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“É aí que se passa do direito à política”: Deleuze e os grupos de usuários

“This is where we move from law into politics”: Deleuze and user-groups

Resumo

Este ensaio visa a definir o papel dos grupos de usuários na filosofia do direito de Deleuze. Para tanto, critica a lacunaridade deste conceito na literatura secundária, bem como seu reducionismo liberal-democrata. Uma crítica aos resíduos hilemórficos do pensamento jurídico leva a retomar a implicação entre jurisprudência e grupos de usuários a partir de Gilbert Simondon, que favorece a apreensão do direito como uma teoria das operações de individuação, e de Félix Guattari, autor de uma teoria dos grupos e das instituições. Esse cruzamento permite definir os grupos de usuários como subjetivações dividuais, mobilizadas por problemas precisos, e singularidades que emergem de situações metaestáveis, que evoluem nas operações da jurisprudência.

Palavras-chave:
Grupos de usuários; Jurisprudência; Deleuze; Guattari; Simondon

Abstract

This paper aims to define the role of the group-users idea within Deleuze's philosophy of law. To this end, it criticizes the hollow state of this concept in secondary literature, as well as its liberal-democratic reductionism. A criticism of the hilemorphic residues of legal thinking leads to retaking the implication between jurisprudence and user groups from Gilbert Simondon, who favors to learn the law as a theory of individuation operations, and Félix Guattari, the author of a theory of groups and institutions. This interlacement advances a user-groups’ definition as individual subjectivations, mobilized by precise problems, and singularities that emerge from meta-stable situations, which evolve within the operations of jurisprudence.

Keywords:
User-groups; Jurisprudence; Deleuze; Guattari; Simondon

Introdução

A partir dos anos 2000, duas teses de Gilles Deleuze sobre o direito1 1 Essas teses aparecem em duas entrevistas publicadas em Conversações. Por um lado, Gilles Deleuze afirmava que “A jurisprudência é a filosofia do direito, e procede por singularidade, por prolongamento de singularidades” (DELEUZE, 2008: 191); por outro, que a jurisprudência é “verdadeiramente criadora de direito: ela não deveria ser confiada aos juízes. […] Não é de um comitê de sábios, comitê moral e pseudocompetente que precisamos, mas de grupos de usuários. É aí que se passa do direito à política” (Idem: 209-210). ocuparam filósofos, juristas e pensadores políticos. O enigma que elas continuam a carregar motivou esforços para determinar sua extensão face ao pensamento de Deleuze, para reconstituir suas relações com o resto de seu sistema filosófico, e para desenvolver conceitos jusfilosóficos de inspiração deleuziana.

Seus resultados, tão diversos quanto díspares, já foram objeto de um inventário (CORRÊA, 2018_____. O real do direito: sobre a filosofia do direito de Gilles Deleuze. Rev. Direito, Estado e Sociedade. Rio de Janeiro, n. 53, 2018, p. 182-205. Disponível em: <https://revistades.jur.puc-rio.br/index.php/revistades/article/view/892>. Acesso em 05 maio 2021.
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) que nos dispensa de reconstruí-lo aqui e em detalhe. Bastaria esquematizar a literatura que explorou as teses de Deleuze sobre o direito apontando quatro principais direções em que ela se desenvolveu:

  • i) A jurisprudência como decalcomania do empírico: essa tendência analítica define o direito como uma técnica de jurisdição. Privilegiando o conceito deleuziano de jurisprudência, mobiliza as relações entre representação e expressão em um registro já institucionalizado (juízos, cortes e tribunais), e reduz o direito a práticas empíricas de iuris dictio (MUSSAWIR, 2014). Advoga que a noção deleuziana de jurisprudência nada tem de subversivo em relação às práticas jurídicas institucionais dominantes, e converte a filosofia do direito de Deleuze em um argumento de legitimação da prática jurídica empírica por recusar-se a apreendê-la em qualquer dimensão transcendental ou virtual;

  • ii) O efeito-Deleuze na imagem do pensamento jurídico: aqui, o direito é captado como campo empírico e transcendental a ser reinterpretado por conceitos do sistema filosófico de Deleuze. Isso desencadeia uma série de releituras que visam a produzir ora um deslocamento crítico na própria Teoria do Direito (BRAIDOTTI, COLEBROOK, HANAFIN, 2009BRAIDOTTI, R.; COLEBOORK, C.; HANAFIN, P. (eds.). Deleuze and law: forensic futures. London: Palgrave-Macmillan, 2009.), ora uma alteração da imagem dogmática do pensamento jurídico, culminando em uma renovada teoria dos direitos e do julgamento, que se vale das noções de “encontro” e de “problema”, recuperadas a intercessores de Deleuze, como Espinosa e Bergson (LEFEBVRE, 2008LEFEBVRE, Alexandre. The image of law. Deleuze, Bergson, Spinoza. Stanford: Stanford University Press, 2008.);

  • iii) Os direitos como epifenômeno do político: trata-se de extrações que não tratam o direito como um campo específico, mas como um satélite do político. Nessa literatura, o direito aparece como cristalização da invenção de novos direitos por movimentos que agitam micropoliticamente uma dada formação social, e teriam por destino serem assimilados a uma estrutura jurídica e macropolítica preexistente, arrastados por um devir-democrático (PATTON, 2007PATTON, Paul. Political normativity and poststructuralism: the case of Gilles Deleuze. Berlin, Germany: Vortrag ins Institutscolloqium des Philosophischen Instituts der Freien Universitat. 15.11.2007. Disponível em: < http://www.uu.nl/SiteCollectionDocuments/GW/GW_Centre_Humanities/political-normativity-deleuze.pdf>. Acesso em: 05 maio 2021.
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    );

  • iv) O direito como genuíno empirismo transcendental: compreende o direito como um antípoda da lei e das práticas jurisprudenciais sociológica e institucionalmente performadas, recusando que o direito, em Deleuze, possa ser descrito como um decalque da sua prática empírica. Sem esgotá-lo em um dispositivo crítico da Teoria do Direito, ou da imagem dogmática do pensamento jurídico, descreve o direito como um conjunto de operações clínicas, uma prática construcionista e de composição de um plano de consistência formado caso a caso, por prolongamento de singularidades (SUTTER, 2009_____. Deleuze, la pratique du droit. Paris: Michalon, 2009.). Aí, o direito se torna a prática de um empirismo transcendental e o próprio por vir da filosofia, que modula anarquicamente as relações entre o contingente e o necessário.

Por mais divergentes que essas interpretações soem, todas gravitam em torno da definição, sem dúvida capital, do direito como jurisprudência. Ao pensar a jurisprudência com maior ou menor radicalidade, essas interpretações deixam incólume aquela que talvez seja a mais potente das questões envolvidas na ideia deleuziana de direito: por que Deleuze afirma que “precisamos de grupos de usuários”, e como eles seriam o ponto em que “se passa do direito à política”?

Na literatura anglófona e europeia continental que se dedicou à filosofia do direito de Deleuze, os grupos de usuários jamais são conceitualmente tematizados. Essa lacuna torna difícil compreender as relações de implicação entre direito, política e subjetivação, as quais podem estar mobilizadas de maneira original na noção de grupos de usuários - categoria insólita no corpus da obra deleuziana.2 2 Deleuze jamais falou em grupos de usuários, exceto nas primeiras linhas de Controle e Devir - uma entrevista que Deleuze concede a Antonio Negri, e é publicada na primavera de 1990, no primeiro número da revista Futur Antérieur. Mais tarde, ela seria reproduzida em Conversações (DELEUZE, 2008).

Este ensaio se concentra e propõe desenvolver esta noção em sua singular contingência. Não se trata apenas da circunstância de sua aparição em um face a face com Negri, que pergunta sobre a relação sempre problemática entre movimentos e instituições. Nem somente da referência que Deleuze faz à jurisprudência como verdadeiramente criadora de direito (a despeito da Lei ou das leis), ou mesmo do desprezo ácido que ele dirige aos juízes. Todas essas são pistas contingentes.

O que parece fazer dos grupos de usuários um elemento indispensável à compreensão da filosofia do direito de Deleuze é o fato de que eles são suscitados como o elemento antígeno aos juízes, “comitê de sábios”, “moral e pseudocompetente”, que deflagaria uma produção genuinamente jurisprudencial da jurisprudência, e assinalaria, aí, uma passagem à política que ele mesmo fizera “com Maio de 68, à medida em que tomava contato com problemas precisos […]” (DELEUZE, 2008_____. Conversações. Tradução de Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2008.: 210). Filosoficamente falando, passar do direito à política equivale a passar do transcendental ao empírico sem decalcá-lo - movimento que a própria obra de Deleuze realiza a partir do encontro com Félix Guattari (ROFFE, 2017ROFFE, Jon. “Deleuze’s Concept of Quasi-cause”, Deleuze Studies, 11:2, ed. Sean Bowden and Dale Clisby, 2017, p. 278-94.; VOß, 2020VOß, Daniela. “The problem of method: Deleuze and Simondon”. Deleuze and Guattari Studies, 14.1, Edinburgh University Press, 2020, p. 87-108. DOI: 10.3366/dlgs.2020.0392.
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).

Uma vez que a literatura secundária deixa intocados os “grupos de usuários”, propomos determinar qual o seu papel na filosofia do direito de Deleuze, e por que ele pode afirmar que estes constituem o elemento de transição entre direito e política. Para tanto, este ensaio se desenvolve em cinco itens, que constroem progressivamente respostas a essas perguntas.

O primeiro item recupera um texto em que Paul Patton (2007PATTON, Paul. Political normativity and poststructuralism: the case of Gilles Deleuze. Berlin, Germany: Vortrag ins Institutscolloqium des Philosophischen Instituts der Freien Universitat. 15.11.2007. Disponível em: < http://www.uu.nl/SiteCollectionDocuments/GW/GW_Centre_Humanities/political-normativity-deleuze.pdf>. Acesso em: 05 maio 2021.
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) - o único a comentar a noção até aqui - caracteriza os grupos de usuários como função das democracias participativas, desenvolvendo a noção de devir-democrático, de Deleuze e Guattari (2007).

