Acessibilidade / Reportar erro

Controle social e resolução de conflitos em um território Kaingang: estudo sobre a cadeia indígena

Social control and conflict resolution in a Kaingang territory: a study on the indigenous jail

Resumo

Neste artigo apresentamos os resultados preliminares de pesquisa cujo objetivo é investigar o controle social e a resolução de conflitos em um território Kaingang, tendo como problema central a compreensão da gênese e dos atuais sentidos punitivos da cadeia indígena utilizada por este povo no contexto interno do território em que habita. Trata-se de estudo que vem sendo realizado a partir do diálogo intercultural e da troca de saberes com discente indígena, bem como por meio da etnografia e da história oral, que se justifica na medida em que os desafios teórico-empíricos suscitados estão a confluir com as demandas da comunidade em questão.

Palavras-chave:
Kaingang; Controle social; Punição; Cadeia indígena

Abstract

In this paper we present the preliminary results of a research project whose objective is to investigate social control and conflict resolution in a Kaingang territory, with the central problem of understanding the genesis and current punitive meanings of the indigenous jail used by this community. This study is being carried out based on intercultural dialogue and knowledge exchange with an indigenous student, as well as through ethnography and oral history, which is justified insofar as the theoretical and empirical challenges raised are in line with the demands of the community in question.

Keywords:
Kaingang; Social control; Punishment; Indigenous jail

1. Introdução - os caminhos da pesquisa e apontamentos metodológicos

Este estudo apresenta os resultados preliminares de pesquisa cujo objetivo é investigar o controle social e a resolução de conflitos em um território Kaingang, tendo como problema central a compreensão da gênese e dos atuais sentidos punitivos da cadeia indígena utilizada por este povo no contexto interno do território em que habita.

Resulta diretamente das políticas de diversificação do corpo discente das universidades. Foi na sala de aula que os coautores se encontraram, um professor da disciplina de criminologia do Curso de Direito da Universidade Federal do Pampa, e um discente que foi estudar em cidade distante mais de 600 km da terra indígena onde nasceu e cresceu. Foi ao falar do conceito de controle social que o professor resolveu perguntar para o estudante de que modo os conflitos eram resolvidos em sua aldeia e foi então que pôde descobrir que naquela comunidade havia uma cadeia. E a partir daí a turma teve a chance de acompanhar o olhar contra-antropológico que o discente emprestou ao sistema penal estatal brasileiro e realizar o exercício de estranhamento dos rituais do direito penal moderno, aprendidos ao longo do ensino jurídico.

Desde então começou não apenas a pesquisa, mas o diálogo e o aprendizado mútuo. À investigação, que passou a ser conduzida pelo Núcleo do Pampa de Criminologia (Grupo de pesquisa/CNPq), somou-se a terceira coautora. Os frutos da pesquisa, até agora, foram trabalhos de iniciação científica, um trabalho de conclusão de curso (ANTÔNIO, 2023) e inúmeros eventos e participações do discente indígena nas atividades de ensino, enriquecendo-as sobremaneira. Por outro lado, o estudo cresceu e transformou-se em pesquisa de doutorado que está sendo desenvolvida pela coautora deste artigo.

Buscaremos construir a coautoria não apenas desde a primeira pessoa do plural, mas, sobretudo, deixando à vista os termos do diálogo e a polifonia do encontro pedagógico, a roda de conversa na qual estamos envolvidos.

Do ponto de vista metodológico, algumas considerações iniciais são importantes. Quanto à dimensão empírica, a pesquisa começou a partir da escuta da narrativa oral do discente indígena sobre as práticas punitivas adotadas no território que habita. Depois de um período, foi realizada uma incursão à terra indígena, na qual os pesquisadores-professores foram recepcionados pelo discente indígena e tiveram a oportunidade de conhecer preliminarmente o contexto local e a própria cadeia, bem como em conversar, juntamente com o coautor, com membros da comunidade (incluindo aqueles que ocupam postos na estrutura política) sobre o tema das práticas punitivas. Pretende-se, na sequência, que o estudo se desenvolva a partir dos métodos etnográfico e da história oral e de acordo com os interesses da comunidade indígena.

Nessa empreitada, estivemos vigilantes quanto à dimensão epistemológica e equipados com alguns conceitos (ferramentas) importantes. O primeiro é o desenvolvido por Rita Segato, de antropologia por demanda, que deve ser “interpelada, solicitada, demandada pelos povos que durante um século lhe serviram de objeto” (SEGATO, 2021SEGATO, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021., p. 17), quer dizer, uma disciplina que deve permanecer “disponível para as demandas de suas e de seus estudados” (SEGATO, 2021, p. 166).

Esta ideia vai ao encontro da noção de “pacto etnográfico”, desenvolvida por Bruce Albert e Davi Kopenawa na obra “A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami” (2015ALBERT, Bruce. KOPENAWA, Davi. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.). Para o autor, o pacto etnográfico consiste na relação que se estabelece entre o pesquisador e os “nativos”, da qual deriva, como “contrapartida da doação de saberes, um horizonte de comprometimento de longo prazo” (ALBERT; KOPENAWA, 2015ALBERT, Bruce. KOPENAWA, Davi. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 522). Ou seja, ao estudarmos a temática em questão, com o auxílio da comunidade Kaingang, nos comprometemos, sem perder de vista a curiosidade intelectual e o rigor descritivo, com as suas demandas, desafios e lutas. Conforme Albert, o “etnógrafo que acredita estar ‘colhendo dados’ está sendo reeducado, por aqueles que aceitaram sua presença, para servir de intérprete de sua causa” (ALBERT; KOPENAWA, 2015, p. 522).

A citação de Albert e Kopenawa resume o processo que aqui estamos narrando. O diálogo intercultural que vem sendo travado produziu efeitos nos planos individuais e institucional. A relação estabelecida entre os pesquisadores, por um lado, constitui importante subsídio pedagógico para a formação do coautor-indígena, e por outro, “reeducou” e responsabilizou os outros coautores. Na dimensão institucional, a pesquisa permitiu a efetivação orgânica da integração entre ensino e pesquisa, na medida em que o estudo vem sendo apresentado e discutido em diversas disciplinas do curso de Direito da Universidade Federal do Pampa, como criminologia, antropologia jurídica, sociologia e história do direito.

2. Ainda como introdução - delimitação do estudo

No Brasil atualmente convivem aproximadamente trezentos e cinco povos indígenas, com usos, costumes, tradições, línguas e organizações sociais, políticas e jurídicas plurais. Cada qual possui uma história específica, marcada de modo inexorável pela invasão europeia e pelas relações coloniais e estatais que tiveram início a partir de então1 1 Utilizamos aqui as categorias de povo e história, ao invés de, por exemplo, etnias e culturas, nos termos das reflexões teóricas de Rita Segato, sobretudo no texto “Que cada povo teça os fios de sua história: um diálogo tenso com a colonialidade legislativa dos ‘salvadores’ da infância indígena” (2021, p. 165). .

Desta maneira, as formas de organização social, política e jurídica e os consequentes métodos de controle social e resolução de conflitos utilizados por estas sociedades tradicionais são incontáveis e não podem ser tratados de modo unificado, dado o risco de equívocos e simplificações.

Ademais, é necessário separar analiticamente a mirada sobre as práticas punitivas encontradas por ocasião dos primeiros encontros entre os colonizadores e os povos originários - cujas produções são fundadas em dados empíricos que resultaram da literatura dos assim chamados “relatos de viajantes2 2 No campo da Criminologia (e das demais ciências criminais) são raros os estudos sobre o ponto. Uma investigação clássica sobre o assunto é a de Clóvis Bevilaqua, intitulada “Instituições e Costumes Jurídicos dos Indígenas Brasileiros ao tempo da conquista”. O texto faz parte do livro “Criminologia e Direito”, publicado em 1896 e recentemente reeditado pela Editora Revan, na “Coleção Pensamento Criminológico” (2019). No texto, Bevilaqua inventaria as instituições e costumes jurídicos dos indígenas brasileiros ao tempo da conquista a partir dos “relatos de viajantes”, e afirma que “a justiça penal desses povos se achava, como é natural su pôr [sic], num estado de grosseria a atraso” (2019, p. 217). Outra obra digna de referência é “O direito penal indígena à época do descobrimento do Brasil”, de João Bernardino Gonzaga, publicada em 1966. Trata-se de uma das análises mais completas sobre o assunto, cujas fontes são fundamentalmente o material etnológico compilado por viajantes da época colonial. Após tratar da organização jurídica e político-social dos indígenas, bem como vincular o que chama de “direito penal indígena” à noção de “mentalidade primitiva”, nos termos pensados por Lévy-Bruhl, Gonzaga (1966) disserta sobre a responsabilidade penal nas sociedades primitivas, as sanções e os crimes. Ainda nessa toada, vale ressaltar o artigo “Práticas Penais no Direito Indígena”, de Nilo Batista, publicado na Revista de Direito Penal n. 31, em 1981. Neste texto, o penalista e historiador do direito dedica-se a refletir sobre as contribuições de Bevilaqua e Gonzaga, acrescentando alguns pressupostos epistemológicos - principalmente a negação da ideia de “mentalidade primitiva” - para o tratamento do assunto (BATISTA, 1981). Sobre os problemas epistemológicos suscitados pelos relatos dos europeus acerca das pessoas que viviam no território hoje conhecido como Brasil antes da invasão - que foram por eles nominados índios - conferir o seminal texto “Imagens de Índios no Brasil no Século XVI”, de Manuela Carneiro da Cunha (2012, p. 26). ” - do estudo sobre as práticas punitivas que passaram a ser adotadas após o contato colonizador e que se mantém até hoje, nos quadros da história de cada povo, marcadas pela relação entre os povos originários e as políticas indigenistas.

Este introito é necessário para desde logo explicarmos que este estudo está interessado nas práticas punitivas atualmente adotadas por uma comunidade territorialmente delimitada e habitada por um povo específico: os Kaingang3 3 Trata-se da comunidade indígena Kaingang de Cacique Doble/RS. Sobre a história e a atualidade do povo Kaingang, conferir RIBEIRO (1996). Conferir também a síntese produzida pelo Instituto Socioambiental: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kaingang. . Ou seja, não se pretende estudar de modo geral as formas punitivas dos “povos indígenas do Brasil”, mas os métodos de controle social, de resolução de conflitos e de punição de uma das inúmeras comunidades Kaingang. Proceder de outro modo resultaria em uma imprópria universalização, diante da infinidade de situações territoriais, sociais e políticas em que vivem os povos indígenas do Brasil, que resultam em distintos arranjos político-institucionais. O artigo começará por trazer aportes jurídicos ao tema da autonomia penal indígena. Na sequência, ingressará no tema da punição no contexto do povo Kaingang, primeiro do ponto de vista histórico, buscando compreender a gênese da cadeia indígena, para depois investigar os sentidos dos métodos de controle social e resolução de conflitos, notadamente das punições, atualmente utilizados pela comunidade em questão.

3. A autonomia penal indígena - aportes jurídicos

Os povos indígenas podem gerir seus conflitos segundo suas normas internas? As soluções que adotam têm validade do ponto de vista do direito estatal? As lideranças que executam punições praticam crimes segundo a lei penal brasileira? Estas perguntas eram muito comuns na sala de aula e nas ocasiões em que apresentamos a pesquisa. Fundamental, portanto, tratarmos da legitimidade jurídica da punição indígena, nos termos das “leis do homem branco”.

Conforme Rita Segato, “o Brasil está muito longe de um efetivo pluralismo institucional e ainda mais distante da elaboração de pautas de articulação entre o direito estatal e os direitos próprios, como ocorre na Bolívia e na Colômbia” (SEGATO, 2021SEGATO, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021., p. 168). Para a autora, os próprios povos indígenas “não demandam do Estado a devolução do exercício da justiça com o mesmo empenho com que demandam a identificação de seus territórios”, e, por outro lado, “nem têm nítido o que significaria essa restituição no processo de reconstrução de suas autonomias” (SEGATO, 2021, p. 168). De acordo com a antropóloga:

(...) esses territórios não se comportam como verdadeiras jurisdições; a demarcação de terras não foi acompanhada por um processo equivalente de reflexão e reconstrução das instâncias de resolução de conflitos, graus crescentes de autonomia institucional no exercício da justiça própria e recuperação paulatina da prática processual (SEGATO, 2021SEGATO, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021., p. 269).

