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"Quando cada caso não é um caso”: análise discursiva-etnográfica das violências estruturais estatais disparadas pela criminalização das existências e resistências Kaiowá e Guarani no sul de Mato Grosso do Sul

“When each case isn’t just one case”: an analysis of structural state violence sparked by the criminalization of Kaiowá and Guarani existences and resistances in the south of Mato Grosso do Sul

Resumo

O texto que segue é uma contribuição para imaginar uma antropologia da abolição e das insurgências, com base na análise de casos de encarceramento, tortura e massacres ocorridos contra os Guarani e Kaiowá desde a ditadura militar brasileira e seus desdobramentos, no que se convencionou chamar de Estado Democrático de Direito. Demonstraremos que as bases deste mesmo Estado são estruturalmente racistas, a partir da análise documental e pesquisa etnográfica. O enfoque será o estudo da prisão de Leonardo de Souza, indígena Guarani Kaiowá preso em dezembro de 2018 acusado de crimes relacionados à insurreição deflagrada no contexto do Massacre de Caarapó. Discutiremos 4 processos que o enquadram. Buscaremos evidenciar, com contextualização histórica do sarambi/esparramo que acometeu territórios Kaiowá e Guarani no sul do Mato Grosso do Sul, a permanência e mobilização de dispositivos relacionados ao complexo sistema-industrial-empresarial-prisional pelo Estado brasileiro, com vistas ao sufoco de levantes indígenas pela retomada de suas terras. Uma das estratégias contra-insurgentes aqui debatida será a seletividade penal, como parte de ampla engrenagem de defesa da propriedade privada em detrimento da reprodução da vida nos Tekoha, em disputa frente ao avanço das monoculturas e das tipificações penais. Seria o Estado, afinal, hiperpresente em sua omissão?

Palavras-chave:
Guarani e Kaiowá; Sarambi; Criminalização; Racismo

Abstract

The following text is a contribution to an anthropology of abolition and insurgencies, based upon an analysis of the incarceration, torture and massacres occurred against the Guarani and Kaiowá people, especially since the Brazilian dictatorship and its ramifications in the so-called Democratic State of Rights. We intend to demonstrate that the basis of this State is structurally racist through documental analysis and ethnographic research. Our approach will be the case study of Leonardo de Souza, Guarani Kaiowá Indigenous man arrested in December 2018 charged with crimes related to the insurrection sparked during the Caarapó Massacre. We will discuss 4 legal suits in which he is accused. We aim to emphasize, through historical contextualization of the sarambi/sprawling that affected the Kaiowá and Guarani in the south of Mato Grosso do Sul, the permanence and mobilization of dispositives related to the complex industrial-corporative-penitentiary system by the Brazilian State, with the purpose of suffocating Indigenous uprisings for the recovery of their lands. One of the counter-insurgent strategies is precisely penal selectivity, part of a broader system that defends private property in detriment of the reproduction of life in the disputed Tekoha faced with the advance of monocultures and criminalization. Will the State be, after all, hyper-present in its own omission?

Keywords:
Guarani and Kaiowá; Sarambi; Criminalization; Racism

Introdução das preliminares

O presente artigo3 3 “Quando cada caso não é um caso”, nome que inspira e titula nosso artigo, é conferência convertida em texto-artigo de Cláudia Fonseca (1999) que desconstrói a máxima jurídica do “quando cada caso é um caso”, a fim de nos convidar à reflexão dos vínculos entre a micropolítica da etnografia e a macropolítica tecida também pela antropologia no diálogo com outros saberes. Eis o movimento que buscaremos ao longo de nossas tessituras sobre engrenagens estatais que mortificam corpos-territórios-indígenas. analisa materiais advindos de trabalhos de campo, com ações de pesquisa, extensão e vivências acumuladas pelxs autores ao longo dos últimos dez anos, na região do sul de Mato Grosso do Sul (MS). Mais especificamente, debruçamo-nos sobre as sistemáticas e (in)discriminadas violências estatais-empresariais seculares desferidas contra os povos Kaiowá e Guarani. As criminalizações e o encarceramento em massa contra mulheres e homens indígenas (CTI, 2008; BECKER e MARCHETTI, 2013BECKER, Simone; MARCHETTI, Livia Estevão. Análise etnográfica e discursiva das relações entre Estado e mulheres indígenas encarceradas no MS. Revista de Ciências Humanas, Santa Catarina, v.47, n. 1, p. 81-99, 2013. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/revistacfh/article/view/2178-4582.2013v47n1p81/26178>. Acesso em: mar. 2014.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/rev...
; BAINES, 2015BAINES, Stephen Grants. A situação prisional de indígenas no sistema penitenciário de Boa Vista, Roraima. Rio Grande do Norte. Vivência: Revista de Antropologia, [s.l.], v. 1, n. 46, p. 143-155, 2015.), tanto quanto contra pessoas negras (BORGES, 2019BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Pólen Produção Editorial, 2019.), serão nosso foco analítico, tendo como fio condutor as denúncias e respectivas “ações penais” desferidas contra Leonardo de Souza. Esse, indígena Kaiowá, é pai do jovem Clodiode Aquileu de Souza, assassinado no Massacre de Caarapó - ocorrido em 14 junho de 2016 - coordenado por grandes fazendeiros e com envolvimento de empresas privadas e agentes públicos.

Tais violações são inseparáveis daquelas territoriais, tanto quanto o encarceramento em massa de indígenas. Suas criminalizações não se dissociam dos fenômenos que se tornaram as “reservas indígenas” em termos de confinamento (BRAND, 1997BRAND, Antonio. O impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani: Os Difíceis Caminhos da Palavra. 1997. Tese (Doutorado em História) - Pontifícia Universidade Católica, Porto Alegre, 1997.) e suas consequências históricas e sociais. Em um primeiro momento, “inquietações para uma antropologia da abolição”, apresentamos os recortes de nossos trabalhos de campo, bem como de nossas discussões tecidas desde 2013 e que nos levam à análise do caso Leonardo de Souza, encarcerado desde 2018. Expomos os discursos sobre as criminalizações voltadas à Leonardo e as “aldeias arquivos” (BECKER, 2008BECKER, Simone. DORMIENTIBUS NON SOCURRIT JUS! (O DIREITO NÃO SOCORRE OS QUE DORMEM): um olhar antropológico sobre rituais processuais judiciais (envolvendo o pátrio poder/poder familiar) e a produção de suas verdades. 2008. 337 f. Tese (Doutorado em Antropologia) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.), não sendo este mero caso isolado do etnocídio secular.

O ano de 2013 sugere um ponto de partida pela agudização do terror agrário e estatal marcados a ferro e fogo, como brasão das coroas imperiais, nos bois leiloados no Leilão da Resistência. Desde então, tantos massacres cobriram a terra vermelha, que a multiplicação das armas garantidas pela multiplicação dos bois reverberou a formação das milícias de ruralistas, cujo poder de fogo pôde ser visualizado no Massacre de Caarapó e, mais recentemente, no Massacre de Guapo’y, ocorrido em Amambai no dia 24 de junho de 2022. Ademais, demonstramos a coordenada ofensiva repressora e criminalizadora deflagrada após o Massacre de Caarapó e seus efeitos posteriores à prisão de Leonardo, como práticas de tortura por parte de policiais contra indígenas Kaiowá e Guarani4 4 Até o término deste artigo, outros acontecimentos envolvendo a criminalização de indígenas Guarani Kaiowá ocorreram, circunstâncias que não puderam ser aqui abordadas. Sobre o primeiro caso, ocorrido em março de 2023 - quando 3 pessoas Guarani Kaiowá foram presas pela Polícia Militar após despejo ilegal na retomada de Laranjeira Nhanderu -, ver: https://www.brasildefato.com.br/2023/03/06/saiba-mais-como-os-guarani-kaiowa-vem-retomando-terra-ancestral-no-mato-grosso-do-sul. Acerca do segundo caso, que diz respeito à 9 prisões relacionadas à retomada ocorrida em Dourados, mais informações podem ser acessadas em: https://cimi.org.br/2023/04/violacoes-dourados-justica-presos-casas-queimadas/. .

São alguns dentre os discursos e imagens a serem dissecados pelo nosso exercício etnográfico: reportagens midiáticas de veículos virtuais; reações do governo federal e estadual brasileiros e instituições prisionais (PED/MS), anotações em diário de campo e documentos pesquisados no Armazém da Memória. As nuances da nossa etnografia como advinda de uma “Antropologia por Demanda” (SEGATO, 2021) já nos levará à caracterização do fazer etnografia e pesquisa tanto com documentos quanto em contexto de guerra, opondo as narrativas do Estado às narrativas de nossos interlocutores.

A criminalização não só de lideranças, mas de jovens, mulheres e homens indígenas tanto quanto o encarceramento é repetição que enuncia que “o direito é, portanto, a forma ritual da guerra” (FOUCAULT, 2003, p. 57). Na segunda parte do artigo, “se correr o bicho pega se ficar o bicho come”, trazemos as fissuras do colonialismo costuradas às re-existências da Reserva Indígena de Caarapó - a terceira a ser criada na região do então sul do estado de Mato Grosso entre os anos de 1915 e 1928.

Seguindo a contextualização mais minuciosa da reserva de Caarapó, retomamos as noções de “esparramo” e “confinamento” (BRAND, 1997BRAND, Antonio. O impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani: Os Difíceis Caminhos da Palavra. 1997. Tese (Doutorado em História) - Pontifícia Universidade Católica, Porto Alegre, 1997.) para imergir nas multiplicidades do que tanto transborda as Reserva Indígenas em (re-)existência, somado ao encarceramento e à criminalização que ascende contra pessoas e povos indígenas. Nosso olhar e caminhar serão principalmente estabelecidos nas retomadas de terra que circundam as Reservas de Caarapó e Dourados. Tais criminalizações de indígenas da Reserva de Caarapó podem ser tomadas como “vasos comunicantes” (GODOI, 2010) estabelecidos entre as prisões com àquelas espacialidades resultantes do histórico esbulho territorial.

A contextualização das disputas no sul de Mato Grosso do Sul (MS) se fará guiada tanto pela noção-ferramenta de “racismo de Estado” (FOUCAULT, 2010______. Em defesa da sociedade. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010.) quanto pelas engrenagens que tornam a prisão um modelo estrutural de instituições estatais (FOUCAULT, 2003). “Estarão as prisões obsoletas?” é obra da imprescindível Angela Davis (2021DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução de Marina Vargas. 8a edição. RJ: Difel, 2021.) para entendermos que raça não se dissocia de gênero e classe. Seus ensinamentos nos fazem revisitar a 13ª emenda: o enunciado legal secular, que desde o fim do “regime de escravidão” estadunidense metamorfoseou-se na lei que impõe o trabalho escravo àqueles condenados por sentença criminal, não se diferem estruturalmente do que testemunhamos na região sul de MS.