Após demonstrarmos os limites do argumento de Patton, identificamos dois preconceitos - dois resíduos hilemórficos - em uma versão positivista e mais tradicional do direito. Nesse ponto, a Teoria Pura do Direito, de Kelsen, serve como material; a ontologia do comando, de Giorgio Agamben, como aliado teórico de ocasião. Sua interação sugere como essa versão tradicional do direito poderia ser subvertida a partir de uma crítica do hilemorfismo.

Isso permite colocar em novos termos o problema da gênese e do processo de individuação a partir de um importante intercessor de Deleuze: Gilbert Simondon. Assim, o terceiro item deste ensaio se dedica a explorar de que maneira a filosofia simondiana da individuação converte as questões da gênese e da individuação de um princípio em uma operação.

Com base nisso, o quarto item desenvolve em largos traços a jurisprudência como uma teoria das operações, ou como uma alagmática. Procuraremos aí o que Deleuze parece ter em mente ao falar sobre um direito cuja filosofia é a jurisprudência, que se desenvolve por prolongamento de singularidades, como “situações que evoluem”; isto é, como operações de individuação em que distinções hilemórficas como matéria e forma, objeto e sujeito, perdem o sentido em proveito de uma jurisprudência experimentada como operação de transdução ou de modulação em variação contínua.

Por fim, o quinto item reproblematiza a jurisprudência, agora pensada como uma teoria das operações, posicionando-a no registro do transindividual, de Gilbert Simondon, e na teoria dos grupos de Félix Guattari. Essas duas velozes reconstruções levarão a compreender que os grupos de usuários não se confundem com associações de indivíduos, ou com grupos sociais preexistentes, mas consistem na gênese casuística e problemática de uma dimensão operativa pré- e transindividual; germes estruturais que, tornando-se agentes do direito, prolongam-se como linhas de subjetividade em relação com a estrutura que elas operam e transformam por disparação. Eis o que explicará que Deleuze não veja aí uma passagem da política ao direito; mas, antes, a passagem bem menos evidente, e difícil de estimar, que vai do direito à política.

1 “[Precisamos] de grupos de usuários”

De toda a fortuna crítica que, nos últimos vinte anos, se dedicou ao problema do direito no pensamento de Deleuze, o teórico australiano Paul Patton foi o único que concedeu à noção de grupos de usuários algum apreço teórico. Todos os demais referem-se a ela ao citar as entrevistas de Deleuze sem lhe conferir qualquer atenção conceitual.

Em uma palestra no Institutscolloquium des Philosophischen Instituts der Freien Universität, Patton (2007PATTON, Paul. Political normativity and poststructuralism: the case of Gilles Deleuze. Berlin, Germany: Vortrag ins Institutscolloqium des Philosophischen Instituts der Freien Universitat. 15.11.2007. Disponível em: < http://www.uu.nl/SiteCollectionDocuments/GW/GW_Centre_Humanities/political-normativity-deleuze.pdf>. Acesso em: 05 maio 2021.
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) investigava a possibilidade de deduzir da filosofia de Deleuze e Guattari as valências dúbias e contextuais que poderiam descerrar uma normatividade política que pudesse avaliar o caráter de acontecimentos e processos determinados (PATTON, 2007PATTON, Paul. Political normativity and poststructuralism: the case of Gilles Deleuze. Berlin, Germany: Vortrag ins Institutscolloqium des Philosophischen Instituts der Freien Universitat. 15.11.2007. Disponível em: < http://www.uu.nl/SiteCollectionDocuments/GW/GW_Centre_Humanities/political-normativity-deleuze.pdf>. Acesso em: 05 maio 2021.
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: 05)3 3 A tese principal de Patton poderia ser resumida da seguinte forma: “A normatividade dos conceitos de Deleuze e Guattari fornece um quadro com o qual se pode avaliar o caráter específico de acontecimentos e processos. Eles permitem que coloquemos questões como: esta é uma reterritorialização positiva ou negativa? Esta é uma linha de fuga genuína? Ela vai conduzir a um novo agenciamento revolucionário em que há um acréscimo de liberdade, ou a uma nova forma de captura - ou a algo pior?” (PATTON, 2007: 05). Tradução livre. .

Patton reconhece que a filosofia política de Deleuze e Guattari “não se compromete com valores políticos e conceitos normativos que supomos dar forma às instituições básicas das democracias liberais modernas” (PATTON, 2007PATTON, Paul. Political normativity and poststructuralism: the case of Gilles Deleuze. Berlin, Germany: Vortrag ins Institutscolloqium des Philosophischen Instituts der Freien Universitat. 15.11.2007. Disponível em: < http://www.uu.nl/SiteCollectionDocuments/GW/GW_Centre_Humanities/political-normativity-deleuze.pdf>. Acesso em: 05 maio 2021.
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: 06). No entanto, afirma que Deleuze, em seus últimos escritos com Guattari, teria emitido sinais de uma “virada” política na direção da normatividade. Patton tenta demonstrá-lo ao apontar que, em suas últimas entrevistas, Deleuze não cessou de comentar sobre direitos, jurisprudência, democracia e que, em O que é a filosofia?, último livro que assina ao lado de Guattari, registra-se a emergência de um termo insólito: devir-democrático.

Ao comentar as sulfurosas críticas que Deleuze e Guattari (2007: 39) dirigem aos direitos humanos e às sociais-democracias4 4 Em O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari (2007) qualificavam os direitos humanos como uma axiomática inteiramente compatível com o regime capitalista de mercado. Afirmavam que “[…] a defesa dos direitos do homem deve necessariamente passar pela crítica interna de toda democracia” (Idem: 138), e perguntavam acidamente: “Que social-democracia não dá ordem de atirar quando a miséria sai de seu território ou gueto?” (Idem: 139). Nesse sentido, dão alguns passos que, segundo Sutter (2009: 67-68), excedem em radicalidade as críticas do Marx de Sobre a questão judaica. , Patton (2007PATTON, Paul. Political normativity and poststructuralism: the case of Gilles Deleuze. Berlin, Germany: Vortrag ins Institutscolloqium des Philosophischen Instituts der Freien Universitat. 15.11.2007. Disponível em: < http://www.uu.nl/SiteCollectionDocuments/GW/GW_Centre_Humanities/political-normativity-deleuze.pdf>. Acesso em: 05 maio 2021.
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: 08) admite que o devir-democrático é um chamado a resistir contra as democracias constitucionais contemporâneas, e deve ser lido em tensão com a noção de devir-revolucionário. Em sua leitura, os devires democrático e revolucionário se conjugam, e a democracia deve ser pensada como um acontecimento minoritário e situado, consistente em séries de “esforços para mudar a natureza das instituições públicas, de modo que tanto reconheçam quanto acomodem as muitas formas de diferença […]” (PATTON, 2007PATTON, Paul. Political normativity and poststructuralism: the case of Gilles Deleuze. Berlin, Germany: Vortrag ins Institutscolloqium des Philosophischen Instituts der Freien Universitat. 15.11.2007. Disponível em: < http://www.uu.nl/SiteCollectionDocuments/GW/GW_Centre_Humanities/political-normativity-deleuze.pdf>. Acesso em: 05 maio 2021.
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: 11).

Por um lado, esses esforços decorrem da tentativa de equacionar as desigualdades entre direitos formalmente universais e disparidades materiais, que constituem o fundo das antinomias normativas das democracias avançadas (sua prática hipócrita); por outro, procuram ampliar ao máximo o universo de indivíduos que devem ser contados pelas instituições como cidadãos para fins políticos (seu princípio excludente).

A noção deleuziana de grupo de usuários é evocada nesse contexto preciso. Sob o ponto de vista da legitimação democrática das tomadas de decisão, os grupos de usuários constituiriam, na visão de Patton, a condição para um devir-democrático, na medida em que a alusão que Deleuze fez a eles denotaria a adoção de um princípio normativo implícito: “a ideia democrática de que decisões devem ser tomadas mediante a consulta daqueles mais afetados por ela” (PATTON, 2007PATTON, Paul. Political normativity and poststructuralism: the case of Gilles Deleuze. Berlin, Germany: Vortrag ins Institutscolloqium des Philosophischen Instituts der Freien Universitat. 15.11.2007. Disponível em: < http://www.uu.nl/SiteCollectionDocuments/GW/GW_Centre_Humanities/political-normativity-deleuze.pdf>. Acesso em: 05 maio 2021.
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: 12). Isso remeteria à importância particular de os destinatários de uma dada decisão serem ouvidos, como “princípio fundacional dos modernos governos democráticos” (Idem).

A forma como Patton interpreta a noção de grupos de usuários de Deleuze no contexto de seu argumento sobre o devir-democrático parece-nos problemática por pelo menos três razões. Em primeiro lugar, porque a consulta aos envolvidos como condição de legitimidade para tomadas de decisão em sistemas democráticos é inteiramente compatível com as contradições morais inerentes às democracias liberais contemporâneas. Seria preciso lembrar que é contra elas que Deleuze e Guattari dirigem seu devir-democrático, “que não se confunde com o que são os Estados de direito […]” (DELEUZE; GUATTARI, 2007: 145). A exigência, não raro formal, de consultar, ouvir, ou deixar falar, os grupos diretamente envolvidos em decisões que serão tomadas por outrem, de acordo com princípios oligárquicos infinitamente sutilizados pela ficção da representação política, jamais impediu que os Estados seguissem como os efeitos de conjunto de práticas de governo hipócritas e excludentes.

Em segundo lugar, porque capturados imediatamente por mecanismos consultivos, ou participativos, os grupos de usuários aparecem, na leitura de Patton, não na posição de agentes do direito (SUTTER, 2021SUTTER, Laurent de. Hors la loi. Théorie de l’anarchie juridique. Paris: Les liens qui libérent, 2021.: 86), mas daqueles que, uma vez ouvidos, serão “reconhecidos” e “acomodados” sob o estatuto de uma diferença tornada compatível com dado sistema de governança democrática. Isto é, o devir-democrático de Patton envolve-se em um devir muito mais liberal do que revolucionário; muito mais participativo do que ativo; muito mais institucionalizado do que instituinte e, nesses termos, favorece que os Estados-Nação democráticos sigam sendo o que eram para Deleuze e Guattari (2007): extensões do mercado mundial; realizadores da axiomática imanente do capitalismo através da distribuição desigual do usufruto de direitos que “reconhecem” e “acomodam” diferenças em um sistema mundial de totalização contínua.

