, o Instituto Socioambiental contabilizou 85 organizações de mulheres indígenas e sete organizações indígenas que possuem departamentos de mulheres, totalizando 92 organizações, presentes em 21 Estados do país (MAPA; 2020). Como se pode ver, são mobilizações recentes, mas que estão cada vez mais fortalecidas e articuladas. São movimentos que entrelaçam etnia e gênero, com a “reivindicação de direitos próprios de seu gênero e o fortalecimento de antigas lutas de seus povos, o que faz com que negociem com diferentes atores no contexto interétnico” (SACCHI, 2003SACCHI, Ângela. Mulheres indígenas e participação política: a discussão de gênero nas organizações de mulheres indígenas. Revista Anthropológicas, ano 7, volume 14, p. 95-110, 2003., p. 95). Conforme Verdum, as mulheres indígenas trazem novas pautas e preocupações, como a violência familiar e interétnica:

enriquecem o debate interno do movimento, trazendo para o coletivo as avaliações e demandas dos espaços específicos em que atuam como mulheres. A violência familiar e interétnica, o acesso aos meios técnicos e financeiros para a geração de renda, a saúde reprodutiva, a soberania alimentar, a participação das mulheres nas decisões de políticas dos governos, entre outros temas, são inseridos pelas mulheres indígenas no seio do movimento indígena e nos espaços de debate e decisão de políticas públicas (VERDUM, 2008VERDUM, Ricardo. Mulheres indígenas, direitos e políticas públicas. In: VERDUM, Ricardo (Org.). Mulheres indígenas, direitos e políticas públicas. Brasília: Inesc, 2008., p. 9).

As mulheres indígenas reconhecem que a violência de gênero também está presente dentro das comunidades tradicionais. Se os primeiros movimentos de mulheres indígenas não traziam essa pauta de forma tão nítida e clara, hoje a situação é bastante diversa. Ainda assim, é importante observar que as contínuas e sistemáticas violações de direitos básicos das populações tradicionais fazem com que as reivindicações por direitos coletivos sejam muito fortes, e até mesmo prioritárias, nos movimentos de mulheres indígenas. No entanto, tal conjuntura não significa que os direitos das mulheres, especialmente, o enfrentamento da violência e o empoderamento feminino, não tenham espaço nesses movimentos.

Se as mulheres indígenas têm assinalado a responsabilidade do Estado na violação de seus direitos, por não garantir condições econômicas, sociais e políticas que lhes permitam ter uma vida digna e com serviços básicos de qualidade, ao mesmo tempo, têm identificado a violência no mundo indígena. Internamente, se queixam diante do controle de sua sociabilidade e mobilidade, como na liberdade para circular e frequentar certos espaços. As mulheres também têm discutido a ausência de poder decisório feminino nas questões comunitárias, e a desqualificação de suas demandas e ações por parte dos companheiros e autoridades indígenas. (SACCHI, 2014SACCHI, Ângela. Violências e Mulheres Indígenas: justiça comunitária, eficácia das leis e agência feminina. Patrimônio e Memória, São Paulo, Unesp, v. 10, n. 2, p. 62-74, julho-dezembro, 2014., p. 64).

Casos recentes têm comprovado a necessidade de enfrentamento específico das diversas formas de violência contra a mulher dentro dos territórios tradicionais, como o caso da menina Ana Beatriz, uma indígena Sateré-Mawé, de apenas 5 anos, que foi raptada, estuprada, asfixiada e morta no dia 23 de novembro de 2020. A criança foi retirada da rede onde dormia, dentro de sua casa, na comunidade Vida Nova, interior do município de Barreirinha/AM. Iniciadas as buscas a partir de uma camiseta esquecida no local, um suspeito apreendido, também da etnia Sateré-Mawé, apontou o local onde a criança havia sido enterrada (SANTOS, 2020SANTOS, Izabel. Morte de menina Sateré-Mawé expõe violência sexual dentro dos territórios. Povos Indígenas. Amazônia Real. 10/12/2020. Disponível em: https://amazoniareal.com.br/morte-de-menina-satare-mawe-expoe-violencia-sexual-dentro-dos-territorios/. Acesso em: 05 Jan. 2021.
https://amazoniareal.com.br/morte-de-men...
).

No início de 2019, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, um cacique de uma comunidade Kaingang foi denunciado e preso pelos crimes de estupro e cárcere privado supostamente cometidos contra a própria neta, à época com 12 anos de idade. Conforme informações divulgadas pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, a menina relatou que o cacique, seu avô paterno, usando da autoridade que detinha como chefe da aldeia e aproveitando-se de ocasião na qual a menina estava sozinha, perguntou se ela queria assistir ao “filme do encontro”, referindo-se a um evento anual de sua comunidade. Diante do sim da neta, o denunciado sentou-se no sofá pedindo a menina que sentasse no seu colo, quando iniciou a série de abusos. A partir desse momento, o cacique teria passado a perseguir a vítima, com a intuição de manter atos sexuais com ela. Após as sucessivas negativas da menina, o avô, aproveitando-se da sua situação de cacique, mandou prender a neta na “cadeia da comunidade”, uma peça de tijolo com uma porta de madeira, onde a jovem permaneceu em pé ou de cócoras por quatro dias (MP-RS, 2019).