Assim, não há como descontextualizar o aumento vertiginoso do aprisionamento de homens e de mulheres do reiterado esbulho territorial por eles sofridos. E mais: não há como dissociar a guerra impregnada pelo neoliberalismo daquelas disparadas e plantadas entre homens e/ou mulheres indígenas. A retomada do tekoha Toro Paso, atualmente Kunumi Poty Vera - nome Kaiowá de Clodiode, conferido à retomada em sua homenagem - localizado dentro dos limites da Fazenda Yvu em 12 de junho de 2016, bem como o reconhecimento pela FUNAI do Tekoha Guasu (Dourados Amambaipeguá I, 12 de maio de 2016) são eventos de re-existência dos indígenas Kaiowá e Guarani que antecederam o ataque de dezenas de fazendeiros/ruralistas que adentraram à retomada na fazenda Yvu fortemente armados e munidos (MARINHO; ABREU, 2021MARINHO, Marina; ABREU, Rafael de. 2021. Massacre de Caarapó: produtores rurais soltos, liderança indígena presa. Disponível em: https://diplomatique.org.br/massacre-de-caarapo-produtores-rurais-soltos-lideranca-indigena-presa/#_ftnref1. Acesso em: 08 mai. 22.
https://diplomatique.org.br/massacre-de-...
). O tekoha pode ser definido como “encontros que produzem lugares, os múltiplos encontros no espaço-tempo criando redes de significado e coesão temporário” (BENITES, 2022, p. 50).

Essa ação violenta e seus desenrolares serão mais pormenorizados tendo como fio condutor 04 ações judiciais movidas contra Leonardo de Souza. Se o direito ritualiza a guerra - não só para Foucault como para Pierre Clastres (2003CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify, 2003., 2004), no terceiro item do artigo mergulhamos nos 04 processos que encurrala(ra)m Leonardo de Souza. Sequestro e cárcere privado seguido de porte de maconha em quantidade que caracteriza para o sistema criminal - que o indiciou e processou - tráfico de drogas, torna a prisão preventiva imexível até então para o pai de Clodiode. O quarto processo remonta a 2015, quando Leonardo foi indiciado e criminalizado por dirigir veículo automotor embriagado de substância alcoólica. Rememoremos: Clodiode foi morto no Massacre de Caarapó e desde então seu pai, Leonardo de Souza, para tais discursos, foi tomado como perigoso.

1. Inquietações para uma Antropologia da Abolição

Neste primeiro momento contextualizamos como chegamos até aqui, em especial sobre o material analisado, os recortes dos trabalhos de campo e respectivas metodologias. Partilhamos debates abolicionistas e etnografias que conversam com nossos passos, com intuito de abranger diferentes categorias de entendimento das engrenagens estatais-empresariais que ativam, no MS, o “Estado de exceção/sítio permanente, associado ao terror que lhe é próprio e à síntese repressiva-tutelar que opera sobre os tekoha desapropriados” (MATTOS JOHNSON, 2021MATTOS JOHNSON, Felipe. “A gente é refugiado na própria terra”: testemunhos Guarani e Kaiowá sobre terrorismo de Estado e desapropriação. In: Narrativas antropológicas em tempos pandêmicos: 10 anos de experiências etnográficas no PPGAnt/UFGD. São Paulo: LiberArs, 2021. p. 49-73., p. 69).

Em meados do ano de 2008, a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e a Defensoria Pública da União (DPU) selaram convênio que resultou em ações de pesquisa e de extensão voltadas à atenção das demandas dos/das indígenas Kaiowá da Terra Indígena de Panambizinho (Distrito de Panambi/MS). Panambizinho recém havia sido homologada após demarcação judicial (MACIEL, 2012MACIEL, Nely Aparecida. História da comunidade Kaiowá da Terra Indígena de Panambizinho (1920-2005). Dourados: Ed. UFGD, 2012.). A parceria com esse convênio/projeto previa “mutirões” de acessos à direitos junto à TI, com posteriores acompanhamentos das demandas eventualmente judicializadas. O objetivo maior era que, para além dos processos judicializados, houvesse o estreitamento de interlocução com o (corpo-)território Kaiowá (BECKER; MÜLLER e ALMEIDA, 2014BECKER, Simone; MÜLLER, Cíntia Beatriz; ALMEIDA, Ellen Cristina de (organizadoras). Diálogos entre Antropologia, Direito e Políticas Públicas: o caso dos indígenas no sul de Mato Grosso do Sul. Dourados: UFGD, 1ª edição e 1ª reimpressão, 2014.).

Tratava-se de um projeto/movimento/convênio voltado às demandas previdenciárias. Foram 29 processos encaminhados com desdobramentos que ainda reverberam, sem necessariamente serem exitosos (BECKER e MORAES, 2017BECKER, Simone; ROCHA, Taís de Cássia Peçanha. Notas sobre a “tutela indígena” no Brasil (legal e real), com toques de particularidades do Sul de Mato Grosso do Sul. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Paraná, v. 62, n. 2, p. 73-105, 2017.). O que se percebeu ao longo do tempo é de que a tônica era (e é) a do Estado que age pela omissão acerca dos direitos individuais e sociais previdenciários de pessoas indígenas, e a do Estado hiperpresente quanto às criminalizações e encarceramento de indígenas.

A propósito do convênio ter prescindido das intensas demandas criminais, a interação com os Guarani Kaiowá se desdobrou em pesquisas nos diálogos com a criminologia crítica. A ausência de tradução tanto nas perícias médicas previdenciárias, quanto nas distintas fases de inquérito policial e de uma “ação penal” é (im)posto de maneira categórica. Isso ocorrerá nos processos de Leonardo de Souza, como também ocorreu com L.S.V, mulher Terena, domiciliada na aldeia Jaguapiru5 5 A Reserva Indígena de Dourados é dividida entre a aldeia Jaguapiru e Bororo. , condenada a 8 anos de prisão em maio de 2012 por tráfico de drogas, cujo “aha...” na oitiva do magistrado, torna a tradução sem tradutor de sua resposta, considerada como “sim” aleatoriamente (Becker & Marchetti, 2013BECKER, Simone; MARCHETTI, Livia Estevão. Análise etnográfica e discursiva das relações entre Estado e mulheres indígenas encarceradas no MS. Revista de Ciências Humanas, Santa Catarina, v.47, n. 1, p. 81-99, 2013. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/revistacfh/article/view/2178-4582.2013v47n1p81/26178>. Acesso em: mar. 2014.
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).

Ao tocarmos na discussão do real/problema do encarceramento de indígenas, perguntas pululam: Quem são aqueles que redigem os projetos de lei da seara criminal? Quais são os tipos penais que mais encarceram e criminalizam indígenas? Quais são os contextos macrossociológicos e microssociológicos que confluem para a criminalização de pessoas indígenas? Quais foram os contextos das prisões e/ou das judicializações criminais? Quais são os marcadores sociais da diferença/desigualdade nessas relações de captura pelo “literal sistema prisional”6 6 Literal porque a lógica que estrutura as Prisões e os Manicômios, segundo Foucault, apresenta engrenagens que atravessam as mais distintas instituições que nos subjetivam e nos normalizam. propulsionado pelo racismo?

Ainda, como provoca Jaime A. Alves (2022ALVES, Jaime A. F*da-se a polícia! Formações estatais antinegras, mitos da fragilidade policial e a urgência de uma antropologia da abolição. Dilemas, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, set.-dez. 2022, p. 1012-1045., p. 1030): “como a prática da antropologia pode desafiar o regime de terror racial para além da autocrítica, da posicionalidade e da promoção da diversidade em departamentos e linhas de pesquisa timidamente incorporadas em algumas instituições?”. Em relação a esta última questão, o quilombismo emerge como prática historicamente viva - a fuga para as matas (MOURA, 2021), tal qual “as fugas de grupos inteiros do trabalho forçado das encomiendas” (PIMENTEL, 2012) referindo-se este último aos deslocamentos dos Itatines, cujo retorno às matas também confronta a catequização e, portanto, modalidades de confinamento que antecedem àquelas posteriormente referidas por Brand (1997BRAND, Antonio. O impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani: Os Difíceis Caminhos da Palavra. 1997. Tese (Doutorado em História) - Pontifícia Universidade Católica, Porto Alegre, 1997.), a partir da formação das 8 Reservas Indígenas no cone sul do MS, entre 1915 e 1928.

Em meados de 2011, conversações entre FUNAI (Fundação Nacional do Índio) de Dourados/MS e UFGD (FADIR) desembocaram na proposta do Programa de Ações de Extensão do PROEXT, intitulado: “NPAJ/FADIR/UFGD - Centro de Excelência em Direitos Humanos”7 7 Coordenado pela profx. Simone Becker e no qual participaram estudantes e docentes da UFGD, de outras IES (Instituições de Ensino Superior), bem como parcerias da FUNAI e da DPU. . O programa privilegiava a compreensão de quem eram os indígenas, homens e mulheres, presos em Dourados e cercania. Seus objetivos foram certeiros à medida que se guiava por uma dupla de arquivos documentais a serem analisados.

De um lado, o relatório inédito que denominamos de “mapeamento cartográfico” da situação dos indígenas encarcerados no MS, produzido pelo Centro de Trabalho Indigenista (2008). Tratava-se de um esforço de sistematização outrora inexistente, tendo a região do MS proeminência por ser a segunda maior demografia de indígenas no Brasil. A falta de informações sistematizadas também se conectava à “ausência de orientações por parte da Funai nas comunidades indígenas em relação aos procedimentos básicos para a defesa de seus direitos e [...] a falta de atenção por parte do Estado” (CTI, 2008, p. 7).

De outro lado, uma série de fichas de “visitas técnicas”, de relatos sobre as escutas realizadas por servidores da FUNAI às penitenciárias com presidiários/as (“internos/as”) cumprindo pena/punição em regime fechado. Nomear é dar existência. A FUNAI buscava saber quem tanto padecia nos presídios de Dourados e cercanias. Entre os principais tipos penais que fizeram os homens indígenas nesse mapeamento “caírem para o e no sistema”, figuram o tráfico de drogas e homicídio. Este cenário é diretamente influenciado pela lei de drogas vigente desde 2006 no Brasil (Lei Federal 11.343/2006), caracterizada por ser seletiva e relacionada ao racismo e encarceramento em massa. A seletividade, considerando as omissões estatais visualizadas no STF, não diferencia tráfico e consumo, gerando uma “zona cinzenta na aplicabilidade da lei, [...] [que] tem sido instrumentalizada para a reprodução da seletividade e as alarmantes taxas de encarceramento que, no Brasil, têm as mulheres negras como alvo principal na última década (FLAUZINA, 2017, p. 14).

O que se percebe com as pesquisas envolvendo o encarceramento de indígenas é a ausência de informações e atualizações sobre quem são os/as indígenas encarcerados/as, que devem ser prestadas pelo Estado brasileiro. Nossa realidade de campo feita a partir da observação participante continuada, escracha o quanto esse mesmo Estado é hiperpresente para criminalizar os/as indígenas que resistem à guerra fundiária nessa fronteira/trincheira.

