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Mercadoria e sujeito, valor e direito: esboços para uma leitura de Pachukanis

Commodity and subject, value and law: remarks to read Pashukanis

Resumo

O presente trabalho almeja, em uma leitura de Pachukanis, ressaltar a vinculação feita pelo autor entre forma jurídica e forma valor, para, daí, extrair posteriormente a possibilidade fazer uma analogia entre as formas aparentes do valor (valor de troca) e as formas aparentes do direito (momento judicial e momento legislativo), a partir de uma leitura de trechos encontrados na obra Teoria Geral do Direito e Marxismo. Como resultado, torna-se possível colocar em xeque percepções que reduzem a interpretação de Pachukanis a um economicismo de cariz circulacionista, uma vez que valor e direito são vistos como formas centrais à reprodução da sociabilidade capitalista em sua totalidade.

Palavras-chave:
Evgeny Bronislavovitch Pachukanis; Direito e marxismo; Forma Jurídica; Crítica do Direito

Abstract

This paper aims to read Pashukanis’ work while emphasizing the connections between law-form and value-form. After that, we seek to understand the apparent forms of value (specially the exchange value) in an analogous position with the apparent forms of law (namely, the jurisprudential and the legislative moments). In order to do that, we approach the book General Theory of Law and Marxism as our main source. As a result, it is possible to challenge the interpretations that understand Pashukanis in a purely economical and exchange-centered way, since law and value are both central forms in order to reproduce the capitalist social order in its totality.

Keywords:
Evgeny Bronislavovich Pashukanis; Law and Marxism; Law-form; Critical Law Theory

Introdução

O presente trabalho pretende esboçar elementos introdutórios para compreender o projeto de investigação assumido por Evgeny Pachukanis em sua obra Teoria Geral do Direito e Marxismo (TGDM) desde uma leitura que realce a atualidade de sua empreitada, bem como os possíveis diálogos com as vertentes críticas e criativas do marxismo. Portanto, trata-se prioritariamente de um esforço de revisão bibliográfica voltado a ler com atenção a obra principal desse autor. Para tanto, iremos nos utilizar de várias edições da TGDM, com foco especial em duas edições brasileiras (a da Editora Acadêmica, de 1988, e a da Editora Boitempo, de 2017) e na versão original russa como contraponto capaz de discernir os desencontros entre a velha e a nova edição.

No decorrer de nossa pesquisa, partimos de uma impressão que depois foi acentuada e referendada pelos elementos gerais encontrados na obra. Trata-se da percepção de que a interpretação da teoria pachukaniana hegemônica nos países anglo-saxões (a assim chamada commodity exchange theory, ou меновая теория права [menovaya teoriya prava], em sua versão russa) foi incapaz de identificar a centralidade da mútua imbricação entre a forma jurídica e a forma-valor no desenrolar do argumento do marxista soviético, o que, por sua vez, acaba por reduzir a contribuição aqui comentada a um espantalho facilmente rotulável de circulacionista, quando, em verdade, Pachukanis está a esboçar uma crítica do direito nos moldes da crítica da economia política e, para tanto, realiza um desenvolvimento categorial muito mais complexo e sofisticado do que o retratado por vários de seus intérpretes. Ou seja, a própria ênfase na mercadoria enquanto unidade atomizada de reprodução da acumulação capitalista não basta para descrever o movimento do fenômeno jurídico, uma vez que na própria exposição de Marx essa dimensão assume um papel de categoria que desvela outras categorias e permite, enfim, pensar o valor e expôr o movimento de acumulação do capital como um valor que se autovaloriza e que, nesse processo, subsume todas as relações sociais a seu alcance.

Assim, a exposição de nosso estudo seguirá estes momentos: 1) uma aproximação inicial da vida e obra de Pachukanis, com ênfase especial no legado do projeto de investigação deixado por ele e a sua recepção nos círculos de pesquisa em torno do Direito e marxismo no Brasil, o que nos propiciará a constatação de que a TGDM é apenas um esforço inicial que indica uma empreitada crítica aberta e inegostada cuja continuação depende de esforços dos investigadores e investigadoras contemporâneos; 2) uma introdução à discussão sobre como Pachukanis assimilou o método da crítica da economia política, tornando-o um método para elaborar criativamente uma crítica ao direito que parte dos conceitos jurídicos fundamentais para, enfim, desvendar a particularidade histórica e política do direito como forma social generalizada; 3) a dedução de que a aplicação do método acima referido culmina em uma aproximação entre a forma-jurídica e a forma-valor como formas fundamentais da sociabilidade capitalista cuja imbricação enraíza-se profundamente tanto na produção e circulação dos bens materiais e objetos quanto na subjetividade das pessoas que trocam mercadorias; e 4) dessa semelhança de operação e funcionamento entre as formas direito e valor, deduz-se também que o direito, tal como o valor, também possui suas formas de expressão como momentos imediatos que permitem ver uma manifestação mais palpável da forma jurídica, a qual, no entanto, é insuficiente para explicar a essência do modo de constituição do direito. Desse modo, culmina-se em um quadro que permite vislumbrar a relevância da obra pachukaniana -- a qual é irredutível a adjetivações como as de reducionista, economicista ou mesmo circulacionista --, bem como uma infinidade de horizontes de pesquisa em aberto, dispostas a contribuir para imaginar teoricamente como se aplica a crítica à forma jurídica para as relações de nosso tempo.

