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Por mares nunca dantes navegados? As Justiças Penais Indígenas e o confronto com a matriz ocidental. Uma análise dos processos criminais na Serra da Lua x Raposa Serra do Sol

By seas never sailed before? Indigenous Criminal Justices and the confrontation with the western matrix. An analysis of criminal cases in Serra da Lua x Raposa Serra do Sol

Resumo

O objetivo do presente artigo é analisar comparativamente os processos legais referentes a dois homicídios ocorridos em territórios tradicionais, Raposa Serra do Sol e Raposa Serra da Lua. Ambos os processos têm como réus pessoas indígenas, mas cada um apresenta um desenvolvimento processual distinto. O artigo busca analisar, a partir de teóricos decoloniais, a relação entre sistemas punitivos indígenas e a matriz ocidental, que nos legou dimensões do aparato punitivo autodeclarado moderno e racional. A perspectiva decolonial visa perceber alternativas ao modelo ocidental sustentado no dogma da pena, dimensão que valida um único método de resolução no campo penal, dificultando o reconhecimento de métodos alternativos como a transação penal e outras formas de responsabilização que não se reduzem à pena de prisão.

Palavras-chave:
Sistema penal indígena; Estudos decoloniais; Dogma da pena; Raposa Serra do Sol; Raposa Serra da Lua

Abstract

The purpose of this article is to compare two homicide cases that occurred in traditional territories, Raposa Serra do Sol and Raposa serra da Lua. Both cases had indigenous defendants, and they had distinct procedural developments. This article seeks to analyze, from the perspective of decolonial theories, the relationship between indigenous punitive systems and the western matrix, which bequeathed us dimensions of the punitive apparatus constructed as modern and rational. The decolonial perspective posits alternatives to the Western model based on the dogma of the penalty, a dimension that validates a single method of resolution in the criminal field and hinders the recognition of alternative methods such as criminal transaction and other forms of accountability that are not reduced to the prison sentence.

Keywords:
Indigenous penal system; Decolonial studies; Dogma of punishment; Raposa Serra do Sol and Raposa Serra da Lua

Introdução

De tanto olhar as grades o seu olhar esmoreceu e nada mais aferra. Como se houvesse só grades na terra: grades, apenas grades para olhar. A onda andante e flexível do seu vulto em círculos concêntricos decresce, dança de força em torno de um ponto oculto no qual um grande impulso arrefece. De vez em quando o fecho da pupila abre-se em silêncio. Uma imagem, então, na tensa paz dos músculos instila-se para morrer no coração. A pantera. Rainer Maria Rilke

Em 2015, ocorreu o chamado 1º Tribunal do Júri Indígena em Raposa Serra do Sol1 1 No ponto 3 serão apresentados os detalhes do processo. , em Roraima, apontado por diversas autoridades do sistema de justiça como o modelo de prestação jurisdicional por ter o corpo do Conselho de Sentença formado integralmente por indígenas de múltiplas etnias. Apesar do resultado final ter representado uma mediação por parte do Conselho de Sentença entre direito estatal e indígena, o “coordenador regional da região das serras, Zedoeli Alexandre, avaliou o julgamento dos 'brancos' como brutal” (COSTA, 2015COSTA, Emily. Júri indígena em Roraima absolve réu de tentativa de homicídio. G1 RR. 24 abr. 2015. Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2015/04/juri-indigena-absolve-reu-de-tentativa-de-homicidio-e-condena-outro-em-rr.htm. Acesso em: 20 nov. 2022.
https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/...
, [on line]).

Seria o referido Tribunal uma expressão não ocidental em termos de punição? O espetáculo promovido pelo Júri é a forma com que os indígenas realizam a apreciação dos conflitos internos? O fato de ser composto por jurados indígenas implica numa modelagem diferenciada?

Em outra experiência de crime de homicídio ocorrido em 2009 na região de Serra da Lua2 2 No ponto 3 serão apresentados os detalhes do processo. , também em Roraima, o processo se deu de forma diferenciada. Antes da decisão de pronúncia ou não pela Justiça Criminal de Roraima, o Conselho da comunidade indígena do Manoá se reuniu com a lideranças indígenas, Tuxaus de várias comunidades, entre elas, Anauá, Manoá, Wai Wai, e servidores da Funai e Ao final, concluíram pela imposição de sanções para além da lógica prisional ou do isolamento celular, marca da modelagem penal ocidental3 3 “1. O índio Denilson deverá sair da Comunidade do Manoá e cumprir pena na Região do Wai Wai por mais 5 (cinco) anos com possibilidade de redução conforme seu comportamento; 2. Cumprir o Regimento Interno do Povo Wai Wai, respeitando a Convivência, o costume, a tradição e moradia junto ao povo Wai Wai; 3. Participar de trabalho comunitário; 4. Participar de reuniões e demais eventos desenvolvidos pela comunidade; 5. Não comercializar nenhum tipo de produto, peixe ou coisas existentes na comunidade sem permissão da comunidade juntamente com o tuxaua; 6. Não desautorizar o tuxaua, cometendo coisas às escondidas sem conhecimento do tuxaua; 7. Ter terra para trabalhar, sempre com conhecimento e na companhia do tuxaua; 8. Aprender a cultura e a língua Wai Wai; 9. Se não cumprir o regimento será feita outra reunião e tomar (sic) outra decisão". (RORAIMA, Apelação Criminal nº 0000302-88.2010.8.23.0090, 2013, p. 224). .

Apesar de não ocorrer a prisão como pena principal em nenhum dos casos, a formação processual se dá de forma diferenciada. O processo criminal de homicídio ocorrido em 2009 na Serra da Lua foi julgado em uma reunião de líderes de diversas etnias que aplicaram a sanção penal ao réu, posteriormente acatada pelo juízo monocrático, que não acolheu a denúncia realizada pelo Ministério Público. O denominado 1º Tribunal do Júri Indígena ocorrido em 2015 em Raposa Serra do Sol, apesar do Conselho de Sentença ser composto integralmente por indígenas, manteve a ritualística ocidental na decisão de condenação por tentativa de homicídio.

Buscamos analisar essas duas modelagens que apresentam de forma distinta as formas de resolução de conflito na esfera penal, compreendendo a possibilidade de uma experiência alternativa ao modelo hegemônico efetivado no campo penal da matriz ocidental.

A experiência do exercício penal ocorrido em Raposa Serra da Lua apresentou não apenas uma ruptura com a “sedução punitiva”, marca ocidental, que tem na prisão quase como a única resposta válida em termos criminais, mas também rompe com a própria construção ocidental no campo da formação processual, como nos lembra Nils Christie (1997CHRISTIE, Nils. Civilidade e Estado. In PASSETTI, Edson et al (orgs.). Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo, IBCCRIM, 1997.).

O presente artigo buscará, então, analisar a partir de teóricos decoloniais a relação entre sistemas punitivos indígenas e a matriz ocidental, que nos legou dimensões do aparato punitivo que se apresentam como uma expressão moderna e racional. A leitura decolonial visa perceber alternativas ao modelo ocidental sustentado no dogma da pena, dimensão que valida um único método de resolução no campo penal, impossibilitando o reconhecimento de métodos alternativos como transação penal e outras formas de responsabilização que não se reduzem à pena de prisão (PIRES, 2004PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos CEBRAP, N.° 68, março 2004, pp. 39-60.).

Os processos a serem analisados apontam para a distinção de modelos punitivos. A tradição ocidental construiu sua racionalidade punitiva de forma seletiva priorizando os corpos a serem capturados pelo sistema penal. Essa modernidade, que expressa uma colonialidade do saber, poder e do ser (MIGNOLO, 2005MIGNOLO, Walter D. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Colección Sur Sur, CLACSO, setembro 2005. Acessível em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/...
; QUIJANO, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Colección Sur Sur, CLACSO, setembro 2005. Acessível em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/
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), significa a imposição do rebaixamento de experiências, epistemologias, cosmovisões distintas dos parâmetros ocidentais.

Trata-se de impor o primado do modelo construído pelo ocidente, que no decorrer da sedimentação do modo capitalista privilegiou a prisão como pena exemplar (RUSCHE, 1999RUSCHE, Georg; KIRCHLEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1999.). O modelo de isolamento celular imposto pelo cárcere gesta uma infantilização do réu na medida em que o retira da sociedade. Zaffaroni (2007ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2007.) alerta para o falso discurso ressocializador da pena.

Serão os corpos entendidos historicamente como não-seres que sentirão o peso da estrutura punitiva, capturados dentro dessa normatividade penal. O desprezo por paradigmas não ocidentais de prestação da justiça coloca em cheque a aplicabilidade de normas com o intuito de ruptura com esse modelo que se propõe a ser universal, dentre elas cita-se a Resolução 287/19 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)4 4 Um dos casos onde a pronúncia não se baseou nas normativas asseguradoras de um juízo formado a partir do território indígena foi a ação penal nº 0039476-21.2019.8.16.0014 em Londrina. Os recursos da defesa argumentando a Convenção 169 da OIT e o direito de um Tribunal indígena foi negado e o julgamento do Tribunal do Júri ocorreu neste ano com a condenação do réu em 19 anos de pena. .

De fato, normatividades internacionais reconhecem a validade da justiça indígena como mediadora de conflitos ocorridos em seus territórios, como o art. 9° da Convenção 169 da OIT5 5 As experiências de tribunais comunitários apresentam limites nas matérias a serem julgadas fora da esfera estatal. De modo geral, crimes violentos ainda são circunscritos na órbita de competência da jurisdição do estado. Sara Araújo (2010) analisa a partir da experiência de Moçambique “em três períodos (colonialismo, socialismo, neoliberalismo/democracia) e analiso de que modo o Estado, em cada uma das fases, procurou integrar ou excluir as justiças comunitárias” (ARAÚJO, 2010, p. 2) demonstrando as múltiplas facetas dos modelos de tribunais comunitários e as interações entre esses direitos plurais. . No entanto, a formação positivista que marca os cursos jurídicos brasileiros parte de uma unidade entre estado, língua, povo, território, retirando possibilidades várias de resolução de conflitos não derivados da ação penal e da pena de prisão.

Analisar as duas ações, que oferecem o confronto resolutivo a partir do paradigma hegemônico ocidental e o contra-hegemônico de matriz não ocidental, a partir de uma leitura decolonial, nos abre possibilidades de pensar alternativas ao modelo punitivo no ocidente marcado por um encarceramento massivo dos indesejáveis.

1. A sedução das grades: A prisão como única alternativa penal.

Os estudos no campo da criminologia crítica apontam para o preocupante paradigma que sustenta o sistema penal ocidental: o dogma da pena, que se manifesta no encarceramento em massa vivenciado nas duas últimas décadas em escala global.

Álvaro Pires (2004PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos CEBRAP, N.° 68, março 2004, pp. 39-60.) pesquisa essa dimensão do dogma da pena fazendo uma recuperação histórica onde percebe, a partir da segunda metade do século XVIII, o que denomina como “racionalidade penal moderna”.