Por fim, em terceiro lugar, a leitura de Patton apaga todo vínculo entre a jurisprudência e os grupos de usuários, e deixa intocada a centralidade destes na passagem do direito à política. É interessante notar como o argumento de Patton sobre os grupos de usuários não considera a passagem do direito à política, mas só autoriza a passagem inversa: aquela que vai unidirecionalmente da política ao direito. Nela, as noções de minorias e de devir-minoritário são subsumidas ao devir-democrático5 5 “Por natureza, processos de devir-minoritário sempre excedem ou escapam dos confins de qualquer maioria dada. Eles carregam o potencial para transformar os afetos, crenças e sensibilidades políticas de uma população de modos que chegam a provocar o advento de um novo povo. Em contrapartida, na medida em que um povo está constituído como comunidade política, as transformações que lhe ocorrem afetarão suas concepções do que é justo e devido e, portanto, a natureza dos direitos e deveres atribuídos à nova maioria. Devires-minoritários fornecem, pois, outro vetor do ‘devir-democrático’” (PATTON, 2007: 11). Tradução livre. como vetores diferenciais; estes, encapsulados por certa estrutura democrática que reconhece a acomoda sua diferença, já não podem perturbar o equilíbrio do sistema do direito. Então, tudo se passa como se os devires-minoritários fossem função do devir-democrático, e não o contrário; como se os grupos de usuários se limitassem à função participativa conveniente às democracias liberais; e como se o político (jamais o direito) fosse o único registro em que se pode provocar o advento de um novo povo.

Levada a suas últimas consequências, a forma como Patton mobiliza a noção de grupos de usuários conduz a uma tripla redução: os grupos de usuários são integrados e absorvidos por mecanismos democrático-participativos; a jurisprudência é fixada a uma função de criação de direitos acomodáveis nas democracias; e, finalmente, o direito é tratado como um epifenômeno da política. Um resultado cristalizado de sua atividade, o direito é absorvido por ela, de modo que só se pode passar da política ao direito - jamais “do direito à política”, que é a expressão de Deleuze.

Tudo isso nos parece subtrair da noção de grupos de usuários o essencial: a relação entre direito, subjetivação e política, que parece constituí-la. É nos termos dessa relação que se pode compreender como grupos de usuários podem ter sua gênese na jurisprudência, compreendida como um processo social, composicional e aberto de singularidades6 6 A noção deleuziana de jurisprudência como categoria social foi discutida em Corrêa (2020), texto para o qual tomamos a liberdade de remeter o leitor. , envolvendo necessariamente uma filosofia do campo social.

Pensemos a contrapelo a intuição que estabelece uma cronologia unidirecional em que a subjetividade precede a política, e esta precede o direito. Essa intuição não apenas faz do direito um satélite da política, mas faz da subjetividade uma força de gravidade que o capitalismo modula e que “pode trabalhar tanto para o melhor como para o pior” (GUATTARI, 2012_____. Caosmose: um novo paradigma estético. 2. ed. Tradução de Ana Lúcia e Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 2012.: 15). Ainda, essa intuição só atribui ao direito a função de reconhecer e a acomodar diferenças cristalizadas que permanecem exteriores a ele.

Parece-nos que Deleuze tinha em mente algo completamente distinto quando falou de grupos de usuários: uma tomada de subjetivação heterogenética que faz passar do direito à política. As operações da jurisprudência também podem mobilizar um conjunto de diferenças de forma problemática e composicional, e potenciá-las - ao invés de consultá-las, reconhecê-las ou acomodá-las. A intensa beleza contida na fórmula que Deleuze reservou para o direito - praticado como uma jurisprudência afeta a grupos de usuários que efetuam a passagem do direito à política, a partir do contato com problemas precisos - exige a desmontagem de duas noções preconcebidas que não cessam de assombrar o direito.

2 Teoria do hilemorfismo jurídico: os dois preconceitos

Para compreender o papel que os grupos de usuários podem ter na concepção de direito de Deleuze, precisamos desmontar dois preconceitos teóricos que formalizam a compreensão tradicional do direito. Eles correspondem a duas divisões que remontam a uma forma hilemórfica de pensar, e se cruzam na versão normativa da teoria jurídica proposta por Kelsen. São elas, a distinção entre forma e conteúdo, e a distinção entre sujeito e objeto.

No neokantismo que dá forma à teoria kelseniana do direito, a divisão entre forma e conteúdo provém da suposição de uma divisão mais profunda, derivada da teoria do conhecimento: a repartição entre o conceito de sujeito cognoscente e o de objeto de conhecimento. Essas suas disjunções (forma/conteúdo, sujeito/objeto) estão na origem de uma série coerente de outras distinções que tratam o direito em geral como uma técnica social específica de caráter normativo (KELSEN, 2005KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4. ed. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005.).7 7 Por exemplo, as distinções entre direito e fato, norma e conduta, validade e eficácia, direito objetivo e direito subjetivo, pessoa em sentido jurídico e em sentido natural, ciência normativa e ciência causal, interpretação como ato de conhecimento e como ato de vontade etc., que atravessam a obra de Kelsen (2011).

De um ponto de vista interno à proposta teórica de Kelsen, o fio vermelho que mantém a coerência dessas disjunções explica-se pela distinção epistêmica e metódica entre os registros do Sein (o ser, a ontologia) e do Sollen (o dever-ser, a normatividade), nos quais aquelas distinções se distribuem. No entanto, quando adotamos um ponto de vista exterior a seu postulado epistêmico, e à coerência neokantiana que o guia, percebemos que essa distinção estruturante não apenas constitui uma condição de possibilidade para formular uma ciência positiva do direito, mas se sustenta na adoção residual de um postulado de natureza hilemórfica.8 8 O hilemorfismo é a doutrina comum a Aristóteles e à filosofia escolástica que explica os seres a partir de uma composição entre matéria e forma (Cf. LALANDE, 2010: 426). Ela aparecerá no livro VII da Metafísica de Aristóteles (2002: 339 [1037a 30-32]), que definia a substância como “[…] a forma imanente, cuja união com a matéria constitui a substância-sinolo […]”. A noção de “sinolo” remete ao grego σύνολον, geralmente traduzida como “composto”. Nesse sentido, a substância é definida como o composto entre matéria (ὕλη, “hylé”) e forma (εἶδος, “Eidos”). O hilemorfismo de Aristóteles é a solução encontrada para tomar distância tanto do idealismo platônico quanto do materialismo dos pré-socráticos, ao afirmar que todo ser é um composto de matéria e forma (“τὸ σύνολον ou τὸ ἐξ ἀμφοῖν”), e que a forma - imanente às coisas - determina, configura ou organiza a matéria.

Ao dispensar como extrajurídicos o problema da gênese ou da efetividade do direito, Kelsen mantém o plano da normatividade em uma relação paradoxal - porque cindida - com o plano da ontologia, que por sua vez é preservado como o exterior indispensável que o registro da normatividade viria a moldar tecnicamente. Isso fica claro no célebre capítulo VIII da Teoria Pura do Direito, dedicado à interpretação, em que Kelsen reconhece a intromissão necessária de um ato de vontade subjetivo (plano do ser) que torna o direito objetivo (plano do dever ser) operável: “a obtenção da norma individual no processo de aplicação da lei é, na medida em que nesse processo seja preenchida a moldura da norma geral, uma função voluntária” (KELSEN, 2011_____. Teoria pura do direito. 8. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2011.: 393). Assim, o direito funcionaria em ato como um composto de forma objetiva e matéria subjetiva a cuja efetiva gênese jamais assistimos.

Esse hilemorfismo não está presente apenas em Kelsen, mas constitui parte da paisagem comum pela qual nos representamos o direto. Em primeiro lugar, na medida em que a Ciência do Direito é uma ciência das formas jurídicas, relativamente indiferente a quaisquer conteúdos ou materiais; em segundo lugar, ao passo em que a noção geral de norma jurídica é epistêmica e metodicamente formal,9 9 A definição kelseniana de norma como dever ser (Sollen) o demonstra: “O ‘dever ser’ simplesmente expressa o sentido específico em que a conduta humana é determinada por uma norma. […] Um enunciado no sentido de que algo deve ocorrer é uma afirmação sobre a existência e o conteúdo de uma norma, não uma afirmação sobre a realidade natural, i.e., eventos concretos da natureza” (KELSEN, 2005: 51). e conserva no exterior de si mesma aquilo que, paradoxalmente, é o material mais ou menos inerte que as normas não cessam de formalizar: a natureza, os fatos, as pessoas naturais, as condutas efetivas, os atos de vontade, sua própria efetividade etc.

De um ângulo inteiramente distinto, pode-se encontrar um argumento similar na reconstrução arqueológica que Agamben (2013_____. Qu’est-ce que le commandement? Paris: Éditions Payot et Rivages, 2013.) dedicou à noção de comando. Localizando-o no registro do discurso não-apofântico, ao lado da religião e da magia, Agamben descreve o direito como parte de uma ontologia do comando, essencialmente expressa sob a forma do imperativo, e que desde o início da era Cristã estaria tomando paulatinamente o lugar de uma ontologia da asserção apofântica.

O argumento idiossincrático de Agamben, ora mobilizado para descrever a noção de comando, é uma constante em toda a sua obra. Trata-se do Misterium disiunctionis (“Mistério da disjunção”), que replica a estrutura paradoxal de exclusão-inclusiva da exceptio - do latim ex-capere (“o que é capturado fora”) (AGAMBEN, 2007AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.: 23) -, por meio da qual Agamben descreve a estrutura da própria ordem jurídica soberana relativamente à vida.

O Misterium disiunctionis permite ver que muitos conceitos na ontologia do Ocidente se definem a partir de uma operação paradoxal que, ao mesmo tempo em que articula, cinde e divide dois termos em polos opostos, mantendo-os em uma relação paradoxal. Trata-se de um recurso próprio da cultura e da metafísica do Ocidente, de raiz aristotélica (AGAMBEN, 2002: 21), que também seria possível descobrir na Teoria Pura do Direito - apesar dos esforços de Kelsen por manter Direito e Natureza isolados de um ponto de vista metódico.