1. Uma empreitada crítica aberta e inesgotada: vida, obra e legado de Pachukanis

Em 1924, no primeiro Estado socialista cuja revolução conseguiu consolidar-se, um jovem jurista - formado na Alemanha, em decorrência de um exílio iniciado em 1910, quando completava dois anos de sua participação no Partido Operário Social-Democrata Russo -, nascido de uma família lituana, publicava um trabalho direcionado para seu próprio esclarecimento, um esboço que, em sua primeira edição, trazia o modesto subtítulo de tentativa de crítica dos conceitos jurídicos fundamentais. Daí emergiu um dos mais rigorosos e instigantes trabalhos feitos para a sistematização da crítica marxista ao direito: a obra Teoria geral do direito e marxismo, de Evgeny Bronislavovitch Pachukanis. Com sua publicação, ainda na faixa dos trinta anos, Pachukanis, um bolchevique tardio - só ingressou oficialmente nas fileiras do Partido Bolchevique em 1918, tendo anteriormente indícios de ligação com os mencheviques -, teve uma meteórica ascensão entre os pesquisadores jurídicos do Estado soviético, tornando-se, por exemplo, em 1925, coeditor do principal periódico de ciência do direito da época (Revolyutsiya Prava [Революция Права]) e, além disso, teve sua obra continuamente republicada, tornando-se manual dos cursos jurídicos da época1 1 As presentes indicações biográficas foram retiradas de KAMENKA;TAY, 1970, p. 72-73 e HEAD, 2008, p. 157-159. Sobre o nível de esboço de seu trabalho, temos as palavras do próprio Pachukanis (1988, p. 7): “O presente trabalho [...] foi escrito com o fim de esclarecimento pessoal”. O subtítulo da primeira edição foi encontrado, em sua primeira indicação, em HEAD, 2008, p. 158 e, depois, cotejado com o original russo encontrado na internet: “Общая теория права и марксизм. Опыт критики основных юридических понятий”. No entanto, o mais completo ensaio biográfico sobre Pachukanis foi redigido por Naves (2017) e, em sua versão mais recente, consta no compilado da TGDM e outros ensaios publicados pela Sundermann (PACHUKANIS, 2017b). .

Entre os motivos de tal positiva recepção, podemos destacar a atenta aplicação do método e do pensamento de Marx feita por Pachukanis ao estudo do direito. Para além de ruminações e malabarismos teóricos sobre um prefácio de seis páginas escrito em 1859, o teórico soviético soube abordar o pensamento de Marx a partir de uma meticulosa leitura de sua obra magna, O Capital. Como bem expressa Márcio Bilharinho Naves (1996NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. Campinas: Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Doutorado), 1996., p. 2):

A teoria geral do direito e o marxismo teve o efeito de uma pequena revolução teórica na jurisprudência. Pachukanis, rigorosamente, retorna a Marx, isto é, não apenas às referências ao direito encontradas em O Capital - e não seria exagero dizer que ele é o primeiro que verdadeiramente as lê -, mas, principalmente, ele retorna à inspiração original de Marx ao recuperar o método marxiano.

Além disso, argumenta Michael Head (2008HEAD, Michael. Evgeny Pashukanis: a critical reappraisal. Londres: Routledge, 2008., p. 157, tradução nossa), as conclusões de seu trabalho, ao vincularem a subsistência do direito burguês, ao lado das relações de troca e de equivalência - fortalecidas por causa da Nova Política Econômica - e acentuarem uma lenta transição ao desaparecimento do Estado, fizeram com que Pachukanis cumprisse “uma essencial função ao desenvolver uma sofisticada doutrina jurídica marxista que poderia facilitar, ou ao menos não desafiar, as mudanças de rumo no ambiente político e jurídico”, propugnadas pela fração liderada por Stalin no comando do Partido Bolchevique.

Todavia, a partir principalmente da década de trinta, Pachukanis passará a adaptar sua doutrina ao discurso oficial de Estado da União Soviética, mas não de forma linear e imediata, o que indica, em alguma medida, sua resistência ao discurso que lhe foi imposto (NAVES, 1996NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. Campinas: Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Doutorado), 1996., p. 9-10). Paradoxalmente, em 1936, Pachukanis “passa a aceitar plenamente a existência de um direito socialista, além de adotar uma concepção normativa do direito” (NAVES, 1996, p. 161-162), mas sua defesa da legalidade socialista (legalidade, aliás, que, segundo as teorias liberais, garantiria a defesa das liberdades individuais e a restrição da barbárie) não impediu que, um ano depois, ele se tornasse, para a oficialidade, “um ‘parasita contrarrevolucionário trotskista-bukharinista’ e ‘agente fascista’ (Vyshinsky)” (HEAD, 2008HEAD, Michael. Evgeny Pashukanis: a critical reappraisal. Londres: Routledge, 2008., p. 153, tradução nossa). Preso em 20 de janeiro de 1937, Pachukanis foi condenado e fuzilado em 4 de setembro de 1937, acusado de “participação em organização terrorista contrarrevolucionária”2 2 Tais informações foram retiradas a partir do arquivo virtual de vítimas da repressão organizado pela ONG Memorial. O nome de Pachukanis tem como fonte referenciada documentos do crematório no qual teria sido sepultado. Disponibilizamos todas as informações contidas na página dado o escasso acesso que se tem acerca da execução do jurista russo: “Pachukanis Evgeny Bronislavovitch. Nasceu em 1891, cidade de Staritsa; russo; educação superior; membro do Partido Comunista da URSS (Bolcheviques); ocupação: comissário de justiça da URSS; residência: Moscou, Pokrovsky Boulevard, 14/5, apartamento 21. Prisão: 20 de janeiro de 1937. Condenado pelo Colégio Militar da Suprema Corte da URSS em 4 de setembro de 1937, acusação: participação em organização terrorista contrarrevolucionária. Executado em 4 de setembro de 1937. Local de sepultura: Moscou, Cemitério Donskoe. Reabilitado em 31 de março de 1956 pelo Colégio Militar da Suprema Corte da URSS. Fonte: Moscou, lista dos executados - crematório de Donskoe” (MEMORIAL, s.d., tradução nossa [algumas abreviaturas foram expandidas]). (MEMORIAL, s.d., tradução nossa).

Malgrado as virulentas críticas destinadas ao seu trabalho e a sua posterior “reabilitação” (que, na prática, significou mais um período de contínuo esquecimento) na era Kruschev, a teoria de Pachukanis não deixou de atrair a atenção dos mais variados setores da crítica jurídica no mundo e, há cem anos da publicação de sua obra principal, seus escritos ainda não foram esgotados pelas contínuas discussões.