Trata-se de um sistema de pensamento ligado a um conjunto de práticas institucionais jurídicas que se designa como "justiça penal" ou "criminal", constituído por uma rede de sentidos com unidade própria no plano do saber e que liga estreitamente fatos e valores, o que lhe confere um aspecto normativo. Esse sistema de pensamento, que aqui denominarei como "racionalidade penal", produz um ponto de vista que contribui para construir um subsistema jurídico específico, o sistema penal moderno, e para justificar a forma específica que ele assume (PIRES, 2004PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos CEBRAP, N.° 68, março 2004, pp. 39-60., p 40)

Para Pires (2004PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos CEBRAP, N.° 68, março 2004, pp. 39-60.) o que se observa com a efetivação dessa racionalidade penal moderna é uma construção dogmática que se alicerça no paradigma prescrição-sanção. De um lado, uma norma de comportamento, fazer ou não fazer, de outro a sanção a ser aplicada na ocorrência da conduta delitiva.

O que Pires (2004PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos CEBRAP, N.° 68, março 2004, pp. 39-60.) esclarece é que esse modelo constrói uma dimensão impositiva na relação entre o comportamento e a sanção, estabelecendo que necessariamente deva haver uma punição correspondente ao comportamento tido como desviante. Mais. “É a pena aflitiva - muito particularmente a prisão6 6 Importante recuperar aqui o trabalho inaugural de Rusche (1999) acerca da pena de prisão como a pena ressignificada pelo capitalismo. Nesse aspecto, compreender a negação aos modelos penais das matrizes não ocidentais é pensar a partir de uma perspectiva contra hegemônica: no plano social, cultural, histórico, econômico, pois significa pensar uma sistemática penal para além dos interesses dominantes. Como nos lembra Pavarini (2002, p. 171), “las definiciones legales de criminalidad y de desviación tienen un origen político que remite directamente a las relaciones de poder y hegemonia em la sociedad”. - que assumirá o lugar dominante no auto-retrato identitário do sistema penal” (PIRES, 2004PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos CEBRAP, N.° 68, março 2004, pp. 39-60., p. 41).

Tal perspectiva fornecida por Pires (2004PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos CEBRAP, N.° 68, março 2004, pp. 39-60.) auxilia na compreensão de como se construiu na modernidade ocidental uma dimensão de pena, especialmente prisão, como o método de resolução de conflito, deslegitimando7 7 Wacquant (2001a) analisa essa sedução punitiva, tendo o encarceramento como meta política, e também aponta como uma dimensão do estado penal o que ele denomina como expansão horizontal penal, que se manifesta não só pela política de encarceramento, mas também por uma deslegitimação da adoção de outros métodos punitivos que não seja a prisão. Significa compreender que a estrutura de controle social penal se faz presente mesmo quando discursa em nome da despenalização ou da não prisão, como as “prisões domiciliares”. qualquer outra possibilidade que não tenha no horizonte a punição-prisão, tornando ineficaz qualquer tentativa de resolução de conflito que não passe pela esfera da jurisdição criminal.

O ocidente tornou hegemônica a combinação entre a estrutura ideológica8 8 Christie (1997) nos lembra que o crime não existe, pois “a compreensão dessas ações, o sentido dado a elas depende dos quadros sociais em que são vistas. Ações não existem, elas tornam-se! Elas adquirem significados através dos processos sociais. O crime não existe. Ele é criado através de processos sociais que dão sentido aos atos” (1997, p. 248). construída na relação crime-sanção ao mesmo tempo em que valora a necessidade de uma pena aflitiva, de tal maneira que experiências históricas onde o sistema punitivo nos crimes de homicídio, comportamento dos mais reprováveis, não se baseava em penas aflitivas, adotavam reparação pecuniária, acabaram sendo nomeados como povos bárbaros.

Pires (2004PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos CEBRAP, N.° 68, março 2004, pp. 39-60.) aponta para a relação que se constrói a partir do século XVIII onde a pena adquire o status de “melhor defesa contra o crime”. Deriva daí esse dogma da pena, fórmula que projeta um simbolismo para a pena, qual seja: o de convencimento social com sua potência de dissuadir terceiros de cometer delitos e, por óbvio, esse simbolismo de convencimento impõe a pena exemplar.

A partir do século XVIII o sistema penal projeta um auto-retrato identitário essencialmente punitivo, em que o procedimento penal hostil, autoritário e acompanhado de sanções aflitivas é considerado o melhor meio de defesa contra o crime ("só convém uma pena que produza sofrimento") (…) Essas teorias concebem a proteção da sociedade ou a afirmação das normas de modo hostil, abstrato, negativo e atomista. Hostil, por representarem o transgressor como um inimigo de todo o grupo e por estabelecerem uma equivalência necessária (mesmo ontológica) entre o valor do bem ofendido e o grau de sofrimento que se deve infligir ao transgressor. Abstrato porque, mesmo reconhecendo que a pena causa um mal concreto e imediato, concebem que esse mal produz um bem imaterial e mediato para o grupo ("restabelecer a justiça pelo sofrimento", "reforçar a moralidade das pessoas honestas", "dissuadir do crime") (PIRES, 2004PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos CEBRAP, N.° 68, março 2004, pp. 39-60., p. 43).

O modelo analisado por Pires (2004PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos CEBRAP, N.° 68, março 2004, pp. 39-60.) é o da formação do direito moderno ocidental, cuja racionalidade ao longo do processo histórico se construiu sob alguns pilares, como direito-lei, produto de uma autoridade legítima (estado), e na ventura de seu não cumprimento, a legitimidade do uso da força (WEBER, 1999WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília/DF, Ed. Universidade de Brasília, 1999.; HESPANHA, 2009HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito. O direito e a Justiça nos dias e no mundo hoje. Coimbra, Almedina, 2009.).

Esse modelo monista, eurocêntrico, solapa experiências fora do campo estatal, ao mesmo tempo em que estabelece uma “naturalização” das condutas entendidas como transgressoras, na medida em que gesta uma “obrigatoriedade” punitiva na proteção de bens jurídicos tidos como universais. Zaffaroni (2007ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2007.) nos lembra que a construção da retórica punitiva é estabelecida também por uma relação de poder, no caso, do poder soberano, logo, se opor às regras penais é se opor ao próprio poder soberano.

Não se trata aqui de negar as tensões produzidas pelos marcos do pluralismo jurídico e o debate trazido pelas Epistemologias do Sul que se farão presentes na produção de novos marcos teóricos para um constitucionalismo plurinacional e uma descolonização do direito (VIEIRA, CARLET e QUINTANS, 2018VIEIRA, Fernanda M.; CARLET, Flavia; QUINTANS, Mariana T. Rompiendo las cercas legales: el reconocimiento del territorio quilombola como camino para descolonizar el derecho. In MERINO, Roger; VALENCIA, Areli (coord). Pueblos indígenas, derechos humanos y Estado plurinacional. Lima, Ed. Palestra, 2018.), mas sim de se perceber as tensões desse embate no presente, em especial quando se discute questões da órbita penal, e, particularmente, no Brasil, ainda refratário e leniente na aplicação da Convenção 169 da OIT, bem como da Lei nº 6001/73 - o Estatuto do Índio e da resolução 287/19 do CNJ.

2. Pluralismo x Monismo: O direito à autodeterminação dos povos indígenas … pero no mucho!

Discutir os processos de Raposa Serra do Sol e Raposa Serra da Lua é ter em mente a permanência colonial na definição do poder de uma única autoridade legitimada a garantir e formular o direito: o Estado, e, com isso, invisibilizar, silenciar, cosmovisões de mundo distintas da hegemonizada pela modernidade ocidental.

Esse embate é ainda mais visível no processo ocorrido em Raposa Serra da Lua, visto que houve, de forma emblemática, o reconhecimento de que há multiplicidade de formas de produção do direito e que a Constituição, em seu artigo 231, assegura a autodeterminação, possibilitando que os povos indígenas efetivem suas formas próprias de resolução de conflitos, independente da forma estatal (BRASIL, 1988, art. 231).

Embora a Constituição brasileira reconheça aos indígenas o direito à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, o que compreende a organização de suas formas de jurisdição, outras constituições latino-americanas são mais explícitas no reconhecimento das jurisdições indígenas, como a Constituição do Peru de 19939 9 De acordo com o artigo 149 da Constituição Política do Peru de 1993, “Las autoridades de las Comunidades Campesinas y Nativas, con el apoyo de las Rondas Campesinas, pueden ejercer las funciones jurisdiccionales dentro de su ámbito territorial de conformidad con el derecho consuetudinario, siempre que no violen los derechos fundamentales de la persona. La ley establece las formas de coordinación de dicha jurisdicción especial con los Juzgados de Paz y con las demás instancias del Poder Judicial” (PERU, 1993). . No entanto, como nos alerta Victor Alvarez Pérez (2003) ao falar da experiência peruana e da recepção da Constituição à autodeterminação indígena:

Pese a que la Constitución reconoce a las comunidades campesinas y nativas el ejercicio de la función jurisdiccional, con lo cual les atribuye la posibilidad del iuris dictium, es decir, de dictar y tener su propio derecho, estableciéndose una salvedad al principio de la unidad y exclusividad de la función jurisdiccional, reconociendo también su derecho consuetudinario (conjunto de normas reconocidas y compartidas por una comunidad, grupo étnico, tribu, etc.), existe una visión etnocentrista e respecto de estas otras formas de regulación y de las normas consuetudinarias. Se tiende a ver el derecho de estas comunidades como "costumbres", como simples "creencias" que no tienen mayor relevancia ni incidencia en la vida de las personas y que no tiene mayor validez en el plano jurídico. Lo cierto es que estas normas rigen para grupos humanos organizados y les permite resolver sus conflictos de manera distinta a la forma en que los principios y doctrinas jurídicas de occidente los resuelven. El derecho consuetudinario y el derecho penal occidental se encuentran guiados por criterios y objetivos distintos (ALVAREZ PÉREZ, 2003ALVAREZ PÉREZ, V. El Derecho Penal frente a la diversidad cultural. Derecho & Sociedad, n. 20, p. 184-192, 3 maio 2003., p. 185).

Os estudos decoloniais nos auxiliam a compreender o processo de apagamento, rebaixamento e mesmo eliminação das matrizes não ocidentais. Esse rebaixamento se torna ainda mais complexo quando se debate a possibilidade de uma resolução de conflitos diferenciada no campo penal. Isto porque pensar o papel desempenhado pelas agências penais (ZAFFARONI, 2003ZAFFARONI, E. R.; BATISTA,N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume - Teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro, Revan, 2003.) no período contemporâneo de gestão do capital em uma ordem neoliberal, onde crescem os inimigos do soberano, é entender que a orientação do encarceramento em massa é uma determinação política e não decorrente de aumento da criminalidade (WACQUANT, 2001).

Segato (2021SEGATO, Rita. A cor do cárcere na América Latina. Notas sobre a colonialidade da justiça em um continente em desconstrução. In: SEGATO, Rita. Crítica da colonialidade em oito ensaios e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021.) aponta que o processo de encarceramento seletivo, a tortura na prisão e as execuções policiais atuais fazem parte da história única, antiga e contínua iniciada com o extermínio e expropriação fundadores da colonialidade. A “cor” dos cárceres é a marca da história de dominação colonial que continua até a atualidade, pois hegemonicamente os Estados Latino Americanos mantêm em seu interior a estrutura colonial e, portanto, a ordem racial (SEGATO, 2011) 10 10 Segato (2011) alerta que “a construção permanente da raça obedece ao propósito de subjugação e expropriação. Se é da ordem racial que emana a ordem carcerária, esta última realimenta, recria e reproduz aquela. E a ordem racial é a ordem colonial. Isso significa que a rotulagem que ocorre na execução policial e no processo judicial reforça e reproduz a rotulagem preexistente da raça, relançando-a no futuro como vetor de uma ordem colonial” (SEGATO, 2011, p. 298-299). .

