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A Importância do Relatório Figueiredo na luta pelos direitos dos povos indígenas

BELTRÃO, Jane Felipe. Relatório Figueiredo: Atrocidades Contra Povos Indígenas em Tempos Ditatoriais. Rio de Janeiro: Laboratório de Pesquisas em Etnicidade (LACED), 2022

Resumo

O livro aqui resenhado, Relatório Figueiredo: Atrocidades Contra Povos Indígenas em Tempos Ditatoriais, publicado em 2022, é organizado pela antropóloga e historiadora Jane Beltrão. O livro tem capítulos voltados ao Direito, Antropologia, História e Arqueologia, permitindo ao leitor o entendimento do assunto de forma ampla. A leitura deste livro, assim como do próprio Relatório Figueiredo, não é fácil. Suas páginas sangram ao recontar os inúmeros crimes e abusos de direitos humanos sofridos por povos indígenas na época da ditadura militar. Contudo, apesar da dificuldade em ler estas cenas de um verdadeiro ‘’filme de horror’’, como dito por Beltrão, o livro é um marco na luta por direitos indígenas. Ajuda na disseminação do conhecimento do que consiste o Relatório Figueiredo, prova de graves violações de direitos humanos, importantíssimo no exercício da memória. Pois apenas lembrando os males do passado podemos nos certificar de que não serão repetidos.

Palavras-chave:
Relatório Figueiredo; ditadura militar; direitos humanos; justiça transicional

Abstract

The book herein reviewed, published in 2022, is organized by anthropologist and historian Jane Beltrão. It is composed by chapters in several areas, including Law, Anthropology, History and Archeology, allowing the reader an ample understanding of the topic. Reading this book, just like reading the Figueiredo Report, is not easy. Its pages bleed in retelling the several crimes and human rights violations suffered by indigenous peoples during the military dictatorship. However, despite of this difficulty in reading through scenes of a true ‘’horror movie’’, as said by Beltrão, this book is a landmark in the fight for indigenous rights. It helps to disseminate knowledge of what the Figueiredo Report consists of: a proof of grave violations of human rights, which is highly important in the exercise of memory. After all, it is only through remembering the wrongdoings of the past that we can make sure that these are not repeated.

Keywords:
Figueiredo Report; military dictatorship; human rights; transitional justice

Jane Felipe Beltrão é antropóloga, historiadora, militante, autora e organizadora do livro aqui resenhado - Relatório Figueiredo: Atrocidades Contra Povos Indígenas em Tempos Ditatoriais. É graduada em História em 1973 pela Universidade Federal do Pará, foi colaboradora da UNESCO, trabalhou na FUNAI, e foi Vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia em 2015 a 2016. Atualmente, a Doutora Jane Beltrão é professora titular na UFPA, atuando ativamente na formação de recursos humanos tanto na graduação como na pós-graduação da Instituição. Em linhas gerais, o livro de sua autoria se beneficia por ser organizado por uma acadêmica experiente, formando por meio deste um compêndio multidisciplinar. Assim, se possibilita o entendimento do assunto pelos ângulos da Antropologia, do Direito, Arqueologia e História.

O livro tem como centro o Relatório Figueiredo, ainda hoje pouco conhecido no Brasil, um documento que relata diversos crimes e violações de direitos humanos sofridos por povos indígenas durante os anos da ditadura. O relatório original tem 7 mil páginas distribuídas em 30 volumes, resultado de investigações pela comissão de inquérito instaurada em 1967 pelo ministro do interior General Afonso Augusto de Albuquerque Lima e dirigida pelo então procurador do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), Jader de Figueiredo Correia. O documento ficou ‘’desaparecido’’ por anos, pois acreditava ter sido destruído no incêndio criminoso do Ministério da Agricultura em junho de 1967. Contudo, o relatório foi republicado em 2012, após ter sido encontrado no Museu do Índio por Marcelo Zelic, Vice-Presidente do grupo Tortura Nunca Mais.

O Relatório Figueiredo não pode ser dissociado do contexto da ditadura militar. Após a derrocada dos regimes militares latino-americanos, muitos destes foram postos numa encruzilhada: ou manter a estabilidade, ou buscar a justiça e reparações às vítimas dos regimes e seus crimes (SRIRAM 2007SRIRAM, C.L. (2007). Justice as peace? Liberal peacebuilding and strategies of transitional justice’. Global Society, Vol. 21, No. 4, pp. 579-591, Outubro 2007.: 584; SHRIVER 2007SHRIVER, D.W. (2007) Repairing the past: Polarities of Restorative Justice. CrossCurrents, Vol. 57, No. 2, Race & Religion: The Elixir of Separation, pp. 209-217, Julho 2007.: 209). Foi nesse contexto que surgiu o conceito de Justiça Transicional, uma abordagem interdisciplinar que buscava responder aos abusos e violações de direitos humanos em tempos de transição de regimes militares para democracias (NUZOV 2014NUZOV, I. ‘The Role of Political Elite in Transitional Justice in Russia: From False ‘Nurembergs’ to Failed Desovietization’. U.C. Davis Journal of International Law & Policy, Vol. 20, No. 2, 273-322, Abril 2014.: 274; FORSYTHE 2011FORSYTHE, D. P. (2011) ‘Human Rights and Mass Atrocities: Revisiting Transitional Justice’. International Studies Review, Vol. 13, No. 1, pp. 85-95, Março 2011.: 85). No contexto brasileiro, a Comissão da Verdade pode ser vista como um modo do Estado Brasileiro de endereçar os crimes da ditadura militar, porém, como veremos adiante, essa medida não foi suficiente para remediar os abusos perpetrados. De fato, como dito na introdução do livro, a Justiça de Transição ainda não alcançou os povos indígenas.