Particularmente, cabe destacar a relevância que a obra do jurista soviético tem obtido em recentes campos de pesquisa, sejam eles nacionais ou internacionais. Focaremos, no entanto, a sua recepção no Brasil, marcada pela influência teórica e editorial de um agrupamento localizado no estado de São Paulo que, por certo tempo, aglutinou-se diante da denominação de marxismo jurídico3 3 Para uma visão interna acerca desse grupo, Cf. MASCARO, 2011 e CALDAS, 2011. Para uma interpretação de maior fôlego, mas externa, Cf. PAZELLO, 2014a, p. 429-440 e PAZELLO, 2021a, p. 35-38. e, resgatando o legado pachukaniano, pôde complexificar a discussão sobre o direito no campo das assim denominadas teorias críticas do direito4 4 Para um apanhado geral sobre as teorias críticas do direito no Brasil, Cf. PAZELLO, 2010, p. 122-152, PAZELLO, 2014a, p. 408-428, WOLKMER, 2002, p. 77-145. , de modo a visualizar os limites estruturais que estão agregados à forma jurídica e distanciar-se da visão instrumental-normativa do direito que antes era inquestionada5 5 Para uma leitura dos avanços e recuos dessas propostas em comparação com as propostas originais da teoria crítica do direito brasileira, Cf. SOARES; PAZELLO, 2014. (PAZELLO, 2021a______. Jardín colgante entre dos cielos: un ensayo sobre el estado del arte de la relación entre marxismo y derecho en Brasil, hoy. Em: ESCALANTE, Víctor Romero (ed.). Marxismo y derecho: obras escogidas. Cidade do México: Ladrones de Leña, 2021a, p. 23-56.).

Entre as produções ligadas a esse circuito de investigações, destaca-se o pioneirismo de Márcio Bilharinho Naves com a publicação de sua tese de doutorado, Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis (NAVES, 2000______. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2000.), defendida em 1996, por um lado, e o epicentro de divulgação e capilarização da obra pachukaniana por meio da atuação de Alysson Mascaro e sua proximidade com a editora Boitempo, cristalizada na obra Estado e forma política (2015), recebida positivamente por diversos campos de estudo marxistas.

Essas influências abriram espaço para uma série de novos trabalhos acerca de Direito e Marxismo que, trazendo sempre Pachukanis como importante interlocutor, não pode ser esgotada nas presentes linhas introdutórias6 6 Para a indicação de um mais amplo rol de autores e autoras, Cf. PAZELLO, 2021a. . Portanto, limitamo-nos a dar pistas de espaços para começar a compilar e investigar esse o impacto desse regressar pachukaniano, como em dossiês de pesquisas coletivas7 7 Pense-se, por exemplo, nos Dossiês sobre Direito e Marxismo compilados pela Revista Margem Esquerda (n. 30, de 2018), pela Revista InSURgência (v. 2, n. 1, de 2016), pela conceituada Revista Direito e Práxis (Dossiê 'Direito e Marxismo', no v. 5, n. 2, de 2014), pelo site Marxismo21 (Dossiê Marxismo e Direito, de 10 de outubro de 2013), ou nos dossiês dedicados a discutir os 90 anos da publicação da Teoria Geral do Direito e Marxismo, como o publicado pela Revista Verinotio (n. 19, de 2015). Também cumpre indicar as pioneiras seções sobre Marxismo e Direito presentes nas primeiras edições da Revista Direito e Realidade, ainda em 2011. , publicações editoriais assumidas por grandes editoras de difusão do pensamento marxista no Brasil (como a Boitempo Editorial8 8 Aqui, podemos destacar a publicação da tese de Naves (2000) e da obra de Mascaro (2015) já citadas, além da obra de Silvio Luiz de Almeida, Sartre: direito e política (ALMEIDA, 2016). Como pináculo desse processo editorial, destaca-se a nova publicação da Teoria Geral do Direito e Marxismo (PACHUKANIS, 2017a), posteriormente seguida por uma publicação de artigos sobre o tema do fascismo (PACHUKANIS, 2020). , o selo Outras Expressões9 9 Salientamos, por exemplo, o grande esforço coletivo perceptível na coletânea Para a crítica do direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas (KASHIURA JR.; AKAMINE JR.; MELO, 2015). Além disso, houve a publicação de Marx e o direito, de Márcio Bilharinho Naves (2014), de Sujeito de direito e capitalismo, de Celso Naoto Kashiura Junior (2014) e de Teoria da derivação do estado e do direito, de Camilo Onoda Caldas (2015). , a editora Sundermann10 10 Marcada pela publicação, em 2017, de uma importante coletânea de textos de Pachukanis, incluindo uma nova tradução da obra clássica do autor: A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929) (PACHUKANIS, 2017b). e a editora Lutas Anticapital11 11 Como principal obra desse editorial que aborda o legado de Pachukanis, destaca-se a compilação Léxico pachukaniano (AKAMINE JÚNIOR, et. al., 2019). ) e surgimento de demais organizações preocupadas com esse debate e suas implicações para direcionar uma atuação político-intelectual mais ampla no cenário de crítica ao direito a partir da interlocução com os movimentos políticos populares, como o Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais12 12 Para uma breve indicação das propostas, pessoas e grupos envolvidos na discussão entre direito e marxismo trazida à baila pelo IPDMS, Cf. PAZELLO, 2021a, p. 41-44. .