Os dados sobre a população carcerária no Brasil demonstram um processo de encarceramento seletivo e em massa da população não branca, especialmente da população negra. Entretanto, pouco se fala do processo de invisibilização de indígenas dentro do sistema carcerário. Entidades que atuam com povos originários no Brasil apontam para a subnotificação dos dados de indígenas presos no país (RAMOS, 2021RAMOS, Beatriz Drague. Brasil tem ao menos 887 indígenas privados de liberdade; 22,2% estão em prisão provisória. Ponte, 15 out. 2021. Disponível em: https://ponte.org/brasil-tem-ao-menos-887-indigenas-privados-de-liberdade-222-estao-em-prisao-provisoria/. Acesso em: 20 dez. 2022.
https://ponte.org/brasil-tem-ao-menos-88...
).

Silva (2015SILVA, Tédney Moreira da. No banco dos réus, um índio: Criminalização de indígenas no Brasil. 2015. Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constituição) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília, Brasília (DF), 2015.) identificou em sua pesquisa de mestrado sobre os processos penais envolvendo indígenas na Justiça Criminal brasileira, que, embora superado pela Constituição Federal de 1988, o ideal assimilacionista da legislação indigenista está presente no tratamento jurídico-penal de indígenas.

Moreira (2014MOREIRA, Erika Macedo. ONHEMOIRÕ: o judiciário frente aos direitos indígenas. 2014. 274 f. Tese (Doutorado em Direito)-Universidade de Brasília, Brasília, 2014., p. 239), analisando as ações penais contra indígenas no cone sul do Mato Grosso do Sul, aponta que “a síntese do aculturado, portador de título eleitoral e carteira de trabalho, invisibiliza os sentidos de ser índio e os impactos sociais, culturais e econômicos que o encarceramento produz nele e na sua comunidade de origem”.

A resolução nº 287 de 2019, ao estabelecer procedimentos para o tratamento de pessoas indígenas no âmbito criminal do Poder Judiciário e o Julgamento como do Caso da Raposa Serra do Sol, procuram se afastar do paradigma assimilacionista e integracionista da legislação anterior ao marco da Constituição de 1988, mas não promovem uma ruptura com o paradigma colonial do direito penal.

A lógica do direito penal é diversa da perspectiva de direitos comunitários. De acordo com Alvarez Perez (2003):

No es la misma situación en el caso del Derecho Consuetudinario, puesto que las condiciones de las comunidades en las cuales se aplica son distintas. Las normas en el derecho consuetudinario están sustentadas en una serie de creencias y valores que se orientan más a la cohesión y al equilibrio en la comunidad y es la propia colectividad la que le otorga a éstas un carácter consensual a fin de que sean aceptadas por todos. En las comunidades o pueblos de diferente cultura a la "oficial", encontramos elementos particulares que le dan un contenido distinto: la oralidad de sus normas, su transmisión a través de una suerte de «herencia social», el hecho de tener como contexto relaciones sociales horizontales y una organización basada en los usos y costumbres tradicionales en donde la autoridad tiene un carácter muy representativo y democrático, además de que la orientación de la sanción es más hacia la reparación de daño que se pueda haber causado y hacia la reconciliación. (ALVAREZ PÉREZ, 2003ALVAREZ PÉREZ, V. El Derecho Penal frente a la diversidad cultural. Derecho & Sociedad, n. 20, p. 184-192, 3 maio 2003., p. 186).

A percepção de que a matriz de pensamento, logo, a raiz epistemológica ocidental se demarca pela exclusão ou redução de determinados saberes e/ou culturas e línguas é objeto de análise de Walter Mignolo (2008), para quem se torna um imperativo o exercício de uma desobediência epistêmica para se desvelar e romper com a tradição constitutiva do pensamento moderno calcado na noção de razão ocidental.

Em termos do campo jurídico pode-se pensar que gestar essa desobediência epistêmica na ruptura com a tradição ocidental de um direito marcado pela lei como expressão da vontade da sociedade, autoridade, universalidade e neutralidade.

Essa penetração capilar da ideologia colonial que tem na sua base constitutiva a redução do outro acaba se fazendo presente em muitos campos de conhecimento de forma tão “naturalizada”, quase imperceptível que acaba por estabelecer os limites da sua própria crítica aos mesmos paradigmas:

Uma das realizações da razão imperial foi a de afirmar-se como uma identidade superior ao construir construtos inferiores (raciais, nacionais, religiosos, sexuais, de gênero), e de expeli-los para fora da esfera normativa do “real” (MIGNOLO, 2008, p. 291).

Assim, trata-se de compreender a incapacidade de percepção do outro, cujos modos de vida, valores, hábitos serão rebaixados diante do modelo entendido como universal e racional. Essa relação de dominação do outro, entendido como um selvagem, um bárbaro, justifica as ações de controle mais violentas. Trata-se de uma vida sem significado para o colonizador. Fanon (2008FANON, Frantz. Pele Negra Máscara Branca. Salvador: EDUFBA, 2008.) destaca a criação de uma zona de não-ser pelo colonialismo, na qual as pessoas negras têm suas vidas rebaixadas e perdem a subjetividade diante dos europeu. Tal processo fundamenta os projetos de escravização e genocídio da população não branca.

Grosfoguel (2011GROSFOGUEL, Ramón. Racismo epistémico, islamofobia epistémica y ciencias sociales coloniales. Tabula Rasa, Bogota, n. 14, p. 341-355, enero-junio 2011. Disponível em: <http://www.revistatabularasa.org/numero-14/15grosfoguel.pdf>.
http://www.revistatabularasa.org/numero-...
) considera que os racismos e sexismos são mais visíveis e reconhecidos atualmente no plano social, econômico e político do que em termos epistemológicos. Entretanto,

el racismo epistémico es la forma fundacional y la versión más antigua del racismo en cuanto la inferioridad de los “no occidentales” como seres inferiores a lo humanos (no humanos o subhumanos) se define con base en su cercanía a la animalidad y el último con base en la inteligencia inferior y, por ende, la falta de racionalidad (GROSFOGUEL, 2011GROSFOGUEL, Ramón. Racismo epistémico, islamofobia epistémica y ciencias sociales coloniales. Tabula Rasa, Bogota, n. 14, p. 341-355, enero-junio 2011. Disponível em: <http://www.revistatabularasa.org/numero-14/15grosfoguel.pdf>.
http://www.revistatabularasa.org/numero-...
, p. 343)

Thula Pires (2018) discute o padrão adotado pelo modelo ocidental, com base na formação dos direitos humanos, centrado na noção do universal, que, por suposto, está configurado pelo universo europeu. Como alerta Thula Pires (2018, p. 3) “a partir do discurso dos direitos humanos, o centro europeu pretendeu salvar do destino primitivo, selvagem, subdesenvolvido e pré-moderno a que estavam fadados aqueles por eles atribuídos como periferia”.

Raquel Fajardo (2015FAJARDO, Raquel Z. Yrigoyen. Pluralismo jurídico y jurisdicción indígena en el horizonte del constitucionalismo pluralista. In: BALDI, Cesar (org.). Aprender desde o Sul: Novas constitucionalidades, pluralismo jurídico e plurinacionalidade. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 35-58.) apresentou, para fins didáticos, três ciclos de constitucionalismo na América Latina. O primeiro ciclo (1982-1988) foi marcado pelo multiculturalismo e o reconhecimento de direitos indígenas. O segundo ciclo (1989-2005) é marcado pelo reconhecimento da existência de Nações multiétnicas e multiculturais, o reconhecimento dos Estados Pluriculturais e do Pluralismo Jurídico, com o reconhecimento de autoridades indígenas, normas e procedimentos. O terceiro ciclo (2006-2009) é marcado pelos processos de refundação do Estado, com o reconhecimento dos Estados Plurinacionais (FAJARDO, 2015FAJARDO, Raquel Z. Yrigoyen. Pluralismo jurídico y jurisdicción indígena en el horizonte del constitucionalismo pluralista. In: BALDI, Cesar (org.). Aprender desde o Sul: Novas constitucionalidades, pluralismo jurídico e plurinacionalidade. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 35-58.).

Araújo Júnior (2018) destaca que as Constituições dos Estados da Bolívia (2009) e do Equador (2008) desse último período adotaram referenciais interpretativos que “objetivam desmonumentalizar o conhecimento e descolonizar os sentidos, não se apegando a certos padrões formais ocidentais e permitindo a abertura a outras culturas, com a preocupação de conferir-lhes o mesmo peso e voz nos diálogos interculturais” (ARAÚJO JÚNIOR, 2018, p. 92)”.

A Constituição Boliviana de 2009 estabeleceu como decorrência da autodeterminação dos povos indígenas a criação da jurisdição indígena originária campesina. Gladstone Leonel Júnior (2009) explica que as decisões tomadas pela jurisdição indígena originária campesina não podem ser revistas pelas outras jurisdições, exceto pelo Tribunal Constitucional Plurinacional.

Araújo Júnior (2018) avalia que a lei nº 07311 11 BOLÍVIA. Ley nº 073, de 29 de Deciembre de 2010. Regula los ámbitos de vigência, dispuestos em la Constitución Política del Estado, entre la jurisdicción indígena originaria campesina y las otras jurisdicciones reconocidas constitucionalmente. de 2010, que regulamentou a jurisdição indígena originária campesina, não teria cumprido o almejado pelo texto constitucional aprovado em 2009, permitindo que as tensões latentes sejam resolvidas de maneira contrária ou limitadoras às ideias de plurinacionalidade, pluralismo jurídico e interculturalidade. Como assinala o autor, “as perspectivas monoculturais e uninacional seguem introjetadas nas instituições e na sociedade” (ARAÚJO JÚNIOR, 2018, p. 98).

A Constituição Federal brasileira de 1988 foi fruto de uma intensa mobilização indígena nas décadas de 1970 e 1980, o que permitiu que fossem reconhecidos os direitos dos povos originários nos artigos 231 e 232 (LACERDA, 2008LACERDA, Rosane. Os Povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988. Brasília (DF): CIMI-Conselho Indigenista Missionário, 2008.; ARAUJO JÚNIOR, 2018ARAUJO JUNIOR, Julio José. Direitos territoriais indígenas. Uma interpretação Intercultural. Rio de Janeiro: Processo, 2018.).

A Constituição Federal de 1988 se situa no primeiro ciclo do constitucionalismo multicultural da América Latina, apontado por Fajardo (2015FAJARDO, Raquel Z. Yrigoyen. Pluralismo jurídico y jurisdicción indígena en el horizonte del constitucionalismo pluralista. In: BALDI, Cesar (org.). Aprender desde o Sul: Novas constitucionalidades, pluralismo jurídico e plurinacionalidade. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 35-58.), e representou uma mudança paradigmática para os direitos dos povos indígenas.