Apesar da republicação do Relatório ter ocorrido dez anos atrás, a injustiça aos povos indígenas ainda perdura e há muito mais a ser feito para sua remediação. A Comissão da Verdade (CNV), instalada em 16 de maio de 2012, teve como objetivo ‘’examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos, praticadas entre 18 de dezembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, com a finalidade de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional’’. Contudo, a CNV teve suas atividades encerradas em pouco mais de dois anos de sua instalação. Além disso, não foram poucos os empecilhos para uma investigação completa e correta.

O Relatório Figueiredo nasceu com o intuito de investigar irregularidades cometidas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão que posteriormente daria origem a FUNAI, e que foi responsável pela política indigenista brasileira entre os anos de 1910 e 1967. Contudo, as investigações contidas no Relatório Figueiredo tiveram uma série de limitações, que acabaram por contribuir para perdurar a impunidade de agentes estatais pelos crimes cometidos. Além da falta de tempo e recursos para investigar, certos crimes não eram considerados “violentos” - como por exemplo, raptar uma indígena entre 14 e de 21 anos de idade. Além disso, no documento há diversas menções diretas da falta de admissão estatal quanto aos crimes cometidos durante a ditadura, incluindo tortura, os quais resultaram em impunidade em larga escala.

Ainda hoje, o Relatório Figueiredo é de altíssima importância. Ele não apenas relata o passado, como é também uma janela que ajuda a explicar a relação atual do Estado Brasileiro com os mais de 300 povos indígenas existentes no país. Relação esta de desrespeito, desigualdade, violência e dominação. E por que devemos discutir hoje o Relatório Figueiredo, um atlas de atrocidades? Pois a cultura de impunidade que perdurou por anos, a exemplo dos inúmeros crimes relatados e que não foram devidamente respondidos, é um dos fatores que explica a existência de políticas estatais atuais como o marco temporal, que poderá dificultar ainda mais a demarcação de terras indígenas. Por meio do marco temporal, povos que não habitavam suas terras na data da promulgação da Constituição de 1988 não terão suas terras demarcadas (BRASIL 2009: 137-138). O marco temporal é uma tese inconstitucional defendida por ministros do Supremo Tribunal Federal, e suas consequências podem ser devastadoras (DANTAS 2022DANTAS, J.E. (2022) TOP 6: Principais problemas da tese do Marco Temporal. Greenpeace Brasil, 9 de agosto de 2022. Disponível em: https://www.greenpeace.org/brasil/blog/top-6-principais-problemas-da-tese-do-marco-temporal/. Acesso em: 29 de outubro de 2022.
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). Tendo o direito à terra negado, muitos povos poderão ser forçados a desocupar suas terras, facilitando assim sua usurpação por aqueles que tem interesses econômicos atrelados a elas. Deste modo, o Relatório Figueiredo responde essa falácia do Estado, pois detalha casos nos quais povos como os Kadiwéu, os Guarani Kaiowá e os Cinta-Larga foram violentamente forçados a se deslocar de suas terras. Como dito por Luís Cardoso de Oliveira no prefácio, o livro é um “marco” na luta pela justiça para os povos indígenas. A publicação deste livro, portanto, contribui para difundir o conhecimento de um documento que possivelmente é a mais importante prova dos abusos cometidos pelo Estado aos povos indígenas. Prova, esta, que pode ser fundamental na luta pelos direitos humanos indígenas.

A leitura do livro se dá na respectiva forma: dividido em 3 eixos, consta com nove capítulos no total. Cada eixo conta com capítulos de autorias diversas, circulando por trajetórias de tragédias cometidas contra povos indígenas - massacres, deslocamentos forçados, territórios apropriados, abusos sexuais, entre outras práticas visando a assimilação do indígena.

O primeiro eixo inicia o livro com dois capítulos. Escrito por Patrícia Alves Melo, o primeiro capítulo trata dos achados da Comissão Nacional da Verdade e dos registros do Relatório. A autora explica como é dividido o Relatório Figueiredo, quais povos são mencionados, assim como os pormenores de como foi organizada e como trabalhou a CNV. O segundo capítulo, escrito por Bárbara Baleixe, relata os crimes de natureza sexuais sofridos por mulheres indígenas, assim como alguns dos obstáculos nas investigações.