Além disso, as influências do jurista soviético conseguiram atingir um campo mais vasto de áreas do conhecimento não limitadas ao direito, como as pesquisas sobre educação (CATINI, 2013CATINI, Carolina de Roig. A escola como forma social: um estudo do modo de educar capitalista. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo , 2013.) e saúde pública (MENDES; CARNUT, 2020MENDES, Áquilas; CARNUT, Leonardo. Capital, Estado, crise e a saúde pública brasileira: golpe e desfinanciamento. Ser Social, Brasília, v. 22, n. 46, p. 9-32, jan.-jun. 2020.), para citar apenas alguns exemplos nos quais impera a lógica da luta por direitos. Ademais, a recepção desse projeto de leitura do direito não é mera reprodução passiva, mas uma apreensão ativa, a qual implica o diálogo com temas que complexificam a concretude do direito contemporâneo brasileiro (aqui, podemos indicar as pesquisas que pensam o direito de acordo com os outros ciclos de acumulação do capital, seja a partir dos outros volumes d’O Capital marxiano, seja a partir das dimensões da dependência dos países periféricos, da acumulação por espoliação ou da assim chamada acumulação primitiva13 13 Nessas aproximações aos outros livros e momentos d’O Capital, em geral associadas a uma leitura menos adesistas das teses de Pachukanis, Cf. CASALINO, 2015, SARTORI, 2019 e SARTORI, 2020. Na discussão sobre a dependência, Cf. PAZELLO, 2016b. Em torno dos debates sobre acumulação por espoliação e acumulação originária, Cf. PAZELLO, 2016a e GONÇALVES, 2017. ) e com autores de dentro e fora marxismo ainda distantes da tradição soviética mais ortodoxa, como Pierre Bourdieu (CASTRO, 2020CASTRO, Felipe Araújo. Bourdieu encontra Pachukanis. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 117-144, 2020.), Gyorgy Lukács (SOARES; SILVA, 2020______; SILVA, Regina Teresa Pinheiro da. Elementos de uma aproximação ontológica do direito em Pachukanis. Monumenta: Revista de Estudos Interdisciplinares, Joinville, v. 1, n. 1, p. 145-167, 2020. e SARTORI, 2016SARTORI, Vitor. “Diálogos” entre Lukács e Pachukanis sobre a crítica ao Direito. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, ano 2, v. 2, n. 1, p. 203-257, 2016.) e E. P. Thompson (SILVA, 2021), sem mencionar os já hegemônicos diálogos realizados entre Pachukanis e a tradição althusseriana (NAVES, 2000______. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2000.), ou a reivindicada familiaridade da problemática da forma compartilhada entre Pachukanis e as denominadas Novas Leituras de Marx14 14 Para um panorama dentro de um debate mais geral sobre o marxismo, Cf. ELBE, 2013. Cumpre contextualizar também que as contribuições da NML vem sendo recentemente absorvidas pelo novo panorama da crítica do direito inspirada em Pachukanis em especial por seu sucesso em compreender “a especificidade histórica da economia política de modo muito mais radical” (AKAMINE JUNIOR, 2019, p. 219, nota 18). , cuja expressão no campo da discussão sobre a política descamba nos Debates sobre a Derivação do Estado (CALDAS, 2015______. Teoria da derivação do estado e do direito. São Paulo: Outras Expressões/Dobra Universitária, 2015.) e que também é bastante próxima da conhecida Nova Crítica do Valor (NASCIMENTO, 2015NASCIMENTO, Joelton. Anticapitalismo para o século XXI: um breve panorama da nova crítica do valor. Sinal de menos, [s. l.], ano 7, n. 11, v. 1, p. 23-50, 2015.). Em suma, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo não se trata de um manual enciclopédico que deve ser aderido cegamente, mas sim de um esforço seminal, uma empreitada crítica aberta e inesgotada que deve ser recepcionada criativamente pelas pesquisadoras e pesquisadores que se aproximam do fenômeno jurídico. Nesse sentido, a presente exposição pretende inserir-se dentro dessa tessitura porosa e incompleta do projeto fragmentariamente vislumbrado pelo marxista soviético.

Reconhecida a relevância e a capacidade instigadora da obra de Pachukanis, o presente trabalho tem, justamente, o escopo de apresentar uma interpretação da Teoria Geral do Direito e Marxismo mediante três temas que serão discutidas nas seguintes seções: 1) a apreensão feita por Pachukanis do método de Marx e sua aplicação na teoria geral do direito; 2) uma proposta de focar a aproximação que Pachukanis faz da forma jurídica com a forma valor, em detrimento do que, na teoria anglo-saxã15 15 Ao pesquisarmos a origem dessa conceituação da teoria pachukaniana como parte integrante da Commodity-exchange theory of law, a mais antiga referência que encontramos é datada em 1949 (FULLER, 1949, p. 1159), mas, nela, já se aborda o nome como algo comum e já corriqueiramente utilizado (“In this short book, Pashukanis expounds with clarity and coherence an ingenious development of Marxist theory that has been called the ‘Commodity Exchange Theory of Law’”). Também encontramos o uso desse termo em textos russos, como “меновая теория права” (Cf. PROTOPOPOV, 2007), todavia não sabemos até que ponto se trata de uma conceituação originariamente russa, ou se se tem um reflexo da interpretação dos autores de língua inglesa. O que nós sabemos, a partir de uma breve pesquisa das palavras utilizadas por Pachukanis nas coletâneas Избранные Произведения по Общей Теории Права и Государства (PACHUKANIS, 1980b) e Selected Writings on Marxism and Law (PACHUKANIS, 1980a), é que, no que foi pesquisado, Pachukanis não utiliza tais termos para descrever sua própria teoria. , ficou conhecido como “teoria jurídica da troca de mercadorias [commodity-exchange theory of law]”; e 3) como decorrência do segundo ponto, apresentar que há, em Pachukanis, a consideração da existência de formas de expressão (ou aparentes) da forma jurídica, como as leis e as decisões judiciais, que assumem, em relação à forma essencial do direito, o papel análogo do valor de troca em relação ao valor.

Os últimos dois pontos, conjugados, hão de nos ajudar a rebater dois tipos de críticas comumente dirigidas a Pachukanis: a de que sua teoria não pode se aplicar para os ramos do direito que não estão imediatamente ligados à circulação de mercadorias e a de que sua obra não dá nenhum caminho ao estudo das normas jurídicas.