O atual texto constitucional brasileiro, aprovado há mais de três décadas atrás, pôs fim ao paradigma assimilacionista e integracionista e reconheceu a autonomia dos povos indígenas, seus modos de vida, costumes, tradições e suas terras. Entretanto, como esclarece Araújo Júnior (2018)

O fato de o texto em si não conter expressamente a mesma abertura à interculturalidade de outras Constituições latino-americanas não obstrui, de modo algum, o exercício de uma interpretação intercultural. O compromisso constitucional não se omite no dever de enfrentamento das colonialidades do ser, do saber e do poder, nem seu poder transformador. Ademais, como se viu, o aprofundamento da opção descolonial no texto constitucional é um novo horizonte nas disputas interpretativas quanto a seus significados (ARAÚJO JUNIOR, 2018, p. 201).

O embate sobre a autodeterminação dos povos indígenas se dará na definição da moldura dessa autodeterminação, ou dito de outra forma, na definição de seus limites, que em última análise são definidos e impostos pelo estado.

O artigo 5712 12 Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte. (BRASIL, 1973). da Lei 6001/73 - o estatuto do Índio - também prevê a legitimidade das justiças indígenas, mas justamente por se ler no referido artigo que a sua aplicação “será tolerada” é que o cerceamento ao modelo integralmente estabelecido pelas etnias indígenas é em larga escala suprimido, adotando-se integralmente o processo criminal estatal (SILVA, 2021).

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2019 aprovou a Resolução nº 287/2019, que busca unificar os procedimentos no sistema de justiça quando se está diante de pessoas indígenas acusadas.

Art. 7º A responsabilização de pessoas indígenas deverá considerar os mecanismos próprios da comunidade indígena a que pertença a pessoa acusada, mediante consulta prévia.

Parágrafo único. A autoridade judicial poderá adotar ou homologar práticas de resolução de conflitos e de responsabilização em conformidade com costumes e normas da própria comunidade indígena, nos termos do art. 57 da Lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio) (BRASIL, 2019).

E mais. A resolução do CNJ retira do foco a prática comum no sistema de justiça, como já mencionado, que é a verificação pelo julgador se se trata de um indígena ou pessoa totalmente integrada à cultura do estado-nação, adotando o parâmetro da autodeclaração.13 13 Conselho Nacional de Justiça, Resolução 287/2019: Art. 2º Os procedimentos desta Resolução serão aplicados a todas as pessoas que se identifiquem como indígenas, brasileiros ou não, falantes tanto da língua portuguesa quanto de línguas nativas, independentemente do local de moradia, em contexto urbano, acampamentos, assentamentos, áreas de retomada, terras indígenas regularizadas e em diferentes etapas de regularização fundiária. Art. 3º O reconhecimento da pessoa como indígena se dará por meio da autodeclaração que poderá ser manifestada em qualquer fase do processo criminal ou na audiência de custódia (BRASIL, 2019).

Eloy Amado e Victor Vieira (2021AMADO, Luiz Henrique Eloy; VIEIRA, Victor Hugo Streit. O tratamento jurídico-penal reservado aos indígenas sob a ótica intercultural e decolonial. Boletim IBCCRIM, ano 29, nº 339, Fevereiro - 2021. Acessível em https://ibccrim.org.br/publicacoes/edicoes/738/8415.
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) também analisam o papel significativo que a Resolução do CNJ trará para os futuros embates judiciais, pois uma das características de análise dos processos criminais é a negativa do laudo antropológico partindo o magistrado de um senso comum dos juristas (WARAT, 2002WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.) acerca do que é um indígena integrado e, portanto, aculturado:

Em viés contrário ao paradigma intercultural, a jurisprudência brasileira é repleta de decisões que dispensam a produção de laudo antropológico, já que o magistrado entende possuir condições de verificar somente pela análise de elementos formais, como grau de escolaridade e fluência da língua portuguesa, atividades laborais desempenhadas, posse de documentos, ser eleitor, saber dirigir veículo, entre outros, se o indígena está “integrado à comunhão nacional” e se é, portanto, completamente capaz de entender o caráter ilícito dos fatos ou de determinar-se de acordo com tal entendimento. No entanto, já que o julgador não possui a expertise necessária para compreender as especificidades culturais dos diversos povos indígenas, aqueles aspectos externos e meramente formais são insuficientes para compreender a identidade indígena, pois não dizem nada, por si só, a respeito do grau de internalização e introjeção da cultura indígena nos costumes, valores e práticas do réu, o qual pode mostrar-se externamente apto a todos os atos da vida, mas sem compreender perfeitamente o caráter ilícito da conduta ou, mesmo entendendo a ilicitude, não podendo determinar-se diferentemente por exigência de sua cultura. (AMADO; VIEIRA, 2021AMADO, Luiz Henrique Eloy; VIEIRA, Victor Hugo Streit. O tratamento jurídico-penal reservado aos indígenas sob a ótica intercultural e decolonial. Boletim IBCCRIM, ano 29, nº 339, Fevereiro - 2021. Acessível em https://ibccrim.org.br/publicacoes/edicoes/738/8415.
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, p. 11)

Em uma perspectiva pluralista jurídica, a interpretação dos direitos não pode ignorar as matrizes não ocidentais, potencializando-se assim espaços para os saberes historicamente subalternizados possam apresentar suas interpretações, valorizando outras epistemologias. É possível, pela abertura do texto constitucional, a interpretação intercultural de que o reconhecimento das formas de organização social das etnias indígenas no Brasil se expresse no reconhecimento das suas formas de mediação de conflitos, para além do modelo colonial da Justiça Criminal.

3 Podem os subalternos falarem? Ou são os intérpretes que falam? Análise dos processos judiciais

Analisamos14 14 Nosso interesse com relação aos dois processos estava em observar a retórica jurídica acerca de métodos distintos de julgamento, logo, ver como o sistema de justiça estatal dialoga (ou não) com formas jurídicas diferenciadas. Em razão desse ponto, analisaremos especificamente as decisões judiciais, tanto na 1ª instância, quanto na 2ª instância, pelas vias recursais, pois são nessas peças que se travam os embates acerca da jurisdição estatal x jurisdição autônoma dos povos indígenas. , para compreensão das possibilidades instauradas a partir de marcos punitivos fora da perspectiva ocidental, duas ações judiciais referentes a crimes contra a vida, de competência do Tribunal do Júri. Os processos ocorridos em Raposa Serra da Lua e Raposa Serra do Sol tornaram-se emblemáticos, mas possuem dinâmicas diferenciadas com relação ao cotejo com a forma organizativa jurídica não ocidental.

3.1 Raposa Serra da Lua

O processo de Raposa Serra da Lua se refere ao homicídio ocorrido em 26/06/2009 na comunidade indígena do Manoá, terra indígena Manoá/Pium, Região Serra da Lua, município de Bonfim-RR. De acordo com as narrativas processuais, dois irmãos, após consumo de bebida alcoólica brigaram e Denilson acabou desferindo facadas em Landerson, que faleceu em decorrência dos ferimentos.

Poucos dias após o ocorrido, “reuniram-se Tuxauas e membros do conselho da comunidade indígena do Manoá no dia 26/06/2009, conforme consta às fls. 68/73, para deliberar eventual punição ao índio Denilson. Após oitiva do acusado e de seus pais e outras pessoas, concluíram pela imposição de várias sanções, entre as quais a construção de uma casa para a esposa da vítima, a proibição de ausentar-se da comunidade do Manoá sem permissão dos Tuxauas". (RORAIMA, Ação Penal nº 0000302-88.2010.8.23.0090, 2013, p. 66).

Após essa primeira deliberação, no dia 06 de abril mais uma vez o Conselho das Lideranças Indígenas

“Tuxaus de várias comunidades, entre elas, Anauá, Manoá, Wai Wai, e servidores da Funai, estes últimos apenas presenciaram a reunião [...]. Após oitiva das autoridades indígenas, foi imposta ao indígena DENILSON as seguintes penalidades, conforme consta na ata de fls. 185/187: 1. "O índio Denilson deverá sair da Comunidade do Manoá e cumprir pena na Região Wai Wai por mais 5 (cinco) anos, com possibilidade de redução conforme seu comportamento; 2. Cumprir o Regimento Interno do Povo Wai Wai, respeitando a convivência, o costume, a tradição e moradia junto ao povo Wai Wai; 3. Participar de trabalho comunitário; 4. Participar de reuniões e demais eventos desenvolvido pela comunidade; 5. Não comercializar nenhum tipo de produto, peixe ou coisas existentes na comunidade sem permissão da comunidade juntamente com tuxaua; 6. Não desautorizar o tuxaua, cometendo coisas às escondidas sem conhecimento do tuxaua; 7. Ter terra para trabalhar, sempre com conhecimento e na companhia do tuxaua; 8. Aprender a cultura e a língua Wai Wai. 9. Se não cumprir o regimento será feita outra reunião e tomar outra decisão."” (RORAIMA, Ação Penal nº 0000302-88.2010.8.23.0090, 2013, p. 65).

O Ministério Público Estadual ofereceu a denúncia em face de Denilson em 2012, que foi recebida em 1º de março de 2012. Nesse momento, após a citação, é que Denilson toma ciência de que há uma ação contra ele e apresenta como defesa as sanções impostas pelo Conselho de Lideranças Indígenas.

O Juiz a quo marca a audiência de instrução e julgamento, mas um representante da Advocacia-Geral da União (AGU)15 15 A Advocacia-Geral da União (AGU) tem sua atribuição estabelecida no Artigo 131 da Constituição: “Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo”. , com atuação em questão indígena, requer sua habilitação para o exercício da defesa de Denilson e que seja declarada a incompetência do Juízo em razão da matéria, evitando-se o bis in iden, visto já ter havido condenação sobre a mesma ocorrência pelo Conselho de Lideranças Indígenas. O Ministério Público se manifesta contrário a tal tese e requer o prosseguimento do feito.

No entanto, o juízo monocrático entendeu pela perda do direito de punir do estado face ao julgamento realizado pela própria comunidade indígena, valendo-se da Constituição, do Estatuto do Índio, e da Resolução 169 da OIT

Uma vez acolhido o pensamento da ausência in casu ao direito de punir estatal, haja vista o caso sob análise encaixar-se perfeitamente ao previsto no art. 57, do Estatuto do Índio, advém a problemática da possibilidade de absolvição do acusado à luz dos institutos jurídicos penais e processuais penais, já referidas nesse ato judicial. Para o deslinde do imbróglio, é importante definir algumas premissas:

a) Nos casos em que autor e vítima são índios; fato ocorre em terra indígena, e não há julgamento do fato pela comunidade indígena, o Estado deterá o direito de punir e atuará apenas de forma subsidiária. Logo, serão aplicáveis todas as regras penais e processuais penais.

b) Nos casos em que autor e vítima são índios; o fato ocorre em terra indígena, e há julgamento do fato pela comunidade indígena, o Estado não terá o direito de punir. Assim, torna-se evidente a impossibilidade de se aplicar regras estatais procedimentais a fatos tais que não podem ser julgados pelo Estado.

In casu, o acusado índio Denilson foi julgado pelo Conselho das Comunidades Indígenas antes mesmo do início da instrução criminal, o que acarretaria, em tese, a absolvição sumária.