Portanto, no caso brasileiro é questionável a existência de uma jurisdição penal indígena, tal como ocorre na Bolívia e na Colômbia4 4 Sobre o tema, conferir o artigo “Reflexiones en torno de la jurisdicción penal indígena en Colombia”, da antropóloga Esther Sánchez Botero (2005). . Contudo, as Convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, a Constituição Federal e a legislação apontam para a existência do que André da Rocha Ferreira nominou autonomia penal indígena, “pois as comunidades indígenas não têm autoridade jurisdicional, mas apenas um poder de composição própria, que pode ser revertido pela jurisdição do Estado” (FERREIRA, 2017FERREIRA, André Rocha. A Concessão de Autonomia Penal às Comunidades Indígenas: aplicabilidade constitucional do artigo 57 do Estatuto do Índio. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Porto Alegre, 2017., p. 82). Ou seja, as comunidades podem resolver seus conflitos segundo seus métodos punitivos próprios, mas esta resposta é passível de revisão pela jurisdição estatal5 5 Este debate refere-se ao tema do pluralismo jurídico. Nesse sentido, A. C. Wolkmer afirma que o pluralismo jurídico deve ser compreendido como “a multiplicidade de manifestações e práticas normativas existentes num mesmo espaço sociopolítico, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais (2015, p. 187). .

A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, internalizada no Brasil em 2007, estabelece, de modo genérico, que “os povos indígenas têm o direito de conservar e reforçar suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais” (ONU, 2008). Mais específica e detalhada é a Convenção n.º 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2002. O art. 9º da referida convenção estatui que os métodos tradicionais adotados pelos povos originários para lidar com delitos devem ser respeitados e que os costumes destes povos em matérias penais devem ser levados em consideração pelas autoridades estatais. Vejamos:

1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros. 2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto6 6 Para Rita Segato, “a ratificação da Convenção 169 da OIT, em 2002, foi um passo adiante no caminho do reconhecimento das justiças próprias, embora a norma consuetudinária ali, apesar de adquirir o status de lei devido a sua inclusão na legislação a partir do processo de constitucionalização do instrumento jurídico internacional, siga limitada pela obrigatoriedade de respeitar as normas do ‘ordenamento jurídico internacional’ e dos ‘direitos humanos internacionalmente reconhecidos’” (2021, p. 168). .

A Constituição Federal do Brasil de 1988 significou um marco quanto aos direitos dos povos originários, e reconheceu, no art. 231, sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, de modo que das expressões utilizadas se extrai também a garantia de autonomia quanto à organização político-jurídica e, consequentemente, quanto à adoção de métodos punitivos próprios (BRASIL, 1988).

Do ponto de vista da legislação infraconstitucional, a autonomia penal indígena é estabelecida pelo art. 57, da Lei n.º 6.001/73 (Estatuto do Índio), que dispõe que “será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte” (BRASIL, 1973). De modo que ao passo que a legislação brasileira autoriza as práticas punitivas dos povos originários, o faz na forma da “tolerância” e resguarda o poder estatal de intervenção em situações nas quais a jurisdição oficial entenda que as punições adotadas possuam caráter cruel ou infamante, além de proibir a pena de morte.

Por fim, recentemente o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução n.º 287/2019, que “estabelece procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário” (BRASIL, 2019). No art. 7º desta Resolução, consta que “a responsabilização de pessoas indígenas deverá considerar os mecanismos próprios da comunidade indígena a que pertença a pessoa acusada, mediante consulta prévia”, bem como que a “autoridade judicial poderá adotar ou homologar práticas de resolução de conflitos e de responsabilização em conformidade com costumes e normas da própria comunidade indígena, nos termos do art. 57 da Lei nº 6.001/73” (BRASIL, 2019).

Em síntese, nos termos da legislação brasileira, sobretudo do art. 57 do Estatuto do Índio e do art. 7º da Resolução 287/2019, do Conselho Nacional de Justiça, os povos originários possuem uma autonomia limitada para utilizar seus métodos punitivos e de resolução de conflitos, que não podem ser cruéis, infamantes ou letais, nos termos da concepção do direito estatal. Além disso, na hipótese de o caso chegar ao conhecimento das agências do sistema de justiça penal, a autoridade judicial poderá adotar ou homologar as práticas punitivas previamente adotadas pela comunidade.

Este é o quadro normativo em que se insere o objeto do presente artigo7 7 Para uma completa discussão sobre este ponto, conferirr a obra Lei do índio ou lei do branco - quem decide? (OLIVEIRA; VOLKMER DE CASTILHO, 2019). Quanto à criminalização de indígenas pelo sistema penal estatal, conferir a dissertação de mestrado de Tedney Moreira da Silva, defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, intitulada No banco dos réus, um índio: criminalização de indígenas no Brasil. A partir da teoria crítica do controle social ou criminologia da libertação, o autor realizou pesquisa na jurisprudência dos tribunais, em casos nos quais o réu ou a ré é pessoa indígena (2015). .

4. A punição entre os Kaingang - aportes históricos e etnológicos

Existe uma gama de estudos etnográficos acerca dos variados aspectos - políticos, sociais, jurídicos e culturais - do povo indígena Kaingang. Esta literatura é de fundamental importância, na medida em que contribui para situar as práticas punitivas atualmente adotadas pela comunidade Kaingang, para que seja possível traçar as linhas de transformação dos métodos de resolução de conflitos que a comunidade desenvolveu no tempo de sua história.

Um dos trabalhos mais importantes sobre o tema, que congrega a literatura histórica e etnológica sobre o castigo entre o povo Kaingang, é o laudo antropológico produzido por Ligia Simonian, intitulado Castigos Cruéis na Área Indígena (AI) Votouro, Rio Grande do Sul: resistências culturais ou novas práticas? (1994).8 8 Segundo a autora, o laudo foi solicitado pelo Ministério Público Federal: “denúncias de práticas recentes de castigos cruéis nessa área chegaram à PGR - Procuradoria Geral da República (1992), o que têm provocado questões fundamentais no âmbito do direito penal, direitos humanos, e quanto à relação direito indígena/direito nacional. Neste caso, o procurador Wagner Gonçalves (PGR 1992) inquiriu sobre os ‘costumes e tradições dos Kaingang, e sobre ‘... a data (ou desde quando) passaram aqueles silvícolas a praticar castigos cruéis, como o encarceramento’. Este trabalho é uma tentativa de equacionar tais questões” (1994, p. 05). Conforme Simonian, “descrições específicas sobre a prática de (...) crueldades entre os Kaingang de séculos anteriores podem ser facilmente encontradas na literatura etnológica” (SIMONIAN, 1994SIMONIAN, Ligia T. L. Castigo cruéis na AI (Área Indígena) Votouro, Rio Grande do Sul: Resistências Culturais ou Novas Práticas? Laudo Antropológico. Belém: PGR-N. 0478/82-41, 1994., p. 27).

Vale aqui uma reflexão prévia. A “crueldade” da punição é uma categoria que está presente tanto na legislação, como balizador da legitimidade da prática punitiva indígena, quanto na literatura histórica e etnológica sobre as punições adotadas pelo povo Kaingang. Nesse sentido, sempre que tratamos da “crueldade” dos castigos indígenas, é preciso realizar o exercício relativizador e lembrar a crueldade, do passado e do presente, das punições das “sociedades civilizadas”. Vai nesse sentido a clássica passagem de Montaigne:

(...) não me parece excessivo julgar bárbaro tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos (s/d, s/p) 9 9 Cf. aqui: https://www.epedagogia.com.br/materialbibliotecaonine/3525Dos-Canibais.pdf. .

A crueldade, portanto, é uma categoria contextual, que resulta de “sensibilidades jurídicas” (GEERTZ, 2001GEERTZ, Clifford. O saber local. Novos ensaios de antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 2001., p.59) variáveis histórica e antropologicamente10 10 Conforme Pierre Clastres, “nas sociedades primitivas, a tortura é a essência do ritual de iniciação” (CLASTRES, 2012, p. 195). Ana Lúcia Sabadell, em estudo sobre a tortura no processo penal da Península Ibérica durante o Antigo Regime, leva a cabo problematização semelhante, argumentando que o significado desta prática só pode ser compreendido a partir de contextualização histórica, que, dentre outras coisas, “permite entender que a dor física não possuía o significado que hoje se lhe atribuiu” (SABADELL, 2006, p. 42). . Aqui não é o lugar para levar a cabo esta tarefa, mas seria interessante realizar uma genealogia do próprio conceito, de modo a verificar o sentido que adquire no contexto da crítica iluminista ao poder punitivo do Antigo Regime, na fundação do controle penal moderno, como o contrário da pena “humanizada”. Nessa passada, é possível argumentar que o conceito de pena da modernidade penal - considerada juridicamente válida se não for cruel - exerce nítido papel ideológico, em sentido tradicional, na medida em que encobre a concretude das punições estatais das sociedades capitalistas, que, sabemos, são cruéis. Como é próprio da lógica do direito, dotado do poder de nomeação, a crueldade da pena carcerária (diante da superlotação, da insalubridade e das diversas outras violências) acaba por ganhar outro nome, a de “estado de coisas inconstitucional”. Quanto ao nosso objeto, é notório que a categoria “crueldade” é o recurso simbólico, a porta de entrada, que permite ao direito estatal intervir na autonomia penal indígena. Dito isso, podemos prosseguir.

As práticas de violência narradas pela literatura etnológica podem ter lugar no contexto das guerras entre grupos chefiados por diferentes caciques ou no do extermínio colonial, ou seja, de práticas adotadas contra os povos originários no caminho da expansão das fronteiras agrícolas e econômicas e das respectivas “pacificações” e esbulho dos territórios. Para Simonian, “a imposição de castigos cruéis agravou-se a partir da conquista, quando os próprios indígenas não apenas incorporaram ou modificaram castigos cruéis de origem europeia, mas também se transformaram em vítimas de castigos similares impostos por não-índios” (SIMONIAN, 1994SIMONIAN, Ligia T. L. Castigo cruéis na AI (Área Indígena) Votouro, Rio Grande do Sul: Resistências Culturais ou Novas Práticas? Laudo Antropológico. Belém: PGR-N. 0478/82-41, 1994., p. 03).

Quanto ao primeiro ponto, deve-se levar em conta que o “faccionalismo, como elemento igualmente central no contexto das relações de poder Kaingang, têm tido importância fundamental no seu sistema punitivo” (SIMONIAN, 1994SIMONIAN, Ligia T. L. Castigo cruéis na AI (Área Indígena) Votouro, Rio Grande do Sul: Resistências Culturais ou Novas Práticas? Laudo Antropológico. Belém: PGR-N. 0478/82-41, 1994., p. 30). Nesse sentido, as disputas intergrupais contribuíram para a “violência generalizada, ou seja, por lutas fratricidas/vendeta entre os diversos grupos Kaingang ou contra outras tribos” (SIMONIAN, 1994, p. 30). Estas lutas constituíram verdadeiras guerras de extermínio, cenários de inúmeros ataques punitivos. Segundo Teschauer, os “coroados”

não emprehendiam guerra para conquistar províncias ou aldeas, mas por outros motivos; para fazer captivos ou escravos, para vingar uma affronta ou para roubar uma ou mais mulheres. É caso raro que uma tribu viva em paz e amizade com outras, bastando cousa insignificante para atiçar contendas entre ellas. Em tempos passados declaravam guerra com o desejo de destruir e era esta uma das razões por- que foram dizimados e reduzidos em breve neste Estado (TESCHAUER, 1929TESCHAUER, Carlos. Porandúba Riograndense. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1929., p. 355).