2. Método da crítica da economia política e método da crítica ao direito

Como já se asseverou, uma das principais distinções da teoria do direito elaborada por Pachukanis consiste em sua precisa e sofisticada apreensão do método utilizado por Marx em sua crítica da economia política. Não pretendemos abordar todas as possíveis imbricações entre o método de Pachukanis e o de Marx16 16 Entre outras aproximações dessa temática do método transferida à discussão do direito, podemos destacar: KASHIURA JR., 2011, NAVES, 1996, p. 29-44, e PAZELLO, 2014a, p. 131-141. : iremos nos contentar em apresentar dois pontos breves - o escopo de pesquisa do jurista soviético, em contraposição ao que ele mesmo conceituou como definições “escolásticas” do direito e o início metodológico de sua exposição investigativa, partindo da categoria sujeito de direito.

Sobre os objetivos de Pachukanis com sua empreitada teórica, é recorrente, nos textos, citarem-se a forma como o autor, em seu prefácio, reconhece como correta a acepção de Pyotr Ivanovitch Stutchka, segundo a qual Pachukanis empreende uma aproximação da forma direito e da forma mercadoria (PACHUKANIS, 1988______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988., p. 8). Todavia, quiçá mais profícua seja uma aproximação a partir da negatividade das já aludidas definições escolásticas do direito, discutidas na introdução da Teoria Geral do Direito e Marxismo.

Para o autor aqui analisado, o conceito de direito "não pode ser exaustivamente compreendido por uma definição que segue as regras da lógica escolástica per genus et differentia specifica", cujo

principal defeito [...] está em sua incapacidade de abarcar o conceito de direito em seu movimento real, revelando todas as inter-relações e ligações internas. Em vez de colocar o conceito de direito em sua forma mais acabada e precisa e, daí, mostrar a importância desse conceito para determinada época histórica, nos apresenta de modo puramente verbal um lugar-comum sobre a “regulamentação autoritária externa”, que, todavia, serve bem para qualquer época e estágio do desenvolvimento da sociedade humana. Uma analogia perfeita disso em economia política é representada pelas tentativas de dar uma definição ao conceito de economia que abarcasse todas as épocas históricas. Se a teoria da economia consistisse toda ela em tais generalizações escolásticas improdutivas, dificilmente ela mereceria ser chamada de ciência (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a. e PACHUKANIS, 1988, p. 22-23).

Destarte, seu modelo teórico refuta qualquer possibilidade de construir o direito a partir de definições a-históricas, que podem ser distribuídas para todos os momentos da humanidade: os conceitos jurídicos fundamentais nascem dentro de um rol de relações sociais específicas e, só aí, passam por seu completo florescimento. Por isso, sua aproximação ao direito tem data histórica: quando os conceitos jurídicos já estão plenamente desenvolvidos17 17 “Marx, como se sabe, inicia suas pesquisas não pela reflexão sobre a economia em geral, mas por uma análise da mercadoria e do valor. Isso porque a economia, como uma esfera específica das relações, diferencia-se quando a troca entra em cena. Enquanto estiverem ausentes as relações de valor, a atividade econômica dificilmente poderá se separar das demais funções vitais com as quais forma um todo sintético” (PACHUKANIS, 2017a e PACHUKANIS, 1988, p. 23). .