O eixo dois consta com cinco capítulos. O terceiro é de autoria dos arqueólogos Rhuan Carlos dos Santos Lopes e Tallyta Suenny Araújo da Silva, demonstrando como o regime tutelar do SPI era de fato uma continuidade das práticas coloniais. A tutela solidificou a dependência do indígena ao branco, que precisava das terras indígenas para explorar a economia, enquanto o índio necessitava dos recursos materiais providos pelos brancos para sobreviver. Os autores relatam como estes objetos e práticas de assistência refletiam as práticas de dominação, pois eram frequentemente recusados aos índios em situações de litígio. O capítulo quatro é escrito por Bianca Porto Ferreira, relatando os deslocamentos forçados dos Ejiwajegi/Kadiwéu e o caso dos Cinta-Larga, conhecido como Massacre do Paralelo Onze. Tendo em vista o interesse econômico pelas terras referidas, ambos os casos demonstram permissividade, atuação e conhecimento do Estado das tragédias ocorridas.

O quinto capítulo, de coautoria da organizadora Jane Beltrão e Paulo Victor Neri Cardeal, analisa imagens presentes no Relatório Figueiredo. Estas imagens traduzem as relações de poder entre os brancos e os “corpos precários” dos indígenas. Já o capítulo seis, escrito por Vinicius da Silva Machado, reconta o caso dos 12 Kaingang. São relatos diretos da violência sofrida pelos Kaingang, incluindo prisões, uso do instrumento de tortura “tronco”, trabalho sem remuneração, não-distribuição de comida ou roupas, cultivo de terras indígenas sem pagamento de renda, castigos corporais, entre outras atrocidades.

O eixo dois é concluído pelo capítulo 7, de autoria de Ramiro Esdras Carneiro Batista e Jane Felipe Beltrão. Os autores tratam das ‘’zonas de silêncio’’ do Relatório Figueiredo, a região do extremo Norte do Brasil, pelo fato das denúncias não “alcançarem” a região transfronteiriça com a Guiana Francesa. Deste modo, os autores coletam referências orais e bibliográficas para responder a complexidade da política transfronteiriça com as práticas tutelares.

O eixo três abre com o capítulo 8, novamente de coautoria de Paulo Victor Neri e Jane Beltrão. O eixo no geral expressa a necessidade de falarmos sobre tortura, havendo 64 menções oriundas do Relatório Figueiredo. O livro encerra com o capítulo 9, por Jane Beltrão. A autora percorre por cenas de um ‘’filme de horror’’, relatos específicos de tortura, que apesar da dificuldade imposta ao leitor para serem lidos, precisam ser sabidos. Incluem-se mutilações e massacres conhecidos por ‘’partidos poderosos’’, ordenados a exterminar até o último. Sendo assim concluído o livro, resta a pergunta: por que falar de tortura? Por qual razão devemos ler as atrocidades cometidas por estas páginas que sangram?

Uma sociedade sem memória é obediente a demagogos, por isso o exercício da Transição é deveras importante (ANDRIEU 2011: 17). Como dito pelo filósofo francês Michel Foucault, a memória é uma luta pelo poder de decidir o futuro (FOUCAULT em Andrieu 2011: 22). Afinal, se não fizermos o esforço de lembrar os erros do passado, estaremos mais suscetíveis a repeti-los. Restam, assim, as palavras da ex-presidente Dilma Rousseff, atuais assim como eternas quanto a importância da memória na luta contra a injustiça.

[...] A força pode esconder a verdade,

a tirania pode impedi-la de circular livremente,

o medo pode adiá-la,

mas o tempo acaba por trazer a luz.

Hoje, esse tempo chegou. (Presidenta Dilma Rousseff, 2012)

Referências bibliográficas

  • BRASIL (2009). Petição 3.388 - RR, Relator: Ministro Carlos Ayres Britto de 19 de março de 2009. Supremo Tribunal Federal. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília, DF. Publicação 25 de Setembro 09 de 2009.
  • DANTAS, J.E. (2022) TOP 6: Principais problemas da tese do Marco Temporal. Greenpeace Brasil, 9 de agosto de 2022. Disponível em: https://www.greenpeace.org/brasil/blog/top-6-principais-problemas-da-tese-do-marco-temporal/. Acesso em: 29 de outubro de 2022.
    » https://www.greenpeace.org/brasil/blog/top-6-principais-problemas-da-tese-do-marco-temporal
  • FORSYTHE, D. P. (2011) ‘Human Rights and Mass Atrocities: Revisiting Transitional Justice’. International Studies Review, Vol. 13, No. 1, pp. 85-95, Março 2011.
  • NUZOV, I. ‘The Role of Political Elite in Transitional Justice in Russia: From False ‘Nurembergs’ to Failed Desovietization’. U.C. Davis Journal of International Law & Policy, Vol. 20, No. 2, 273-322, Abril 2014.
  • SHRIVER, D.W. (2007) Repairing the past: Polarities of Restorative Justice. CrossCurrents, Vol. 57, No. 2, Race & Religion: The Elixir of Separation, pp. 209-217, Julho 2007.
  • SRIRAM, C.L. (2007). Justice as peace? Liberal peacebuilding and strategies of transitional justice’. Global Society, Vol. 21, No. 4, pp. 579-591, Outubro 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    03 Nov 2022
  • Aceito
    08 Dez 2022
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