Com particularidades lá e cá ao norte e ao sul da linha do Equador (FLAUZINA, 2017), há que se destacar o quanto as criminalizações judicializadas (ou não), racializadas com aprisionamento de mulheres e homens retroalimenta a escravidão dos tempos modernos. Para a filósofa e feminista Angela Davis, a expressão “complexo industrial-prisional” emerge como contestação da crença predominante da relação entre aumento da criminalidade e população carcerária, visto que, “Na realidade, [...] a construção de prisões e a eventual necessidade de ocupar essas novas estruturas com corpos humanos foram guiadas por ideologias racistas e pela busca desenfreada de lucro” (DAVIS, 2021DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução de Marina Vargas. 8a edição. RJ: Difel, 2021., p. 91-92).

Se nos Estados Unidos as prisões são privatizadas e a “remissão de pena” (dispositivo legal que há no Brasil) se dá com a “força braçal” sem contrapartida salarial para os/as internos/as pelas empresas/indústrias como Victoria Secret (DUVERNAY, 2016), no Brasil, as remissões de pena se dão sob outras desumanizações que atravessam o termo “trabalho” sem privatizações. No caso de Leonardo de Souza, por exemplo, o trabalho braçal nas roças da PED foi estabelecido como trabalho para redução de pena, não havendo a pena nunca diminuído. Pelo contrário, Leonardo segue encarcerado - fato que motiva a publicação deste estudo.

As falhas/irregularidades ao longo do processo criminal que não são sanadas, inexoravelmente resultam em “pronúncias” das denúncias ou consequentes julgamentos em Tribunal do Júri. Nos casos envolvendo homicídios - tipo penal com mais percentual de aprisionamento de indígenas - quem julga as pessoas indígenas são pessoas não indígenas, cujas aversões se fazem recorrentes e cuja fé pública também, sob o “inconsciente colonial capitalístico” (ROLNIK, 2019; 2022) e estruturalmente racista (GONZALEZ, 1983GONZALEZ, Lélia. 1983. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje - Anuário de Antropologia, São Paulo: Anpocs, p. 223-244. In: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4130749/mod_resource/content/1/Gonzalez.Lelia%281983-original%29.Racismo%20e%20sexismo%20na%20cultura%20brasileira_1983.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2020.
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).

2. Sarambi e a multidimensionalidade do cárcere

O século XIX, abrangido por um conjunto de transformações sobre a estrutura fundiária e acesso à terra, relacionadas aos mercados agrícolas emergentes (CLEGG; LUCAS, 2020CLEGG, John; LUCAS, Rob. Three Agricultural Revolutions. The South Atlantic Quarterly, v. 119, n. 1, Janeiro, 2020.) diz respeito diretamente à reprodução da vida e delimita um novo momento - no contexto brasileiro - nas relações sociais estabelecidas entre povos indígenas e Estado. Portanto, são problemáticas referentes às dinâmicas socioterritoriais de uma nova configuração da propriedade privada da terra.

Buscaremos, a seguir, pensar este processo desde o modo que afeta aos Guarani e Kaiowá, com ênfase na contextualização do sarambi - esparramo, como é traduzida “a expropriação territorial com expulsão das parentelas kaiowá [e guarani]” (VALIENTE, 2019, p. 54) - e sua intrusão na Tey’ikue, Reserva Indígena de Caarapó; e à análise de documentos a partir da década de 1970, cujos meandros tensionam nossa busca pelo desmembrar da histórica sanha punitivista que recai sobre corpos-territórios Kaiowá e Guarani.

O fim da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1864-1870) é comumente referido como um momento de fissura pelas frentes de expansão agrícolas e pastoris. Levi Marques Pereira e Rosa Colman (2021COLMAN, Rosa Sebastiana. Os Kaiowá e Guarani no Mato Grosso do Sul e suas incansáveis lutas pelos Tekoha frente às transformações territoriais, ambientais e formas de mobilidade. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 14, n. 3, 2021., p. 58) definem a “desarticulação e fragilização de redes de alianças, baseadas na residência, no parentesco e na cooperação ritual” Guarani e Kaiowá como fator desagregador conectado ao deslocamento forçado de largos contingentes destes povos para acampamentos de extração de erva-mate. A Companhia Matte Laranjeira é a empresa que assume o monopólio de arrendamento para a extração do mate em milhões de hectares de terra no cone sul do MS - território Guarani e Kaiowá - concedidas como “terras públicas/devolutas” pelo governo Imperial, com o fim da referida guerra.

Os acampamentos dos ervais da Companhia - onde muitos indígenas foram enviados para o trabalho forçado - e a própria localização das oito reservas8 8 Dourados, Caarapó, Amambai, Limão Verde, Sassoró, Taquaperi, Porto Lindo e Pirajuí. indígenas que seriam criadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), confluem em sua disposição territorial e proximidade. O fato de que as reservas foram criadas próximas aos locais de extração da erva é um elemento indicado em relatórios citados por Antonio Brand (1997BRAND, Antonio. O impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani: Os Difíceis Caminhos da Palavra. 1997. Tese (Doutorado em História) - Pontifícia Universidade Católica, Porto Alegre, 1997.) ao pensar o confinamento naquelas, o que se encontra nas próprias bases do regime tutelar e seus efeitos em relação aos povos indígenas. Possui lastro em um ideal de “ressocialização” que muito se assemelha à missão civilizatória associada ao positivismo-colonial: “cabia ao Estado promover [aos povos indígenas] o seu processo civilizatório. A reserva indígena era a base territorial desse processo” (ELOY TERENA & ALFINITO, 2021ELOY TERENA, Luiz; ALFINITO VIEIRA, Ana Carolina. Criminalização e reconhecimento incompleto: obstáculos legais à Mobilização Indígena no Brasil. Rio de Janeiro: Autografia, 2021., p. 25).

Sendo assim, cabe pensar o poder tutelar em seu alcance nacional e sua função definidora, controladora, paradoxalmente segregadora e includente - vide a criação de postos indígenas e a nacionalização da identidade e sua institucionalização panóptica em um poder centralizado -, “estratégia e tática, no qual a matriz militar da guerra de conquista é sempre presente” (SOUZA LIMA, 1995SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. Um Grande Cerco de Paz. Petrópolis: Editora Vozes, 1995., p. 74) em relação aos povos afetados, o que se alinha à constituição da Reserva como território criado com intuito administrativo. O autor destaca, ainda, um importante subsídio para compreendermos os vínculos entre cárcere, confinamento e trabalho, compressões do poder tutelar sobre os povos indígenas materializadas no estabelecimento das Reservas: “disciplinar o acesso e utilização das terras, ao mesmo tempo mediando sua mercantilização [...]” (Idem).

A reserva de Caarapó, também denominada como Te’yikue e Posto Indígena José Bonifácio, foi demarcada pelo SPI no dia 20 de novembro de 1924. Eliel Benites (2022), em sua tese de doutorado, traz os relatos de Julho Almeida9 9 O autor aponta Julho Almeida como “antigo morador da região do Saverá” (BENITES, 2022, p. 83). , que descreve a densidade das matas e a biodiversidade - além de abundante erva-mate nativa - e suas derradeiras derrubadas a partir de 1964 nos arredores da Te’yikue. A implementação das fazendas no período é reflexo da Marcha para o Oeste, promovida por Getúlio Vargas para colonização do centro-oeste e ampliação das demandas agrícolas e pastoris diante da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (1943), com intenso uso de mão-de-obra indígena. Sobre o Posto Indígena José Bonifácio, Benites aponta o pátio em frente ao local como espaço de aplicação de punições exemplares:

[...] no centro, foi fincado um grande tronco de madeira (tambo), onde deixavam as pessoas consideradas criminosas, presas e amarradas durante dias, muitas vezes sem comida e água, como forma de punição pública e demonstração de poder, objetivando amedrontar muitas famílias guarani e kaiowá que estavam chegando na reserva e poder, assim, ter o domínio das mesmas. É comum as pessoas mais velhas contarem que, naquela época, as mulheres consideradas prostitutas eram punidas publicamente, cortando seus cabelos e forçando a trabalhar ao redor do posto limpando mato, descalças e sem roupas. Por isso, muitas famílias voltavam a se retirar da Te’yikue, porque a rigidez que o chefe do SPI e do capitão impunha aos moradores era muito pesada, pois também não deixavam passar nenhum delito mesmo que fossem leves, ou quaisquer atos ilegais, sempre os “responsáveis” passavam por punições severas de trabalhos forçado ou enfrentando duras chibatas. (BENITES, 2022, p. 54)

Nenhum delito, “mesmo que fossem leves”. É relevante perceber que a descrição das punições públicas no pátio ativa como primeira memória dos mais velhos o marcador de gênero das torturas. O corte de cabelos10 10 Recentemente, como o uso do tambo e do suplício, denúncias realizadas pela Kuñangue Aty Guasu - grande assembleia das mulheres Kaiowá e Guarani - demonstram que diferentes nhandesy (rezadoras) foram acusadas de feitiçaria seguido de práticas de tortura por parte de membros de igrejas pentecostais. O corte de cabelo apareceu como um dos elementos presentes na tortura. Disponível em: www.kunangue.com. , os açoites, a inanição, são marcas no corpo que, como definidores da seriedade da pena, são comparáveis ao suplício - tornar a vítima infame, a não reconciliação (FOUCAULT, 2008______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2008.). O triunfo da justiça como rugido de seu cerimonial. O poder do soberano atualizado no chefe de posto e na capitania e no incremento do sarambi.

No período que sucede o golpe militar que instaura a ditadura empresarial-militar brasileira (1964-1985), práticas semelhantes de punições públicas em troncos foram registradas no “Reformatório” Krenak11 11 Prisão que operou em território Krenak, no município de Resplendor (MG) de 1969 a 1972, voltada especificamente para o encarceramento e tortura de indígenas de diferentes regiões do país. . O tronco foi uma realidade cotidiana de Seu Bonifácio, indígena Guarani Kaiowá da retomada de Pakurity, localizada às margens da BR-463 em Dourados (MS). Bonifácio, um dos mais antigos moradores do Tekoha, nos auxilia a pensar os efeitos do confinamento e os cercos repressivos que respondem à consolidação da propriedade privada. Seu Bonifácio foi capturado em Pakurity aproximadamente em 1967 e levado ao Reformatório Krenak, considerado um campo de concentração em que “Quase todos os registros dessas prisões [...] são de indígenas que se recusavam a deixar suas terras” (MORAIS, 2014MORAIS, Bruno. O amargo do Caraguatá: a realidade dos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul. 2014. Disponível em: <https://reporterbrasil.org.br/2014/05/o-amargo-do-caraguata/>. Acesso em: 06 de nov. 2022.
https://reporterbrasil.org.br/2014/05/o-...
, s/p). Ele relata que os indígenas eram “’torturados frente a frente, face a face’, onde todos podiam ver” (AGUILERA URQUIZA & LUCAS, 2018AGUILERA URQUIZA, Antonio Hilario. LUCAS, Sônia Rocha. Eu sou prisioneiro do Krenak. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 12, n. 2, p. 51-78, jul./dez. 2018., p. 67).