No que toca à violência colonial, Simonian pontua o seguinte:

Práticas punitivas de caráter cruel têm sido impostas por não-índios e por seus descendentes aos Kaingang, tanto no decorrer do processo de conquista como a seguir. Estes “castigos cruéis” podem emanar tanto de desejos relacionados à extinção dos indígenas, e à consequente liberação de seus territórios e recursos naturais, como decorrem de um projeto que busque a sua integração, mas com vistas à exploração da força de trabalho e à subordinação política. (SIMONIAN, 1994SIMONIAN, Ligia T. L. Castigo cruéis na AI (Área Indígena) Votouro, Rio Grande do Sul: Resistências Culturais ou Novas Práticas? Laudo Antropológico. Belém: PGR-N. 0478/82-41, 1994., p. 43-44)

Segundo a antropóloga, na medida em que ocorria a conquista e a pacificação, os massacres foram sendo substituídos por castigos individuais, operacionalizados por chefes não-índios, ou seja, agentes do SPI, agora com o objetivo de exploração da mão-de-obra: “tais agentes governamentais também têm se envolveram (sic) na imposição do trabalho escravo nas “roças do posto”, sistema conhecido como “cativeiro” e, de penas complementares que se seguiam” (SIMONIAN, 1994SIMONIAN, Ligia T. L. Castigo cruéis na AI (Área Indígena) Votouro, Rio Grande do Sul: Resistências Culturais ou Novas Práticas? Laudo Antropológico. Belém: PGR-N. 0478/82-41, 1994., p. 48-49).

Ainda conforme Simonian, o sistema punitivo Kaingang foi transformado pela “invasão-ocupação de parte do território dos Kaingang por jesuítas espanhóis no século XVII” (1994, p. 29) e pela relação das chefias indígenas com os serviços (militarizados) de proteção aos índios. A autora mostra que caciques como Condá, Doble e Fong receberam patentes militares em razão de distintas colaborações com as agências estatais. Condá “integrou a ‘companhia de pedestres de Nonoai em meados do século passado, tendo recebido a patente de capitão, fardamento e soldo respectivo” (SIMONIAN, 1994SIMONIAN, Ligia T. L. Castigo cruéis na AI (Área Indígena) Votouro, Rio Grande do Sul: Resistências Culturais ou Novas Práticas? Laudo Antropológico. Belém: PGR-N. 0478/82-41, 1994., p. 30). Doble e Fong “também receberam patentes militares, o primeiro por ter contribuído na conquista de ‘índios selvagens’ (Schaden, 1963) e o segundo por ter fornecido índios soldados para os corpos da ‘guarda imperial’” (SIMONIAN, 1994, p. 30). Para Simonian, a “manipulação destas patentes militares pelos indígenas e pelos agentes, favoreceu a persistência de processos intimidativos e de aspectos de seu sistema jurídico e penal, notadamente dos seus castigos cruéis” (1994, p. 30).

Neste estudo, nosso interesse primordial é pelas práticas punitivas internas, ou seja, aquelas que ocorrem no interior das comunidades indígenas. É claro que, da mesma forma que faríamos se estivéssemos tratando do sistema penal estatal, é preciso levar em conta que as penas podem tanto ser legítimas, isto é, “sancionadas pela comunidade”, quanto ilegítimas, resultantes do “abuso de poder por parte das autoridades indígenas” (SIMONIAN, 1994SIMONIAN, Ligia T. L. Castigo cruéis na AI (Área Indígena) Votouro, Rio Grande do Sul: Resistências Culturais ou Novas Práticas? Laudo Antropológico. Belém: PGR-N. 0478/82-41, 1994., p. 35). Dentre as punições “têm sido documentadas as surras com cassetetes, pena de morte, amarramento em “troncos”, exílio, prisão, tortura, imposição de fome e de nudez, etc…” (SIMONIAN, 1994, p. 40).

Na literatura etnológica por vezes é ressaltada a imposição de castigos cruéis, o que seria resultado das relações internas de poder, de caráter autoritário, e do poder quase absoluto do cacique. Por outro lado, Telêmaco Borba, em texto de 1908BORBA, Telêmaco. Actualidade Indígena. Coritiba: Typographia e Lytographia a vapor Impressora Paraneanse, 1908., refere que a autoridade dos caciques é “quasi nulla” e que é só “por meios persuasivos, brandos e dádivas, que podem conservar algum ascendente sobre seus companheiro, isto é, conservá-los em seus toldos” (BORBA, 1908BORBA, Telêmaco. Actualidade Indígena. Coritiba: Typographia e Lytographia a vapor Impressora Paraneanse, 1908., p. 07). Quando assim não agem, “ficam isolados de seus subditos, e até seus próprios filhos e parentes os abandonam, à procura de outro chefe mais liberal e menos despótico” (BORBA, 1908, p. 07).

Destaca-se, então, o “lado benevolente das chefias Kaingang, (...) principalmente quando os caciques privilegiam os conselhos e as admoestações aos faltosos” (SIMONIAN, 1994SIMONIAN, Ligia T. L. Castigo cruéis na AI (Área Indígena) Votouro, Rio Grande do Sul: Resistências Culturais ou Novas Práticas? Laudo Antropológico. Belém: PGR-N. 0478/82-41, 1994., p. 28/29). De uma forma ou de outra, “os ritos de julgamento das faltas e crimes têm sido sempre sumários, e devido a sentimentos de temor e respeito, os castigos são, no mais das vezes, aceitos sem questionamentos” (SIMONIAN, 1994, p. 28-29).

Loureiro Fernandes, em resenha histórica sobre os “caingangues de Palmas”, refere que “antigamente a morte de um índio clamava a vingança de sangue, e casos há registrados nos quais na impossibilidade de se vingarem do assassino, vingavam-se em pessoas de sua família” (FERNANDES, 1941FERNANDES, Loureiro. Os Caingangues de Palmas. In: Arquivos do Museu Paraense, Vol. I. Secretária do Interior e Justiça do Estado do Paraná. Curitiba, 1941., p. 196). Acrescenta que neste tipo de situação os chefes de outros grupos são avisados, “para que todos prestem auxílio na eliminação do homicida, feita outrora com a clava bastão” (FERNANDES, 1941, p. 195).

Antônio Serrano, a partir da leitura de manuscrito datado de 1866 de autoria do tenente coronel Alfonso Mabilde, indica que a desobediência às ordens do cacique poderia resultar em espancamento ou em morte:

El cacique Braga informa al autor que los casos de desobediencia son raros. Le cuenta de un coroado viejo que habiéndosele impuesto por desobediencia alejarse de la tribu y morar fuera de ella, el viejo se negó e insistió en no cumplir la orden. Por ese doble motivo el cacique ordenó que lo mataran con varapao [pica]. Esto lo contaba el cacique para demostrar que los coroados preferían la muerte a hacer trabajos propios de las mujeres. Los casos de desobediencia de mujeres son más raros y son las propias mujeres las encargadas de aplicar el castigo, que era una paliza de golpes, con lo cual bastaba (SERRANO, 1939, p. 28).

Acrescenta, ainda, que o adultério era punido com a pena de morte, tanto da mulher quanto do homem, e que “antes de ser muertos eran obligados a confesar su delito y reconocer que la pena estaba bien aplicada” (SERRANO, 1939, p. 28)

Segundo Simonian, a pena de morte já integrou o sistema punitivo Kaingang:

(...) a pena de morte era imposta a quem se recusasse a deixar a tribo quando ordenado a assim proceder. Segundo Braga relatou a Mabilde (Serrano id), um indígena foi por ele mandado matar por ter preferido a morte (sic) ao exílio. A gente de Braga também aplicava esta mesma pena tanto à mulher como ao homem adúltero (id.). A pena de morte era então concretizada com bordunadas na cabeça do sentenciado. Esta mesma pena era, muitas vezes, imposta pelos Kaingang aos prisioneiros (Serrano, 1957 in Becker, 1975: 297). Modernamente a pena de morte deixou de ser sancionada e aplicada pela sociedade Kaingang. Entretanto e, ainda que eventualmente, a pena de morte continua sendo imposta (Pénry 1981, c.p.), mas como forma de vingança pessoal/familiar a indígenas que tenham assassinado parentes. Além de reavivar a lex talionis, no contexto Kaingang, a pena de morte assume um caráter particular. (SIMONIAN, 1994SIMONIAN, Ligia T. L. Castigo cruéis na AI (Área Indígena) Votouro, Rio Grande do Sul: Resistências Culturais ou Novas Práticas? Laudo Antropológico. Belém: PGR-N. 0478/82-41, 1994., p. 35-36)

Outra punição relatada na literatura histórica e etnológica é a de exílio ou transferência: no passado esta punição foi aplicada em casos de dissidência política, crime de morte e, mesmo, de outras faltas menos graves (SIMONIAN, 1994SIMONIAN, Ligia T. L. Castigo cruéis na AI (Área Indígena) Votouro, Rio Grande do Sul: Resistências Culturais ou Novas Práticas? Laudo Antropológico. Belém: PGR-N. 0478/82-41, 1994., p. 36). A transferência consiste na obrigatoriedade do indígena sair de sua comunidade e ir à outra, na qual deve ficar sob as ordens da autoridade política. Conforme Simonian, uma “implicação cruel dessa mesma pena ocorre quando a mesma é extensiva à familiares inocentes, que ocorre com o co-banimento perpétuo se o sentenciado for chefe de família”. Ademais, pode-se se somar à transferência o “confisco de propriedades móveis e semoventes, e das ocupações - sítios, quintal, roças” (SIMONIAN, 1994, p. 38-39).

5. A punição no tronco e o nascimento da cadeia

Consolidados os aldeamentos e estabelecidas de modo contínuo e ininterrupto a relação entre os Kaingang e os órgãos indigenistas, a prática punitiva que parece ter sido adotada foi a do tronco, misto de pena corporal e privativa de liberdade.

Loureiro Fernandes, quando escreveu sobre a organização jurídica dos Kaingangs de Palmas, na década de 40 do século passado, consignou que a única pena que estava a ser aplicada aos faltosos era a de privação de liberdade individual, mediante imobilização do indivíduo num “tosco dispositivo a que denominam - tronco” (1941, p. 195):

Este instrumento de castigo é constituído por dois finos troncos de árvore fixos verticalmente sobre o solo a pequena distância e apresentando na sua extremidade inferior um entalhe destinado a receber os tornozelos do prisioneiro. Pela adaptação lateral de outros dois troncos, ficam os membros inferiores solidamente presos nesse entalhe. Os troncos são amarrados na sua extremidade superior, de maneira que o indivíduo não tem possibilidade de escapar e obrigado a permanecer deitado ou sentado sobre o solo (...) Sendo grave o crime, fica exposto ao sol, à chuva e ao relento. A alimentação do prisioneiro compete à sua própria família e quando não a tem, o capitão se encarrega de levar-lhe o alimento (1941, p. 195).

Fernandes narra que o capitão do Toldo lhe explicou que “o castigo está conforme o compromisso do crime” e que o tempo de privação de liberdade varia, podendo durar minutos, horas, dias ou até um mês (FERNANDES, 1941FERNANDES, Loureiro. Os Caingangues de Palmas. In: Arquivos do Museu Paraense, Vol. I. Secretária do Interior e Justiça do Estado do Paraná. Curitiba, 1941., p. 195). Para Loureiro Fernandes, o instrumento de castigo parece uma “réplica grosseira do Tronco do batente de porta do tempo da escravidão”, de modo que é possível que esta seja sua origem, já que os fazendeiros da região possuíam considerável escravatura (FERNANDES, 1941, p. 195).11 11 “Mesmo sem informações precisas, é possível sugerir que os Kaingang podem ter se inspirado na prática de castigos cruéis dos donos de escravos que invadiram e se instalaram em seus territórios, os quais, para açoitar, amarravam seus escravos” (SIMONIAN, 1994, p. 40). Acrescenta Fernandes que na língua Kaingang não existe palavra própria para significar o tronco (1941, p. 195).