Recentemente, em fevereiro de 2021, na Comunidade Umariaçu, município de Tabatinga, a Polícia Civil do Amazonas prendeu em flagrante um indígena da etnia Ticuna, de 29 anos, pelo crime de feminicídio cometido contra sua companheira, uma indígena de 28 anos, também da etnia Ticuna. Segundo informações da Secretaria de Segurança Pública, o agressor desferiu vários socos no rosto e corpo da vítima e, em decorrência das agressões, ela caiu, bateu a cabeça e ficou desacordada, falecendo momentos depois. Ainda conforme o noticiado, a vítima ainda tentou se esconder em um dos cômodos da casa onde moravam, mas foi alcançada pelo companheiro. (SSP-AM, 2021).

Há casos que também apontam para violência de gênero entre os Guarani, na Argentina, como o que “el acusado había dado muerte a su mujer en estado de ebriedad” (MOREIRA, 2019MOREIRA, Manoel. La cultura jurídica Guaraní. Posadas: CEDEAD, 2019., p. 158-159), e outro em que “un grupo de aborígenes en estado de ebriedad golpearam y violaron a una mujer también aborígene de catorce años de edad” (MOREIRA, 2019, p. 167), o primeiro julgado pelos próprios indígenas e o segundo embebido em questões culturais interessantíssimas, mas que trazem a mulher como vítima.

Não bastasse, a violência também vem de fora das comunidades. Não são raros os casos de mulheres indígenas violentadas, sequestradas ou estupradas como forma de pressão para o abandono de terras ocupadas. O Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, de 2016, aponta que as mulheres são as principais vítimas das violências praticadas contra as comunidades indígenas no mundo, de acordo com relatório da ONU. É perceptível que “os dados da organização mostram que mais de 1 em cada 3 mulheres indígenas são estupradas ao longo da vida - e a violência faz parte de uma estratégia para desmoralizar a comunidade ou como ‘limpeza étnica’” (CIMI, 2016, p. 30). Diante desse contexto, organizações internacionais, órgãos indigenistas e os próprios movimentos indígenas têm promovido ações de conscientização, treinamento e enfrentamento da violência de gênero dentro das comunidades.

Sob outra perspectiva, não se pode perder de vista toda a questão cultural, que muitas vezes é utilizada para encobrir ou legitimar a violência de gênero. Muitas situações não são denunciadas por medo de reprovação dos familiares e demais membros da comunidade. Além disso, como refere Sacchi (2014SACCHI, Ângela. Violências e Mulheres Indígenas: justiça comunitária, eficácia das leis e agência feminina. Patrimônio e Memória, São Paulo, Unesp, v. 10, n. 2, p. 62-74, julho-dezembro, 2014.), a penalização externa dos homens etnicamente diferenciados também afeta a vida das mulheres e de seus filhos e filhas, especialmente em razão da interdependência e complementaridade da divisão do trabalho, pois, na visão de algumas indígenas, a proteção do território, a caça, a pesca ou a produção de alimentos da comunidade pode ficar prejudicada por eventuais prisões estatais.

Nesse ponto, a efetividade da aplicação da Lei Maria da Penha às diversas culturas indígenas é questionada. As dificuldades variam em cada cultura e comunidade, destacando-se o receio de penalizações externas e estranhas ao ordenamento tradicional, falta de acolhimento especializado, que leve em conta a diversidade cultural, barreiras de idiomas, desconhecimento sobre a legislação e seus direitos, considerável distância da cidade e órgãos de atendimento, questões que ratificam a necessidade de ações diferenciadas e interculturais na defesa dos direitos dessas mulheres. Nessa perspectiva, o apoio da comunidade é muito importante. Soluções internas, como leis e punições próprias, também podem ser adotadas de forma satisfatória, a depender do caso concreto, afinal, a Constituição Federal de 1988 reconhece as organizações sociais indígenas, seus costumes e tradições. Em consequência, “torna-se importante o reconhecimento das autoridades tradicionais indígenas que, por seus papéis de influência e prestígio, são centrais no diálogo e no aconselhamento na forma de tratar as mulheres” (SACCHI, 2014SACCHI, Ângela. Violências e Mulheres Indígenas: justiça comunitária, eficácia das leis e agência feminina. Patrimônio e Memória, São Paulo, Unesp, v. 10, n. 2, p. 62-74, julho-dezembro, 2014., p. 66).