Contudo, é de comezinho conhecimento penal que absolvição sumária pressupõe análise de mérito, nos termos do art. 397, do CPP, e este representante do Estado-juiz não tem poder para tal, pois o Estado não detém o direito de punir nesse caso concreto. Em outras palavras, o Estado deve apenas pronunciar a sua ausência de poder de punir, uma vez que o acusado já foi julgado e condenado por quem detém o direito. (…) Ante ao exposto, deixo de apreciar o mérito da denúncia do Órgão Ministerial, representante do Estado, para DECLARAR A AUSÊNCIA IN CASU DO DIREITO DE PUNIR ESTATAL, em face do julgamento do fato por comunidade indígena, relativo ao acusado DENILSON TRINDADE DOUGLAS, brasileiro, solteiro, agricultor, nascido aos 13/03/89, filho de Alan Douglas e Demilza da Silva Trindade, com fundamento no art. 57, da Lei nº 6.001/73 e art. 231, da Constituição da República. (RORAIMA, Ação Penal nº 0000302-88.2010.8.23.0090, 2013, p. 66 - 67).

O debate trazido pelo Juiz a quo é bastante rico, não só pelo resgate das normas, incluindo a Convenção 169 da OIT, mas pelos limites que a jurisdição penal estatal possui diante da jurisdição indígena. Para o Juiz a quo, a competência para julgar pelo Estado só ocorre de forma subsidiária na ventura de não haver julgamento dos réus pelos próprios pares. Essa interpretação o fez decidir não pela absolvição sumária, solicitação da defesa, pois entendeu que tal possibilidade de sentenciar absolvendo sumariamente em decorrência de julgamento realizado pelas próprias formas organizativas de jurisdição indígena, significaria uma apreciação de mérito em um processo onde a jurisdição estatal não possuía competência para punir.

O juiz a quo encerra sua decisão discutindo os reflexos da mesma sobre o papel das duas jurisdições: estatal e indígenas.

5. FATOR DE FORTALECIMENTO DOS USOS, COSTUMES E TRADIÇÕES INDÍGENAS

Muito maior que o reconhecimento do direito de punir seus pares, as comunidades indígenas sentirão muito mais fortalecidas em seus usos e costumes, fator de integração e preservação de sua cultura, haja vista que o Estado estará sinalizando o respeito ao seu modo de viver e lhe dar (sic) com as tensões da vida dentro da comunidade.

Há quem pense e diga que haja o temor da repercussão social da fragilização do Estado ou o potencial recrudescimento da violência dentro das comunidades indígenas. Digo o inverso, o Estado não estará fragilizado, pois caso as comunidades indígenas não julguem seus pares, mantém-se o Direito de Punir Estatal, de forma subsidiária. Enfim, não se enfraquece de forma alguma o Poder Estatal, mas ao inverso, fortalece-se a atividade jurisdicional ao se reconhecer uma excepcionalidade que deve ser tratada de forma distinta, afinal o Estado não é absolutista. Nesse sentido, é a lição do então Ministro Carlos Ayres Brito, que na Relatoria da Ação Popular nº 3388 que pôs fim à pendenga judicial atinente à demarcação da terra Indígena Raposa/Serra do Sol, assim dissertou:

"...Como num aparelho auto-reverse, pois também eles, os índios, têm o direito de nos catequizar um pouco (falemos assim)...Equivale a dizer: assim como os não-índios conservam a sua identidade pessoal e étnica no convívio com os índios, os índios também conservam a sua identidade étnica e pessoal no convívio com os não-índios, pois a aculturação não é um necessário processo de substituição de mundividências (a originária a ser absorvida pela adquirida), mas a possibilidade de experimento de mais de uma delas. É um somatório, e não uma permuta, menos ainda uma subtração. (Processo Criminal nº 0000302-88.2010.8.23.0090) (DJE, 2013, p.p. 66/67).

O debate é levado à 2ª instância, o Tribunal de Justiça de Roraima, pois o Ministério Público recorreu da sentença, entendendo que teria havido “transgressão ao monopólio da ação penal pública incondicionada e violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição”. Mantém a perspectiva de que somente ao estado é cabível a ação penal.

A apelação não alterou o resultado, pois manteve-se o resultado da sentença:

APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO. CRIME PRATICADO ENTRE INDÍGENAS NA TERRA INDÍGENA MANOÁ/PIUM. REGIÃO SERRA DA LUA, MUNICÍPIO DE BONFIM-RR. HOMICÍDIO ENTRE PARENTES. CRIME PUNIDO PELA PRÓPRIA COMUNIDADE (TUXAUAS E MEMBROS DO CONSELHO DA COMUNIDADE INDÍGENA DO MANOÁ). PENAS ALTERNATIVAS IMPOSTAS, SEM PREVISÃO NA LEI ESTATAL. LIMITES DO ART. 57 DO ESTATUTO DO ÍNDIO OBSERVADOS. DENÚNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE DE PERSECUÇÃO PENAL. JUS PUNIENDI ESTATAL A SER AFASTADO. NON BIS IN IDEM. QUESTÃO DE DIREITOS HUMANOS. HIGIDEZ DO SISTEMA DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL PELA PRÓPRIA COMUNIDADE. LEGITIMIDADE FUNDADA EM LEIS E TRATADOS. CONVENÇÃO 169 DA OIT. LIÇÕES DO DIREITO COMPARADO. DECLARAÇÃO DE AUSÊNCIA DO DIREITO DE PUNIR ESTATAL QUE DEVE SER MANTIDA. APELO MINISTERIAL DESPROVIDO. - Se o crime em comento foi punido conforme os usos e costumes da comunidade indígena do Manoá, os quais são protegidos pelo art. 231 da Constituição, e desde que observados os limites do art. 57 do Estatuto do Índio, que deva penas cruéis, infamantes e a pena de morte, há de se considerar penalmente responsabilizada a conduta do apelado.

- A hipótese de a jurisdição penal estatal suceder à punição imposta pela comunidade indica clara situação de ofensa ao princípio non bis in idem.

- O debate passa a ser de direitos humanos quando se têm em conta não apenas direitos e garantias processuais penais do acusado, mas também direito à autodeterminação da comunidade indígena de compor os seus conflitos internos, todos previstos em tratados internacionais de que o Brasil faz parte.

- Embora ainda em aberto o debate no direito brasileiro, existe forte inclinação, sobretudo em razão da inspiração do seu preâmbulo, para se considerar a Convenção 169 da OIT (incluindo o seu art. 9º) como um tratado de direitos humanos, portanto com status supralegal, nos termos da jurisprudência do STF.

- Se até países como os Estados Unidos e a Austrália, que votaram contra a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, têm precedentes reconhecendo a autonomia do jus puniendi de seus povos autóctones em relação ao direito de punir do Estado, razoavelmente se conclui que esse reconhecimento também se impõe ao Brasil.

- Declaração de ausência do direito de punir do Estado mantida. - Apelo desprovido. (Jurisprudência TJRR - Jurisprudência/TJRR - Apelação Criminal nº 0000302-88.2010.8.23.0090 - RELATOR MAURO CAMPELLO)

Há um debate sobre a tese do bis in idem, a qual o juiz a quo não aceita por entender tratar-se de duplo jus puniendi:

Pois bem, rechaço em parte o argumento da ilustre Defesa. A uma, pois tenho que o imbróglio não se trata de bis in idem, mas de "Duplo jus Puniendi", em face do que dispõe o art. 57, da Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio). A duas, uma vez que não considero aplicáveis ao caso regras penais e processuais penais, in casu atinentes à competência processual penal, já que as normas relativas ao processo[,] instrumento determinado pelo direito por meio do qual o Estado poderá exercer o poder jurisdicional que lhe foi conferido[,], são limitadoras ao direito de punir estatal e não ao direito de punir das comunidades indígenas. Assim sendo, não poderá ser aplicado ao caso nenhum instituto afeto ao direito estatal. Resta, portanto, infrutífera, em parte, a alegação da Defesa (Processo Criminal nº 0000302-88.2010.8.23.0090) (DJE, 2013, p. 65)

O Desembargador Relator discorda da posição do juiz entendendo que o bis in idem não se refere a uma única entidade competente para julgar, assim, compreendeu que permitir o prosseguimento da ação penal configuraria bis in idem:

Tenho que a compreensão para o caso deve ser a que percebe violado o princípio non bis in idem no presente caso, não porque seja refratário a novos institutos que possam ser reconhecidos na casuística judicial, mas apenas porque me parece que o "Duplo Jus Puniendi" poderia acender um debate paralelo acerca de conflito de jurisdições, e que esse novel instituto não suplantaria adequadamente o argumento da acusação de que se havia violado na espécie princípio da inafastabilidade da jurisdição. Sobre este último ponto, se se reconhece que caso é de incompetência da jurisdição estatal em razão da matéria, haja vista o anterior julgamento pela comunidade, esvai-se a alegada violação ao art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. Ademais, o "Duplo Jus Puniendi", aparentemente alicerçado na hipótese de que o direito da comunidade indígena é autônomo em relação ao direito estatal, parece criar uma situação paradoxal, pois, a só tempo, afasta certas normas estatais ("[...] não considero aplicáveis ao caso regras processuais penais [...] já que as normas relativas ao processo [...] são limitadoras ao direito de punir estatal e não ao direito de punir das comunidades indígenas", cf. fls. 224), mas tolera a incidência de outras, como aquelas do Estatuto do Índio. (Jurisprudência TJRR - Jurisprudência/TJRR - Apelação Criminal nº 0000302-88.2010.8.23.0090 - RELATOR MAURO CAMPELLO)

3.2 Raposa Serra do Sol

O caso Raposa Serra do Sol foi considerado como o 1º Tribunal do Júri Indígena, tendo sido realizado em território indígena Raposa Serra do Sol, Centro Comunitário Maturuca, em abril de 2015. O caso é marcado por um conflito entre os dois irmãos Elcio da Silva Lopes e Valdemir da Silva Lopes, indígenas da comunidade da Enseada, de etnia Macuxi, e Antônio Alvino Pereira, indígena da comunidade do Orenduque, de etnia Patamona. O conflito aconteceu em um estabelecimento comercial conhecido por “Mercadinho dos Peões”, situado na sede do Município de Uiramutã, e teria se instaurado diante da percepção dos irmãos de que Antônio seria uma entidade, kanaimé, que de acordo com o laudo antropológico juntado aos autos:

“(...) o kanaimé é necessariamente um Outro, com o qual não se tem, teve ou se pretende ter alguma relação. (…) Representações contemporâneas sobre o kanaimé atualizam seu poder de se tornar invisível e o classificam como assassino, atemorizador, “bandido, guianense, perseguidor, rabudo, entre outras”. Às vezes não age mais nas sombras, procura conversar, se apresenta pessoalmente para lutar. (Autos do processo, fls. 173 apud AZEVEDO, 2021, pág. 103)”.

De forma diversa do ocorrido em Raposa Serra da Lua, os réus foram pronunciados pela tentativa de homicídio:

O caso é de PRONÚNCIA.

Com efeito, nesta fase, dois requisitos são suficientes para o encaminhamento dos acusados para julgamento no Júri Popular, vale dizer, a existência do crime e os indícios da autoria. E estes dois requisitos foram demonstrados a contento. O presente processo criminal visa apurar a ocorrência do crime de homicídio, previsto no art. 121, §2º, incisos I e IV c/c art. 14, inciso II, do Código Penal Brasileiro.

No caso em exame, a materialidade restou comprovada pelo laudo de exame de corpo de delito. No tocante aos indícios de autoria, estes podem ser observados nas informações prestadas pelos depoimentos em juízo do acusado, das testemunhas e da própria vítima.