Conforme Simonian, as evidências disponíveis indicam que o tronco passou a ser utilizado como pena em situações de adultério, brigas, embriaguez, etc., no início do século passado e constitui “uma das punições mais temidas pelos Kaingang do Rio Grande do Sul” (SIMONIAN, 1994SIMONIAN, Ligia T. L. Castigo cruéis na AI (Área Indígena) Votouro, Rio Grande do Sul: Resistências Culturais ou Novas Práticas? Laudo Antropológico. Belém: PGR-N. 0478/82-41, 1994., p. 39). Alguns relatos repetem a narrativa de Loureiro Fernandes sobre os dois troncos de árvore, mas outros referem que eram “quatro estacas cravadas diante da casa do cacique, como forma de advertência” (SIMONIAN, 1994, p. 40). Gonçalves (1910, apud SIMONIAN, 1994, p. 40), nomeia a punição que observou entre os Kaingang de Ligeiro de “suplício das estacas”.12 12 Esta prática punitiva e de tortura é também relatada pela historiografia da guerra civil federalista, ocorrida majoritariamente no Rio Grande do Sul, de 1893 a 1895. As quatro estacas cravadas no chão, na qual o sujeito era amarrado, eram chamadas de “chiqueirinho” (TORRES, 2005, p. 134).

Evidentemente a empreitada de compreender “as práticas punitivas tradicionais” do povo Kaingang apresenta obstáculos quase intransponíveis, na medida em que as informações sobre o tema já resultam do encontro colonial. De qualquer forma, é bastante provável que o tronco tenha sido adotado por influência das políticas indigenistas. Tommasino argumenta no sentido de que, por um lado, o tronco foi incorporado como tradição do grupo, “apontando para um processo de desmemorialização da ancestralidade” (TOMMASINO, 1995TOMMASINO, Kimiye. A história dos Kaingáng da Bacia do Tibagi: uma sociedade Jê Meridional em movimento. Tese (Doutorado em Antropologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 1995., p. 179) e, por outro, “a proliferação do tronco em todas as áreas indígenas, desde o tempo da escravidão, internalizada e adaptada através dos capitães e sua ‘polícia’, parece ter sido um caso de incorporação do tronco no sistema indígena” (TOMMASINO, 1995, p. 179).

Na sequência deste texto sustentaremos que no contexto da luta pela efetivação dos direitos dos povos originários previstos na Constituição Federal foi possível observar espécie de “retomada” dos aparelhos repressivos por parte das comunidades indígenas e de suas autoridades políticas. Antes disso, contudo - e é claro que não estamos diante de um processo linear - o que se observa é que as punições eram na maior parte dos casos instrumentalizadas pelos agentes estatais, os chefes dos postos, com o objetivo de disciplinar os indígenas, principalmente aqueles que não aceitaram de modo pacífico a imposição do modelo de exploração dos recursos naturais de seus territórios.

Na memória do coautor indígena e pelos relatos que todos ouvimos ao visitar a comunidade, o tronco é sempre lembrado no contexto do regime de exploração da mão-de-obra que ficou conhecido como “panelão”, a partir do qual o Estado brasileiro levava a cabo a extração de madeira dos territórios onde vivem os Kaingang13 13 Cenas do “regime do panelão” podem ser vistas no documentário intitulado Índios, memória de uma CPI, de Hermano Penna. Conferir aqui: https://www.youtube.com/watch?v=0WmLCH3rbf8. .

Um dos modos de produção implantados pela política indigenista no período foi um regime de trabalho coletivo nas roças do Posto Indígena que, entre os Kaingang, ficou conhecido como “panelão”. Este constituía em uma (sic) forma de trabalho compulsório e penoso; os resultados destas roças eram geridos e destinados à manutenção dos postos e nem sempre eram re-aplicados pelo SPI na mesma área em que o produzira. Por esse trabalho, os Kaingang não recebiam salário, mas apenas alimentação limitada e de qualidade inferior, servida em uma grande panela, no próprio local de trabalho (RAMOS, 2008RAMOS, Luciana Maria de Moura. Vénh Jykré e Ke Ha Han Ke: Permanência e Mudança do Sistema Jurídico dos Kaingang no Tibagi (Tese de doutorado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília (UnB), 2008., p. 45)

O tronco, nesse contexto, fazia parte de um regime punitivo implantado pelo SPI para disciplinar a mão-de-obra. Nesse período, os indígenas estavam subordinados aos chefes de postos e para “manter esse sistema de controle de modo eficaz foi preciso ao SPI/FUNAI (sic) todo um aparato oficial de pressão e de limitação dos movimentos indígenas” (RAMOS, 2008RAMOS, Luciana Maria de Moura. Vénh Jykré e Ke Ha Han Ke: Permanência e Mudança do Sistema Jurídico dos Kaingang no Tibagi (Tese de doutorado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília (UnB), 2008., p. 46). À pena corporal somavam-se outras formas repressivas, como as transferências compulsórias e o controle da circulação14 14 “Visando controlar o movimento de todos indígenas foram instituídas pelo SPI as Guias de Trânsito, substituídas depois pela FUNAI pelas Portarias. Nestes documentos, que eram emitidos pelo Chefe de Posto ou cacique, ou por ambos - o que dava no mesmo, pois no período eram os chefes do posto quem indicavam os caciques -, os indígenas tinham que declarar para onde iam, com qual finalidade e por quanto tempo” (RAMOS, 2008, p. 46). , com o objetivo de oprimir aqueles que não aceitavam ou que questionavam o modelo administrativo e econômico da política estatal indigenista: “os indígenas que se opunham ao esquema (...) eram considerados ‘rebeldes’ ou ‘vadios’, e transferidos para outros postos, quando não eram presos e espancados por ordem do chefe do posto” (RAMOS, 2008, p. 46).

Segundo Luciana Ramos, atualmente o tronco é visto como coisa do passado, mas “até o final dos anos 70 (...) podiam ser observados troncos em todas as TIs na Bacia do Tibagi” (2008, p. 189). O tronco, portanto, foi abolido, substituído pela cadeia (além das demais responsabilizações atualmente adotadas, como o aconselhamento, a prestação de serviços e a transferência).

Tratando do caso da TI de Palmas/PR, Cid Fernandes refere que por ordem do Delegado da cidade onde se situa a aldeia o tronco foi extinto e substituído pela prisão: “no lugar do tronco, surgiu a prisão, que ainda hoje é utilizada pelos Kaingang de Palmas como forma de punição social” (1998, p. 99). Simonian entende que “a punição com encarceramento é relativamente recente no contexto do sistema penal Kaingang” e que a construção e institucionalização de prisões começam a ocorrer a partir da presença do Serviço de Proteção aos Índios (1994, p. 41).

A Comissão Nacional da Verdade chegou a estas conclusões, quanto ao ponto:

Durante o período do SPI estudado pela CNV, ou seja, de 1946 a 1967, o aprisionamento cumpriu o papel de amansar o índio rebelde e controlar a resistência de seu povo frente aos conflitos gerados pela política de desenvolvimento da sociedade aplicada pelos órgãos indigenistas criados pelo Estado, que se sustentou em um sistema ilegal de detenção que, ao longo de décadas, foi se estruturando e operou de forma coordenada, porém sem ser oficial, pela participação de inspetores de índio, chefes de posto, chefes de inspetoria, funcionários da direção do SPI, se relacionando às vezes com os delegados de polícia de municípios próximos às aldeias” (2014, p. 243).

Também no Relatório da Comissão Nacional da Verdade, encontramos informações sobre o aprisionamento levado a cabo na Terra Indígena de Cacique Doble nos anos sessenta: “Em Cacique Doble, por exemplo, havia, além de uma cela, uma câmara escura, onde o índio era colocado como parte da punição.” (BRASIL, 2014, p. 240).

Além da introdução das prisões nas aldeias, os órgãos indigenistas também criaram prisões maiores, tais como as de Icatu, em território Kaingang no Estado de São Paulo, e em território Krenak, no município de Resplendor, em Minas Gerais. Para esses cárceres eram enviados índios “desobedientes”, de todo o país. Vale salientar que o governo militar criou, em 1969, a Guarda Rural Indígena, uma milícia que tinha como objetivo declarado “proteger” as terras e os povos indígenas (CORREA, 2000CORRÊA, José Gabriel Silveira. A Ordem a se preservar: A gestão dos índios e o Reformatório Agrícola Indígena Krenak. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2000., p. 139). Voltemos ao relatório da Comissão Nacional da Verdade:

O Estado brasileiro criou, no final dos anos 1960, uma cadeia oficial em território Krenak, exclusiva para a detenção de indígenas, sobre a qual colhemos denúncias de casos de morte por tortura no tronco, trabalho forçado e desaparecimento de prisioneiros. É recomendável a continuidade da investigação - tanto sobre as cadeias para índios, como sobre a Guarda Rural Indígena -, que não se esgota com esse trabalho (BRASIL, 2014, p. 239).

Deste modo, podemos, provisoriamente, conceber que a cadeia foi introduzida nas comunidades Kaingangs no contexto das políticas indigenistas e das relações travadas entre o SPI e, posteriormente, a FUNAI, com os povos originários, especificamente os Kaingang. Inicialmente, elas foram utilizadas pelo SPI contra indígenas que resistiam às políticas estatais15 15 Do ponto de vista teórico, a pesquisa sobre o “nascimento da cadeia indígena” tem o potencial de levantar pontos de reflexão ao clássico tema da criminologia crítica acerca do “nascimento da prisão”, pensado por autores como Rusche e Kircheimer (1999), Melossi e Pavarini (2006) e Foucault (2005), com nuances e especificidades de cada autor, a partir de uma análise que leva em conta as relações entre a punição e a estrutura social. Aqui, notamos que a prisão nas aldeias Kaingang surgiu por via diferente da tradicionalmente abordada - que leva em conta a relação entre o surgimento da prisão e a transição ao capitalismo - elemento que apresenta possibilidades significativas no que toca à reflexão teórica sobre o cárcere. Neste caso, a cadeia surge por influência dos órgãos estatais, mormente indigenistas. Por outro lado, como bem apontou a crítica editorial a este artigo, levando em conta que a cadeia é introduzida nas terras do povo Kaingang com o objetivo de disciplinar e controlar a mão-de-obra indígena, a moldura analítica da economia política da pena pode nos ajudar significativamente a aprofundar o tema. . Segundo Rubens Valente, por ocasião da investigação levada a cabo por Jáder Figueiredo, descobriu-se que “quase todos os postos (...) ou tinham ou já haviam tido celas para a prisão de índios” (2017, p. 41) 16 16 No Relatório da Comissão Nacional da Verdade sobre violação de direitos dos povos indígenas, consta a afirmação do Procurador Jader Figueiredo Correa - que produziu o famoso Relatório Figueiredo, acerca das violações cometidas por agentes do Serviço de Proteção aos Índios contra os povos indígenas - de que “sem ironia pode-se afirmar que os castigos de trabalho forçado, de prisão em cárcere privado representam a humanização das relações índio-SPI” (2014, p. 243). O Relatório Figueiredo foi divulgado em 1968, pelo Ministro do Interior, Albuquerque Lima. Em razão de suas repercussões, o SPI acabou extinto, dando lugar à FUNAI. Para mais informações, conferir a dissertação de mestrado de Luana Menezes Lira, “As violações de direitos humanos no Relatório Figueiredo: a marcha para o oeste e a conquista dos Kaingang, defendida junto ao Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania na Universidade de Brasília (2017). .

Conforme Tommasino:

Atualmente, nos postos indígenas do sul administrados pela FUNAI, os índios faltosos ficam presos na cadeia. No início de nossa pesquisa, as cadeias eram salas improvisadas da escola, salão de festas ou outro recinto qualquer. Recentemente, nos três postos onde vivem os Kaingang, construíram-se instalações próprias para esse objetivo (1995, p. 178).

Luciana Ramos informa que existem cadeias em todas as TIs no Tibagi, geralmente “localizadas próximas aos postos de saúde, da escola e da administração local da FUNAI” (2008, p. 188). O coautor indígena deste artigo guarda na memória que na terra indígena de Cacique Doble/RS havia uma prisão mais simples, de madeira. Esta instituição, certa ocasião, foi queimada, em protesto contra a autoridade política. Depois foi construída a nova cadeia, agora de alvenaria, com duas celas, uma para homens e outra para mulheres. Fica localizada justamente em frente à praça da comunidade.