Sua prisão no “Reformatório” ilustra os três pilares do funcionamento deste campo de concentração, sendo estes: reclusão, trabalho e tortura, sendo que a embriaguez aparece como principal motivo das prisões, seguida de “sem motivo para o envio”, nas penas tabeladas e contabilizadas atribuídas aos indígenas (Idem). A “ausência de motivos”, combinada com os outros fatores - vadiagem inclusa, uma espécie de contraponto ao desígnio transicional do confinamento na Reserva para a integração - indica íntima relação com a resistência contra o desterro, um cruzamento entre os pilares do presídio com o avançar dos grãos, dos bois e das armas em território - não só - Kaiowá e Guarani.

2.1 Tekoha Guasu Dourados Amambaipegua I.

A Reserva Indígena de Caarapó, Aldeia Te’yikue, faz parte do Tekoha Guasu - “conglomerado de tekoha” (PEDRO, 2020, p. 28), - Dourados Amambaipeguá I, Terra Indígena (TI) identificada com 55.600 hectares segundo o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) elaborado por Levi Marques Pereira (2014_______. Relatório circunstanciado de identificação e delimitação da terra indígena Dourados Amambaipegua I, do Tekoha Guasu das Comunidades de Laguna Joha, Km 20, Javorai Kue,/Piratini e Pindo Roky no Estado de Mato Grosso do Sul. Portaria Nº 789/PRES/10/07/2008, 24 de Setembro de 2014. [2008]). No entorno da Te’yikue, atualmente se encontram 9 retomadas12 12 São estas: Pindo Roky, Itaguá, Paī Tavyterã, Tey’i Jusu, Nhandeva, Nhamoi Guavira’i, Jeroky Guasu, Kunumi Poty Verá e Guapo’y. , entre elas, Kunumi Poty Verá, onde ocorreu o Massacre de Caarapó em 2016.

Pereira (2014_______. Relatório circunstanciado de identificação e delimitação da terra indígena Dourados Amambaipegua I, do Tekoha Guasu das Comunidades de Laguna Joha, Km 20, Javorai Kue,/Piratini e Pindo Roky no Estado de Mato Grosso do Sul. Portaria Nº 789/PRES/10/07/2008, 24 de Setembro de 2014. [2008]) apresenta no relatório, através de debate etnohistórico, quatro ferramentas-chave dos dispositivos de controle pelo SPI, capitania e chefes de posto estabelecidos, sendo estes: o trabalho indígena voltado para o subsídio dos custos administrativos dos postos; aplicação da “lei e ordem” determinadas pelo chefe de posto; remoções forçadas para o interior da Te’yikue, com contenção de fugas através da capitania; e o cumprimento rígido do ordenamento dos chefes.

Imagem 1:
Torturas contra os Kaiowá nas décadas de 70/80.

À esquerda, documento da FUNAI de 1975. À direita, documento da Operação Amazônia Nativa (OPAN) - de 1982. No primeiro, consta a ocorrência de prisões e espancamentos de indígenas, além da apropriação de terras por fazendeiros e exploração de madeira, com destaque para a “Teique”, a Aldeia Te’yikue, em Caarapó. O recorte de jornal à direita denuncia torturas contra dois indígenas Kaiowá ocorridas em celas da cadeia de Amambai, cujo delegado de polícia local fora responsável pela aplicação de torturas como choques elétricos e privação de alimentos, “coagidos para que confessassem o roubo de que se dizem inocentes”.

Os documentos e fatos registrados ilustram que já são estes espaços e territórios militarizados desde há muito, cuja função do arbítrio policialesco é cumprida, qual seja, o encarceramento, a aniquilação e a retaliação/repressão contra aqueles que, no maniqueísmo e binarismo coloniais, habitam a zona de não-ser - “onde quer que vá, o preto permanece um preto” (FANON, 2008, p. 191 apudBERNARDINO-COSTA, 2016BERNARDINO-COSTA, Joaze. A prece de Frantz Fanon: Oh, meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona! Civitas, Porto Alegre, v. 16, n. 3, p. 504-521, jul.-set. 2016., p. 511) - o indígena permanece um indígena, parafraseando Fanon, que “visualiza somente uma saída: afirmar-se como negro, vestir a máscara negra [...]. Esta afirmação, como um ato político, consistirá em tornar o invisível visível. Significa a afirmação do corpo negro como uma agência de intervenção política e intelectual.” (BERNARDINO-COSTA, 2016, p. 514)

O autor discute o mundo dominado econômica e politicamente pelos brancos, que destitui e provoca a epidermização do sistema de representação branco e a resistência ontológica negra - no caso do presente artigo, Guarani e Kaiowá. Sobre o primeiro ponto, a documentação a seguir dialoga com a internalização e epidermização relativamente à formação da polícia indígena, acima abordada e vista em espacialidades outras para além do campo de concentração Krenak no mesmo período ainda ditatorial. A polícia não-indígena emerge como orientação para atuação das polícias indígenas.

A imagem a seguir, que consta em jornal do CIMI - Conselho Indigenista Missionário - (1984), refere-se a indígena Kaiowá (Silvio Paulo), voluntário da FUNAI na área da saúde, espancado em Caarapó em 1984 por dívida contraída de um taxista, que o aborda com dois Policiais Militares. O espancamento é subsequente à prisão de Silvio. O acontecimento relembra o caso de Alexandre Claro, ocorrido em 2017 - Alexandre, diagnosticado com esquizofrenia, foi alvejado pela Polícia Militar em Caarapó duas vezes, após suposto surto psicótico no centro da cidade, como forma de “contenção”. Algemado, inclusive à cama do hospital, foi preso por 6 meses na Penitenciária Estadual de Dourados (PED), onde já havia sido encarcerado por tráfico de drogas e solto por agravamento de sua saúde13 13 O caso de Alexandre Claro pode ser aprofundado na leitura de Felipe Mattos Johnson (2019; 2021). .

Imagem 2:
título de jornal: espancamento de indígena Kaiowá por Policiais Militares em 1984.

Imagem 3:
seletividade penal em conta-gotas.

O que complementa o documento anteriormente trabalhado são as duas frases: a “interferência, certamente tardia [...], da Funai” e “Os dois índios torturados e os outros índios da aldeia não conseguem entender porque o chefe do Posto da Funai e nem a polícia local não averiguaram os fatos e simplesmente aceitaram a versão do administrador da fazenda”. Ora, é a seletividade penal nosso eixo articulador da problemática posta por este documento e acontecimento, ainda atual, como também se faz perceptível no caso de Leonardo de Souza, a ser debatido no tópico 3. É a fé pública como eufemismo para a eugenia do complexo industrial-empresarial-prisional.

Enfim, a título conclusivo deste tópico, cumpre lembrar a execução de Marçal de Souza, e a perspectiva e ação do Estado frente a emergência da resistência ontológica, que se recusa a compra e venda da terra que é corpo-terra-território. O que há de tão inexplicável na morosidade do Estado? Sua participação no crime, talvez, seja razão: o interesse na ampliação da citada Fazenda Serra Brava, de latifundiário de Bela Vista, que “pretendia incorporar à propriedade da família a área indígena de Piracuá [Pirakua]”.

Imagem 4:
Morte da palavra e da alma. Entre pistoleiros e fazendeiros, o Estado se omite?

O assassinato de Marçal exprime com clareza a aliança entre agentes públicos e grandes fazendeiros para a neutralização e/ou tortura das vozes/palavras-almas dissidentes - vide atuação da Polícia Civil que o espancou violentamente, de acordo com o relato no documento, enquanto estava com pneumonia. A resposta da PF após sua denúncia foi uma revista em sua casa, de onde desapareceram documentos originais e livros, antes do próprio Marçal desaparecer fisicamente - 6 tiros, um dos quais em sua boca.

3. Leonardo de Souza: preso por insurreição

O encarceramento em massa e a criminalização dos povos indígenas demonstra o quanto o Estado não é omisso diante dos marcadores sociais de diferença e a racialização dos corpos, mas presente no que o Estado-punição ou Estado-prisão jorra e goza sobre essas pessoas e povos. Nosso interesse neste artigo não é a mera demonstração das ilegalidades, mas a tradução deste processo frente à resposta do Estado -massacre, cárcere, tortura - às insurgências indígenas. Vimos que, cada caso, além de não ser só um caso, também não é acaso. Demonstraremos, a seguir, justamente as dimensões políticas ocultadas do caso Leonardo de Souza, a principal ocorrência aqui investigada, considerando que os processos de criminalização analisados são despolitizantes e individualizantes. Eles excluem das narrativas oficiais [...] o contexto sociopolítico dos fatos investigados. [...] (TERENA & ALFINITO VIEIRA, 2021, p. 17). Disso deriva a associação da noção de “crimes comuns” a acontecimentos eminentemente políticos.

Contextualizemos, pois, sociopoliticamente os fatos, inseridos no contexto da luta pela demarcação do tekoha reivindicado. A prisão de Leonardo de Souza - Kunumi Jeroky Iteva Mitã Mogaraivy14 14 Nome Kaiowá de Leonardo. - no dia 13 de dezembro, em 2018, reporta diretamente aos fatos ocorridos durante o Massacre de Caarapó. Recordemos que, uma das áreas retomadas, justamente onde ocorre o massacre, era reivindicada como propriedade de Raquel Silvana Cerqueira Amado Buainain - Fazenda Yvu -, herdeira de Sylvio Mendes Amado - fundador da FAMASUL15 15 Federação de Agricultura e Pecuária do Mato Grosso do Sul. .

Os primeiros processos penais contra Leonardo, entretanto, antecedem o massacre, que divide seu espaço-tempo com uma insurreição Guarani e Kaiowá. Os processos demonstram, para além das tipificações penais, o reflexo destas na seletividade penal, tal como o projeto maior de criminalização com base em montagens jurídico-políticas como poderíamos definir o modus operandi do Estado em relação ao caso Leonardo, que responde rigorosamente à revolta que rebenta os rios represados das retomadas. Retornemos, por ora, à 2013, durante o Leilão da Resistência - uma “resistência” mais semelhante ao terrorismo de Estado, tal qual representado por seus principais anfitriões no Parque de Exposições Laucídio Coelho, em Campo Grande (MS).