Assim, sendo necessária tão-só a existência de crime e indicação de indícios, devendo qualquer esclarecimento ser prestado aos jurados em plenário. Friso, outrossim, que todas as demais questões competem aos jurados decidirem, de modo que neste momento ao Magistrado cumpre unicamente observar se há provas indiciárias da existência regular de tais fatos.

Nesta senda, PRONUNCIO os réus ELCIO DA SILVA LOPES e VALDEMIR DA SILVA LOPES como incursos nas penas do art. 121, §2º, incisos I e IV c/c art. 14, inciso II, do Código Penal Brasileiro. (Processo Criminal nº 0000166-27.2013.8.23.0045 - Diário da Justiça Eletrônico, 2015, p. 75).

O Conselho de Sentença foi composto integralmente por indígenas de diversas etnias. De acordo com Thais Azevedo (2021),

O Poder Judiciário de Roraima, representado pelo juiz do caso, realizou reuniões com os líderes indígenas da região e assembleia datada no último desses encontros (dezembro de 2014), em que pelo menos 270 lideranças foram favoráveis à realização da sessão de julgamento na TI Raposa Serra do Sol. Em sua concepção inicial, o Tribunal do Júri configura a participação popular direta nos julgamentos proferidos pelo Poder Judiciário, de modo a assegurar que o réu seja julgado por seus semelhantes. Por isso, o Conselho de Sentença composto por indígenas atenderia a ideia do julgamento pelos próprios “pares”, não se afastando da lógica idealizada para o julgamento. (AZEVEDO, 2021, p. 106)16 16 O Tribunal do Júri de Raposa Serra do Sol foi amplamente divulgado nas mídias como o 1º Tribunal Popular Indígena, mas ainda que se reconheça o grau de inovação que tal experiência trouxe, ecoa a fala coordenador regional da região das serras, Zedoeli Alexandre, avaliou o julgamento dos 'brancos' como brutal, como já exposto acima. Apesar de se reconhecer o pioneirismo fica a angustiante pergunta se a performance de um Tribunal do Júri, ainda que composto exclusivamente por indígenas, para julgar indígenas, é a forma jurídica que os povos originários construíram para julgar seus conflitos ou se não se está impondo a forma processual do ocidente como a única mediação jurídica válida para julgar casos dos crimes contra a vida. Azevedo (2019) também apresenta no final do seu texto uma entrevista na qual “Julio Macuxi enfatizou também que, na visão dos indígenas, a realização do Tribunal do Júri no malocão da homologação da terra indígena, com o objetivo dos indígenas de entenderem o funcionamento e o julgamento dos delitos por parte do Poder Judiciário, foi prejudicada por conta do tom desrespeitoso e acalorado traduzido em plenário na atuação da Defensoria Pública e do Ministério Público” ( AZEVEDO, 2019, p. 118).

Ao final, o Conselho de Sentença desclassificou o homicídio para lesões corporais, condenando Valdemir à pena de 03 (três) meses de detenção, no regime inicial aberto, e absolveu Elcio da mesma tipificação. O Ministério Público recorreu, inclusive argumentando contrariamente a composição do Conselho de Sentença por ser integralmente indígenas, que, de acordo com o MPE seria a configuração de um tribunal de exceção, mas o Tribunal de Justiça de Roraima manteve a decisão do Conselho de Sentença:

Não merece amparo o pleito acusatório. Insurge-se o Ministério Público contra a formação do Conselho de Sentença, sustentando que irregularidades em relação ao alistamento e escolha dos jurados permitiram a instalação de verdadeiro tribunal de exceção.

Não obstante, depreende-se dos autos que todas as fases para a formação do Conselho de Sentença foram fielmente cumpridas pelo juízo a quo. Inicialmente, conforme determinado pelos arts. 425 e 426 do CPP, o Presidente do Tribunal do Júri da Comarca de Pacaraima publicou a lista geral de jurados, contendo o alistamento de 144 (cento e quarenta e quatro) cidadãos daquele município, para atuarem como jurados nas Sessões que ocorressem no egrégio Tribunal do Júri da Comarca no ano de 2015 (Diário da Justiça Eletrônico - Edição 5417, de 19/12/2014).

Ressalte-se que, apesar de o art. 581, XIV, do CPP possibilitar a interposição de recurso em sentido estrito da decisão que "incluir jurado na lista geral ou desta o excluir", nada foi arguido pelo Parquet de primeiro grau. (...)

Assim, ainda que houvesse a nulidade arguida, deve-se ressaltar que "as eventuais irregularidades havidas no ato de sorteio de jurados e de convocação de suplentes devem ser concebidas como nulidades relativas, que merecem ser levantadas no momento oportuno, qual seja, antes da sessão de julgamento pelo Tribunal do Júri, sob pena de preclusão, o que não ocorreu no caso concreto" (APELAÇÃO CRIMINAL N.º 0045.13.000166-7 / PACARAIMA. Apelante: Ministério Público de Roraima.1.º Apelado: Valdemir da Silva Lopes. 2.º Apelado: Elcio da Silva Lopes. Relator: Des. Ricardo Oliveira).

Há um aspecto curioso na argumentação do parquet com relação à nulidade do Conselho de sentença ser composto integralmente por indígenas, logo configurando um tribunal de exceção. Curioso porque não há a mesma formulação do Ministério Público quando os Conselhos de Sentença são compostos integralmente por não indígenas, ou mesmo quando se tem um réu negro e um conselho de sentença composto integralmente por brancos, o que nos remete a lógica hegemônica ocidental que se percebe como o padrão, o modelo, a ser seguido.17 17 O voto do Desembargador Relator apenas adentrou nos limites processuais, e como o questionamento do MPE não se deu no ato da formação do Conselho, entendeu o Tribunal pela preclusão, visto que a nulidade do ato processual só se configura 1º quando manifestado no tempo do ato (lapso temporal) e 2º se do ato ocorrer prejuízo às partes.

4 Serra dos Sol e Serra da Lua: possibilidades novas para o campo penal?

A análise dos dois processos desvela a relação ainda conflitiva no que se refere ao direito garantido constitucionalmente, por normas internacionais e mesmo nacional acerca do direito indígena à produção da sua regulação autônoma, inclusive jurídica. Tédney Silva (2015SILVA, Tédney Moreira da. No banco dos réus, um índio: Criminalização de indígenas no Brasil. 2015. Dissertação (Mestrado em Direito, Estado e Constituição) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília, Brasília (DF), 2015.), em sua dissertação de mestrado, analisa como o processo de criminalização indígena e o uso do processo penal estatal tem como objeto a invisibilização (ou eliminação) das formas de existir e se organizar distintas das etnias indígenas, especialmente porque a defesa do uso do processo criminal estatal reside, quando um réu é indígena, em afirmar sua integração total aos valores e costumes nacionais, com isso, suprime-se a diversidade que compõem a própria vida humana desde tempos imemoriais.

Eloy Amado e Victor Vieira (2021AMADO, Luiz Henrique Eloy; VIEIRA, Victor Hugo Streit. O tratamento jurídico-penal reservado aos indígenas sob a ótica intercultural e decolonial. Boletim IBCCRIM, ano 29, nº 339, Fevereiro - 2021. Acessível em https://ibccrim.org.br/publicacoes/edicoes/738/8415.
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) também discutem a permanência de um rebaixamento dos indígenas nos debates sobre a culpabilidade do agente-réu indígena, margem aberta pelo estatuto do Índio (Lei nº 6001/73), que em seu artigo 56 estabelece que: “No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola”.

Ainda se vislumbra a tese (lombrosiana) de que se está diante de uma pessoa intelectualmente e culturalmente inferior. O que nos remonta ao debate realizado por Nina Rodrigues (1957RODRIGUES, Raymundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil com um estudo do professor Afranlo Peixoto. Rio de Janeiro, Ed. Guanabara 1957.) ao discutir as responsabilizações penais e defender um tratamento diferenciado para negros, índios e mestiços - produtos das chamadas raças inferiores - no Código Penal Brasileiro. Seu argumento partia do pressuposto equivocado de que haveria uma diferença fundamental entre as raças no que se referia à sua constituição mental

Nos processos de Serra da lua e Serra do Sol o debate não se dá sob parâmetros rebaixados, mas sim da possibilidade ou não de um exercício autônomo no campo penal, conforme previsão normativa, ou se isso significaria uma quebra do princípio constitucional de inafastabilidade da prestação jurisdicional. Trata-se de um debate que acaba por hierarquizar saberes e procedimentos, logo, uma primazia do modelo ocidental para prestação jurisdicional.

Daí Eloy Amado e Victor Vieira (2021AMADO, Luiz Henrique Eloy; VIEIRA, Victor Hugo Streit. O tratamento jurídico-penal reservado aos indígenas sob a ótica intercultural e decolonial. Boletim IBCCRIM, ano 29, nº 339, Fevereiro - 2021. Acessível em https://ibccrim.org.br/publicacoes/edicoes/738/8415.
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) apontarem para a perspectiva da desobediência epistemológica:

desobediência epistêmica envolve um pensamento crítico de fronteira capaz de formular respostas epistemológicas dos subalternos ao projeto eurocêntrico da modernidade, visando superar as relações de opressão, exploração e pobreza perpetuadas nas relações de poder internacional. Tal pensamento fronteiriço ressignifica a ideia de democracia pela ótica de outra cosmologia, o que envolve não necessariamente inventar novos conceitos, às vezes necessários, mas se trata especialmente de resgatar os “conhecimentos outros que foram silenciados e enterrados pela colonização ocidental e que agora saíram para o espaço público com os movimentos indígenas, os movimentos negros, etc (AMADO; VIEIRA, 2021AMADO, Luiz Henrique Eloy; VIEIRA, Victor Hugo Streit. O tratamento jurídico-penal reservado aos indígenas sob a ótica intercultural e decolonial. Boletim IBCCRIM, ano 29, nº 339, Fevereiro - 2021. Acessível em https://ibccrim.org.br/publicacoes/edicoes/738/8415.
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, p. 11)

Nils Christie (1997CHRISTIE, Nils. Civilidade e Estado. In PASSETTI, Edson et al (orgs.). Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo, IBCCRIM, 1997.) também propõe uma nova perspectiva para a relação processual, que possui sua figura simbólica construída no modelo piramidal imposto pela modernidade ocidental ou num modelo de prestação que ele denomina “justiça industrializada”, que se caracteriza por ser uma “justiça para reduzir desacordos, harmoniosamente com a demanda por eficiência e, portanto, facilmente aceita em nossos tempos (…) são modelos nos quais as complexidades dos conflitos são eliminadas para se criar uma situação onde o que é chamado crime possa ser facilmente pesado em relação à pena” (p. 251). Christie (1997) irá contrapor esse modelo piramidal, construído a partir de uma autoridade hierárquica (estado), a um modelo elíptico, horizontal, uma expressão de prestação a partir da sociedade civil.

No cotejo entre os dois processos (Serra do Sol e Serra da Lua), a possibilidade do embate pelo reconhecimento da prestação jurisdicional advinda das etnias envolvidas no conflito tem nos laudos antropológicos um papel importante em ambos os processos. No processo de Raposa Serra da Lua, o juiz a quo se utiliza do laudo antropológico como forma de legitimar o papel desempenhado pelo Conselho das Comunidades Indígenas e a pena aplicada, pois como se trata de uma modelagem diversa da que o ocidente costuma aplicar em casos de homicídio (prisão), o uso do laudo reforça o livre convencimento do juiz, regra necessária para validação de uma sentença.