As distinções entre ontologia e normatividade, bem como todas as que parecem decorrer delas na Teoria Pura, desempenham a função epistêmica de tornar possível o tratamento cognoscente do direito, e pressupõem a articulação obscura de tudo o que seu postulado metódico de pureza visa a manter separado. Trata-se de abstrair dos conteúdos para conhecer o direito por meio de suas formas, supondo um sujeito cognoscente e um objeto passível de conhecimento - na melhor tradição da gnoseologia kantiana -, ao preço de que as formas jurídicas governem a matéria informe da qual a Ciência Jurídica quisera divorciá-las.

Seria preciso reconhecer que sob o esquema gnoseológico kantiano que fundamenta a Teoria Pura do Direito insiste um postulado hilemórfico residual.10 10 Ao afirmá-lo, não reduzimos o kantismo ao hilemorfismo aristotélico - uma vez que Aristóteles e Kant apresentam modelos de explicação distintos para o Ser. Enquanto o modelo aristotélico gravita em torno do problema da substância ou da essência imanente, o kantiano produz uma revolução na forma de pensar a estrutura do Ser e o que nela é cognoscível, na medida em que inscreve as condições, sempre relativas, de conhecimento de um determinado fenômeno na estrutura da subjetividade. Ainda assim, a cisão do ser nas dimensões do númeno e do fenômeno não elimina a persistência de um resíduo hilemórfico que se reproduz na teoria do conhecimento kantiana: a sensibilidade e o entendimento a priori correspondem a um conjunto de formas que modelam (ao restringir) o que podemos conhecer de forma universalmente válida. É precisamente este o pressuposto da Teoria Pura do Direito, dedicada a conhecer as formas jurídicas independentemente de seus conteúdos ou de sua gênese. Sob esse ponto de vista, externo tanto a Kant quanto a Kelsen, a aproximação com a doutrina hilemórfica como um modelo universal de pensamento torna-se possível. Nesse sentido, cf. a crítica que Gilbert Simondon (2020: 110-111) dirigiu a Kant, da qual destacamos: “O fenomenismo relativista é perfeitamente válido na medida em que indica nossa incapacidade de conhecer absolutamente um ser físico, sem refazer sua gênese e à maneira pela qual conhecemos ou acreditamos conhecer o sujeito, no isolamento da consciência de si. Porém, no fundo da crítica do conhecimento, fica este postulado, de que o ser é fundamentalmente substância, isto é, em si e por si” (Idem: 110). Simondon dirige a Kant a crítica que Anne Sauvagnargues resume nos seguintes termos: “De princípio explicativo abstrato unicamente nominal, o princípio de individuação deve tornar-se princípio genético contemporâneo da individuação real. Isso permite a Simondon reunir em uma mesma crítica a separação aristotélica da matéria e da forma na natureza e na sensação, a separação kantiana entre matéria e forma, ou sensibilidade e entendimento, e toda separação entre matéria e forma que posiciona a forma como princípio eminente, transcendente e explicativo, ao invés de pensá-la na dimensão das forças. […] Sua crítica inscreve-se exatamente no debate que opõe Deleuze a Kant […]” (SAUVAGNARGUES, 2009: 243). Tradução livre. Ao impor uma apreensão do direito “pronto e acabado”, reconhecendo seus processos genéticos como um problema metajurídico (KELSEN, 2005KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4. ed. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005.: XXVIII), e ao predispor um sujeito cognoscente (o cientista do direito) diante de um objeto já inteiramente formado (o sistema do direito objetivo) através da interpretação e da construção escalonada do ordenamento, seu hilemorfismo revela-se a fonte dos dois preconceitos que nos impedem de compreender o sentido da filosofia do direito de Deleuze, bem como o papel que os grupos de usuários teriam a desempenhar em seus processos dinâmicos.

3 A individuação: o princípio e a operação

Entre os muitos intercessores de Deleuze, Gilbert Simondon é a “figura marginal” (SAUVAGNARGUES, 2010: 242) que contrapõe ao modelo hilemórfico uma alternativa inteiramente nova, produzindo uma torção original na noção de individuação. Deleuze foi um dos primeiros a tirar Simondon do anonimato em que seus contemporâneos o conservaram, reconhecendo, em 1966, que ele apresentava “uma teoria profundamente original da individuação, teoria que implica toda uma filosofia” (DELEUZE, 2006DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2006.: 119).

A noção de individuação admite pelo menos duas versões. A primeira, tradicional, e comum ao substancialismo e ao hilemorfismo (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 13), trata a individuação como princípio (principium individuationis). Isto é, recruta a individuação como um pressuposto (prévio, exterior, explicativo e condutor) do processo pelo qual um indivíduo vem a ser. A segunda, versão simondiana, é aquela que pensa a individuação como operação, como devir ou como processo ontogenético; isto é, operação por meio da qual, e na qual, processa-se a gênese do ser individuado.

A torção original que Simondon propõe para a noção de individuação começa com uma duplicação: ao lado de uma individuação pensada como princípio transcendente, exterior e explicativo de uma substância cuja gênese permanece obscura, assistimos à emergência de uma individuação pensada como operação de processamento interno ao próprio ser, e que absorve a primeira: “O princípio de individuação é uma operação” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 53).

A individuação como princípio é comum a duas correntes antagonistas que tentaram pensar a realidade do ser: a via substancialista e a via hilemórfica. A primeira aborda a realidade do indivíduo a partir de sua unidade simples e não-engendrada. A segunda explica a realidade do indivíduo como um ser engendrado pelo encontro de matéria e forma. O que lhes escapa, essencialmente, é a capacidade de explicar em detalhe o iter complexo por meio do qual se processa o engendramento de determinado indivíduo, na medida em que ambos os esquemas padecem do mesmo vício de origem: conceder “um privilégio ontológico ao indivíduo constituído” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 13), que faz com que o pensamento seja “tensionado para o indivíduo completo […]” (Idem: 15).

Esse privilégio ontológico do indivíduo constituído - que víamos dissimular-se na epistemologia jurídica positivista - pressupõe um princípio de individuação que, ao invés de adotar o ponto de vista da operação de individuação, supõe a individuação como uma explicação que jamais veremos operar como tal. O esquema hilemórfico brinda-nos com um sistema de classificação que permite cotejar intelectualmente o que, em um indivíduo já engendrado, corresponde à sua matéria constitutiva, e o que corresponde à sua forma constituinte, mas não nos permite acompanhar o processo dinâmico e singular de engendramento pelo qual dado indivíduo vem a ser - senão de maneira obscura.

Reverter o privilégio ontológico do indivíduo constituído em benefício do processo constituinte do ser é precisamente o que Simondon entende por ontogênese: “o caráter de devir do ser” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 16) que, fora do modelo da substância, corresponde ao próprio ser que, longe de corromper sua essência, conserva-se no devir.

A noção de ontogênese como processo pelo qual o ser coincide com seu próprio devir é consequência da reviravolta que Simondon opera na ideia de individuação. Com ela, desloca-se o privilégio ontológico do indivíduo constituído para o processo de constituição do indivíduo, em relação ao qual as noções de matéria e forma são impotentes ou confusas: “Para dar uma tal forma”, escreve ele sobre a operação técnica de fabricação de tijolos de argila, “é preciso construir tal molde definido, preparado de tal jeito, com tal espécie de matéria” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 41).

Então, a tecnologia da tomada de forma demonstra que “A forma e a matéria do esquema hilemórfico são […] abstratas” (Idem: 40). Isso se explica por três razões: (i) porque a argila, com suas propriedades coloidais, está carregada de formas implícitas ou potenciais; (ii) porque o molde não é uma forma abstrata, mas um molde concreto, que precisa ser fabricado em termos materiais; e sobretudo (iii) porque a operação de produção de um tijolo real não se contenta com um encontro abstrato entre forma e matéria, que produziria, não se sabe muito bem como, um tijolo; o essencial é a “operação técnica efetiva” que institui “uma relação entre uma determinada massa de argila e paralelepípedo” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 40).

Assim, Simondon avança sobre uma compreensão do ser radicalmente distinta daquela alimentada quer pelo atomismo, quer pelo hilemorfismo (COMBES, 2017COMBES, Muriel. Simondon. Una filosofía del transindividual. Buenos Aires: Cactus, 2017.: 26). Para ele, o ser não possui unidade ou identidade, nem pode corresponder a um estado de coisas estável, que seria fustigado do exterior pelo advento do devir. Ao contrário, o devir é uma dimensão interior de um ser polifásico, que se alastra tanto por defasagem quanto por excesso, de maneira que a individuação já não pode ser adequadamente apreendida a partir do ser individuado, mas apenas a partir do processo de individuação que o envolve e constitui.

Trata-se de pensar o indivíduo como uma fase do ser que não o esgota ao produzir-se, e pensar o ser como “sistema tenso, supersaturado acima do nível da unidade, que não consiste unicamente em si mesmo e não pode ser adequadamente pensado mediante o princípio do terceiro excluído […]” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 17). Isso significa substituir à oposição entre estável (repouso) e instável (movimento), a noção de equilíbrio metaestável, que implica um sistema constituído de forma relacional e cujo equilíbrio pode ser rompido “pela menor alteração de seus parâmetros” (COMBES, 2017COMBES, Muriel. Simondon. Una filosofía del transindividual. Buenos Aires: Cactus, 2017.: 28).

O ser já não é o composto em repouso, engendrado pelo encontro obscuro entre matéria e forma; ele se tornou uma estrutura individuada, constituída por relações compreendidas, não como meras conexões entre termos exteriores uns aos outros, mas como relações de “não-identidade do ser com relação a si mesmo” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 28); ele se individua junto a um meio “atravessado por uma tensão entre duas ordens extremas de grandeza” (SIMONDON, 2020: 17) que a individuação põe em comunicação e o indivíduo medeia ao devir.

Tomado de um ponto de vista ontogenético, o ser compõe-se, portanto, de duas metades díspares: uma realidade individuada, estruturada e em ato, que corresponde à dimensão do ser manifestada como fase ou enteléquia em estado metaestável, que não esgota toda a energia potencial do ser; outra, pré-individual, potencial, energeticamente carregada e latente, que constitui a promessa da amplificação do ser em um devir que ao mesmo tempo defasa e ultrapassa o seu ser fasado atual. É nesse sentido que Simondon pode dizer que o ser excede sua unidade, e que “O ser enquanto ser está dado inteiro em cada uma das suas fases, mas com uma reserva de devir” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 472) - por dispensar a representação da individuação como um princípio e abraçá-la como operação.