O Leilão da Resistência, promovido pela FAMASUL e ACRISSUL16 16 Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul. , tinha como objetivo a arrecadação de fundos para munir grandes fazendeiros de armas, seguranças privados e recursos destinados à mobilização política com apoio da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) - a bancada ruralista - e ampla participação de governadores, senadores e deputados do MS. A FAMASUL, à época, era presidida por Eduardo Riedel, governador eleito no MS com mandato a partir de 2023. Riedel classifica, durante o Leilão, os “produtores do MS como legalistas” e o próprio leilão como demonstração do “trabalho dentro da lei”17 17 Disponível em: https://www.sindicatoruraldebelavista.com.br/produtor-rural-de-ms-e-legalista-afirma-riedel-durante-leilao/. Acesso em: 5 de nov. 2022. . A Agência da FPA afirma em comunicado emitido no dia 3 de dezembro de 201318 18 Disponível em: https://agencia.fpagropecuaria.org.br/2013/12/03/leilao-da-resistencia-preve-arrecadar-r-3-milhoes/.Acesso em: 5 de nov. 2022. que “o Estado tem sido omisso em garantir o direito de propriedade”. Vemos, novamente, a ideia de omissão, desta vez mobilizada por setores da alta burguesia do agronegócio.

Em contrapartida, na decisão da Justiça Federal que considera a ilegalidade do Leilão, pleiteia o Estado enquanto ente insubstituível na solução de conflitos entre ruralistas e Povos Indígenas: “pretendem substituir o Estado na solução do conflito existente entre a classe ruralista e os povos indígenas, contrariando, dessa forma, a norma insculpida no artigo 144 da Constituição Federal.”19 19 Disponível em: https://jf-ms.jusbrasil.com.br/noticias/112188463/justica-federal-suspende-leilao-da-resistencia. Acesso em: 05 de nov. 2022. (JUSTIÇA FEDERAL DO ESTADO DO MS, 2013, s/p, grifos do autor). É curiosa, entretanto, a reivindicação do Estado como mediador dos conflitos, quando presentes no Leilão estavam senadores/as - Kátia Abreu inclusa -, deputados federais - Nelson Trad e Reinaldo Azambuja (MS), Luiz Carlos Heinze, Luiz Henrique Mandetta e Abelardo Lupion - e deputados estaduais, como Zé Teixeira20 20 Disponível em: https://zeteixeira.com/noticia/609-para-z-eacute-teixeira-147-leil-atilde-o-da-resist-ecirc-ncia-148-deve-ser-mantido-pois-eacute-leg-iacute-timo. Acesso em: 06 de nov. 2022. , cuja fazenda incide diretamente em Guyraroka21 21 Terra Indígena localizada no município de Caarapó. (PEREIRA, 2002PEREIRA, Levi Marques. Relatório circunstanciado de identificação e delimitação da terra indígena Guarani-Kaiowá Guyraroká. Portaria Nº 083/PRES/FUNAI, 31 de janeiro, 2001. Três Lagoas, 2002.). Aqui, o entendimento de que se trata de um Estado latifundiário adquire maior consistência.

Em relação a Heinze, do Partido Progressista (PP) do Rio Grande do Sul (RS), relembremos que o MPF representou criminalmente contra o deputado e contra Alceu Moreira, do PMDB/RS, por racismo e incitação ao crime. Heinze afirmou, durante audiência pública22 22 As citações a seguir constam em link disponibilizado em matéria da Repórter Brasil, que constará posteriormente nas referências bibliográficas. em 2013:

[...] É ali que estão aninhados quilombolas, índios, gays, lésbicas, tudo que não presta ali tá aninhado, e eles têm a direção e têm o comando do governo". - "Se nós não fizermos nada, se vocês ficarem de braços cruzados, o que que vai acontecer? Então pessoal, o que que estão fazendo os produtores do Pará? No Pará, eles contrataram segurança privada. Ninguém invade no Pará porque a Brigada Militar não lhes dá guarida lá, e eles têm que fazer a defesa das suas propriedades. Por isso, pessoal só tem um jeito: se defendam! Façam a defesa como o Pará está fazendo, façam a defesa como o Mato Grosso do Sul está fazendo" (BRASIL, 2014, s/p, grifos nossos).

Destacamos, além deste, um trecho do discurso de Alceu Moreira que também lhe rendeu o processo em questão:

Nós, os parlamentares, não vamos incitar a guerra, mas lhes digo: se fardem de guerreiros e não deixem um vigarista desses dar um passo na sua propriedade. Nenhum! Nenhum! Usem todo o tipo de rede. Todo mundo tem telefone. Liguem um para o outro imediatamente. Reúnam verdadeiras multidões e expulsem do jeito que for necessário (BRASIL, 2014, s/p, grifos nossos).

Estes discursos foram amplamente denunciados e noticiados (SANTINI, 2014, s/p). Destacamos a referência ao MS e Pará como parâmetro para as ações paramilitares insufladas pelos parlamentares. Em 2013, para citar exemplos no MS: na manhã do dia 12 de junho, Celso Rodrigues, indígena Guarani do tekoha Paraguassú, foi assassinado por pistoleiros em Paranhos; na tarde do mesmo dia, cinco indígenas da retomada de Itay Ka’agwyrusu, em Douradina, foram presxs - incluindo uma mulher grávida - acusados de envolvimento no homicídio de um PM reformado que atacou a retomada a tiros e a cavalo (CIMI, 2013). O CIMI noticiaria, ainda, o aumento de 130% da violência contra indígenas em 2014. Eis a “omissão” do Estado.

De diferentes formas, abordamos a Operação Tekohá deflagrada em 2011 (BECKER & MARCHETTI, 2013BECKER, Simone; MARCHETTI, Livia Estevão. Análise etnográfica e discursiva das relações entre Estado e mulheres indígenas encarceradas no MS. Revista de Ciências Humanas, Santa Catarina, v.47, n. 1, p. 81-99, 2013. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/revistacfh/article/view/2178-4582.2013v47n1p81/26178>. Acesso em: mar. 2014.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/rev...
; MATTOS JOHNSON, 2021MATTOS JOHNSON, Felipe. “A gente é refugiado na própria terra”: testemunhos Guarani e Kaiowá sobre terrorismo de Estado e desapropriação. In: Narrativas antropológicas em tempos pandêmicos: 10 anos de experiências etnográficas no PPGAnt/UFGD. São Paulo: LiberArs, 2021. p. 49-73.). A primeira discute a categoria Tekoha em seu entendimento dos Kaiowá e Guarani frente ao estigma atribuído à categoria Tekoha pela Operação da PF de combate ao tráfico. O segundo, pontua a militarização progressiva do entorno dos Tekoha e a semelhança entre a Operação Tekohá e as Operações de Garantia da Lei e da Ordem. Esta última foi decretada no MS em 2015. Enfim, adentremos os processos de Leonardo de Souza, sendo o primeiro também datado deste mesmo ano de 2015.

Os processos contra Leonardo anteriores ao massacre de Caarapó são dois enquadramentos: artigo 306 da Lei n.º 9503/97, [...] “conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool”, no dia 26 de fevereiro de 2015 em Amambai (MS); e “sequestro e cárcere privado”, relacionado a acontecimentos ocorridos no dia 27 de janeiro de 2016 na aldeia Te’yikue. No contexto do Massacre e de sua prisão, Leonardo é acusado de torturar policiais e enquadrado em tráfico de drogas internacional. Os processos anteriores ao 14 de junho de 2016 adormecem e, então, ganham outra vida em torno da teia necrobiopolítica (BENTO, 2018BENTO, Berenice. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? Cadernos Pagu, Campinas, n. 53, 2018. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332018000200405&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: dez. 2018.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
23 23 Estabelecendo diálogo tanto com Michel Foucault (2010) e sua ferramenta-conceito de biopoder/biopolítica, quanto com Achille Mbembe (2016) e a de necropoder, Berenice Bento (2018; 2020) propõe a de necrobiopoder. ) para reiterar a “periculosidade” e “agressividade” de Leonardo.

Os dispositivos literais do direito, como a “prescrição”, fazem um crime de menor valia, de menor capacidade ou potencial ofensivo, se tornar estratégico para engordar a periculosidade. O crime de trânsito, por exemplo, no caso de Leonardo é a inserção no sistema, sua primeira prisão de onde sai por meio de fiança. Sendo este o primeiro a disparar o nome de Leonardo no sistema criminal, não deixa de existir em meio e após o massacre. A prescrição não terminou, sendo esta o direito do Estado de exercer sua capacidade punitiva.

Cabe lembrar as diversas vezes nas quais crianças, homens e mulheres indígenas foram esquartejadas em meio às rodovias que cortam as aldeias do MS, à exemplo da BR-463, onde desde 2004, entre retomadas e despejos, Damiana Cavanha e sua parentela luta pela recuperação do Tekoha Apyka’i, sobre o qual elucida Aline Crespe (2015CRESPE, Aline Castilho. Mobilidade e temporalidade Kaiowá: do tekoha à reserva, do tekoharã ao tekoha. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal da Grande Dourados, 2015. 428 p., p. 251):

A ocupação se desdobrou no conflito com o proprietário da Fazenda Água Suja. Este conflito, de acordo com os filhos de Damiana, teria resultado no atropelamento do Sr. Ilário, conforme aparece no termo de declaração recolhido pelo antropólogo do MPF. [...] No documento, Sidnei de Souza afirma que seu pai, Ilário Ascário de Souza fora assassinado em 2002 em decorrência da luta pela terra. Diz, que o Sr. Ilário fora abalroado por um veículo guiado por um fazendeiro proprietário da terra reivindicada pela comunidade do Sr. Ilário de Souza. [...] em 2011, Sidnei, assim como seu pai, também morreu atropelado.

A autora apresenta os nomes dos demais parentes de Damiana assassinados por atropelamentos - além de seu marido e filho - todos mortos sem que os motoristas prestassem socorro24 24 Valdicrei Sanabri, 18 anos (2011); Aginaldo de Souza, 19 anos (2012, neto); Magno dos Santos, 16 anos (2012); Gabriel Cavalheiro, 4 anos (2013, neto) - este último, despedaçado na rodovia pelo caminhão bitrem carregador de cana, cujos restos mortais foram juntados por Damiana com suas próprias mãos para o enterro; Adeci Lopes, 17 anos (2014); e Ramão Araújo, 64 anos (2014). . Quantos dos motoristas que assassinaram os parentes de Damiana respondem por homicídio doloso? O cortante papel processual, por outro lado, fissura Leonardo - 115 páginas de um simples delito. Seu fichamento já realiza sua captura.

Avancemos aos acontecimentos de 2016. Percebe-se, diante da acusação de sequestro e cárcere privado, primeiramente, duas “coincidências” relevantes para o processo que sucede o massacre, que abrange tráfico de drogas internacional e tortura de policiais: 1) a padronização dos depoimentos da acusação, tanto dos funcionários da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), quanto dos policiais militares lotados na Força Nacional (FNSP); 2) a atuação de um mesmo Policial Federal (PF), sendo este Denis Colares Araújo.