No processo ocorrido em Raposa Serra do Sol, o laudo antropológico não serviu para impedir que o Tribunal do Júri ocorresse, mas foi citado pelo Juiz a quo no momento da pronúncia dos réus. O Juiz reconhece se tratar de indígenas, mas entende que a soberania do Tribunal do Júri não pode ser relegada na 1ª fase18 18 O Brasil adota em seu Código de Processo Penal duas fases para verificação da competência do Tribunal do Júri. Em um 1º momento, se verifica pelo procedimento criminal ordinário se se trata de um caso a ser destinado ao Júri, com o resultado final na sentença de pronúncia. O 2º momento é a ocorrência do Tribunal do Júri propriamente dito. da ação.

Por se tratar de competência imposta pela Constituição, a definição de que se trata de crime a ser apreciado ou não pelo Júri deve ser do próprio Tribunal do Júri. O juiz entendeu que negar essa fase é retirar o papel soberano do Conselho de Sentença. Mas, o laudo antropológico o fez chamar para compor os autos o Ministério Público Federal, como responsável pelas questões indígenas:

E, ainda, determino a intervenção do Ministério Público Federal no feito, pois apesar de não se tratar de feito atinente aos "direitos indígenas", o que atrairia a competência da Justiça Federal, cuida-se de peculiar feito meritório e procedimental, haja vista a principal alegação de defesa centrar-se em tradição indígena - "Kanaimé19 19 Interessante ver como a defesa teve a preocupação de apresentar esse tema, buscando resgatar a cosmovisão indígena sem permitir que a cultura jurídica ocidental, tão refratária às matrizes culturais não ocidentais, transformasse tal tema numa banalização. Ver: Azevedo, 2019. " -, e o pretenso ato ilícito criminal ter ocorrido em terra indígena, e terem indígenas como réus e vítima, o que reclama a realização da sessão do Júri em Terra Indígena, com jurados indígenas com o fito de dar legitimidade ao ato, uma vez que serão julgados "verdadeiramente" por seus próprios pares.

Prova disso se faz com o requerimento, formulado pela defesa dos réus, e deferido por este Juízo para elaboração de Laudo Antropológico, que deverá ser juntado aos autos antes da manifestação das partes na fase do artigo 422, do CPP. (Processo Criminal nº 0000166-27.2013.8.23.0045, DJE, 2015, p. 075)

Há um aspecto tanto da sentença, quanto no voto do desembargador relator, do caso Raposa Serra da Lua, que se torna fundamental para o debate da autonomia jurisdicional indígena: ambos se utilizam do debate instaurado pelos direitos humanos, na medida em que analisam a partir dos marcos internacionais e constitucional.

A recuperação da fundamentalidade dos direitos humanos (FLORES, 2009FLORES, Joaquin Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis, Fundação Boiteux, 2009.), tema que transcende a simples métrica imposta pela técnica processual, desvela um necessário conhecimento transdisciplinar, para além do conhecimento construído classicamente no campo jurídico, ainda assentado numa teoria pura do direito, onde qualquer interface com outros saberes não possui valor jurídico e sim metajurídico.

À medida que do que se trata aqui é de violação à regra non bis in idem, tem-se então uma questão envolvendo claramente direitos humanos. Em primeiro lugar, porque a vedação non bis in idem corresponde a um direito humano previsto em instrumento internacional, conforme se pode ver no art. 8, 4, da Convenção Americana de Direitos Humanos, tratado de direitos humanos do qual o Brasil faz parte: "Artigo 8. Garantias judiciais [...] 4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos" (destaquei). Trata-se, pois, de uma regra universalmente aceita pelos Estados democráticos, a qual pode ser interpretada, como o é no Brasil, para impedir a injustiça que há na aplicação de uma pena no Estado contra um ofensor já punido no âmbito estrito de sua comunidade de vivência. Embora vetusta em muitos pontos, em relação a este que se discute a Lei nº 6.001/1973 (Estatuto do Índio) deve ser considerada modelar ao prever expressamente a possibilidade de sanções penais ou disciplinares por comunidades indígenas contra seus próprios membros, o que, por inferência lógica que observe o non bis in idem, afasta a jurisdição penal estatal. (Jurisprudência TJRR - Jurisprudência/TJRR - Apelação Criminal nº 0090100003020 - RELATOR(A) MAURO CAMPELLO)

Conclusão

No presente artigo, analisamos, de forma comparada, dois processos legais contra pessoas indígenas acusadas de homicídios ocorridos em territórios tradicionais: um em Raposa Serra do Sol e outro em Raposa Serra da Lua. A análise comparativa foi cotejada com algumas teorias decoloniais (MIGNOLO, 2005MIGNOLO, Walter D. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Colección Sur Sur, CLACSO, setembro 2005. Acessível em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/
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; QUIJANO, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Colección Sur Sur, CLACSO, setembro 2005. Acessível em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/
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; PIRES, 2018; GROSFOGUEL, 2011GROSFOGUEL, Ramón. Racismo epistémico, islamofobia epistémica y ciencias sociales coloniales. Tabula Rasa, Bogota, n. 14, p. 341-355, enero-junio 2011. Disponível em: <http://www.revistatabularasa.org/numero-14/15grosfoguel.pdf>.
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), a fim de examinar a relação entre sistemas punitivos indígenas e a matriz ocidental do aparato punitivo autoproclamado como moderno e racional.

No caso da Raposa Serra da Lua, originado de um crime de homicídio ocorrido em 2009 na região de Serra da Lua, a decisão de pronúncia ou não pela Justiça Criminal de Roraima foi precedida por decisão tomada em reunião do Conselho da comunidade indígena do Manoá com a lideranças indígenas de várias comunidades, que impuseram sanções diferentes das elencadas na legislação penal brasileira e que não incluíram a pena de prisão. Nesse sentido, o julgamento de Raposa Serra da Lua foi paradigmático, pois desvelou potencialidades no exercício da diversidade de matrizes e cosmovisões, especialmente na área penal, cuja matriz ocidental é demarcada pela unicidade de resposta: prisão.

Já o caso Raposa Serra do Sol diverge substantivamente. Ele é considerado por diversas autoridades do sistema de justiça como o modelo de prestação jurisdicional por ter o corpo do Conselho de Sentença formado integralmente por indígenas de múltiplas etnias. Entretanto, após o resultado final, o julgamento dos brancos foi avaliado como “brutal” por uma liderança indígena, o que nos levou ao questionamento sobre se o Tribunal poderia ser caracterizado como expressão não ocidental em termos de punição apenas pelo fato de ser composto por jurados indígenas. Aparentemente, no caso houve a reprodução da forma ocidental de apreciação de crimes contra a vida.

Há muito com que o ocidente deve aprender e reformular a partir do diálogo entre saberes. E termos um debate que traga os direitos humanos para a formulação jurídica é fundamental para uma percepção de que, como nos lembra Flores (2009FLORES, Joaquin Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis, Fundação Boiteux, 2009.), os direitos humanos são instrumentos de luta para efetivação do “acesso aos bens necessários para a vida” (2009, p. 28), porque direitos humanos são “dinâmicas sociais que tendem a construir condições materiais e imateriais necessárias para conseguir determinados objetivos genéricos que estão fora do direito” (2009, p. 29).

O processo do caso Raposa Serra da Lua nos permite vislumbrar a efetivação de um projeto marcado por uma troca de saberes onde se rompe com as hierarquizações de saberes, com o silenciamento e rebaixamento das experiências das matrizes não ocidentais.

Essa troca de saberes possibilita o aprendizado pela matriz ocidental. No campo penal é fundamental termos possibilidades para além do fracassado modelo de encarceramento, que marca a lógica punitiva, como nos lembra Pires (2004PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos CEBRAP, N.° 68, março 2004, pp. 39-60.). Como fundamenta o juízo a quo do processo Raposa Serra da Lua, uma possibilidade de:

"...Como num aparelho auto-reverse, pois também eles, os índios, têm o direito de nos catequizar um pouco (falemos assim)...Equivale a dizer: assim como os não-índios conservam a sua identidade pessoal e étnica no convívio com os índios, os índios também conservam a sua identidade étnica e pessoal no convívio com os não-índios, pois a aculturação não é um necessário processo de substituição de mundividências (a originária a ser absorvida pela adquirida), mas a possibilidade de experimento de mais de uma delas. É um somatório, e não uma permuta, menos ainda uma subtração. (RORAIMA, Ação Penal nº 0000302-88.2010.8.23.0090, 2013, p. 67)

Os casos de Raposa Serra da Lua e Raposa Serra do Sol nos demonstraram que o racismo epistemológico, marca da formação da modernidade ocidental, pode e deve ser superado e a luta indígena pelo reconhecimento do seu poder jurisdicional, pela autonomia de seus territórios. Afinal, é uma luta que instaura potencialidades no processo de emancipação da vida, pois, como descreve o poeta Mia Couto, em seu poema Identidades: ”Preciso ser um outro para ser eu mesmo. Sou grão de rocha. Sou o vento que a desgasta. Sou pólen sem inseto. Sou areia sustentando, o sexo das árvores. Existo onde me desconheço, aguardando pelo meu passado, ansiando a esperança do futuro. No mundo que combato morro, no mundo por que luto nasço”.

Concluímos que é possível que a abertura do texto constitucional, com uma interpretação intercultural, permita o reconhecimento dos variados modos de organização social das diversas etnias indígenas no Brasil, possibilitando formas de mediação de conflito para além e a contrapelo do modelo colonial da Justiça Criminal.

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  • WALSH, Catherine. Interculturalidad y colonialidad del poder. Un pensamiento y posicionamiento otro desde la diferencia colonial. In WALSH, C.; MIGNOLO, Walter; LINERA, Alvaro Garda. Interculturalidad, descolonizacion del Estado y del conocimiento. Buenos Aires: Del Signo. 2006.
  • WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
  • WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília/DF, Ed. Universidade de Brasília, 1999.
  • ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2007.
  • ZAFFARONI, E. R.; BATISTA,N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume - Teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro, Revan, 2003.