6. Contexto sociopolítico, econômico e demográfico da Comunidade Indígena Kaingang

Atualmente, a comunidade Kaingang de Cacique Doble/RS, em que nasceu e cresceu o coautor indígena deste estudo, possui aproximadamente novecentos moradores, totalizando cerca de duzentas famílias, que vivem em um território, devidamente demarcado, de quatro mil e quinhentos hectares, sendo mil e seiscentos destes hectares destinados à agricultura. A terra é dividida entre as famílias e as atividades econômicas são a agricultura (feijão, milho, mandioca e soja) e a pecuária, em geral para a subsistência, com eventual comércio dos produtos que excedem as necessidades da comunidade. Ademais, algumas famílias se dedicam à produção e à venda de artesanato, sobretudo de objetos tais como cestas de cipó e taquara, flechas para enfeites, vasos de taquara para flores, peneiras de taquara, balaios pequenos de cabo de taquara e cipó, entre outros. Os homens, principalmente, trabalham por empreitada na agricultura, contratados geralmente por produtores de uva e maçã da serra gaúcha. Na comunidade indígena, diversas famílias vivem em situação de dificuldade e, por tal motivo, recebem benefícios sociais.

A terra indígena fica em uma cidade do norte do Rio Grande do Sul, no entroncamento dos Campos de Cima da Serra, do Alto Uruguai e do Planalto Médio (regiões fisiográficas), próxima dos limites com os estados de Santa Catarina e do Paraná, em território tradicionalmente ocupado pelo povo Kaingang. O município, também colonizado por imigrantes italianos vindos da serra do Rio Grande do Sul, tem em torno de cinco mil habitantes. A economia da região é amplamente dominada pelo cultivo da soja.

A aldeia é constituída por casas simples, algumas de alvenaria e outras de madeira. Trata-se de território distante seis quilômetros de cidade. É dividido em dois setores: o primeiro mais central, com casas umas próximas das outras, além da praça, da cadeia, do posto de saúde, da escola, de duas igrejas evangélicas e de um escritório da FUNAI. O outro é uma espécie de “zona rural”, onde se cultiva soja, com casas mais espalhadas, outra igreja evangélica e outra escola. A comunidade conta com equipamentos agrícolas, como tratores, colheitadeiras, etc.

A estrutura política tem o cacique como chefe principal, que é auxiliado pelo vice-cacique, pelo conselho dos anciãos (composto pelos homens idosos da comunidade), pelo capitão e pelos ajudantes da liderança17 17 A participação das mulheres no exercício do poder político na comunidade é tema a ser investigado. . Este grupo é responsável tanto pela elaboração das leis quanto por zelar pela sua aplicação. As leis internas possuem tanto um caráter tradicional, de afirmação e deliberação permanente sobre os usos e costumes, quanto prático, relacionados à economia e o cotidiano da aldeia. Elas não são escritas, embora existam exemplos de “códigos penais” Kaingang, escritos, procedimento utilizado para resguardar as lideranças de eventuais responsabilizações punitivas, como veremos. Além disso, recentemente a própria aplicação de punições tem sido registrada em atas, fato que também decorre do cuidado com as relações com a justiça criminal estatal.

O cacique é o administrador econômico e político da comunidade, ficando em seu encargo a tomada de decisões sobre os mais variados aspectos, que vão desde a divisão das roças e os ajustes de casamentos até a decisão final sobre os conflitos. Além disso, o chefe político é o responsável pelo relacionamento com as instituições externas, sobretudo estatais, como a prefeitura, a câmara de vereadores, o Ministério Público e a polícia (diante das competências constitucionais, principalmente o MPF e a PF). As decisões de um cacique que goze de poder legítimo (isto é, considerado legítimo pela comunidade) devem ser cumpridas e costumam ser acatadas. Do seu descumprimento podem resultar punições, como a cadeia e a transferência. Não há regra absoluta no que toca à escolha do cacique (acesso ao poder), mas conforme nossos diálogos ocorrem eleições para o posto, de quatro em quatro anos.18 18 Luciana Ramos afirma, em síntese, que, embora o acesso ao poder possa ocorrer via eleições (influência dos órgãos indigenistas), também pode ser dar de outros modos, como a de o vice-cacique assumir o cargo, sem eleições, por tempo indeterminado. Segundo a autora, “como não há aparatos formais sustentados por instituições permanentes, a legitimidade de um cacique é construída no cotidiano das relações comunitárias, de modo que também não há tempo pré-determinado para que ele fique no poder, embora, se perguntadas, as lideranças afirmem que a cada quatro anos promovem eleições” (2008, p. 174). O cacique é quem escolhe os demais membros do corpo político. A estrutura política que podemos chamar de repressiva é chefiada pelo capitão e ajudantes da liderança, que também são chamados de policiais.

7. O controle social, a resolução de conflitos e as práticas punitivas na comunidade indígena Kaingang

Mas vale a pena perceber mais uma vez que, em toda a nossa discussão, encontramos o real problema não na enumeração trivial de regras, mas nos modos e nos meios pelos quais estas são executadas. O mais instrutivo é que estabelecemos o estudo das situações de vida que solicitam uma determinada regra, a maneira como ela é manipulada pelas pessoas em questão, a reação da comunidade em geral, as consequências do seu cumprimento ou do seu descuido. Tudo isso, que poderia ser chamado o contexto cultural de um sistema primitivo de regras, é também importante, se não mais que o mero recital de um corpus juris nativo fictício codificado no caderno de notas do etnógrafo, como resultado de um questionário, com o método do rumor do trabalho de campo (MALINOWSKI, [1926], 2015, p. 86).

O controle social é objeto de estudo das ciências humanas e sociais. A criminologia crítica, que é um dos referenciais teóricos que adotamos, pode também ser chamada de teoria crítica do controle social (CASTRO, 2005). Lola Aniyar de Castro conceitua-o da seguinte forma:

O controle social, formal e informal, contém diversos graus. Vão desde a família, os vizinhos, os próximos e amigos, as vítimas dos delitos e os denunciantes (interação primária), passando pela escola, a fábrica e as grandes empresas (nível secundário), até o nível terciário constituído, em ordem de influência criminalizante, pela polícia, em seguida pelos juízes e fiscais e, por último, pelos estabelecimentos penitenciários (CASTRO, 1983CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983., p. 113).

O controle descrito pela criminóloga venezuelana é próprio das sociedades capitalistas. Contudo, ele está presente em qualquer tipo de sociedade, inclusive nas ditas primitivas, bem como nas comunidades de povos originários em que existe outra ordem de juridicidade relativamente autônoma quanto à ordem estatal, tal como a que estamos estudando. Conforme Felix Kessing:

Os antropólogos reconhecem que todas as sociedades tendem a expressar, em regras bem padronizadas, a conduta que contribui para a ordem pública e aquela que causa confusão. A lei, sob o ponto de vista da codificação, interessa-se por regras que sejam bastante explícitas para permitir a mensuração das “ofensas”, a ordenação das “defesas” e a atribuição das punições. Do ponto de vista da ação, pode ser tomada como uma formalização dos meios de tratar os casos confusos, de modo que a operação dessas técnicas seja clara e explícita e a autoridade para seu exercício seja delegada, com mais ou menos continuidade, a alguma pessoa ou pessoas, que funcionem em nome do grupo. Uma pessoa, atuando com esse poder judicial, seja diferenciada ocasionalmente ou não, é um agente “governamental” ou "político" (1972, p. 461).

A partir de nossos diálogos e de nossa incursão à terra indígena, foi possível notar que as principais instituições de controle social são: a vizinhança, a igreja evangélica, a “polícia” e a cadeia.

No que toca a vizinhança, a tendência é de que quanto menor for a comunidade, maior será o controle social informal derivado do olhar do vizinho. Foi possível notar que a estrutura da comunidade torna muito difícil a prática de atos desaprovados secretos: uma embriaguez, uma perturbação do sossego ou uma briga doméstica são logo descobertas e comunicadas aos agentes incumbidos da manutenção da ordem.

Foi significativo notar a presença de três igrejas evangélicas (neopentecostais) em comunidade habitada por aproximadamente novecentas pessoas. Segundo os diálogos que travamos, a função principal das igrejas é ajudar as pessoas que estão em situação de consumo problemático de álcool. Trata-se de tema a ser investigado, na medida em que o pano de fundo é a relação dos povos originários do Brasil com as igrejas evangélicas.

A “polícia19 19 Conforme José Côrrea, a polícia indígena foi criada pelo SPI, que, embora utilizasse da polícia e das delegacias locais para o controle e aprisionamento dos índios, preferia buscar meios internos para manter a ordem nas unidades administrativas. Vejamos: “a polícia indígena era um corpo de guardas selecionados entre os índios do próprio grupo indígena policiado, e que tinha como função garantir o bom andamento de atividades e comportamentos dos indígenas, naqueles postos onde a autoridade do funcionário do SPI não fosse ou estivesse sendo devidamente respeitada” (2000, p. 48). ” é composta por homens jovens escolhidos pelo cacique, não é remunerada20 20 Os policiais ou ajudantes da liderança não trabalham exclusivamente na atividade de manutenção da ordem, podendo também cultivar suas lavouras, produzir artesanato, etc. Recentemente, como retribuição ao tempo de trabalho coletivo, a comunidade tem destinado um espaço de terra para uma lavoura cujos produtos são destinados aos policiais. , não usa uniforme e tampouco armas de fogo. São também chamados de “ajudantes da liderança”. A função exercida pela “polícia” no contexto comunitário deverá ser objeto de aprofundamento, mas de início foi possível perceber que seu papel precípuo é obrigar, pelo uso da força, os raros indivíduos que se negam a responder por algum dano ou cumprir determinada reprimenda por conta própria. O capitão é o chefe da “polícia”, tem a chave da cadeia e parece funcionar também como juiz, em casos mais simples, nos quais o cacique e o conselho dos anciãos não são mobilizados.

Conforme já afirmado e nos termos dos diálogos interculturais já travados, os conflitos mais comuns são relacionados ao consumo problemático de álcool e a embriaguez. Ocorrem também furtos, conflitos interpessoais e violência doméstica. São estes os casos que mobilizam mais cotidianamente o sistema penal da aldeia.

A resposta punitiva prescinde de lei escrita, “tipos penais” ou processo formal. Em verdade, existem notícias de leis penais escritas elaboradas por comunidades Kaingang, embora a existência destas regras tenha como função primordial regular as relações entre a punição indígena e a justiça estatal, protegendo as autoridades políticas de eventuais acusações de abuso de poder. Conforme Lígia Simonian, os Kaingang do Rio Grande do Sul, sob a orientação e influência da FUNAI, elaboraram normas que regulamentam principalmente a pena de transferência, por ocasião do Encontro de Caciques (1994, p. 37), ocorrido em 1981. Cid Fernandes, por outro lado, noticia que na década de noventa, na TI de Palmas, existiu um Código de Ética e Penal, elaborado pelo cacique Sebastião (1998, p. 162), fato também ressaltado por Ângela Sacchi (1999SACCHI, Angela Célia. Antropologia de gênero e etnologia Kaingang: uma introdução ao estudo de gênero na área indígena Mangueirinha/Paraná. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 1999., p. 47)21 21 “No caso descrito por Cid Fernandes, tal documento foi produzido justamente quando um cacique da TI de Palmas estava respondendo, junto à justiça nacional, por acusações de maus tratos e expulsão de índios. Avalia o pesquisador que este ‘Código Penal’ se constitui em instrumento arbitrário e de cuja existência a maioria dos Kaingang sequer tomou conhecimento, pois nunca foi debatido internamente pela comunidade de Palmas e seu uso foi apenas para fora, ou seja, para responder às autoridades nacionais. O documento registrado por Simonian foi anterior e produzido com a participação da FUNAI, em encontro de Caciques do RS, ocorrido em 1981” (RAMOS, 2008, p. 192). .