Assim, conecta-se o desenvolvimento desses conceitos fundamentais com o desenvolvimento histórico da sociedade burguesa18 18 "O desenvolvimento dialético dos conceitos jurídicos fundamentais não apenas nos oferece a forma do direito em seu aspecto mais exposto e dissecado, mas, ainda, reflete o processo de desenvolvimento histórico real, que não é outra coisa senão o processo de desenvolvimento da sociedade burguesa." (PACHUKANIS, 2017a e PACHUKANIS, 1988, p. 25). (quando essas definições assumem o maior grau de independência e completude19 19 Diz Pachukanis (2017a e 1988, p. 24), que o direito "não existe senão em opostos: direito objetivo e direito subjetivo, direito público e direito privado etc.", mas "só a sociedade burguesa capitalista cria todas as condições necessárias para que o momento jurídico alcance plena determinação nas relações sociais". Por exemplo: na Europa medieval “todas as oposições mencionadas estão fundidas em um todo indissociável. Não há fronteira entre o direito como norma objetiva e o direito como justificação social. A norma de caráter geral não se distingue de sua aplicação concreta; consequentemente, isso acaba por confundir as ações do juiz e do legislador", falta "a oposição tão característica da época burguesa entre o indivíduo como pessoa natural e o indivíduo como membro da comunidade política". ). Não se tenta, em vão, considera-los elementos eternos e força-los dentro dos esquemas das sociedades do passado. Da mesma forma como Marx desmascara os autores que tentavam transformar os conceitos da economia política em fatos perenes20 20 Como expressa genialmente Marx, dinheiro e mercadoria não podem ser definidos pura e abstratamente como capital. Para o serem, devem estar situados dentro de um contexto histórico e um emaranhado de relações sociais. "Dinheiro e mercadoria, desde o princípio, são tão pouco capital quanto os meios de produção e de subsistência. Eles requerem sua transformação em capital. Mas essa transformação mesma só pode realizar-se em determinadas circunstâncias, que se reduzem ao seguinte: duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias têm de defrontar-se e entrar em contato; de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que se propõem a valorizar a soma-valor que possuem mediante compra de força de trabalho alheia: do outro, trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, portanto, vendedores de trabalho. Trabalhadores livres no duplo sentido, porque não pertencem diretamente aos meios de produção, como os escravos, os servos etc., nem os meios de produção lhes pertencem, como, por exemplo, o camponês economicamente autônomo etc., estando, pelo contrário, livres, soltos e desprovidos deles. Com essa polarização do mercado estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista. A relação-capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho" (MARX, 1996b, p. 340). Portanto, o capital é, afinal de contas, “uma relação social entre pessoas intermediada por coisas” (MARX, 1996b, p. 384). , Pachukanis busca discernir o verdadeiro caráter do jurídico, enquanto uma relação social historicamente situada. Sua indagação principal talvez seja esta: “seria possível entender o direito como uma relação social naquele mesmo sentido que Marx usou ao chamar o capital de relação social?” (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a.)21 21 Na edição antiga: “poderá o direito ser concebido como uma relação social no mesmo sentido em que Marx chamou ao Capital uma relação social?” (PACHUKANIS, 1988, p. 38) . Portanto, em seu esboço, Pachukanis não tem nenhuma pretensão em definir o direito em um par de parágrafos - como o fez, efetivamente, Stutchka22 22 Tal foi a tentativa empreendida por Stutchka (STUCKA, 1988, p. 16): “o direito é um sistema (ou ordenamento) de relações sociais correspondente aos interesses da classe dominante e tutelado pela força organizada desta classe”. Certamente, no decorrer dessa mesma obra, o jurista letão realizará um novo excurso pela análise do direito, definindo-o como relações sociais com formas concretas e abstratas. Esse desenvolvimento será mais positivamente avaliado por Pachukanis. , o que, inclusive, fez com que o autor de Teoria geral do direito e marxismo o repreendesse23 23 “O camarada P. I. Stutchka, a nosso ver, colocou de modo muito acertado o problema do direito como sendo um problema das relações sociais. Mas, em vez de começar a buscar objetividades sociais específicas, voltou-se para a definição formal habitual, ainda que limitada por questões de classe” (PACHUKANIS, 2017a). A tradução mais recente utiliza o verbo возвращаться [vozvraschat’sya] com o sentido de “voltar-se”, o que, apesar de ser um sentido possível, cremos que não indica o sentido de “voltar” ou “retornar” também possível de se inferir com esse termo e que, pelo contexto, aplica-se às intenções de Pachukanis na oportunidade de criticar Stutchka por regressar à forma habitual de ler o direito. Logo, aqui a edição anterior parece acertar ao expressar que o jurista letão “regressou à determinação formal habitual” (PACHUKANIS, 1988, p. 46). -, mas de situar historicamente o desenvolvimento dos conceitos fundamentais do direito24 24 “Seria possível uma análise das definições fundamentais da forma jurídica [правовой формы] da mesma forma como, na economia política, nós temos uma análise das definições mais gerais e abstratas da forma da mercadoria [формы товара] ou da forma do valor?” (PACHUKANIS, 1980b, p. 44, tradução nossa). Na edição da editora Acadêmica (note-se que, nela, há um erro de digitação: em vez de ‘forma mercadoria’, escreveu-se ‘forma mercado’): PACHUKANIS, 1988, p. 17. Esse problema é resolvido na edição da Boitempo: “Seria possível uma análise das definições fundamentais da forma jurídica do mesmo modo que em economia política nós temos a análise das definições fundamentais e mais gerais da forma da mercadoria e da forma do valor?” (PACHUKANIS, 2017a). em uma série de relações que, enfim, recebem, de forma mais desenvolvida e pura, a forma jurídica. Para tanto, seguirá fielmente o excurso feito por Marx na análise da economia política.

Por isso, adota o “princípio metodológico fundamental que Marx desenvolve na sua Introdução à crítica da economia política, que se exprime em dois ‘movimentos’: aquele que vai do abstrato ao concreto, e aquele que vai do simples ao complexo” (NAVES, 1996NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. Campinas: Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Doutorado), 1996., p. 31). Ou, se quisermos adaptar tais considerações ao vocabulário que pretendemos empregar, conjuga-se o movimento, horizontal, de passagem do abstrato ao concreto e o, vertical, de passagem da aparência à essência25 25 “A categoria da totalidade perde o caráter dialético se é entendida apenas horizontalmente, como relação das partes e do todo, e se se desprezam os seus outros caracteres orgânicos; a sua dimensão ‘genético-dinâmica’ (criação do todo e a unidade das contradições) e a sua dimensão ‘vertical’, que é a dialética do fenômeno e da essência” (KOSIK, 1976, p. 63). . Em decorrência disso, Pachukanis (1988______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988., p. 35), em suas considerações metodológicas, afirma que se deve “começar pela análise da forma jurídica em seu aspecto mais abstrato e puro e passar, depois, pelo caminho de uma gradual complexidade até a concretização histórica [ao historicamente concreto - к исторически конкретному]”. Assim, seu itinerário propriamente dito de análise da forma jurídica começa dentro de um momento histórico específico (quando o direito chega em seu apogeu e há o desenvolvimento de “um sistema de conceitos gerais”) e com o uso dos conceitos mais simples e abstratos do jurídico, para sua posterior complexificação e ligação com a concretude total (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a., e PACHUKANIS, 1988, p. 35-36).

Consequentemente, parece-nos que, depois de sua introdução e suas considerações metodológicas (capítulo I), Pachukanis só começa, em sentido estrito, sua proposta a partir do capítulo IV (Mercadoria e Sujeito), quando, terminadas as críticas às escolas psicologistas (Direito e Ideologia, capítulo II) e normativistas (Relação e norma, capítulo III), enfim apresenta o ponto de partida de sua investigação: o sujeito de direito26 26 “Toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica, o elemento mais simples e indivisível, que não pode mais ser decomposto. É por ele, então, que começaremos nossa análise.” (PACHUKANIS, 2017a e PACHUKANIS, 1988, p. 68). . É aqui que ele empreenderá a apreensão concreta da forma jurídica e tentará demonstrar a já mencionada relação indissolúvel entre direito e sociedade burguesa. Na próxima seção, pretendemos nos aproximar desse processo e argumentar que, desse capítulo, sai uma proposta instigante de relacionamento entre a forma jurídica e a forma valor.