4 As operações da jurisprudência

A filosofia da individuação de Simondon auxilia a compreender como Deleuze pode afirmar que “a jurisprudência é a filosofia do direito, e procede [...] por prolongamento de singularidades” (DELEUZE, 2008_____. Conversações. Tradução de Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2008.: 191). Com isso, fornece alguns contornos para estabelecer as premissas que permitirão definir o papel dos grupos de usuários na concepção de direito de Deleuze. Algumas dessas pistas estão dispersas pela resenha que Deleuze consagra em 1966 a L’individu et sa genèse physico-biologique, a primeira parte da tese de doutorado de Gilbert Simondon, publicada em 1964, cuja versão integral teria de aguardar até 1989 para circular.11 11 No Brasil, uma recente tradução publicada pela Editora 34 baseou-se em uma reedição de 2013, saída pela editora francesa J. Millon. Ambas as edições levaram o título original da tese de Simondon, defendida em 1958, “A individuação à luz das noções de forma e de informação”, e incorporaram passagens da tese de doutorado que foram suprimidas nas publicações anteriores, bem como importantes suplementos bibliográficos.

A ideia de individuação, que de princípio passa a ser tratada como operação, tem como consequência a prefiguração do ser como um sistema metaestável, no qual Simondon encontra a “condição prévia da individuação” (DELEUZE, 2006DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2006.: 116). A ideia de metaestabilidade requer “a noção de energia potencial de um sistema, a noção de ordem e de aumento de entropia” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 18).

Um sistema metaestável, tenso e energeticamente carregado é constituído por uma disparação entre duas ordens de grandeza distintas, e se define como pré-individual. Isto é, um sistema rico em potencialidades, “perfeitamente provido de singularidades” (DELEUZE, 2006DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2006.: 117), as quais são “singulares sem serem individuais” (Idem: loc. cit.).

A operação de individuação aparece em Simondon como a “operação energética” por excelência, “a própria gênese se operando, […] o sistema devindo enquanto a energia se atualiza” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 53). Ela é a mediação real, a instância singularizante de comunicação entre duas diferentes ordens de grandeza, que o sistema hilemórfico fazia desaparecer sob o principium individuationis, e que impedia de perceber que é “o sistema completo no qual se opera a gênese do indivíduo […]” (Idem: 78).

Obedeça ela ao modelo da tecnologia de tomada de forma dos tijolos de argila, ao modelo físico da amplificação do germe estrutural cristalino em uma água-mãe, ou ao modelo do vivo, que se individua continuamente através do tempo conservando consigo uma reserva pré-individual que excede sua unidade, a individuação é uma operação que se define como o prolongamento de uma singularidade em relação de disparação com um meio que lhe é problematicamente associado. É nesse sentido que se poderá dizer que toda individuação tem o caráter de “resolução para um sistema problemático” (DELEUZE, 2006DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2006.: 119), caracterizado por sua metaestabilidade, e que determinadas soluções prolongam-se umas nas outras por amplificação.

Tomada em um registro alagmático12 12 Em um texto preparatório a L’individuation..., Simondon definiu a alagmática como “a teoria das operações” (SIMONDON, 2020: 559). Uma operação é definida ora como “aquilo que faz uma estrutura aparecer ou o que modifica uma estrutura” (Idem: 560), ora como a “conversão de uma estrutura numa outra” (Idem: 562). Assim, estrutura e operação seriam recíproca e ontologicamente complementares, como observa Muriel Combes (2017: 42). , a jurisprudência de Deleuze parece funcionar como um processo de individuação específico. Enquanto a noção vazia de Lei não pode sequer ser a estrutura, a jurisprudência só pode ser efetivamente criadora na medida em que o funcionamento do direito é descrito como uma operação de individuação que medeia e resolve precariamente o estado problemático em que um sistema metaestável consiste.

É precisamente isto que está em jogo quando Deleuze descreve as operações do direito em L’Abécédaire (2004). O terreno de sentido em que o exemplo sobre a jurisprudência surge nessa entrevista, gravada entre 1988 e 1989, é imediatamente metaestável e ligado à política. Claire Parnet propõe que Deleuze fale sobre como, provindo de uma família burguesa de direta, havia se tornado um homem de esquerda com o fim da guerra e a Liberação. Deleuze ri, e observa que todos os seus amigos haviam passado pelo Partido Comunista Francês, exceto ele; lança duas palavras sobre sua timidez. Um comentário sobre os horrores do período stalinista - tema da falação infinita da esquerda francesa - se transforma velozmente no tema do fracasso de todas as revoluções: a francesa terminou em Napoleão; a inglesa, em Cromwell; a russa, em Stálin; a americana, em Reagan - ironiza.

No entanto, o fato de saber-se muito bem que as revoluções terminam mal jamais impediu o devir-revolucionário das pessoas. Quando se acusa as revoluções de terminarem mal, o que se intromete aí é o falso problema do futuro das revoluções. Deleuze, então, propõe recentrá-lo sobre uma questão concreta: “como e por que as pessoas devêm revolucionárias?” (L’ABÉCÉDAIRE, 2004). Afirmar que todas as revoluções terminam mal só é possível na medida em que as revoluções, que decorrem de situações de tirania e opressão para as quais não se tem qualquer outra saída, são julgadas sob o ponto de vista retrospectivo de uma História que reivindica um futuro exitoso e abstrato, sem jamais assumir o ponto de vista concreto do devir.

Um devir-revolucionário sempre fornece uma solução aberta e precária para certo problema; que as revoluções terminem mal, o essencial é que elas alteram o problema: depois delas, “vai se criar uma nova situação e novos devires revolucionários serão desencadeados.” (Idem). Culpar as revoluções por terminarem mal é render-se facilmente demais à canalhice moral que absolve as forças individuadas, que sempre entram em cena a posteriori para restaurar o equilíbrio rompido pelo caráter acontecimental das singularidades.

É aí, no coração do devir-revolucionário então deflagrado entre os sul-africanos e os palestinos, que Deleuze diz o que diz sobre os direitos humanos (MARNEROS, 2018MARNEROS, Christos. ‘Deleuze and human rights: the optimism and pessimism of ‘68’. La deleuziana - on line journal of philosophy, n. 8. Modena: ACT, 2018, p. 39-52. Disponível em: <http://www.ladeleuziana.org/wp-content/uploads/2019/02/Marneros.pdf>. Acesso em: 05 maio 2021.
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). O que interessa não são as palavras duras que Deleuze lhes dirige, mas a maneira como propõe o que lhe parece ser o verdadeiro problema de jurisprudência que os direitos humanos adestram. Deleuze não diz apenas que as declarações de direitos humanos são abstratas, e “não são feitas pelas pessoas diretamente envolvidas […]” (Idem) - excerto que resolveria, para Patton, o enigma dos grupos de usuários; mas, sim, que “todos os casos são de jurisprudência!”, que “esta é a invenção do direito” (Idem).

O exemplo que Deleuze fornece para explicar o que entende por jurisprudência, e o que faz com que a questão dos armênios não seja uma questão de justiça ou de direitos humanos, é o exemplo que soa, em quase tudo, apolítico da proibição de fumar em táxis:

Um sujeito não queria ser proibido de fumar em um táxi e processa os táxis. Eu me lembro bem, pois li os considerandos do julgamento. O táxi foi condenado. Hoje em dia, nem pensar! Diante do mesmo processo, o cara é que seria condenado. Mas, no início, o táxi foi condenado sob o seguinte considerando: quando alguém pega um táxi, ele se torna locatário. O usuário do táxi é comparado a um locatário que tem o direito de fumar em sua casa, direito de uso e abuso. É como se eu alugasse um apartamento e a proprietária me proibisse de fumar em minha casa. Se sou locatário, posso fumar em casa. O táxi foi assimilado a uma casa sobre rodas da qual o passageiro era o locatário. Dez anos depois, isso se universalizou. Quase não há táxi em que se possa fumar. O táxi não é mais assimilado a uma locação de apartamento, e sim a um serviço público. Em um serviço público, pode-se proibir de fumar. A Lei Veil. Tudo isso é jurisprudência. Não se trata de direito disso ou daquilo, mas de situações que evoluem. E lutar pela liberdade é realmente fazer jurisprudência […]. (L’ABÉCÉDAIRE..., 2004).

A jurisprudência é criadora de direito - e não dos direitos - na medida em que ela consiste em séries de operações relacionadas a situações estruturadas que evoluem. Isto é, ela funciona como uma operação de individuação, em que a situação mesma e seu devir são postos em jogo e se transformam. As operações da jurisprudência solucionam um problema ao tirar “a estrutura resolutiva das próprias tensões desse domínio” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 31), e assim o reconfiguram. Um problema pode, então, seguir sua vida: prolongar-se em uma nova constelação supersaturada de novas relações, a qual exigirá uma nova operação resolutiva, e assim por diante.

Como a individuação simondiana, a jurisprudência opera prolongando singularidades nas vizinhanças de um sistema metaestável, que define sempre de maneira flutuante e precária o que vem a ser, por exemplo, um táxi; se um táxi se assemelha mais a um apartamento locável ou a um serviço usufruível. O problema não se resolve de uma vez por todas ao conceituar o que é um táxi - como se vê, há uma boa variação de soluções para isso -, mas com que tipo de individuação um sistema energeticamente carregado se reorganiza; como uma singularidade opera modulando uma estrutura por disparação.13 13 A modulação é “a transformação de uma energia em estrutura” (SIMONDON, 2020: 563) que a operação condiciona e relaciona em ato. A noção de informação é aquela que, na filosofia da individuação de Simondon, reconfigura a ideia de “forma” proveniente do esquema hilemórfico. Enquanto a forma possui um poder diretor, organizador, que pressupõe uma dualidade entre realidade que recebe a forma e a realidade que é a forma, a noção de informação assinala a univocidade e a reversibilidade entre o termos envolvidos na troca. O que assegura uma recomposição da noção de forma na ideia de informação é a operação de modulação e seu caráter transdutivo: “a operação de modulação pode desenrolar-se numa microestrutura que avança progressivamente através do domínio que toma forma […]. Na maioria dos casos de tomada de forma, essa operação seria transdutiva, isto é, avançando de próximo em próximo, a partir da região que já recebeu a forma, e indo para aquela que permanece metaestável […]” (SIMONDON, 2020: 595).