A ocupação do posto da SESAI em 2016, ação organizada por coletividades da região da Aldeia Te’yikue, consistiu no impedimento da entrada e saída do posto localizado na área urbana de Caarapó. A reivindicação central, ocultada pelos processos criminais, exigia a imediata demissão do coordenador regional do polo-base, Adalberto Araújo Corrêa. Lideranças da Te’yikue, à época, relatam o descaso de Adalberto, que teria afirmado que “se morrer mais um, é um só” (CAARAPÓ NEWS, 2016, online)25 25 Disponível em: https://www.caaraponews.com.br/noticia/69855/liderancas-indigenas-de-caarapo-rebatem-chefe-estadual-da-sesai-e-negam-terem-feito-funcionarios-de-refens. Acesso em: 05 de nov. 2022. . Ainda, a situação das viaturas da SESAI e do atendimento nas aldeias encontrava-se em altos índices de precariedade, com proibição de atendimento nas áreas de retomada (DE FREITAS, 2016, online)26 26 Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2016/01/26/sesai-negocia-com-indios-mas-protesto-por-demissao-de-coordenador-continua/. Acesso em: 05 de nov. 2022. .

Em carta ao delegado da PF, que consta no processo de Leonardo, Adalberto apresenta uma relação de nomes de indígenas manifestantes, segundo ele, caracterizados por “periculosidade”, onde supostos crimes são associados de forma descontextualizada e nominalmente, exprimindo a estigmatização racista atribuída à diferentes coletividades, bem como, descaracterizando o ato político definido como “manipulação”. Leonardo é citado como um dos coordenadores da ação. Os depoimentos associam a ele e a famílias extensas a categoria de periculosidade e violência - “o negro [o indígena] é uma ameaça em potencial”, voltando a Bernardino-Costa (2016, p. 512). Quando o “colonizado” sai do lugar ao qual foi condenado pelo colonizador, “o olhar imperial tentará restituí-lo à sua posição ‘natural’, à zona do não-ser, por meio da violência simbólica ou física” (Idem). Aqui o eugenismo aparece mais uma vez: o indígena naturalmente perigoso para aqueles a quem se atribui fé pública.

No entanto, são precisamente PMs, PFs e polícias de fronteira, grandes fazendeiros e empresas privadas que se associam para a produção de um cenário de simetrização entre as partes - no caso de Leonardo, reiterado por parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) - baseado em uma condenação de supostos atos de violência. A ruptura do monopólio desta última aparece como um dos eixos dinamizadores da criminalização, revestida do racismo do Estado que é, também, latifundiário. Vejamos a diferença que se atribui à ruptura do monopólio da violência do Estado quando esta advém de “particulares”, herdeiros e súditos do projeto civilizatório de extermínio.

Em pesquisa realizada no Armazém da Memória, encontramos documento confidencial27 27 Disponível em: https://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=BMN_ArquivoNacional&pesq=Sylvio%20Mendes%20Amado &hf=www.docvirt.com&pagfis=646100. Acesso em: 12 de nov. 2022. do Serviço Nacional de Informações (SNI) vinculado ao Estado-Maior das Forças Armadas citando o primeiro proprietário da Fazenda Yvu, retomada em 2016 e alvo da ação paramilitar dos fazendeiros da região de Caarapó, resultando no massacre do dia 14 de junho. O primeiro proprietário, Sylvio Mendes Amado, aparece solicitando via ofício ao chefe do SNI providências para lidar com a violência na região fronteiriça. O informe declara a existência de uma “‘patrulha’ para desenvolver operações de ‘caça’ aos quadrilheiros que ali estão atuando”:

Imagem 5:
milícia ruralista na década de 1980. “Caça aos quadrilheiros”.

O documento de 1982 ilustra a inauguração de uma milícia ruralista articulada pela recém-nascida FAMASUL (1979). O medo dos que detém patrimônio, fazendeiros recém-chegados no centro-oeste do recém-Brasil, é motivo de causos contados pelo próprio Sylvio Amado em livro que escreveu, “Histórias e Estórias”:

“Deus me deu muito tino, eu era um vendedor tremendo e fui para o Mato Grosso, mas sempre vendendo touros” [...]. “Havia o Lamartine, um homem danado. Uma vez ele me avisou de uma fazenda em Perdizes, que tinha um lote de mil bois. Logo que chegamos à fazenda, o velho proprietário foi logo perguntando: ‘O senhor trouxe o dinheiro??’ Eu carregava o dinheiro em sacos. A tourada era muito boa. Na casa, havia uma daquelas mesas antigas, muito grande, e ele disse ‘despeja aí’. Pegamos o saco de linho, sujo, com o dinheiro e jogamos tudo na mesa. (BENEVENUTO, 2014, online)28 28 Disponível em: https://www.abcz.org.br/noticias/noticia/22973/sylvio-mendes-amado-sera-sepultado-em-campo-grande. Acesso em: 10 de nov. 2022.

Logo se percebe outra dimensão dos herdeiros dos tronos, sendo os dinheiros nos sacos uma ilustração mais do que eloquente. Importante mencionar que Raquel Silvana Cerqueira Amado Buainain, herdeira da fazenda de Sylvio Amado, é esposa de Nelson Buainain Filho, um dos fazendeiros acusados de idealizar e orquestrar o Massacre de Caarapó, sendo também a requerente à reintegração de posse contra a retomada da área.

O processo criminal de Leonardo referente aos acontecimentos durante o massacre, em específico, após o assassinato de seu filho Clodiode, reportam o idêntico depoimento realizado pelos PMs lotados na FNSP que, contraditoriamente, prendeu o acusado em sua própria casa apesar de ser considerado foragido; que teria confessado o crime de tortura de policiais na viatura da FNSP, já algemado, a caminho da delegacia; e sobre quem recai a tipificação do tráfico de drogas internacional, apesar da ausência de provas sobre a procedência da maconha encontrada. O processo desconsidera, ainda, as práticas ancestrais de mobilidade Kaiowá e Guarani entre parentelas extensas nos Tekoha Guasu, ao indicar a constante mudança de local, casa e região de moradia como suposta prática delitiva.

Este último processo (Nº 0001325-94.2018.4.03.6002) também é assumido pelo Delegado da Polícia Federal Denis Colares Araújo. Quem é, afinal, este delegado?

O Ministério Público Federal (MPF) no Mato Grosso do Sul entrou com um recurso no Tribunal Regional Federal da 3a Região (TRF-3), denunciando três delegados e um agente da Polícia Federal em Dourados pela manipulação de escutas telefônicas gravadas com autorização judicial. O caso inclui a ocultação de uma conversa em tom amistoso entre o delegado Denis Colares de Araújo, da Polícia Federal, e o fazendeiro Dionei Guedin. Então foragido, ele é um dos acusados pelo Massacre de Caarapó. [...] No dia 22 de agosto de 2016, um diálogo gravado às 8h44 e recuperado pela Procuradoria traz o fazendeiro foragido conversando com o delegado da Polícia Federal em Dourados, entre risadas. “Doutor do céu, arrumou a cama pra mim já ou não?”, questiona. “Não, rapaz”, responde Colares. Ele afirma, em seguida, que o pedido de prisão partiu do Ministério Público Federal, e que a relação do órgão com a PF “fodeu de vez”. O delegado orienta o fazendeiro a “bater no MPF via imprensa” para escapar da cadeia. O foragido questiona se podem conversar pessoalmente. “Pooode, pode me procurar aqui”, responde Araújo. Guedin suspeita que seu telefone está grampeado e informa outro número ao delegado. Segundo relato do MPF, feito a partir de registros das ligações obtidos por meio de perícia e de depoimentos, a ligação é encerrada, mas Colares segue até seu alojamento, onde acorda o agente Álvaro dos Santos Neto e afirma: “Tô fodido, fodido, falei com um fazendeiro”. (DOLCE, 2019DOLCE, Julia. 2019. Favorecimento de delegado à fazendeiro comprova denuncia antiga do CIMI, diz advogado. De Olho nos Ruralistas. Disponível em: <https://deolhonosruralistas.com.br/deolhonoms/2019/04/08/favorecimento-de-delegado-a-fazendeiro-comprova-denuncia-antiga-do-cimi-diz-advogado/>. Acesso em: 10 de nov. 2022.
https://deolhonosruralistas.com.br/deolh...
, online)

Às 40 caminhonetes, 3 pás carregadeiras e mais de 100 pessoas que marcharam para executar o massacre sob o comando dos cinco fazendeiros de Caarapó29 29 Nelson Buainain Filho, Virgílio Mettifogo, Jesus Camacho, Dionei Guedin e Eduardo Yoshio Tomonaga. Na matéria a seguir, é possível visualizar Dionei Guedin no site da COAMO recebendo “as sobras de seu grupo familiar”, costumeiramente milionárias: http://www.coamo.com.br/jornal/conteudo.php?ed=50&id=873. Acesso em: 11 de nov. 2022. - alguns dos quais associados à Coamo Agroindustrial Cooperativa, que forneceu base no interior da empresa nos momentos que antecederam o ataque (CARVALHO, 2019CARVALHO, Igor. Ataque a indígenas em Caarapó, há três anos, foi articulado por WhatsApp. De Olho nos Ruralistas, 2019. Disponível em: https://deolhonosruralistas.com.br/deolhonoms/2019/06/16/ataque-a-indigenas-em-caarapo-ha-tres-anos-foi-articulado-por-whatsapp/. Acesso em: 11 de nov. 2022.
https://deolhonosruralistas.com.br/deolh...
, online) -, o delegado prevê mordomias. A amistosa relação entre este último e o propulsor de um dos massacres mais brutais da história do MS, revela o rastilho de pólvora, soja e papel que subjaz nas masmorras do Estado em sua dimensão latifundiária, herdeira dos senhores do engenho escravagistas e do militarismo.

A prisão de Leonardo foi novamente decretada pela primeira turma do STF, enquanto seguem os cinco fazendeiros respondendo em liberdade por “formação de milícia armada, homicídio qualificado, tentativa de homicídio qualificado, lesão corporal, dano qualificado e constrangimento ilegal.” (D’AGOSTINO, 2020D’AGOSTINO, Rosanne. Primeira turma do STF mantém preso indígena acusado de torturar policiais no MS em 2016. G1, 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/12/01/primeira-turma-do-stf-mantem-preso-indigena-acusado-de-torturar-policiais-no-ms-em-2016.ghtml. Acesso em: 11 de nov. 2022.
https://g1.globo.com/politica/noticia/20...
, online). A condição de Leonardo como idoso, diabético, hipertenso e outras doenças crônicas e degenerativas, assim como o grave quadro depressivo após o assassinato de Clodiode foi desconsiderado, acrescido da violência integracionista do voto de Alexandre de Moraes, que atualiza o escopo do regime tutelar e da “ressocialização” civilizatória para negar o Habeas Corpus da DPU: “Leonardo está adaptado culturalmente, o que impede a utilização da sua condição de indígena para converter a prisão em domiciliar (STF, 2020, online apudMATTOS JOHNSON, 2021MATTOS JOHNSON, Felipe. “A gente é refugiado na própria terra”: testemunhos Guarani e Kaiowá sobre terrorismo de Estado e desapropriação. In: Narrativas antropológicas em tempos pandêmicos: 10 anos de experiências etnográficas no PPGAnt/UFGD. São Paulo: LiberArs, 2021. p. 49-73., p. 63).