Processos analisados

  • RORAIMA. Raposa Serra da Lua - Processo Criminal nº 0000302-88.2010.8.23.0090. Sentença acessível em: Diário da Justiça Eletrônico. Boa Vista, 5 de setembro de 2013, ANO XVI - EDIÇÃO 5107; Acórdão acessível em Diário da Justiça Eletrônico. Boa Vista, 17 de fevereiro de 2016, ANO XIX - EDIÇÃO 5683. Jurisprudência TJRR - Jurisprudência/TJRR - Apelação Criminal nº 0000302-88.2010.8.23.0090 - Acessível em https://jurisprudencia.tjrr.jus.br/juris/index.xhtml;jsessionid=ZxGtALh-kpcEXpXcIGBXRDrdNl8LSUBHbXEuEmJx.prod-oraclelinux8-wildfly1-base
    » https://jurisprudencia.tjrr.jus.br/juris/index.xhtml;jsessionid=ZxGtALh-kpcEXpXcIGBXRDrdNl8LSUBHbXEuEmJx.prod-oraclelinux8-wildfly1-base
  • RORAIMA. Raposa Serra do Sol - Processo Criminal nº 0000166-27.2013.8.23.0045. Sentença de pronúncia acessível em Diário de Justiça Eletrônico. Boa Vista, 7 de fevereiro de 2015, ANO XVIII - EDIÇÃO 5447 074/128; Acórdão - sistema eletrônico do TJRR.
  • 1
    No ponto 3 serão apresentados os detalhes do processo.
  • 2
    No ponto 3 serão apresentados os detalhes do processo.
  • 3
    “1. O índio Denilson deverá sair da Comunidade do Manoá e cumprir pena na Região do Wai Wai por mais 5 (cinco) anos com possibilidade de redução conforme seu comportamento; 2. Cumprir o Regimento Interno do Povo Wai Wai, respeitando a Convivência, o costume, a tradição e moradia junto ao povo Wai Wai; 3. Participar de trabalho comunitário; 4. Participar de reuniões e demais eventos desenvolvidos pela comunidade; 5. Não comercializar nenhum tipo de produto, peixe ou coisas existentes na comunidade sem permissão da comunidade juntamente com o tuxaua; 6. Não desautorizar o tuxaua, cometendo coisas às escondidas sem conhecimento do tuxaua; 7. Ter terra para trabalhar, sempre com conhecimento e na companhia do tuxaua; 8. Aprender a cultura e a língua Wai Wai; 9. Se não cumprir o regimento será feita outra reunião e tomar (sic) outra decisão". (RORAIMA, Apelação Criminal nº 0000302-88.2010.8.23.0090, 2013, p. 224).
  • 4
    Um dos casos onde a pronúncia não se baseou nas normativas asseguradoras de um juízo formado a partir do território indígena foi a ação penal nº 0039476-21.2019.8.16.0014 em Londrina. Os recursos da defesa argumentando a Convenção 169 da OIT e o direito de um Tribunal indígena foi negado e o julgamento do Tribunal do Júri ocorreu neste ano com a condenação do réu em 19 anos de pena.
  • 5
    As experiências de tribunais comunitários apresentam limites nas matérias a serem julgadas fora da esfera estatal. De modo geral, crimes violentos ainda são circunscritos na órbita de competência da jurisdição do estado. Sara Araújo (2010ARAÚJO, Sara. O Estado moçambicano e as justiças comunitárias: Uma história dinâmica de imposições e respostas locais diferenciadas. 7.º CONGRESSO IBÉRICO DE ESTUDOS AFRICANOS, LISBOA, 2010. Acessível em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/42715/1/O%20Estado%20mo%C3%A7ambicano%20e%20as%20justi%C3%A7as%20comunit%C3%A1rias.pdf.
    https://estudogeral.uc.pt/bitstream/1031...
    ) analisa a partir da experiência de Moçambique “em três períodos (colonialismo, socialismo, neoliberalismo/democracia) e analiso de que modo o Estado, em cada uma das fases, procurou integrar ou excluir as justiças comunitárias” (ARAÚJO, 2010ARAÚJO, Sara. O Estado moçambicano e as justiças comunitárias: Uma história dinâmica de imposições e respostas locais diferenciadas. 7.º CONGRESSO IBÉRICO DE ESTUDOS AFRICANOS, LISBOA, 2010. Acessível em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/42715/1/O%20Estado%20mo%C3%A7ambicano%20e%20as%20justi%C3%A7as%20comunit%C3%A1rias.pdf.
    https://estudogeral.uc.pt/bitstream/1031...
    , p. 2) demonstrando as múltiplas facetas dos modelos de tribunais comunitários e as interações entre esses direitos plurais.
  • 6
    Importante recuperar aqui o trabalho inaugural de Rusche (1999RUSCHE, Georg; KIRCHLEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1999.) acerca da pena de prisão como a pena ressignificada pelo capitalismo. Nesse aspecto, compreender a negação aos modelos penais das matrizes não ocidentais é pensar a partir de uma perspectiva contra hegemônica: no plano social, cultural, histórico, econômico, pois significa pensar uma sistemática penal para além dos interesses dominantes. Como nos lembra Pavarini (2002PAVARINI, Massimo. Control y dominación: teorías criminológicas burguesas y proyecto hegemónico. Buenos Aires, Siglo XXI Editores, 2002., p. 171), “las definiciones legales de criminalidad y de desviación tienen un origen político que remite directamente a las relaciones de poder y hegemonia em la sociedad”.
  • 7
    Wacquant (2001aWACQUANT, Löic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001a.) analisa essa sedução punitiva, tendo o encarceramento como meta política, e também aponta como uma dimensão do estado penal o que ele denomina como expansão horizontal penal, que se manifesta não só pela política de encarceramento, mas também por uma deslegitimação da adoção de outros métodos punitivos que não seja a prisão. Significa compreender que a estrutura de controle social penal se faz presente mesmo quando discursa em nome da despenalização ou da não prisão, como as “prisões domiciliares”.
  • 8
    Christie (1997CHRISTIE, Nils. Civilidade e Estado. In PASSETTI, Edson et al (orgs.). Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo, IBCCRIM, 1997.) nos lembra que o crime não existe, pois “a compreensão dessas ações, o sentido dado a elas depende dos quadros sociais em que são vistas. Ações não existem, elas tornam-se! Elas adquirem significados através dos processos sociais. O crime não existe. Ele é criado através de processos sociais que dão sentido aos atos” (1997, p. 248).
  • 9
    De acordo com o artigo 149 da Constituição Política do Peru de 1993, “Las autoridades de las Comunidades Campesinas y Nativas, con el apoyo de las Rondas Campesinas, pueden ejercer las funciones jurisdiccionales dentro de su ámbito territorial de conformidad con el derecho consuetudinario, siempre que no violen los derechos fundamentales de la persona. La ley establece las formas de coordinación de dicha jurisdicción especial con los Juzgados de Paz y con las demás instancias del Poder Judicial” (PERU, 1993).
  • 10
    Segato (2011) alerta que “a construção permanente da raça obedece ao propósito de subjugação e expropriação. Se é da ordem racial que emana a ordem carcerária, esta última realimenta, recria e reproduz aquela. E a ordem racial é a ordem colonial. Isso significa que a rotulagem que ocorre na execução policial e no processo judicial reforça e reproduz a rotulagem preexistente da raça, relançando-a no futuro como vetor de uma ordem colonial” (SEGATO, 2011, p. 298-299).
  • 11
    BOLÍVIA. Ley nº 073, de 29 de Deciembre de 2010. Regula los ámbitos de vigência, dispuestos em la Constitución Política del Estado, entre la jurisdicción indígena originaria campesina y las otras jurisdicciones reconocidas constitucionalmente.
  • 12
    Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte. (BRASIL, 1973).
  • 13
    Conselho Nacional de Justiça, Resolução 287/2019: Art. 2º Os procedimentos desta Resolução serão aplicados a todas as pessoas que se identifiquem como indígenas, brasileiros ou não, falantes tanto da língua portuguesa quanto de línguas nativas, independentemente do local de moradia, em contexto urbano, acampamentos, assentamentos, áreas de retomada, terras indígenas regularizadas e em diferentes etapas de regularização fundiária. Art. 3º O reconhecimento da pessoa como indígena se dará por meio da autodeclaração que poderá ser manifestada em qualquer fase do processo criminal ou na audiência de custódia (BRASIL, 2019).
  • 14
    Nosso interesse com relação aos dois processos estava em observar a retórica jurídica acerca de métodos distintos de julgamento, logo, ver como o sistema de justiça estatal dialoga (ou não) com formas jurídicas diferenciadas. Em razão desse ponto, analisaremos especificamente as decisões judiciais, tanto na 1ª instância, quanto na 2ª instância, pelas vias recursais, pois são nessas peças que se travam os embates acerca da jurisdição estatal x jurisdição autônoma dos povos indígenas.
  • 15
    A Advocacia-Geral da União (AGU) tem sua atribuição estabelecida no Artigo 131 da Constituição: “Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo”.
  • 16
    O Tribunal do Júri de Raposa Serra do Sol foi amplamente divulgado nas mídias como o 1º Tribunal Popular Indígena, mas ainda que se reconheça o grau de inovação que tal experiência trouxe, ecoa a fala coordenador regional da região das serras, Zedoeli Alexandre, avaliou o julgamento dos 'brancos' como brutal, como já exposto acima. Apesar de se reconhecer o pioneirismo fica a angustiante pergunta se a performance de um Tribunal do Júri, ainda que composto exclusivamente por indígenas, para julgar indígenas, é a forma jurídica que os povos originários construíram para julgar seus conflitos ou se não se está impondo a forma processual do ocidente como a única mediação jurídica válida para julgar casos dos crimes contra a vida. Azevedo (2019AZEVEDO, T. M. L. S. (2019). O “PRIMEIRO JÚRI POPULAR INDÍGENA” EM RAPOSA SERRA DO SOL - Poder Judiciário roraimense e possíveis apontamentos jusdiversos. Confluências, Revista Interdisciplinar De Sociologia E Direito, 21(2), 100-122. https://doi.org/10.22409/conflu.v21i2.34701.
    https://doi.org/10.22409/conflu.v21i2.34...
    ) também apresenta no final do seu texto uma entrevista na qual “Julio Macuxi enfatizou também que, na visão dos indígenas, a realização do Tribunal do Júri no malocão da homologação da terra indígena, com o objetivo dos indígenas de entenderem o funcionamento e o julgamento dos delitos por parte do Poder Judiciário, foi prejudicada por conta do tom desrespeitoso e acalorado traduzido em plenário na atuação da Defensoria Pública e do Ministério Público” ( AZEVEDO, 2019AZEVEDO, T. M. L. S. (2019). O “PRIMEIRO JÚRI POPULAR INDÍGENA” EM RAPOSA SERRA DO SOL - Poder Judiciário roraimense e possíveis apontamentos jusdiversos. Confluências, Revista Interdisciplinar De Sociologia E Direito, 21(2), 100-122. https://doi.org/10.22409/conflu.v21i2.34701.
    https://doi.org/10.22409/conflu.v21i2.34...
    , p. 118).
  • 17
    O voto do Desembargador Relator apenas adentrou nos limites processuais, e como o questionamento do MPE não se deu no ato da formação do Conselho, entendeu o Tribunal pela preclusão, visto que a nulidade do ato processual só se configura 1º quando manifestado no tempo do ato (lapso temporal) e 2º se do ato ocorrer prejuízo às partes.
  • 18
    O Brasil adota em seu Código de Processo Penal duas fases para verificação da competência do Tribunal do Júri. Em um 1º momento, se verifica pelo procedimento criminal ordinário se se trata de um caso a ser destinado ao Júri, com o resultado final na sentença de pronúncia. O 2º momento é a ocorrência do Tribunal do Júri propriamente dito.
  • 19
    Interessante ver como a defesa teve a preocupação de apresentar esse tema, buscando resgatar a cosmovisão indígena sem permitir que a cultura jurídica ocidental, tão refratária às matrizes culturais não ocidentais, transformasse tal tema numa banalização. Ver: Azevedo, 2019AZEVEDO, T. M. L. S. (2019). O “PRIMEIRO JÚRI POPULAR INDÍGENA” EM RAPOSA SERRA DO SOL - Poder Judiciário roraimense e possíveis apontamentos jusdiversos. Confluências, Revista Interdisciplinar De Sociologia E Direito, 21(2), 100-122. https://doi.org/10.22409/conflu.v21i2.34701.
    https://doi.org/10.22409/conflu.v21i2.34...
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2023
  • Aceito
    14 Abr 2023
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