Na medida em que uma singularidade se distribui em uma estrutura carregada de energia potencial, provoca uma individuação que medeia as duas ordens de grandeza, e reorganiza, atualiza e individua o sistema inteiro por propagação, amplificação ou prolongamento. O aporte local de uma singularidade funciona como um germe estrutural, e é a diferença mínima que rompe o equilíbrio metaestável de um sistema e produz uma transformação que se propaga por ele, indo sempre de uma região já informada a outra, metaestável (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 595).

Isso significa admitir que “todo indivíduo pode ser condição de devir” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 109), porque ele se define como “tensão, supersaturação, incompatibilidade” (Idem: 569); e que todo indivíduo prolonga a singularidade da qual decorre por amplificação. Nas operações da jurisprudência, amplificação ou prolongamento não devem ser confundidos com um raciocínio tipicamente analógico, para o qual problemas semelhantes requerem soluções semelhantes. A amplificação é um efeito de irradiação transdutivo e reticular da singularidade, e é nisso que consiste a operação técnica da jurisprudência.

A transdução é uma atividade que se propaga de próximo em próximo no interior de um domínio, e é precisamente isto que vemos ocorrer quando a jurisprudência permite ou proíbe de fumar conforme a distribuição diferencial das singularidades que reconfiguram o problema: o táxi ora funciona como apartamento locável, ora como serviço público. Há portanto, aqui, uma analogia diferencialmente forte (uma noção singular de táxi que reorganiza um sistema problemático segundo uma operação transdutiva) e uma fraca (a analogia meramente lógica segundo a qual um táxi se assemelha a qualquer coisa já conhecida). Entender o funcionamento da jurisprudência é compreender como as analogias potentes, verdadeiramente ontogenéticas, movem as analogias débeis, meramente lógicas.

A propagação é criadora de uma nova situação que evolui porque a individuação produz um salto de estado no sistema: sua metaestabilidade é rompida, e isso lança o sistema, e uma singularidade, a uma relação de disparação que os constitui em um devir assimétrico. Isso significa que a “universalização” de uma resolução a todos os demais casos não corresponde a um prolongamento de uma singularidade por propagação intensiva, mas à cristalização de um esquema extensivo que assinala o esgotamento momentâneo (ou a defasagem) da carga pré-individual de uma singularidade. As operações da jurisprudência se explicam menos como produção de uma identidade, ou como modelagem de uma matéria inerte, e mais como a transformação de um estado não-idêntico a si mesmo, que se propaga de maneira reticular, por amplificação.

5 Teoria dos grupos de usuários

Existe um registro em que a jurisprudência é tomada como alagmática; isto é, como teoria das operações que fazem uma estrutura aparecer, modificam uma estrutura, ou convertem dada estrutura em outra. Nesse nível, a jurisprudência é uma operação transdutiva, ou de modulação, que procede por prolongamento de singularidades relativamente a um sistema metaestável (objetivamente problemático), e que se caracteriza por uma disparação informacional entre duas ordens de grandeza distintas: um germe estrutural e um meio associado que a operação de individuação virá mediar.

Essa definição procede dos modelos da tecnologia da tomada de forma e do modelo físico da cristalização, que Simondon diz serem hipóteses aplicáveis aos “diferentes tipos de tomada de forma, desde a ontogênese e a filogênese até os fenômenos de grupo” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 595). Ainda que esse paradigmatismo permaneça válido, as operações da jurisprudência tocam uma dimensão alagmática em que o direito opera singularidades e meios muito diferentes da argila ou das soluções cristalinas supersaturadas. As operações da jurisprudência são fabricações ontogenéticas especiais, que se colocam imediatamente na dimensão do vivo - que Simondon (2020: 23) qualificara como “agente e teatro da individuação” - e do transindividual.

Não por acaso que Deleuze aponta uma feliz confusão entre direito e vida: “[…] jurisprudência [...] é a vida! Não há Direitos Humanos, há direitos da vida. Muitas vezes, a vida se vê caso a caso” (L’ABÉCÉDAIRE, 2004). Na mesma entrevista em que suscita os grupos de usuários, quando Deleuze (2008: 210) fala do “direito da biologia moderna”, das “novas situações que ela cria”, como problemas de jurisprudência, reencontramos uma ressonância da relação entre a dimensão problemática do vivo e uma chance de resolução transindividual (os grupos de usuários). Como veremos, isso não poderia estar mais próximo da individuação simondiana e da teoria dos grupos de Félix Guattari.

Reconstruamos o argumento de Simondon em linhas muito gerais, sem detalhar a individuação vital, psíquica e coletiva mais do que o necessário.14 14 Para uma reconstrução detalhada e, ainda assim, resumida do argumento, cf. Muriel Combes (2017: 57-97); ou, ainda, Voß (2018: 99-109). Retomada no domínio do vivo, a individuação se diferenciará do domínio físico por uma lentificação da operação. Ao contrário de um cristal, que se individua de maneira “instantânea, quântica, brusca e definitiva” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 20), o vivo implica um teatro de individuação mais lento e permanente. Essa operação não resulta em um indivíduo inteiramente formado, adjunto a um meio empobrecido de potenciais. O vivo se caracteriza como um sistema de ressonância interna em situação permanente de metaestabilidade. Viver equivale ao drama da individuação: não apenas resolver problemas adaptando-se, alterando sua relação com o meio, mas inventando novas estruturas interiores.

A individuação vital corresponde, portanto, não apenas à invenção de um indivíduo relativamente exterior a um meio, mas à invenção, no indivíduo, de um meio de interioridade relativamente a si mesmo. Esse meio de interioridade comporta duas ordens de grandeza: uma que corresponde ao indivíduo individuado; outra, a uma realidade pré-individual de que o indivíduo é portador, e que o determina como um sistema permanente de metaestabilidade consigo.

Essa disparação “comporta uma problemática interior [que] pode entrar como uma problemática mais vasta que seu próprio ser” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 23). É nesse sentido que as gêneses psíquica e coletiva constituem resoluções parciais que prolongam os problemas vitais em dimensões que excedem o ser individual. Assim como os problemas vitais não estão fechados sobre si mesmos, e franqueiam resoluções em uma dimensão psíquica, os problemas psíquicos também não estão encerrados, e preparam um salto na dimensão do coletivo.

O que faz “saltar” de uma dimensão a outra (física, vital, psíquica e coletiva) segundo uma série aberta de individuações, é a realidade pré-individual de que o indivíduo é portador e que, como parte do vivente, não se esgota em qualquer das fases cuja individuação ela dispara. Isso permite excluir tanto a versão individualista liberal quanto a sociológica científica da noção de grupos, pois “avançando de metaestabilidade em metaestabilidade, […] o indivíduo não é nem substância, nem parte simples do coletivo” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 24).

A interpretação de Patton (2007PATTON, Paul. Political normativity and poststructuralism: the case of Gilles Deleuze. Berlin, Germany: Vortrag ins Institutscolloqium des Philosophischen Instituts der Freien Universitat. 15.11.2007. Disponível em: < http://www.uu.nl/SiteCollectionDocuments/GW/GW_Centre_Humanities/political-normativity-deleuze.pdf>. Acesso em: 05 maio 2021.
http://www.uu.nl/SiteCollectionDocuments...
) pode então ser retificada no registro da individuação coletiva. Os grupos de usuários não são nem entes simples, nem grupos sociais preexistentes, mas operações de individuação permanente de linhas de subjetivação que percorrem e configuram o campo social; por essa razão, não podem se contentar em ser consultados, reconhecidos e acomodados em uma estrutura. Antes, devem transformá-la como agentes do direito.

O argumento de Simondon é o de que psicologia e teoria do coletivo estão ligadas. Elas são fases de uma mesma ontogênese que processa em termos psíquicos e coletivos as disparações pré-individuais que constituem a condição de possibilidade para que os indivíduos participem de um ser mais vasto do que eles. Isso, porém, é uma via de mão dupla: por um lado, o coletivo é a dimensão em que o psíquico vem resolver-se; por outro, as resoluções tomadas nesse nível (que é também o da cultura) condicionam a dimensão psíquica e deflagram por toda a parte novas tensões problemáticas.

É aqui que devemos situar o registro próprio do direito: ele é uma alagmática que se desenvolve na dimensão do transindividual e que, condicionando a dimensão psíquica, retroalimenta problematicamente as reservas pré-individuais que o tornam compartilhável; ao mesmo tempo, o constituem como um meio problemático imediatamente em devir, isto é, como um complexo reticular de situações que evoluem por prolongamento de singularidades.

Isso coloca em novos termos a relação entre direito, subjetivação e política, na medida em que as operações da jurisprudência se processam imediatamente no registro transindividual, que Simondon (2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 23-24) definiu como “a unidade sistemática da individuação interior (psíquica) e da individuação exterior (coletiva)”, operadas “a partir de uma realidade pré-individual associada aos indivíduos e capaz de constituir uma nova problemática [...]”.

Como isso permite definir o papel dos grupos de usuários na ideia de direito de Deleuze? A jurisprudência consiste em uma prática alagmática que atua imediatamente no registro do transindividual; nessa medida, introduz uma linha de subjetivação ativa (os “grupos de usuários”) que é, ao mesmo tempo, agente e teatro da individuação. Eis a passagem do direito à política. Ela só pode estar centrada nos grupo de usuários porque é neles que se dará o cruzamento entre subjetivação e instituições.

Essa intuição remonta ao prefácio que, em 1972, Deleuze escreve a Psicanálise e Transversalidade - coletânea de ensaios em que Félix Guattari desenvolve uma teoria dos grupos e uma noção de transversalidade que não são menos simondianas. Ali, Guattari dizia que “um grupo não é mera adição de alguns indivíduos. […] É essencialmente um projeto que se apoia em uma totalização provisória e que produz uma verdade no desenrolar da sua ação” (GUATTARI, 2004GUATTARI, Félix. Psicanálise e transversalidade. Ensaios de análise institucional. Aparecida: Ideias e letras, 2004.: 211); e é nessa medida, em que sua ação produz significantes, que um grupo “produz a instituição, institucionalização […]” (Idem: 212).15 15 Esta é uma definição que atravessa o pensamento de Guattari. Vinte e oito anos após a publicação de Psicanálise e Transversalidade, ele escrevia em Heterogênese: “[…] ‘coletivo’ deve ser entendido aqui no sentido de uma multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo, junto ao socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-verbais, derivando de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica dos conjuntos bem-circunscritos” (GUATTARI, 2012: 19). Essa passagem mostra que, mesmo para o Guattari dos anos 1990, um grupo, ou coletivo, é uma composição social heterogênea entre as dimensões do que Simondon chamaria de trans- e de pré-individual.