Finalmente, considerando que parte da acusação contra Leonardo em relação a tortura de policiais envolve o desaparecimento de duas armas de fogo dos mesmos policiais durante o ato insurgente de coletividades da Terra Indígena Dourados Amambaipegua I, apresentamos a transcrição inédita de depoimento de indígena Kaiowá da retomada Avaete, colhido em setembro de 2021 pelxs autores30 30 Entrevista realizada em conjunto com advogado popular. , que é autoexplicativo acerca da continuidade do cerco repressivo: foi acusado do roubo das armas dos policiais sob uma sessão de três horas de tortura em sua própria casa, em retomada que é alvo constante de ataques policiais e de pistoleiros - um dos principais focos de ataque do caveirão rural, trator modificado utilizado para atacar indígenas em Dourados (MS). Entre colchetes, perguntas dos entrevistadores, que inclui um dxs autorxs. A seguir, as palavras de Kunumi Tape Rendy31 31 Traduz-se como Menino do Caminho Brilhante. Nome fictício atribuído ao nosso interlocutor, por razões de segurança. , cuja extensão da entrevista aqui transcrita se justifica pelo seu conteúdo:

Quando eles foram me pegar lá em casa, era 3 horas da manhã. Eles chegaram 3 horas da manhã em casa, arrombaram a porta... foram 3 viaturas.

[Polícia Militar?] - A militar. Me pegaram lá as 3 horas da manhã, me torturaram das 3 horas da manhã até as 6 horas.

[Pra onde eles te levaram?] - As 6 horas me colocaram dentro da viatura, me levaram lá pro 1º DP. Das 3 horas eles me torturaram até as 6 horas da manhã, dentro da minha casa. Eu fui torturado até 6 horas da manhã. Deu 6 horas, me levaram no 1º DP. Lá eles chegaram, me ameaçaram muito. Eles falaram que iam me picar tudo e ia me jogar dentro do rio. Falaram pra mim não voltar mais aqui, senão eles iam voltar, me pegar e iam sumir com meu corpo. Ninguém ia saber. Aí eu não aguentei apanhar aquele dia, ixi...

[Que dia que isso aconteceu?] - Isso aconteceu foi uns 3 meses atrás32 32 A entrevista foi realizada em setembro de 2021. Os fatos ocorreram, portanto, em junho do mesmo ano. ... Eu apanhei com minha própria flecha. Eles quebraram tudo o arco e flecha nas minhas costas.

[Você ficou detido?] - Eu fiquei detido lá, porque eu tinha um regime aberto pra mim pagar, e eu não paguei. Eu não sabia também... que ia vir um papel pra mim, eu não sabia...

[E você sabe do que que é esse regime aberto?] - Eu tenho puxado preso lá. Eu tinha uns processos, que esse aí foi armado pela própria liderança da aldeia. Eu fiquei preso 1 ano e 8 meses. Eu puxei um homicídio sendo que eu não matei ninguém.

[Você ficou quanto tempo dessa vez?] - Fiquei 3 meses. Lá no semiaberto.

[Você teve assistência da Defensoria Pública?] - Tive. Mas nisso, aconteceu tudo isso comigo porque... porque eles falaram que eu era líder aqui da aldeia. Aí eles me pegaram. Falaram que eu era líder... quando eu fui preso mesmo, foi um monte de policial lá falando “esse daí mesmo! É esse daí mesmo”.

[Quando você foi preso, teve uma audiência, com um juiz?] - Não.

[Fez exame de corpo de delito?] - Não. “Ele não precisa não”, ele falou pra mim. Foram mais dois comigo preso. O próprio policial que me torturou e me bateu, foi lá e falou pra mim: “você tem algum machucado aí? Fala bem!” Mas como eu vou falar pro próprio cara que me torturou que eu tô machucado? Ele sabe que eu to todo machucado. Ele falou pra mim: “você tem algum machucado aí? Fala, fala!” e eu falei “não...”, como que eu vou falar né? Aí a hora que eu cheguei lá no corpo de delito, só os dois que foi comigo, que é branco, ele [o policial] falou: “os dois pode descer, ele não. Pode ficar aí”.

[Eles apresentaram algum documento pra levar você?] - Nada. Só me levaram. Eram 3 viaturas. Só eu fui levado. Chegaram, arrombaram porta, batendo... sorte que minha filha e minha mulher não estavam lá. Tudo PM, 1 segurança da aldeia, que é líder ali... [...] e o resto era tudo policial.

[Armaram com a capitania então?] - Armaram. Porque tem um vendedor que vende aqui dentro da aldeia. Conhece todo mundo. Ele mora nessa chácara, mora ali naquela fazenda. Ele vinha aqui, a gente não sabia que era ele. Agora a gente sabe que ele mora ali também. Ele é meio paraguaio, meio índio... ele ganha o ganha pão dele dentro da aldeia.

[Então no momento da prisão, justificaram dizendo que você é liderança?] - É. Que eu era líder. Eles falaram que eu tava com um monte de processo, que eu tinha mais de 15 passagens. Que eu fui pego com um monte de armamento, sendo que eles pegaram só ferramenta aqui, que a FUNAI entregou. Foice... eu apanhei com foice, eu apanhei com meu próprio facão, eu apanhei com minhas flechas...

[Você ficou algum dia detido na DP quando foi levado ou foi detido e logo levado pro semiaberto?] - Eu fui detido, dali eu já fui levado direto pro semiaberto. Só que eles falaram lá que eu tinha sorte. “Ele tem sorte que vai pro semiaberto, senão eu ia quebrar ele”, falou o rapaz. O policial, um baixinho... um policial militar. Tinha identificação, mas não deu tempo... tava escuro. Ele trabalha ali na aldeia, ele é dali, ele faz serviço aqui na aldeia. Eu fui xingado um monte de vezes, ele falou “esses povo fedido só da trabalho! Esses índio... quer tirar terra... eles tem terra mas não planta. Só planta árvore. Não dá produção nenhuma”. Aí eu fiquei quieto... até umas 8 horas da manhã.

[Depois você conversou com o Defensor Público?] - Não. Conversei só esses dias, quando já ia sair.

[Você saiu faz pouco tempo então?] - Vai fazer 1 mês, por aí. Eu fiquei 1 ano e 9 meses, depois eu fui pro júri popular, sendo que o cara nem tava morto. Faz tempo já, antes de eu rodar de novo... na primeira vez que eu fui preso.

[Você foi acusado pela morte de uma pessoa que tava viva?] - É. Eu fiquei 1 ano e 9 meses, preso por causa disso aí. Na PED. Agora eu saí e tô aguardando a tornozeleira. [...] Eu fui tudo machucado. Eu não consigo mais trabalhar como antigamente eu trabalhava. Eu mexo com construção civil e tá difícil pra mim, entendeu? Que nem: eu saio, uso essa estrada ali... a gente vai com medo né. Eles ameaça né? Sabem tudinho nosso nome... Sabe o que que ele falou? Quando o policial chegou, entrou, arrombou... eu tava dormindo, ele arrombou as portas... ele falou pra mim: “cadê as armas que você roubou do polícia, lá em Caarapó? Vocês torturaram um policial”, ele falou pra mim. Ele me apontou como líder de tudo as retomadas. “Cadê as armas? Onde você escondeu”, primeira coisa que ele perguntou. “Liderança [capitão] falou que você tá com as armas dos policial aí”. E me bateram. Eu não sabia, eu não tenho! Como que eu vou falar? É isso que acontece... tem uns que tá preso lá. Ele apanhou e abraçou, talvez nem é o cara. Assim que acontece muito com nosso patrício lá. Eles abraçam o B.O porquê não querem apanhar mais. E eu nunca tive arma. Não tenho dinheiro pra comprar um pacote de bala pra minha filha vou ter dinheiro pra comprar alguma arma? Quando eu tava ali [na PED] eu achei um monte de gente de lá [de Caarapó]. Qualquer índio que eles pegava, eles torturam. Qualquer um que eles pegam lá eles torturam. Pode perguntar pros índios lá. “Você tava lá no meio né? Você tava lá!”.

Considerações finais

O relatório de Mark Münzel, “The Aché Indians: genocide in Paraguay” (1973MÜNZEL, Mark. The Aché indians: genocide in Paraguay. Copenhagen: IWGIA, 1973.), versa sobre o extermínio de indígenas Aché no Paraguai na década de 1950 e 1960 promovido por escravagistas, militares, madeireiros e fazendeiros, com anuência e financiamento do Estado paraguaio na figura do ditador militar Alfredo Stroessner. Em determinados trechos acerca dos caminhões repletos de indígenas Aché levados para Curuguaty, lotados após a realização de caças promovidas contra os mesmos indígenas, seguidas de estupro de mulheres jovens e crianças antes de serem presas nos ônibus e caminhões. Os veículos utilizados, devido ao abarrotamento, o movimento cambaleante e o medo, causavam vômitos que atingiam aos corpos vizinhos de cada Aché aprisionado. O relatório, ainda, traz depoimentos do antropólogo Chase Sardi: “Os Achés da Reserva são verdadeiros prisioneiros de um campo de concentração.” Ao que Meliá confirma: “A Reserva Aché é um cemitério Aché” (1973, p. 55, tradução nossa).

A correlação neste artigo estabelecida entre os múltiplos cárceres que afetam aos Kaiowá e Guarani demonstra as reiteradas tentativas históricas de impedimento dos sujeitos indígenas em romperem com a atribuição dos maniqueísmos coloniais - entre o ser e o não-ser -, que se manifestam nas retomadas dos Tekoha como resistência ontológica, como transbordamento das Reservas Indígenas. Os massacres buscam represar as incontenções das rachaduras do mundo colonial, por cujas frestas se arrancam corpos passíveis de punição exemplar com o curso do avanço das frentes de expansão agrícola e capitalista. Foi assim durante o extermínio dos Aché no Paraguai, cujas caçadas humanas resultavam em escravização no final da década de 1950, para “abrir as áreas indígenas para penetração comercial” (MÜNZEL, 1973MÜNZEL, Mark. The Aché indians: genocide in Paraguay. Copenhagen: IWGIA, 1973., p. 12) durante a ditadura no Paraguai; foi assim, durante a ditadura militar brasileira, período que abrange a maior parte dos documentos apresentados ao longo do artigo; é assim na atualidade do “Estado Democrático de Direito”.

As reflexões aqui suscitadas, deste modo, extrapolam seu recorte espaço-temporal e sua extensão constante nos autos dos processos, nos recortes de jornais e documentos fotografados. Buscamos contribuir para uma antropologia da abolição e do abolicionismo penal/prisional, uma antropologia insurgente, que exige trair ao Estado, que “não deve ter dúvidas de que o trabalho da polícia é reatualizar diariamente um pacto coletivo e expansivo de violabilidade selado primariamente na carne negra, e deve recusar as falsas promessas de reforma dessa instituição irreparável” (ALVES, 2022ALVES, Jaime A. F*da-se a polícia! Formações estatais antinegras, mitos da fragilidade policial e a urgência de uma antropologia da abolição. Dilemas, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, set.-dez. 2022, p. 1012-1045., p. 1033-1034). Por uma antropologia insurgente coerente com a insurgência dos povos, disposta ao entendimento da revolta e da rebelião como direitos inalienáveis de um povo no processo de retomada de suas terras ancestrais. A seletividade penal são os dedos do Estado-latifúndio prisional apontados aos seus declarados inimigos internos, que se opõem ao avanço cruento das frentes de expansão capitalista e extrativista no MS.