As regras que constam em ambos os documentos não diferem substancialmente das que são atualmente adotadas na comunidade que estabeleceu diálogo com este estudo. As normas de 1981 estabelecem distintas punições de transferência para outra terra indígena, algumas por períodos mais longos, em casos de “erros graves”, outras por período mais curto, em “erros não muito graves”. Além disso, regula a execução da pena, a devida obediência ao cacique da comunidade acolhedora, a necessidade de prestar serviços à comunidade e a vedação do uso de armas. O documento também trata dos crimes de morte, hipótese que resulta na perpetuidade do exílio (SIMONIAN, 1994SIMONIAN, Ligia T. L. Castigo cruéis na AI (Área Indígena) Votouro, Rio Grande do Sul: Resistências Culturais ou Novas Práticas? Laudo Antropológico. Belém: PGR-N. 0478/82-41, 1994., p. 37). Já o Código de Ética e Penal da TI de Palmas “foi implantado em outubro de 1997 pelo cacique Sebastião e seus assessores” (SACCHI, 1999SACCHI, Angela Célia. Antropologia de gênero e etnologia Kaingang: uma introdução ao estudo de gênero na área indígena Mangueirinha/Paraná. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 1999., p. 63). Ele faz referência a diversas infrações, muitas das quais “dizem respeito às relações homem e mulher, sendo que o alcoolismo muitas vezes provoca as discussões conjugais e/ou resultem (sic) em agressão física ou psicológica, geralmente contra a mulher” (SACCHI, 1999, p. 63).

Segundo Luciana Ramos, “o sistema penal (...) não é fechado em si mesmo, com regras claras e pré-estabelecidas, pois as características dos atos, vistos como ‘crimes’, dependem de uma série de fatores” (2008, p. 184). Vejamos:

O grau de reprovabilidade de um ato é contextual e situacional, pois se define, também, em função da comoção gerada junto à coletividade onde o ato ocorreu. Deste modo, é o clamor público e o senso de justiça circunstancial criados pela situação, os elementos principais na avaliação da comunidade, do cacique e das lideranças sobre se um ato deve ou não ser punido e de que forma (RAMOS, 2008RAMOS, Luciana Maria de Moura. Vénh Jykré e Ke Ha Han Ke: Permanência e Mudança do Sistema Jurídico dos Kaingang no Tibagi (Tese de doutorado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília (UnB), 2008., p. 184).

Em nossa aproximação inicial, foi possível notar que variadas formas de resolução dos conflitos podem ocorrer diante de uma situação problemática. Atos aparentemente semelhantes podem ser resolvidos diretamente pelo capitão ou podem ocasionar julgamentos ou rituais de responsabilização e resolução de conflitos, que são públicos, permitem a acusação, a defesa e o diálogo, e ocorrem na praça central da aldeia, com a presença do conselho de anciãos e do cacique ou vice-cacique.

Já os casos mais graves - homicídios, violência sexual e disputas políticas - dão ensejo a outro tipo de deliberação, cujo cerne é decidir se o caso será resolvido de acordo com a lei interna ou se o sistema de justiça criminal estatal será acionado. Compreender os meandros destas deliberações e decisões é tema relevante.

Resta tratarmos das penas. A maior parte dos conflitos é objeto dos aconselhamentos. Neste método de resolução de conflitos, homens idosos, considerados sábios e respeitados na comunidade, proferem discursos que visam “chamar a pessoa à reflexão e alertá-la sobre as possíveis consequências, caso não altere seu comportamento” (RAMOS, 2008RAMOS, Luciana Maria de Moura. Vénh Jykré e Ke Ha Han Ke: Permanência e Mudança do Sistema Jurídico dos Kaingang no Tibagi (Tese de doutorado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília (UnB), 2008., p. 187). Trata-se de aspecto do sistema de controle social Kaingang interessante, na medida em que os aconselhamentos vão ao encontro das perspectivas abolicionistas do sistema de justiça criminal, de modo que estudá-lo mais de perto possui grande potencial heurístico.

As demais penas que são aplicadas atualmente são a prestação de serviços à comunidade, a cadeia e a transferência. A prestação consiste na obrigação do sujeito faltoso de realizar serviços comunitários, geralmente roçando os espaços públicos ou ajudando os moradores da aldeia idosos ou incapacitados, em atividades como a de buscar lenha. Além disso, os serviços também podem ser prestados nas instituições da aldeia, como escolas e postos de saúde.

A transferência (exílio) é a pena mais grave e consiste na expulsão temporária ou definitiva do sujeito da comunidade. Este é transferido para outra aldeia Kaingang, por vezes juntamente com sua família. A punição é utilizada, sobretudo, em casos que resultem em morte ou em disputas políticas.

8. A cadeia indígena

Para compreender a função e os sentidos punitivos atribuídos à cadeia indígena precisamos estar vigilantes em termos epistemológicos, pois pode acontecer, como pensou Rita Segato, de um “novo sentido” ser “contrabandeado como referente de uma denominação que permanece” (SEGATO, 2021SEGATO, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021., p. 147). Ou seja, embora estejamos tratando de uma cadeia, de uma prisão, com celas, grades e trancas, é possível que os sentidos desta privação de liberdade sejam outros, distintos daqueles atribuídos pela sociedade capitalista ocidental. Ou seja, é necessário estarmos atentos às diferentes “sensibilidades jurídicas” (GEERTZ, 2001GEERTZ, Clifford. O saber local. Novos ensaios de antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 2001., p. 59).

Luciana Ramos descreve as cadeias das terras indígenas onde estudou da seguinte forma:

As cadeias são pequenos cômodos de alvenaria especialmente construídos para este fim, e que possuem apenas uma abertura com porta, de madeira ou de ferro, neste último caso, em forma de grade. Nelas não há nenhuma janela. Geralmente há duas celas idênticas, uma do lado da outra. (...). São as famílias que devem alimentar seus entes presos e lhes fornecer cobertores e agasalhos. Nessas cadeias, dificilmente as pessoas passam mais do que cinco dias, independentemente do ato que tenham cometido (RAMOS, 2008RAMOS, Luciana Maria de Moura. Vénh Jykré e Ke Ha Han Ke: Permanência e Mudança do Sistema Jurídico dos Kaingang no Tibagi (Tese de doutorado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília (UnB), 2008., p. 188).

Na comunidade em questão, a cadeia é uma edificação situada no centro da aldeia, administrada pela chefia política da comunidade, especialmente pelo capitão e pelos policiais, e utilizada para a privação da liberdade de pessoas que praticam atos desaprovados socialmente. É de cimento, com grades, e têm duas celas, uma para homens e outra para mulheres. Não comportam mais do que quatro pessoas cada, em condições minimamente aceitáveis. As celas são vazias, com colchões no chão e nada mais. Ao lado, fora das celas, existe um banheiro. A cadeia não tem boas condições de higiene e salubridade e, como quase todos os cárceres do Brasil, não respeita as regras mínimas para o tratamento dos presos.

A cadeia é integrada à comunidade, ou seja, não é cercada por muros. Os presos podem comunicar-se com seus familiares e deles recebem alimentos, materiais de higiene, etc. Às vezes podem ficar “sob ordens” nas imediações da prisão, cumprindo algum tipo de serviço comunitário. Ela foi construída no ano de 2015, em substituição à cadeia antiga, que era de madeira e foi queimada intencionalmente em certa ocasião, como forma de protesto contra a autoridade política.

Então, o primeiro ponto a ser ressaltado é que a cadeia indígena é utilizada em caráter de custódia, com privação de liberdade de curta duração. A cadeia funciona como recurso temporário, que serve para intervir diretamente em situações problemáticas: quando um casal ou duas pessoas brigam; quando ocorrem arruaças; “até passar a bebedeira”; para o sujeito “pensar um pouco”; etc. Ela também pode ser usada em caráter prévio à aplicação de outra pena, como a prestação de serviços à comunidade, em casos menos graves, e a transferência, em casos mais graves. Em casos de furtos, por exemplo, o curto aprisionamento é combinado com a obrigação de devolver o bem furtado ou de trabalhar para a vítima, de modo a suprir o prejuízo. Ademais, o aprisionamento também pode ser utilizado enquanto ocorre a deliberação sobre a resolução que será dada a certo conflito, sobretudo quando há dúvida se o caso deve ser diligenciado internamente ou se as autoridades estatais devem ser comunicadas.

Não tem, pois, o mesmo sentido punitivo da prisão do sistema de justiça criminal estatal. Pode haver, eventualmente, uma privação de liberdade de maior duração, de um mês, por exemplo, em casos de “sangue”, de violência interpessoal ou doméstica ou furtos reiterados. Mas esse não é o uso mais comum. Deste modo, a cadeia não constitui resposta punitiva padronizada nos termos do sistema penal estatal, como troca de tempo de liberdade diante de dano à bem jurídico. Tendo sentido de custódia e uso parcimonioso quanto à duração da privação de liberdade, o cárcere é utilizado de modo rotativo, o que evita a superlotação. Na ocasião em que estivemos juntos na comunidade, dois homens estavam presos, porque na madrugada embriagaram-se e andaram de carro perigosamente pelas ruas da aldeia.

Outra hipótese que acreditamos deva ser lançada ao debate é a de que, após a Constituição de 1988 e o desenvolvimento da noção de autonomia penal indígena, houve uma retomada - para usar a expressão correntemente adotada na luta pelos territórios - do sistema punitivo, incluindo a cadeia. Segundo Luciana Ramos, “houve um período em que quem decidia aquele que deveria ser preso e por quanto tempo eram os chefes dos Postos, que se utilizavam das lideranças indígenas para legitimar seus atos”, ao passo que atualmente, “na maioria das TIs, estas decisões são tomadas pelo cacique e suas lideranças, aparentemente sem qualquer interferência da FUNAI” (RAMOS, 2008RAMOS, Luciana Maria de Moura. Vénh Jykré e Ke Ha Han Ke: Permanência e Mudança do Sistema Jurídico dos Kaingang no Tibagi (Tese de doutorado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília (UnB), 2008., p. 189).

Na comunidade com a qual este artigo dialoga, a administração dos conflitos e as punições têm sido operacionalizadas internamente, pelas autoridades políticas indígenas, sem interferência da FUNAI ou dos aparelhos judiciários estatais. A cadeia indígena, criada inicialmente como método repressivo e de disciplinamento a ser mobilizado contra o povo Kaingang, por parte dos órgãos indigenistas, agora é instrumento dominado pela comunidade e gerido segundo as leis internas. Nesse processo o sentido punitivo da prisão foi ressignificado, conforme argumentamos.

É claro que este processo é permeado por tensões e contradições. Conforme procuramos demonstrar, as práticas punitivas levadas a cabo pelas autoridades políticas dos povos originários podem ser questionadas pela justiça estatal, na medida em que a autonomia penal indígena é limitada, nos termos do art. 57, da Lei 6001/73, que veda as penas cruéis, infamantes e de morte. Assim, as autoridades políticas que aplicam penas podem, inclusive, ser responsabilizadas criminalmente, por delitos como maus-tratos, lesão corporal e cárcere privado, sobretudo a partir de ações do Ministério Público Federal22 22 André da Rocha analisou um caso no qual a chefia Kaingang foi acusada de crimes por aplicar penas. Concluiu que o Tribunal Regional Federal da Quarta Região “extrapolou os limites constitucionais e interferiu indevidamente na organização social de comunidades indígenas com regras e funcionamento próprios” (2017, p. 114). , instituição que também tem competência para fiscalizar punições praticadas pelas autoridades políticas que extrapolem os limites da autonomia penal indígena23 23 Recentemente o Ministério Público Federal ingressou com Habeas Corpus para libertar três indígenas que estavam privados de liberdade na comunidade Kaingang de Cacique Doble/RS: https://www.mpf.mp.br/rs/sala-de-imprensa/noticias-rs/mpf-obtem-liminar-para-indigenas-aprisionados-na-ti-cacique-doble-no-rs-atraves-de-habeas-corpus-coletivo. Quanto ao tema, nota-se que os fundamentos da concessão da ordem, relativos às condições das celas, se aplicados ao sistema carcerário estatal, resultariam na soltura da maior parte dos presos do Brasil. . Quanto ao tema das relações que devem ser travadas entre os povos originários e o Estado, no contexto da construção de um pluralismo jurídico, Rita Segato oferece apurada reflexão:

O Estado necessário para que isso seja possível não é um Estado interventor e preponderantemente punitivo. É um Estado capaz de restituir os meios jurídicos e materiais, a autonomia e as garantias de liberdade no interior de cada coletividade, para que seus membros possam deliberar a respeito de seus costumes num caminho próprio de transformação histórica, e dialogar de forma idiossincrática com os standards internacionais dos Direitos Humanos internacionalmente estabelecidos. (...)