Essa breve definição envolve tudo o que está em jogo na noção de grupos de usuários, e na passagem do direito à política, para Deleuze. Em primeiro lugar, para Guattari - como para Simondon -, um grupo não pode definir-se como uma soma de indivíduos já constituídos, uma vez que todo indivíduo é, imediatamente, uma multiplicidade; seja pela realidade pré-individual de que é portador, e que excede sua aparente unidade individuada, seja por que o indivíduo é sempre, na verdade, uma função transindividual ou uma subjetividade de grupo - é o que Guattari queria dizer com “somos todos grupúsculos”16 16 Deleuze (2006: 249) chamou a atenção para o sentido dessa fórmula no seu Três problemas de grupo: “O dito de Guattari [...] marca bem a busca por uma nova subjetividade, subjetividade de grupo, que não deixa se enclausurar num todo forçosamente pronto a reconstituir um eu, ou, pior ainda, um superego, mas que se estende sobre vários grupos de uma vez, divisíveis, multiplicáveis, comunicantes e sempre revogáveis”. .

Em segundo lugar, definir um grupo como “um projeto que se apoia em uma totalização provisória” é considerar que um grupo se caracteriza por uma individuação processual interminável, que se opera segundo diferentes coeficientes de transversalidade. Este é o conceito que, na psicanálise de grupo, permitia superar os dilemas da verticalidade e da horizontalidade - que correspondem, nos grupos militantes, aos impasses da hierarquia piramidal de partido e do espontaneísmo anarquista. A transversalidade é a dimensão diagonal que “tende a se realizar quando ocorre uma comunicação máxima entre os diferentes níveis e, sobretudo, nos diferentes sentidos” (GUATTARI, 2004GUATTARI, Félix. Psicanálise e transversalidade. Ensaios de análise institucional. Aparecida: Ideias e letras, 2004.: 111), e que admite um ajuste de coeficientes (i.e., uma maior ou menor transversalidade).

É a variação desses coeficientes que permite distinguir dois polos de referência para os grupos: os grupos sujeitos, e os grupos sujeitados. O grupo sujeito desenvolve a sua autonomia e os meios de elucidar o seu próprio objeto, e “faz aflorar uma hierarquização de estruturas que lhe vai permitir abrir-se a um ‘para-além’ dos interesses de grupo” (GUATTARI, 2004GUATTARI, Félix. Psicanálise e transversalidade. Ensaios de análise institucional. Aparecida: Ideias e letras, 2004.: 105). Mas nada disso é tranquilizador. Os grupos sujeitos estão marcados por uma vertigem interior; mergulhados “num oceano de problemas, de tensões, de lutas internas, de riscos de divisão” (Idem: 77) que decorrem de seu alto coeficiente de transversalidade e abertura a outros grupos. Trata-se de grupos sempre ameaçados, mas lúcidos, quanto à possibilidade de sua finitude e esfacelamento. Por sua vez, os grupos sujeitados recebem a sua lei do exterior, secretam hierarquizações em relação a outros grupos, produzem uma subjetividade de grupo autorreferente (a partir da liderança ou da representação) e se cercam de “rituais tranquilizadores” (Idem: 76) que se destinam a impedir qualquer inscrição de não-sentido exterior.

Na medida em que a distinção entre grupos sujeitos e grupos sujeitados não é ontológica, mas de funcionamento, é preciso interpretá-la sempre em função das operações de transdução que podem se realizar em determinada subjetivação de grupo, fazendo-a passar de um funcionamento a outro. Assim, os grupos podem ser ditos projetos que se apoiam em uma totalização provisória: um grupo jamais está dado de uma vez por todas, ou todo de uma vez. É, antes, um processo de transdução constante entre seus gradientes e suas polaridades.

Por fim, Guattari afirma que um grupo “produz sua verdade no desenrolar da sua ação” e, ao produzir significantes, “produz a instituição” (Idem: 211-212). Esse é o ponto de convergência entre uma linha de aparente objetividade, do direito e das instituições, e outra de aparente subjetividade, dos grupos de usuários.

Da mesma forma como Simondon descobria formas implícitas na argila e materialidade nos moldes de fabricar tijolos, a afirmação de que “a produção de significante é inseparável da produção de unidades subjetivas, isto é, da produção de instituições” (Idem: 303) incute a ideia de que as linhas de subjetividade e objetividade se misturam. Há uma objetividade implícita nos grupos de usuários (suas demandas, autocompreensão, forma de organização, componentes de ação, objetivos, formas de institucionalização futura etc.) e uma subjetividade implícita nas instituições, investidas por “um desejo latente coextensivo a todo o campo social (DELEUZE, 2006DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2006.: 250). Não é por acaso que Deleuze verá na distinção entre grupos sujeitos e sujeitados duas vertentes da instituição (Idem: 255), de modo que teoria dos grupos e instituições são uma mesma coisa.

Na equação entre ação e produção de significantes, produção de unidades subjetivas e de instituições, pode-se situar o papel dos grupos de usuários nas operações da jurisprudência, e mostrar em que sentido neles dá-se a passagem do direito à política. Trata-se de um registro intrinsecamente problemático, atravessado pelo vetorialismo das forças produtivas do capital, que tanto sujeita os indivíduos a modelos de subjetividade estereotipados quanto exige deles uma contínua heterogênese. Essa contradição é, entretanto, instrutiva: ceder à máquina social é elaborar uma subjetividade de grupo sujeitado; multiplicar os grupúsculos anarquicamente, e ao infinito - a ponto de poderem tomar o “lugar das instituições da burguesia” como “unidades de subversão desejante” (GUATTARI, 2004GUATTARI, Félix. Psicanálise e transversalidade. Ensaios de análise institucional. Aparecida: Ideias e letras, 2004.: 365) -, é prolongar a realidade pré-individual coexistente com um grupo sujeito de modo transversal.

Esse é o sentido de uma linha de subjetividade, que tanto vem romper as operações metaestáveis de uma jurisprudência confiada aos juízes, quanto exceder o registro alagmático de um direito que passa à política. Os grupos de usuários estão no centro móvel da operação de individuação que implode o monopólio dos juízes - grupo sujeitado que faz do direito um ritual tranquilizador e fechado em si mesmo; também ocupam o ponto de passagem do direito à política na medida em que tais grupos já não podem ser concebidos como sujeitos de direitos a priori, como associações de indivíduos ou grupos sociais preexistentes que poderiam ser consultados, reconhecidos ou acomodados em democracias participativas.

Os grupos de usuários têm uma consistência em fuga que é ao mesmo tempo trans- e pré-individual: “singular sem ser individual” (DELEUZE, 2006DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2006.: 118) e individuada sem ser totalizante.

Aí, porém, nada é trivial: não são os grupos de usuários que produzem “os direitos” por meio da ação política - lugar comum de uma teoria política dos direitos que nada tem a dizer sobre o direito ou a jurisprudência. Os grupos de usuários são subjetivações dividuais, mobilizadas por problemas precisos, e singularidades que emergem de situações metaestáveis, as quais evoluem nas operações da jurisprudência. Eles são e consistem na passagem do direito à política, na medida em que as operações da jurisprudência mobilizam reservas pré- e transindividuais que poderão se tornar políticas, fazendo existir um grupo de usuários formado em torno de um problema específico - ora no polo de grupo sujeito, ora no de grupo sujeitado. O que equivale a dizer que os grupos de usuários individuam a passagem do transcendental ao empírico; atualizam a passagem do virtual ao atual segundo linhas divergentes, de criação e devir.

Eis o ponto em que, no direito, os grupos de usuários se misturam às instituições: eles evocam, por invenção, a individuação de um “povo que ainda não existe” (DELEUZE, 2016_____. Dois regimes de loucos. Textos e entrevistas (1975-1995). Tradução de Guilheme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2016.: 343); são um laboratório social a céu aberto de unidades de subversão desejante que poderiam tomar o lugar das instituições vigentes, e caso a caso, envolvem-se e tramam devires vegetal, animal, mulher, negro, minoritário, intenso, imperceptível, cristal, terra, húmus, todo-mundo…