No dia 12 de janeiro de 2022, ocorreram as audiências no processo criminal que vai julgar os 5 fazendeiros acusados de idealizar, organizar e executar o Massacre de Caarapó. Na ocasião, a família de Leonardo reiterou a reivindicação por sua liberdade, denunciando o progressivo agravamento de sua saúde, o seu isolamento e a falta de acesso a medicamentos. Neste mesmo ano, enquanto as audiências vagarosamente avançam com a escuta das vítimas do Massacre, no dia 24 de junho, acontece o massacre de Guapo’y, ocorrido próximo à Reserva de Amambai após retomada, massacre que vitimou Vitor Fernandes após ação ilegal de reintegração de posse realizada pelo Batalhão de Choque da PM do MS.

A violência cotidiana desde então vivenciada pelos Guarani e Kaiowá reafirma a argumentação do artigo. O encarceramento em massa de indígenas Guarani e Kaiowá é, afinal, uma ferramenta contra-insurgente, que responde diretamente à ação estatal para a defesa da propriedade privada. O racismo como elo, como grude rançoso das armas brancas, estimula as canetas de delegados, escrivães, juízes e advogados de acusação. A história se estreita nos açoites entre-tempos, e não há mais tempo para esperar pela demarcação: surgem novos Marçais.

Sobretudo, reiteramos a vida que brota da insurgência: após Alex Lopes, de 18 anos, assassinado com 6 tiros e jogado do outro lado da fronteira de Coronel Sapucaia com o Paraguai, nasce a retomada Jopara. Após Vitor Fernandes, mais uma vez Guapo’y Mirin Tujury é retomada nas cercanias da Reserva de Amambai. Em seguida, a retomada de Kurupi avança sob intenso tiroteio e ação militar. Apesar das emboscadas que vitimaram Marcio Moreira e Vitorino Sanches, na sequência do morticínio desatado pelo agro com auspícios da Secretaria de Segurança Pública, as retomadas se multiplicaram, fazendo agonizar a lógica da propriedade privada. Estes fatos não deixam dúvida: Clodiode vive. O Estado mata. E que Leonardo possa, enfim, respirar em liberdade.

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  • _____. A Hora da Micropolítica. Entrevista com: Suely Rolnik. disponível em: https://www.goethe.de/ins/br/pt/kul/fok/rul/20790860.html Acesso em: 20 de out. de 2022.
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  • VELHO, Gilberto. Desvio e divergência: uma crítica da patologia social. 5ª edição. RJ: Jorge Zahar Editor, 1985.
  • 3
    “Quando cada caso não é um caso”, nome que inspira e titula nosso artigo, é conferência convertida em texto-artigo de Cláudia Fonseca (1999FONSECA, Claudia. FONSECA, Cláudia. 1999. "Quando cada caso NÃO é um caso. Pesquisa etnográfica e educação". Revista Brasileira de Educação, Jan/Fev/Mar/Ab, n.10. Rio de Janeiro: Anped, p. 58-78. In: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24781999000100005. Acesso em: 12 de ab.2023.
    http://educa.fcc.org.br/scielo.php?scrip...
    ) que desconstrói a máxima jurídica do “quando cada caso é um caso”, a fim de nos convidar à reflexão dos vínculos entre a micropolítica da etnografia e a macropolítica tecida também pela antropologia no diálogo com outros saberes. Eis o movimento que buscaremos ao longo de nossas tessituras sobre engrenagens estatais que mortificam corpos-territórios-indígenas.
  • 4
    Até o término deste artigo, outros acontecimentos envolvendo a criminalização de indígenas Guarani Kaiowá ocorreram, circunstâncias que não puderam ser aqui abordadas. Sobre o primeiro caso, ocorrido em março de 2023 - quando 3 pessoas Guarani Kaiowá foram presas pela Polícia Militar após despejo ilegal na retomada de Laranjeira Nhanderu -, ver: https://www.brasildefato.com.br/2023/03/06/saiba-mais-como-os-guarani-kaiowa-vem-retomando-terra-ancestral-no-mato-grosso-do-sul. Acerca do segundo caso, que diz respeito à 9 prisões relacionadas à retomada ocorrida em Dourados, mais informações podem ser acessadas em: https://cimi.org.br/2023/04/violacoes-dourados-justica-presos-casas-queimadas/.
  • 5
    A Reserva Indígena de Dourados é dividida entre a aldeia Jaguapiru e Bororo.
  • 6
    Literal porque a lógica que estrutura as Prisões e os Manicômios, segundo Foucault, apresenta engrenagens que atravessam as mais distintas instituições que nos subjetivam e nos normalizam.
  • 7
    Coordenado pela profx. Simone Becker e no qual participaram estudantes e docentes da UFGD, de outras IES (Instituições de Ensino Superior), bem como parcerias da FUNAI e da DPU.
  • 8
    Dourados, Caarapó, Amambai, Limão Verde, Sassoró, Taquaperi, Porto Lindo e Pirajuí.
  • 9
    O autor aponta Julho Almeida como “antigo morador da região do Saverá” (BENITES, 2022, p. 83).
  • 10
    Recentemente, como o uso do tambo e do suplício, denúncias realizadas pela Kuñangue Aty Guasu - grande assembleia das mulheres Kaiowá e Guarani - demonstram que diferentes nhandesy (rezadoras) foram acusadas de feitiçaria seguido de práticas de tortura por parte de membros de igrejas pentecostais. O corte de cabelo apareceu como um dos elementos presentes na tortura. Disponível em: www.kunangue.com.
  • 11
    Prisão que operou em território Krenak, no município de Resplendor (MG) de 1969 a 1972, voltada especificamente para o encarceramento e tortura de indígenas de diferentes regiões do país.
  • 12
    São estas: Pindo Roky, Itaguá, Paī Tavyterã, Tey’i Jusu, Nhandeva, Nhamoi Guavira’i, Jeroky Guasu, Kunumi Poty Verá e Guapo’y.
  • 13
    O caso de Alexandre Claro pode ser aprofundado na leitura de Felipe Mattos Johnson (2019; 2021).
  • 14
    Nome Kaiowá de Leonardo.
  • 15
    Federação de Agricultura e Pecuária do Mato Grosso do Sul.
  • 16
    Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul.
  • 17
    Disponível em: https://www.sindicatoruraldebelavista.com.br/produtor-rural-de-ms-e-legalista-afirma-riedel-durante-leilao/. Acesso em: 5 de nov. 2022.
  • 18
    Disponível em: https://agencia.fpagropecuaria.org.br/2013/12/03/leilao-da-resistencia-preve-arrecadar-r-3-milhoes/.Acesso em: 5 de nov. 2022.
  • 19
    Disponível em: https://jf-ms.jusbrasil.com.br/noticias/112188463/justica-federal-suspende-leilao-da-resistencia. Acesso em: 05 de nov. 2022.
  • 20
    Disponível em: https://zeteixeira.com/noticia/609-para-z-eacute-teixeira-147-leil-atilde-o-da-resist-ecirc-ncia-148-deve-ser-mantido-pois-eacute-leg-iacute-timo. Acesso em: 06 de nov. 2022.
  • 21
    Terra Indígena localizada no município de Caarapó.
  • 22
    As citações a seguir constam em link disponibilizado em matéria da Repórter Brasil, que constará posteriormente nas referências bibliográficas.
  • 23
    Estabelecendo diálogo tanto com Michel Foucault (2010______. Em defesa da sociedade. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010.) e sua ferramenta-conceito de biopoder/biopolítica, quanto com Achille Mbembe (2016) e a de necropoder, Berenice Bento (2018BENTO, Berenice. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? Cadernos Pagu, Campinas, n. 53, 2018. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332018000200405&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: dez. 2018.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    ; 2020) propõe a de necrobiopoder.
  • 24
    Valdicrei Sanabri, 18 anos (2011); Aginaldo de Souza, 19 anos (2012, neto); Magno dos Santos, 16 anos (2012); Gabriel Cavalheiro, 4 anos (2013, neto) - este último, despedaçado na rodovia pelo caminhão bitrem carregador de cana, cujos restos mortais foram juntados por Damiana com suas próprias mãos para o enterro; Adeci Lopes, 17 anos (2014); e Ramão Araújo, 64 anos (2014).
  • 25
    Disponível em: https://www.caaraponews.com.br/noticia/69855/liderancas-indigenas-de-caarapo-rebatem-chefe-estadual-da-sesai-e-negam-terem-feito-funcionarios-de-refens. Acesso em: 05 de nov. 2022.
  • 26
    Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2016/01/26/sesai-negocia-com-indios-mas-protesto-por-demissao-de-coordenador-continua/. Acesso em: 05 de nov. 2022.
  • 27
    Disponível em: https://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=BMN_ArquivoNacional&pesq=Sylvio%20Mendes%20Amado &hf=www.docvirt.com&pagfis=646100. Acesso em: 12 de nov. 2022.
  • 28
    Disponível em: https://www.abcz.org.br/noticias/noticia/22973/sylvio-mendes-amado-sera-sepultado-em-campo-grande. Acesso em: 10 de nov. 2022.
  • 29
    Nelson Buainain Filho, Virgílio Mettifogo, Jesus Camacho, Dionei Guedin e Eduardo Yoshio Tomonaga. Na matéria a seguir, é possível visualizar Dionei Guedin no site da COAMO recebendo “as sobras de seu grupo familiar”, costumeiramente milionárias: http://www.coamo.com.br/jornal/conteudo.php?ed=50&id=873. Acesso em: 11 de nov. 2022.
  • 30
    Entrevista realizada em conjunto com advogado popular.
  • 31
    Traduz-se como Menino do Caminho Brilhante. Nome fictício atribuído ao nosso interlocutor, por razões de segurança.
  • 32
    A entrevista foi realizada em setembro de 2021. Os fatos ocorreram, portanto, em junho do mesmo ano.
  • 1
    Esta pesquisa e artigo contam com o apoio via financiamento de bolsa de doutorado do autor através da FCT em relação ao projeto UI/BD/154315/2022.
  • 2
    Este artigo é resultado do projeto de pesquisa financiado pela agência do governo federal brasileiro, o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), com a bolsa de produtividade PQ e intitulado: ““Observatório dos rastros de mulheres travestis, transgêneros, negras e indígenas, dentre as que(m) restaram das guerras pós-tempo Covid-19 (e suas mutações), através das prisões e das Universidades de Dourados/MS (e cercanias)”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2023
  • Aceito
    23 Abr 2023
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