Não se trata, como tem sido o entendimento de juristas e antropólogos até o momento, de opor o relativismo das culturas ao universalismo dos Direitos Humanos ou à vigência universal da Constituição dentro da Nação. O que o projeto de um Estado pluralista e a plataforma do pluralismo jurídico propõem ao desenhar a ideia de Nação como uma aliança ou coalizão de povos é permitir que cada um deles resolva seus conflitos e elabore seu dissenso interno por um caminho próprio. (...)

Tampouco se trata de solicitar a retirada do Estado porque, como atestam as múltiplas demandas por políticas públicas colocadas pelos povos indígenas a partir da Constituição de 1988, depois da intensa e perniciosa desordem instalada pelo contato, o Estado já não pode, simplesmente, se ausentar. Deve permanecer disponível para oferecer garantias e proteção quando convocado por membros das comunidades, sempre que essa intervenção ocorra em diálogo entre os representantes do Estado e os representantes da comunidade em questão. Seu papel, nesse caso, não poderá ser outro que o de promover e facilitar o diálogo entre os poderes da aldeia e seus membros mais frágeis (2021, p. 198).

Dito isso, passamos às considerações finais.

9. Considerações finais

Conforme ressaltamos na introdução, este trabalho está a ser produzido a partir do diálogo intercultural, produtor de rico aprendizado mútuo. Assim, estas considerações finais podem ser compreendidas como hipóteses de um trabalho em progresso.

Como vimos, os tratados internacionais e a legislação brasileira fundamentam a autonomia penal dos povos indígenas, que podem utilizar de métodos punitivos próprios diante de conflitos que ocorrem nos territórios em que vivem. Nesse sentido, com o objetivo de normatizar de modo mais minucioso a relação entre as práticas punitivas indígenas e o sistema de justiça criminal, o Conselho Nacional de Justiça emitiu a Resolução 287/2019, que no artigo 7º estabelece expressamente que “autoridade judicial poderá adotar ou homologar práticas de resolução de conflitos e de responsabilização em conformidade com costumes e normas da própria comunidade indígena, nos termos do art. 57 da Lei nº 6.001/73” (BRASIL, 2019). O mencionado art. 57, por sua vez, estatui que “será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte” (BRASIL, 1973). Desta forma, notamos que a autonomia penal indígena é pensada a partir da noção de tolerância e que há uma permanente porta aberta para a intervenção estatal, possibilitada, sobretudo, pela vedação das chamadas sanções penais cruéis e infamantes. Conforme demonstramos, na terra indígena Kaingang de Cacique Doble/RS, recentemente o Ministério Público Federal ingressou com Habeas Corpus para libertar indígenas que estavam presos na cadeia nos termos das regras e dos procedimentos internos. A ação constitucional foi concedida. A norma, então, demanda aperfeiçoamento, e a reflexão legislativa pressupõe a compreensão apurada acerca das relações entre o Estado e os povos indígenas.

As informações históricas e etnológicas sobre a organização jurídica e as punições adotadas pelo povo Kaingang são esparsas e carecem dos limites epistemológicos dos relatos sobre o tema, escritos por agentes coloniais. Os trabalhos antropológicos, por seu turno, já foram realizados em comunidades aldeadas e, consequentemente, transformadas pelos empreendimentos de espoliação territorial e extermínio físico. De maneira que a punição no tronco e, posteriormente, a cadeia, são práticas punitivas adotadas a partir das interações travadas com os órgãos indigenistas. Primeiramente, as punições eram monopolizadas pelos agentes indigenistas e utilizadas contra os Kaingang (por vezes com a colaboração da chefia indígena). Em momento subsequente, sobretudo após a Constituição de 1988, ocorre espécie de “retomada” dos aparelhos punitivos, que agora são controlados pelo cacique e seus ajudantes. Nesse processo, as penas têm seus sentidos ressignificados.

No que toca às práticas punitivas atualmente adotadas na terra indígena Kaingang de Cacique Doble/RS, é possível apresentar a seguinte síntese: o controle social da comunidade é fundado em quatro instituições principais: vizinhança, igreja evangélica, polícia e cadeia; o principal método de resolução de conflitos é o aconselhamento, levado a cabo por homens idosos e respeitados na comunidade; os conflitos menos graves são resolvidos no interior da aldeia, sem que se acione a justiça criminal estatal. As formas de resolução são flexíveis, podendo ocorrer julgamentos; os conflitos mais graves, após deliberação comunitária, geralmente são comunicados às agências do sistema de justiça criminal; as penas são a prestação de serviços à comunidade, a cadeia e a transferência. Sua aplicação pode ser decidida de variadas formas, pelo capitão, pelo cacique ou mesmo em ritual público realizado na praça, protagonizado pelas partes e pelo corpo político da comunidade; a “cadeia indígena” é utilizada com sentido de custódia, com privação de liberdade de curta duração. Não tem, pois, o mesmo sentido punitivo do cárcere do sistema de justiça criminal estatal; as práticas punitivas Kaingang se encontram em tensão com a justiça estatal, diante da limitada autonomia penal indígena, o que por vezes pode gerar ações das instituições jurídicas no contexto da ordem jurídica comunitária.