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    » https://doi.org/10.1080/0969725X.2018.1451471.
  • 1
    Essas teses aparecem em duas entrevistas publicadas em Conversações. Por um lado, Gilles Deleuze afirmava que “A jurisprudência é a filosofia do direito, e procede por singularidade, por prolongamento de singularidades” (DELEUZE, 2008_____. Conversações. Tradução de Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2008.: 191); por outro, que a jurisprudência é “verdadeiramente criadora de direito: ela não deveria ser confiada aos juízes. […] Não é de um comitê de sábios, comitê moral e pseudocompetente que precisamos, mas de grupos de usuários. É aí que se passa do direito à política” (Idem: 209-210).
  • 2
    Deleuze jamais falou em grupos de usuários, exceto nas primeiras linhas de Controle e Devir - uma entrevista que Deleuze concede a Antonio Negri, e é publicada na primavera de 1990, no primeiro número da revista Futur Antérieur. Mais tarde, ela seria reproduzida em Conversações (DELEUZE, 2008_____. Conversações. Tradução de Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2008.).
  • 3
    A tese principal de Patton poderia ser resumida da seguinte forma: “A normatividade dos conceitos de Deleuze e Guattari fornece um quadro com o qual se pode avaliar o caráter específico de acontecimentos e processos. Eles permitem que coloquemos questões como: esta é uma reterritorialização positiva ou negativa? Esta é uma linha de fuga genuína? Ela vai conduzir a um novo agenciamento revolucionário em que há um acréscimo de liberdade, ou a uma nova forma de captura - ou a algo pior?” (PATTON, 2007PATTON, Paul. Political normativity and poststructuralism: the case of Gilles Deleuze. Berlin, Germany: Vortrag ins Institutscolloqium des Philosophischen Instituts der Freien Universitat. 15.11.2007. Disponível em: < http://www.uu.nl/SiteCollectionDocuments/GW/GW_Centre_Humanities/political-normativity-deleuze.pdf>. Acesso em: 05 maio 2021.
    http://www.uu.nl/SiteCollectionDocuments...
    : 05). Tradução livre.
  • 4
    Em O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari (2007) qualificavam os direitos humanos como uma axiomática inteiramente compatível com o regime capitalista de mercado. Afirmavam que “[…] a defesa dos direitos do homem deve necessariamente passar pela crítica interna de toda democracia” (Idem: 138), e perguntavam acidamente: “Que social-democracia não dá ordem de atirar quando a miséria sai de seu território ou gueto?” (Idem: 139). Nesse sentido, dão alguns passos que, segundo Sutter (2009_____. Deleuze, la pratique du droit. Paris: Michalon, 2009.: 67-68), excedem em radicalidade as críticas do Marx de Sobre a questão judaica.
  • 5
    “Por natureza, processos de devir-minoritário sempre excedem ou escapam dos confins de qualquer maioria dada. Eles carregam o potencial para transformar os afetos, crenças e sensibilidades políticas de uma população de modos que chegam a provocar o advento de um novo povo. Em contrapartida, na medida em que um povo está constituído como comunidade política, as transformações que lhe ocorrem afetarão suas concepções do que é justo e devido e, portanto, a natureza dos direitos e deveres atribuídos à nova maioria. Devires-minoritários fornecem, pois, outro vetor do ‘devir-democrático’” (PATTON, 2007PATTON, Paul. Political normativity and poststructuralism: the case of Gilles Deleuze. Berlin, Germany: Vortrag ins Institutscolloqium des Philosophischen Instituts der Freien Universitat. 15.11.2007. Disponível em: < http://www.uu.nl/SiteCollectionDocuments/GW/GW_Centre_Humanities/political-normativity-deleuze.pdf>. Acesso em: 05 maio 2021.
    http://www.uu.nl/SiteCollectionDocuments...
    : 11). Tradução livre.
  • 6
    A noção deleuziana de jurisprudência como categoria social foi discutida em Corrêa (2020CORRÊA, Murilo Duarte Costa. A jurisprudência como categoria social: multiplicações de Deleuze... Revista Direito e Práxis, [S.l.], set. 2020. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/48235>. Acesso em: 05 maio 2021.
    https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
    ), texto para o qual tomamos a liberdade de remeter o leitor.
  • 7
    Por exemplo, as distinções entre direito e fato, norma e conduta, validade e eficácia, direito objetivo e direito subjetivo, pessoa em sentido jurídico e em sentido natural, ciência normativa e ciência causal, interpretação como ato de conhecimento e como ato de vontade etc., que atravessam a obra de Kelsen (2011_____. Teoria pura do direito. 8. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2011.).
  • 8
    O hilemorfismo é a doutrina comum a Aristóteles e à filosofia escolástica que explica os seres a partir de uma composição entre matéria e forma (Cf. LALANDE, 2010LALANDE, André. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. 3. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 2010.: 426). Ela aparecerá no livro VII da Metafísica de Aristóteles (2002: 339 [1037a 30-32]), que definia a substância como “[…] a forma imanente, cuja união com a matéria constitui a substância-sinolo […]”. A noção de “sinolo” remete ao grego σύνολον, geralmente traduzida como “composto”. Nesse sentido, a substância é definida como o composto entre matéria (ὕλη, “hylé”) e forma (εἶδος, “Eidos”). O hilemorfismo de Aristóteles é a solução encontrada para tomar distância tanto do idealismo platônico quanto do materialismo dos pré-socráticos, ao afirmar que todo ser é um composto de matéria e forma (“τὸ σύνολον ou τὸ ἐξ ἀμφοῖν”), e que a forma - imanente às coisas - determina, configura ou organiza a matéria.
  • 9
    A definição kelseniana de norma como dever ser (Sollen) o demonstra: “O ‘dever ser’ simplesmente expressa o sentido específico em que a conduta humana é determinada por uma norma. […] Um enunciado no sentido de que algo deve ocorrer é uma afirmação sobre a existência e o conteúdo de uma norma, não uma afirmação sobre a realidade natural, i.e., eventos concretos da natureza” (KELSEN, 2005KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4. ed. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005.: 51).
  • 10
    Ao afirmá-lo, não reduzimos o kantismo ao hilemorfismo aristotélico - uma vez que Aristóteles e Kant apresentam modelos de explicação distintos para o Ser. Enquanto o modelo aristotélico gravita em torno do problema da substância ou da essência imanente, o kantiano produz uma revolução na forma de pensar a estrutura do Ser e o que nela é cognoscível, na medida em que inscreve as condições, sempre relativas, de conhecimento de um determinado fenômeno na estrutura da subjetividade. Ainda assim, a cisão do ser nas dimensões do númeno e do fenômeno não elimina a persistência de um resíduo hilemórfico que se reproduz na teoria do conhecimento kantiana: a sensibilidade e o entendimento a priori correspondem a um conjunto de formas que modelam (ao restringir) o que podemos conhecer de forma universalmente válida. É precisamente este o pressuposto da Teoria Pura do Direito, dedicada a conhecer as formas jurídicas independentemente de seus conteúdos ou de sua gênese. Sob esse ponto de vista, externo tanto a Kant quanto a Kelsen, a aproximação com a doutrina hilemórfica como um modelo universal de pensamento torna-se possível. Nesse sentido, cf. a crítica que Gilbert Simondon (2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 110-111) dirigiu a Kant, da qual destacamos: “O fenomenismo relativista é perfeitamente válido na medida em que indica nossa incapacidade de conhecer absolutamente um ser físico, sem refazer sua gênese e à maneira pela qual conhecemos ou acreditamos conhecer o sujeito, no isolamento da consciência de si. Porém, no fundo da crítica do conhecimento, fica este postulado, de que o ser é fundamentalmente substância, isto é, em si e por si” (Idem: 110). Simondon dirige a Kant a crítica que Anne Sauvagnargues resume nos seguintes termos: “De princípio explicativo abstrato unicamente nominal, o princípio de individuação deve tornar-se princípio genético contemporâneo da individuação real. Isso permite a Simondon reunir em uma mesma crítica a separação aristotélica da matéria e da forma na natureza e na sensação, a separação kantiana entre matéria e forma, ou sensibilidade e entendimento, e toda separação entre matéria e forma que posiciona a forma como princípio eminente, transcendente e explicativo, ao invés de pensá-la na dimensão das forças. […] Sua crítica inscreve-se exatamente no debate que opõe Deleuze a Kant […]” (SAUVAGNARGUES, 2009SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze. L’empirisme transcendental. Paris: Presses Universitaires de France, 2009.: 243). Tradução livre.
  • 11
    No Brasil, uma recente tradução publicada pela Editora 34 baseou-se em uma reedição de 2013, saída pela editora francesa J. Millon. Ambas as edições levaram o título original da tese de Simondon, defendida em 1958, “A individuação à luz das noções de forma e de informação”, e incorporaram passagens da tese de doutorado que foram suprimidas nas publicações anteriores, bem como importantes suplementos bibliográficos.
  • 12
    Em um texto preparatório a L’individuation..., Simondon definiu a alagmática como “a teoria das operações” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 559). Uma operação é definida ora como “aquilo que faz uma estrutura aparecer ou o que modifica uma estrutura” (Idem: 560), ora como a “conversão de uma estrutura numa outra” (Idem: 562). Assim, estrutura e operação seriam recíproca e ontologicamente complementares, como observa Muriel Combes (2017COMBES, Muriel. Simondon. Una filosofía del transindividual. Buenos Aires: Cactus, 2017.: 42).
  • 13
    A modulação é “a transformação de uma energia em estrutura” (SIMONDON, 2020_____. Forma, informação e potenciais. In: _____. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Tradução de Luis Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020, p. 573-607.: 563) que a operação condiciona e relaciona em ato. A noção de informação é aquela que, na filosofia da individuação de Simondon, reconfigura a ideia de “forma” proveniente do esquema hilemórfico. Enquanto a forma possui um poder diretor, organizador, que pressupõe uma dualidade entre realidade que recebe a forma e a realidade que é a forma, a noção de informação assinala a univocidade e a reversibilidade entre o termos envolvidos na troca. O que assegura uma recomposição da noção de forma na ideia de informação é a operação de modulação e seu caráter transdutivo: “a operação de modulação pode desenrolar-se numa microestrutura que avança progressivamente através do domínio que toma forma […]. Na maioria dos casos de tomada de forma, essa operação seria transdutiva, isto é, avançando de próximo em próximo, a partir da região que já recebeu a forma, e indo para aquela que permanece metaestável […]” (SIMONDON, 2020: 595).
  • 14
    Para uma reconstrução detalhada e, ainda assim, resumida do argumento, cf. Muriel Combes (2017COMBES, Muriel. Simondon. Una filosofía del transindividual. Buenos Aires: Cactus, 2017.: 57-97); ou, ainda, Voß (2018_____. “Simondon on the notion of the problem: a genetic schema of individuation”. Angelaki: journal of the theoretical humanities, vol. 23, n. 2., April 2018, p. 94-112. DOI: 10.1080/0969725X.2018.1451471.
    https://doi.org/10.1080/0969725X.2018.14...
    : 99-109).
  • 15
    Esta é uma definição que atravessa o pensamento de Guattari. Vinte e oito anos após a publicação de Psicanálise e Transversalidade, ele escrevia em Heterogênese: “[…] ‘coletivo’ deve ser entendido aqui no sentido de uma multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo, junto ao socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-verbais, derivando de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica dos conjuntos bem-circunscritos” (GUATTARI, 2012_____. Caosmose: um novo paradigma estético. 2. ed. Tradução de Ana Lúcia e Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 2012.: 19). Essa passagem mostra que, mesmo para o Guattari dos anos 1990, um grupo, ou coletivo, é uma composição social heterogênea entre as dimensões do que Simondon chamaria de trans- e de pré-individual.
  • 16
    Deleuze (2006DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2006.: 249) chamou a atenção para o sentido dessa fórmula no seu Três problemas de grupo: “O dito de Guattari [...] marca bem a busca por uma nova subjetividade, subjetividade de grupo, que não deixa se enclausurar num todo forçosamente pronto a reconstituir um eu, ou, pior ainda, um superego, mas que se estende sobre vários grupos de uma vez, divisíveis, multiplicáveis, comunicantes e sempre revogáveis”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2021
  • Aceito
    25 Fev 2022
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