3. Direito e valor

Repetindo o que já se afirmou anteriormente, o sujeito de direito é o ponto de partida do excurso teórico pachukaniano por ser a categoria jurídica mais simples, cujo desenvolvimento permite descobrir a totalidade da forma jurídica, em toda a sua riqueza de significações. Seu papel na crítica ao direito é análogo ao da mercadoria na crítica da economia política.

Para apresentar o elemento do sujeito, Pachukanis faz direta referência ao seu principal inspirador intelectual: “para Marx [a] análise da forma do sujeito tem origem imediata na análise da forma mercadoria” (PACHUKANIS, 1988______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988., p. 70). Ao leitor já situado na discussão da crítica jurídica pachukaniana é evidente que tal consideração deriva da interpretação do tratamento dado por Marx ao sujeito no capítulo II d’O Capital27 27 “As mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. As mercadorias são coisas e, consequentemente, não opõem resistência ao homem. Se elas não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar de violência, em outras palavras, toma-las. Para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas mediante um ato de vontade comum a ambo, se aproprie da mercadoria alheia enquanto se aliena da própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma. As pessoas aqui só existem, reciprocamente, como representantes de mercadorias e, por isso, como possuidores de mercadorias” (MARX, 1996a, p. 209-210). . Em poucas palavras, a relação de troca precisa que, primeiro, os produtos do trabalho se transformem em mercadorias e, também, que as pessoas se transmutem em sujeitos de direito, cuja vontade livre, enfim, permite o intercâmbio dessas mercadorias.

Aqui, temos o encontro dessa relação mercantil com a relação jurídica mediante o instrumento do contrato: “Na realidade e historicamente, ao contrário, o conceito do ato jurídico tem sua origem no contrato”: “é para o ato de troca que convergem os momentos essenciais tanto da economia política como do direito” (PACHUKANIS, 1988______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988., p. 78-79). Ou seja, a fundamentalidade do jurídico para o modo de produção capitalista pode resumir-se às seguintes palavras: “a mediação jurídica insere-se nas relações sociais, portanto, como um fator fundamental do circuito de trocas, pois o valor de troca somente se realiza mediante um ato de vontade do proprietários/donos de mercadorias” (SOARES, 2009SOARES, Moisés Alves. Pachukanis e os dilemas da transição. Revista Discenso, Florianópolis, n. 1, p. 61-80, 2009., p. 64-65). Análogas, então, também são as relações de troca e as relações jurídicas: “A relação jurídica entre os sujeitos é apenas outro lado das relações entre os produtos do trabalho tornados mercadoria.”28 28 Aqui, a tradução de 1988 da Acadêmica mostra-se incapaz de expressar o significado do texto: “a relação jurídica entre as diferentes unidades econômicas não é mais o reverso da relação entre os produtos tornados mercadorias” [PACHUKANIS, 1988, p. 47]. Para cotejo, seguem traduções da edição portuguesa: “a relação jurídica entre os sujeitos é apenas o reverso da relação entre os produtos de trabalho tornados mercadorias” (PACHUKANIS, 1977, p. 95), inglesa: “The legal relationship between subjects is only the other side of the relation between the products of labour which have become commodities” (PACHUKANIS, 1980a, p. 62) e o original russo: “Юридическое отношение между субъектами есть только другая сторона отношения между продуктами труда, ставшими товарами” (PACHUKANIS, 1980b, p. 78). (PACHUKANIS, 2017a e PACHUKANIS, 1980b, p. 78).

Logo, a existência de tais elementos permite a profusão e a generalização dessas relações de troca e das relações jurídicas. E, cabe constatar, sem esse processo de generalização das trocas e da transformação de quase todo produto humano em mercadoria, não seria possível discernir a existência mesma da forma valor (haveria, aí, apenas um surgimento aleatório de um valor de troca, mas seria impossível discernir a existência da forma valor enquanto magnitude). Rigorosamente falando, não há nem mesmo uma produção de mercadorias, em seu sentido estrito29 29 Comentando sobre o escambo, Carcanholo (2011, p. 47) diz: “as relações mercantis ainda não existem; ou só existem como potenciais ou, no máximo, como embrionárias. Poderíamos [...] identificar essa troca como um intercâmbio pré-mercantil de presentes. Nesta etapa, o objetivo do produtor é a produção de valores de uso, e só às vezes, excepcionalmente, o excedente produzido, ou parte dele, chega a ser trocado. Não existe, portanto, intercâmbio sistemático de mercadorias; sua ocorrência é eventual, casual, fortuita. As relações mercantis não se encontram desenvolvidas, tampouco a mercadoria. Na realidade, o que existe não é ainda uma verdadeira mercadoria com todas as suas determinações, é ainda um embrião de mercadoria”. . Só quando as trocas deixam de ser acidentais é que a forma valor é captável pela racionalidade humana. A mesma consideração pode ser feita no que concerne ao direito: Pachukanis chega a considerar o litígio e o tribunal como primeiros espaços em que aparece a forma jurídica30 30 “É justamente o litígio, o conflito de interesses, que traz à vida a forma do direito e a superestrutura jurídica”, porque é nesse litígio que “os sujeitos econômicos aparecem já como partes, i.e., como participantes da superestrutura jurídica” (PACHUKANIS, 2017a, e PACHUKANIS, 1988, p. 54). . Mas, se “o direito, historicamente, começou com o litígio”, é só mais tarde que ele “abarcou as relações puramente econômicas e [ou] factuais preexistentes [предшествующие чисто экономические или фактические отношения]”, isto é, só depois a forma sujeito de direito generaliza-se e as relações econômicas passam a se pautar na existência de sujeitos iguais que trocam equivalências (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a. e PACHUKANIS, 1988, p. 54). Tal como a profusão de relações mercantis permite discernir o valor como categoria geral, a profusão do estatuto de sujeito de direito e das relações jurídicas permite o discernimento da forma jurídica como categoria geral31 31 “Somente em situações de economia mercantil nasce a forma jurídica abstrata, ou seja, a capacidade geral de possuir direitos [a capacidade de possuir direitos em geral - способность иметь право вообще] se separa das pretensões jurídicas concretas”. Se à troca mercantil precedeu “atos de troca ocasionais e outras formas de troca” (note-se que a edição da Acadêmica introduz o termo “primitivo”, inexistente no argumento de Pachukanis), o sujeito jurídico também teve suas formas precedentes. Na Idade Média, “a ideia de um status jurídico formal comum a todas as pessoas, a todos os cidadãos, estava completamente ausente”, tal aspecto só se desenvolve com a repetição regular das relações jurídicas, tal como “a repetição regular dos atos de troca constitui o valor na qualidade de categoria em geral” (PACHUKANIS, 2017a e PACHUKANIS, 1988, p. 76-77) .