Referências bibliográficas

  • ALBERT, Bruce. KOPENAWA, Davi. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
  • ANTONIO, Marcio Katánh Manuel. As práticas penais na comunidade indígena de Cacique Doble/RS. 2023. 37 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) - Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA, Sant’Ana do Livramento, 2023.
  • BATISTA, Nilo. Práticas Penais no Direito Indígena. In: Revista Brasileira de Direito Penal n. 31, pp. 75 - 86, 1981.
  • BEVILAQUA, Clovis. Criminologia e Direito. Rio de Janeiro: Revan, 2019.
  • BORBA, Telêmaco. Actualidade Indígena. Coritiba: Typographia e Lytographia a vapor Impressora Paraneanse, 1908.
  • BOTERO, Esther Sánchez. Reflexiones en torno de la jurisdiccíon especial indígena en Colombia. In: Revista IIDH. Vol. 41 [s.d] pp. 225-250.
  • BRASIL. Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o estatuto do índio. Brasília. 1973. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-6001-19-dezembro-1973-376325-publicacaooriginal-1-pl.html
    » https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-6001-19-dezembro-1973-376325-publicacaooriginal-1-pl.html
  • _______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência de República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
  • _______. Comissão Nacional da Verdade (Vol. II). Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas: pp. 204-262, 2014.
  • _______. Conselho Nacional de Justiça (Presidente: Min. Dias Toffoli). Resolução nº 287, de 25 de junho de 2019.
  • _______. Conselho Nacional de Justiça. Manual Resolução 287/2019 - Procedimentos Relativos as Pessoas Indígenas Acusadas, Rés, Condenadas ou Privadas de Liberdade / Conselho Nacional de Justiça, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; coordenação de Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi ... [et. al.]. Brasília, 2020.
  • CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
  • CID FERNANDES, Ricardo. Autoridade Política Kaingang: Um estudo sobre a construção da legitimidade política entre os Kaingang de Palmas/Paraná. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, p. 217, 1998.
  • CLASTRES, Pierre. Sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
  • CORRÊA, José Gabriel Silveira. A Ordem a se preservar: A gestão dos índios e o Reformatório Agrícola Indígena Krenak. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2000.
  • CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
  • FERNANDES, Loureiro. Os Caingangues de Palmas. In: Arquivos do Museu Paraense, Vol. I. Secretária do Interior e Justiça do Estado do Paraná. Curitiba, 1941.
  • FERREIRA, André Rocha. A Concessão de Autonomia Penal às Comunidades Indígenas: aplicabilidade constitucional do artigo 57 do Estatuto do Índio. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Porto Alegre, 2017.
  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 30ª ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
  • GEERTZ, Clifford. O saber local. Novos ensaios de antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 2001.
  • GONZAGA, João Bernardino. O direito penal indígena à época do descobrimento. São Paulo: Max Limonad, 1966.
  • KESSING, Felix. Antropologia Cultural: a ciência dos costumes. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1972.
  • LIRA, Luana Menezes. As violações de direitos humanos no Relatório Figueiredo: a marcha para o oeste e a conquista dos Kainkang. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos) - Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, Universidade de Brasília (UnB): Brasília, 2017.
  • MALINOWSKI, Bronislaw. Crime e costume na sociedade selvagem. Petrópolis: Vozes, 1991.
  • MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI a XIX). Tradução de Sérgio Lamarrão. Rio de Janeiro: Revan, 2006.
  • MOREIRA, Elaine; CASTILHO, Ela Wiecko V de; SILVA, Tédney Moreira da. Os direitos dos acusados indígenas no processo penal sob paradigma da interculturalidade. Revista de Estudos Empíricos em Direito, vol 7, nº2, pp. 141-160, 2020.
  • ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Rio de Janeiro, 2008
  • RAMOS, Luciana Maria de Moura. Vénh Jykré e Ke Ha Han Ke: Permanência e Mudança do Sistema Jurídico dos Kaingang no Tibagi (Tese de doutorado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília (UnB), 2008.
  • RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
  • RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. Tradução de Gizlene Neder: Rio de Janeiro: Revan, 1999.
  • SABADELL, Ana Lúcia. Tormenta iuris permissione. Tortura e processo penal na Península Ibérica (séculos XVI - XVIII). Rio de Janeiro: Revan, 2006.
  • SACCHI, Angela Célia. Antropologia de gênero e etnologia Kaingang: uma introdução ao estudo de gênero na área indígena Mangueirinha/Paraná. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 1999.
  • SEGATO, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021.
  • SERRANO, Antônio. Los Kaingangs de Rio Grande do Sul a mediados del siglo XIX. Según un manuscrito inédito del teniente coronel Alfonso Mabilde. Revista del Instituto de Antropología de la Universidad Nacional de Tucumán, volume 2, número 2, pp. 14 - 35.
  • SIMONIAN, Ligia T. L. Castigo cruéis na AI (Área Indígena) Votouro, Rio Grande do Sul: Resistências Culturais ou Novas Práticas? Laudo Antropológico. Belém: PGR-N. 0478/82-41, 1994.
  • SILVA, Tédney Moreira da. No banco dos réus, um índio: criminalização de indígenas no Brasil. Dissertação (Mestrado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília (UnB). Brasília, 2015.
  • TESCHAUER, Carlos. Porandúba Riograndense. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1929.
  • TOMMASINO, Kimiye. A história dos Kaingáng da Bacia do Tibagi: uma sociedade Jê Meridional em movimento. Tese (Doutorado em Antropologia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 1995.
  • TORRES, Euclides. A patrulha de sete João. Porto Alegre: Já Editores, 2005.
  • VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: histórias de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
  • WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito. 4. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2015.
  • 1
    Utilizamos aqui as categorias de povo e história, ao invés de, por exemplo, etnias e culturas, nos termos das reflexões teóricas de Rita Segato, sobretudo no texto “Que cada povo teça os fios de sua história: um diálogo tenso com a colonialidade legislativa dos ‘salvadores’ da infância indígena” (2021, p. 165).
  • 2
    No campo da Criminologia (e das demais ciências criminais) são raros os estudos sobre o ponto. Uma investigação clássica sobre o assunto é a de Clóvis Bevilaqua, intitulada “Instituições e Costumes Jurídicos dos Indígenas Brasileiros ao tempo da conquista”. O texto faz parte do livro “Criminologia e Direito”, publicado em 1896 e recentemente reeditado pela Editora Revan, na “Coleção Pensamento Criminológico” (2019). No texto, Bevilaqua inventaria as instituições e costumes jurídicos dos indígenas brasileiros ao tempo da conquista a partir dos “relatos de viajantes”, e afirma que “a justiça penal desses povos se achava, como é natural su pôr [sic], num estado de grosseria a atraso” (2019, p. 217). Outra obra digna de referência é “O direito penal indígena à época do descobrimento do Brasil”, de João Bernardino Gonzaga, publicada em 1966GONZAGA, João Bernardino. O direito penal indígena à época do descobrimento. São Paulo: Max Limonad, 1966.. Trata-se de uma das análises mais completas sobre o assunto, cujas fontes são fundamentalmente o material etnológico compilado por viajantes da época colonial. Após tratar da organização jurídica e político-social dos indígenas, bem como vincular o que chama de “direito penal indígena” à noção de “mentalidade primitiva”, nos termos pensados por Lévy-Bruhl, Gonzaga (1966) disserta sobre a responsabilidade penal nas sociedades primitivas, as sanções e os crimes. Ainda nessa toada, vale ressaltar o artigo “Práticas Penais no Direito Indígena”, de Nilo Batista, publicado na Revista de Direito Penal n. 31, em 1981BATISTA, Nilo. Práticas Penais no Direito Indígena. In: Revista Brasileira de Direito Penal n. 31, pp. 75 - 86, 1981.. Neste texto, o penalista e historiador do direito dedica-se a refletir sobre as contribuições de Bevilaqua e Gonzaga, acrescentando alguns pressupostos epistemológicos - principalmente a negação da ideia de “mentalidade primitiva” - para o tratamento do assunto (BATISTA, 1981BATISTA, Nilo. Práticas Penais no Direito Indígena. In: Revista Brasileira de Direito Penal n. 31, pp. 75 - 86, 1981.). Sobre os problemas epistemológicos suscitados pelos relatos dos europeus acerca das pessoas que viviam no território hoje conhecido como Brasil antes da invasão - que foram por eles nominados índios - conferir o seminal texto “Imagens de Índios no Brasil no Século XVI”, de Manuela Carneiro da Cunha (2012CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012., p. 26).
  • 3
    Trata-se da comunidade indígena Kaingang de Cacique Doble/RS. Sobre a história e a atualidade do povo Kaingang, conferir RIBEIRO (1996RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.). Conferir também a síntese produzida pelo Instituto Socioambiental: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kaingang.
  • 4
    Sobre o tema, conferir o artigo “Reflexiones en torno de la jurisdicción penal indígena en Colombia”, da antropóloga Esther Sánchez Botero (2005).
  • 5
    Este debate refere-se ao tema do pluralismo jurídico. Nesse sentido, A. C. Wolkmer afirma que o pluralismo jurídico deve ser compreendido como “a multiplicidade de manifestações e práticas normativas existentes num mesmo espaço sociopolítico, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais (2015, p. 187).
  • 6
    Para Rita Segato, “a ratificação da Convenção 169 da OIT, em 2002, foi um passo adiante no caminho do reconhecimento das justiças próprias, embora a norma consuetudinária ali, apesar de adquirir o status de lei devido a sua inclusão na legislação a partir do processo de constitucionalização do instrumento jurídico internacional, siga limitada pela obrigatoriedade de respeitar as normas do ‘ordenamento jurídico internacional’ e dos ‘direitos humanos internacionalmente reconhecidos’” (2021, p. 168).
  • 7
    Para uma completa discussão sobre este ponto, conferirr a obra Lei do índio ou lei do branco - quem decide? (OLIVEIRA; VOLKMER DE CASTILHO, 2019). Quanto à criminalização de indígenas pelo sistema penal estatal, conferir a dissertação de mestrado de Tedney Moreira da Silva, defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, intitulada No banco dos réus, um índio: criminalização de indígenas no Brasil. A partir da teoria crítica do controle social ou criminologia da libertação, o autor realizou pesquisa na jurisprudência dos tribunais, em casos nos quais o réu ou a ré é pessoa indígena (2015).
  • 8
    Segundo a autora, o laudo foi solicitado pelo Ministério Público Federal: “denúncias de práticas recentes de castigos cruéis nessa área chegaram à PGR - Procuradoria Geral da República (1992), o que têm provocado questões fundamentais no âmbito do direito penal, direitos humanos, e quanto à relação direito indígena/direito nacional. Neste caso, o procurador Wagner Gonçalves (PGR 1992) inquiriu sobre os ‘costumes e tradições dos Kaingang, e sobre ‘... a data (ou desde quando) passaram aqueles silvícolas a praticar castigos cruéis, como o encarceramento’. Este trabalho é uma tentativa de equacionar tais questões” (1994, p. 05).
  • 9
  • 10
    Conforme Pierre Clastres, “nas sociedades primitivas, a tortura é a essência do ritual de iniciação” (CLASTRES, 2012, p. 195). Ana Lúcia Sabadell, em estudo sobre a tortura no processo penal da Península Ibérica durante o Antigo Regime, leva a cabo problematização semelhante, argumentando que o significado desta prática só pode ser compreendido a partir de contextualização histórica, que, dentre outras coisas, “permite entender que a dor física não possuía o significado que hoje se lhe atribuiu” (SABADELL, 2006SABADELL, Ana Lúcia. Tormenta iuris permissione. Tortura e processo penal na Península Ibérica (séculos XVI - XVIII). Rio de Janeiro: Revan, 2006., p. 42).
  • 11
    “Mesmo sem informações precisas, é possível sugerir que os Kaingang podem ter se inspirado na prática de castigos cruéis dos donos de escravos que invadiram e se instalaram em seus territórios, os quais, para açoitar, amarravam seus escravos” (SIMONIAN, 1994SIMONIAN, Ligia T. L. Castigo cruéis na AI (Área Indígena) Votouro, Rio Grande do Sul: Resistências Culturais ou Novas Práticas? Laudo Antropológico. Belém: PGR-N. 0478/82-41, 1994., p. 40).
  • 12
    Esta prática punitiva e de tortura é também relatada pela historiografia da guerra civil federalista, ocorrida majoritariamente no Rio Grande do Sul, de 1893 a 1895. As quatro estacas cravadas no chão, na qual o sujeito era amarrado, eram chamadas de “chiqueirinho” (TORRES, 2005TORRES, Euclides. A patrulha de sete João. Porto Alegre: Já Editores, 2005., p. 134).
  • 13
    Cenas do “regime do panelão” podem ser vistas no documentário intitulado Índios, memória de uma CPI, de Hermano Penna. Conferir aqui: https://www.youtube.com/watch?v=0WmLCH3rbf8.
  • 14
    “Visando controlar o movimento de todos indígenas foram instituídas pelo SPI as Guias de Trânsito, substituídas depois pela FUNAI pelas Portarias. Nestes documentos, que eram emitidos pelo Chefe de Posto ou cacique, ou por ambos - o que dava no mesmo, pois no período eram os chefes do posto quem indicavam os caciques -, os indígenas tinham que declarar para onde iam, com qual finalidade e por quanto tempo” (RAMOS, 2008RAMOS, Luciana Maria de Moura. Vénh Jykré e Ke Ha Han Ke: Permanência e Mudança do Sistema Jurídico dos Kaingang no Tibagi (Tese de doutorado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília (UnB), 2008., p. 46).
  • 15
    Do ponto de vista teórico, a pesquisa sobre o “nascimento da cadeia indígena” tem o potencial de levantar pontos de reflexão ao clássico tema da criminologia crítica acerca do “nascimento da prisão”, pensado por autores como Rusche e Kircheimer (1999RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. Tradução de Gizlene Neder: Rio de Janeiro: Revan, 1999.), Melossi e Pavarini (2006MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI a XIX). Tradução de Sérgio Lamarrão. Rio de Janeiro: Revan, 2006.) e Foucault (2005FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 30ª ed. Petrópolis: Vozes, 2005.), com nuances e especificidades de cada autor, a partir de uma análise que leva em conta as relações entre a punição e a estrutura social. Aqui, notamos que a prisão nas aldeias Kaingang surgiu por via diferente da tradicionalmente abordada - que leva em conta a relação entre o surgimento da prisão e a transição ao capitalismo - elemento que apresenta possibilidades significativas no que toca à reflexão teórica sobre o cárcere. Neste caso, a cadeia surge por influência dos órgãos estatais, mormente indigenistas. Por outro lado, como bem apontou a crítica editorial a este artigo, levando em conta que a cadeia é introduzida nas terras do povo Kaingang com o objetivo de disciplinar e controlar a mão-de-obra indígena, a moldura analítica da economia política da pena pode nos ajudar significativamente a aprofundar o tema.
  • 16
    No Relatório da Comissão Nacional da Verdade sobre violação de direitos dos povos indígenas, consta a afirmação do Procurador Jader Figueiredo Correa - que produziu o famoso Relatório Figueiredo, acerca das violações cometidas por agentes do Serviço de Proteção aos Índios contra os povos indígenas - de que “sem ironia pode-se afirmar que os castigos de trabalho forçado, de prisão em cárcere privado representam a humanização das relações índio-SPI” (2014, p. 243). O Relatório Figueiredo foi divulgado em 1968, pelo Ministro do Interior, Albuquerque Lima. Em razão de suas repercussões, o SPI acabou extinto, dando lugar à FUNAI. Para mais informações, conferir a dissertação de mestrado de Luana Menezes Lira, “As violações de direitos humanos no Relatório Figueiredo: a marcha para o oeste e a conquista dos Kaingang, defendida junto ao Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania na Universidade de Brasília (2017).
  • 17
    A participação das mulheres no exercício do poder político na comunidade é tema a ser investigado.
  • 18
    Luciana Ramos afirma, em síntese, que, embora o acesso ao poder possa ocorrer via eleições (influência dos órgãos indigenistas), também pode ser dar de outros modos, como a de o vice-cacique assumir o cargo, sem eleições, por tempo indeterminado. Segundo a autora, “como não há aparatos formais sustentados por instituições permanentes, a legitimidade de um cacique é construída no cotidiano das relações comunitárias, de modo que também não há tempo pré-determinado para que ele fique no poder, embora, se perguntadas, as lideranças afirmem que a cada quatro anos promovem eleições” (2008, p. 174).
  • 19
    Conforme José Côrrea, a polícia indígena foi criada pelo SPI, que, embora utilizasse da polícia e das delegacias locais para o controle e aprisionamento dos índios, preferia buscar meios internos para manter a ordem nas unidades administrativas. Vejamos: “a polícia indígena era um corpo de guardas selecionados entre os índios do próprio grupo indígena policiado, e que tinha como função garantir o bom andamento de atividades e comportamentos dos indígenas, naqueles postos onde a autoridade do funcionário do SPI não fosse ou estivesse sendo devidamente respeitada” (2000, p. 48).
  • 20
    Os policiais ou ajudantes da liderança não trabalham exclusivamente na atividade de manutenção da ordem, podendo também cultivar suas lavouras, produzir artesanato, etc. Recentemente, como retribuição ao tempo de trabalho coletivo, a comunidade tem destinado um espaço de terra para uma lavoura cujos produtos são destinados aos policiais.
  • 21
    “No caso descrito por Cid Fernandes, tal documento foi produzido justamente quando um cacique da TI de Palmas estava respondendo, junto à justiça nacional, por acusações de maus tratos e expulsão de índios. Avalia o pesquisador que este ‘Código Penal’ se constitui em instrumento arbitrário e de cuja existência a maioria dos Kaingang sequer tomou conhecimento, pois nunca foi debatido internamente pela comunidade de Palmas e seu uso foi apenas para fora, ou seja, para responder às autoridades nacionais. O documento registrado por Simonian foi anterior e produzido com a participação da FUNAI, em encontro de Caciques do RS, ocorrido em 1981” (RAMOS, 2008RAMOS, Luciana Maria de Moura. Vénh Jykré e Ke Ha Han Ke: Permanência e Mudança do Sistema Jurídico dos Kaingang no Tibagi (Tese de doutorado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Brasília (UnB), 2008., p. 192).
  • 22
    André da Rocha analisou um caso no qual a chefia Kaingang foi acusada de crimes por aplicar penas. Concluiu que o Tribunal Regional Federal da Quarta Região “extrapolou os limites constitucionais e interferiu indevidamente na organização social de comunidades indígenas com regras e funcionamento próprios” (2017, p. 114).
  • 23
    Recentemente o Ministério Público Federal ingressou com Habeas Corpus para libertar três indígenas que estavam privados de liberdade na comunidade Kaingang de Cacique Doble/RS: https://www.mpf.mp.br/rs/sala-de-imprensa/noticias-rs/mpf-obtem-liminar-para-indigenas-aprisionados-na-ti-cacique-doble-no-rs-atraves-de-habeas-corpus-coletivo. Quanto ao tema, nota-se que os fundamentos da concessão da ordem, relativos às condições das celas, se aplicados ao sistema carcerário estatal, resultariam na soltura da maior parte dos presos do Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2023
  • Aceito
    14 Abr 2023
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com