Assim sendo, não se pode dizer que os movimentos de mulheres indígenas do Brasil não enfrentam a violência de gênero, pois esta tem sido uma relevante e crescente pauta. Igualmente, também não é possível comparar os movimentos indígenas com outros movimentos de mulheres, como o feminismo, tendo em vista a preponderante pauta dos direitos coletivos, que se são indispensáveis à cosmovisão dos povos tradicionais. Como ressalta Sacchi (2014SACCHI, Ângela. Violências e Mulheres Indígenas: justiça comunitária, eficácia das leis e agência feminina. Patrimônio e Memória, São Paulo, Unesp, v. 10, n. 2, p. 62-74, julho-dezembro, 2014., p. 70), não se pode conceber uma exclusão ou “separação na garantia de direitos coletivos e individuais, quando se posicionam enquanto mulheres e enquanto pertencentes a etnias diversas. E não é uma renúncia à própria identidade diante do Estado, mas o exercício de seus direitos como diferentes”. Sobreleva, assim, a importância de enfrentar o caráter multifacetado da violência contra a mulher, a conjugar raça, etnia, gênero, classe social, e outras possíveis variantes, as quais se conjugam, daí a relevância desses movimentos que, ainda timidamente, levantam a pauta de gênero.

Vivenciando essa realidade como mulher negra, a ativista americana advogada Kimberle Crenshaw propõe como ferramenta o conceito de Interseccionalidade dos Direitos Humanos para descrever o fenômeno da interação simultânea de fatores de discrímen (que conjugam raça, gênero e classe social) os quais criam uma forma específica de violência e opressão contra as mulheres, não abarcando, inicialmente pelos movimentos feministas, já que estes não abrangem alguns marcadores sociais determinantes para alcance dos seus direitos.

5. Conclusão

Ao finalizar o estudo que se ateve em refletir sobre os movimentos de mulheres indígenas com enfoque nas violências de gênero, com base em aportes de identidade, diferença, reconhecimento e movimentos sociais, chegou-se a algumas conclusões e a muitas inquietudes. Primeiro, não deve escapar a um olhar atento o fato de ainda serem pouquíssimos os movimentos indígenas que levantam essa bandeira específica, e serem ainda mais escassas as pesquisas sobre essa matéria. Esse silêncio encobre o tema com camadas de violências, de classe, de etnia e de gênero

Ser mulher indígena em um contexto patriarcal colonizador significa conjugar a falta de reconhecimento ou o reconhecimento equivocado por ser mulher, o sofrimento étnico por ser indígena e as agruras da pobreza econômica para viver em uma sociedade capitalista. Essas dificuldades podem encorpar a pauta de demandas dos movimentos de mulheres indígenas, acoplando elementos que vão ao encontro de justiça redistributiva e do reconhecimento identitário. Nesse sentido, como a história evidencia, os movimentos sociais propiciaram a conquista e o reconhecimento de muitos direitos individuais, sociais, culturais e econômicos. Tais ações coletivas articuladas são motores de mudança da realidade enfrentada a partir da mobilização de cidadãs e cidadãos que conectam demandas por identidade, diferença e reconhecimento, buscando reverter quadros de marginalização, exclusão e privação. A Constituição Federal de 1988, estatuto de liberdade e igualdade - respeitadora da diferença, ao incorporar as vozes do movimento indígena da época, representou uma virada paradigmática, reconhecendo aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

Ao lado do tradicional movimento indígena, a partir da década de 1980, os movimentos de mulheres indígenas começam a se articular no território brasileiro, reivindicando a efetivação de direitos coletivos básicos e também chamando a atenção para as possíveis inter-relações entre gênero e raça. Atualmente, diante da constante violência enfrentada pelas mulheres, que independe de raça, etnia, condição econômica ou crença, é possível observar um fortalecimento da pauta de enfrentamento da violência de gênero no contexto das organizações de mulheres indígenas espalhadas pelo Brasil, que começam a discutir, de forma mais concreta, assuntos relativos ao combate às diversas formas de violência, empoderamento, participação, representação feminina. Nessas pautas, conjugam-se o enfrentamento de elementos internos das tribos e, também, externos, com a coragem de descortinar a violência de gênero.

Dessarte, guardadas as peculiaridades do contexto histórico enfrentado pelos povos indígenas e suas necessidades reais, não é possível afirmar que os movimentos de mulheres indígenas não enfrentam a violência de gênero, tampouco igualar os movimentos de mulheres indígenas aos demais movimentos de mulheres, considerando o entrelaçamento das lutas coletivas e de pautas relativas ao gênero. Nesse sentido, é preciso considerar que a efetivação dos direitos básicos coletivos também fortalece os direitos específicos das mulheres indígenas, construindo uma cosmovisão de equilíbrio prezada por esses grupos de mulheres.

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  • 1
    Na esteira das reflexões dos autores, um dos principais sistemas de dominação se estrutura a partir de uma supervalorização dada ao gênero e à sexualidade, com base na estruturação binária homem-não homem, macho-não macho e heterossexual-homossexual. (SANTOS; LUCAS, 2019).
  • 2
    Para aprofundamento do tema ver artigo: VERONESE, Osmar; ANGELIN, Rosângela. Ser diferente é normal e constitucional: Sobre o direito à diferença no Brasil. RDP, Brasília, Volume 17, n. 93, 292-314, maio/jun. 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2021
  • Aceito
    17 Nov 2021
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