Assim, é possível concluir a conexão fundamental feita por Pachukanis que almejamos aqui enfatizar: a relação entre valor e direito. Em uma frase que consideramos seminal, afirma-se: “Ao mesmo tempo que o produto do trabalho adquire a propriedade de mercadoria e torna-se portador de valor, o ser humano adquire a propriedade de sujeito jurídico e torna-se portador de direito”32 32 Nesse caso específico, optamos pela nossa tradução, porque ela segue a completa repetição sintática expressa no texto original: “как продукт труда приобретает свойство товара и становится носителем стоимости, человек приобретает свойство юридического субъекта и становится носителем права” (PACHUKANIS, 1980b, p. 106), fato que não é completamente realizado nem pela tradução inglesa (“simultaneously with the product of labour assuming the quality of a commodity and becoming the bearer of value, man assumes the quality of a legal subject and becomes the bearer of a legal right”, PACHUKANIS, 1980a, p. 76), nem pela edição portuguesa (“ao mesmo tempo que o produto do trabalho reveste as propriedades da mercadoria e se torna portador de valor, o homem se torna sujeito jurídico e portador de direitos”, PACHUKANIS, 1977, p. 136), nem pelas edições brasileiras que utilizamos, seja a de 1988 (PACHUKANIS, 1988, p. 71) ou a da Boitempo: “Por isso, ao mesmo tempo que um produto do trabalho adquire propriedade de mercadoria e se torna o portador de um valor, o homem adquire um valor de sujeito de direito e se torna portador de direitos”. (PACHUKANIS, 1980b______. Общая теория права и марксизм. Em: ______. Избранные Произведения по Общей Теории Права и Государства. Moscou: Nauka, 1980b., p. 106, tradução nossa). Aqui, é sintomático que Pachukanis apresente um processo de abstração concomitante e que repete duas duplas de sentenças idênticas, trocando apenas as palavras “produto do trabalho”, “mercadoria” e “valor” por, respectivamente, “ser humano”, “sujeito jurídico” e “direito”. Destarte, Pachukanis discerne “duas formas fundamentais”, forma jurídica e forma valor, que “estão, ao mesmo tempo, intimamente ligadas e condicionam-se mutuamente” (PACHUKANIS, 2017a e PACHUKANIS, 1988, p. 71-72). Sem entrar em detalhes acerca dos outros excertos em que Pachukanis relaciona essas duas formas33 33 Aponta-se uma “forma duplamente enigmática” que reveste as relações de produção: “relações entre coisas, que são ao mesmo tempo mercadorias”, por um lado, e “relações de vontade entre unidades independentes e iguais umas perante as outras” (sujeitos de direito), por outro. “Ao lado da propriedade mística do valor aparece algo não menos enigmático: o direito”. A relação unitária reveste-se de dois aspectos “o econômico e o jurídico” (PACHUKANIS, 2017a e PACHUKANIS, 1988, p. 75). oriundas da profusão da circulação de mercadorias34 34 “Tanto o valor como o direito à propriedade foram engendrados por um único e mesmo fenômeno: a circulação de produtos tornados mercadorias. A propriedade em sentido jurídico nasce não porque deu na cabeça das pessoas atribuírem-se reciprocamente tal qualidade jurídica, mas porque precisavam trocar mercadorias, o que só era possível apresentando-se como proprietários. ‘O poder ilimitado de dispor das coisas’ é somente um reflexo da circulação ilimitada de mercadorias” (PACHUKANIS, 2017a e PACHUKANIS, 1988, p. 82). , pode-se dizer que o direito aparece como uma expectativa de equivalência que tem o sujeito ao firmar relações jurídicas.

Assim, com o decorrer do desenvolvimento das trocas de mercadorias e também das relações jurídicas que lhe são inerentes, tem-se a profusão dessas relações jurídicas para âmbitos além da imediata troca de produtos35 35 Pachukanis (1980b, p. 36, tradução nossa, grifos nossos) chega a considerar que a vitória do princípio do direito “não é nem só nem tanto um processo ideológico [...], quanto um processo real de juridização [юридизации] das relações humanas, que opera depois do desenvolvimento da economia monetário-mercantil [...] e que envolvem mudanças profundas e detalhadas de caráter objetivo". Na edição da Boitempo, o termo “juridização” foi transformado em “um processo real em que as relações humanas tornam-se jurídicas” (PACHUKANIS, 2017a). e, em especial, transforma-se a força de trabalho humana em mais uma mercadoria no grande círculo de valorização do valor: nessa esteira, “toda uma série de outras relações sociais assume/se reveste de/toma [принимает] a forma jurídica” (PACHUKANIS, 1980b______. Общая теория права и марксизм. Em: ______. Избранные Произведения по Общей Теории Права и Государства. Moscou: Nauka, 1980b., p. 55-56, tradução nossa). Consequentemente, as relações jurídicas podem ser conceituadas como relações entre sujeitos de direito, abstratos, que trocam equivalências entre si, dentro de um contexto histórico de subsunção real do trabalho ao capital36 36 Cabe citar mais especificamente o raciocínio de Naves: “o que é o específico do direito, seu elemento irredutível, é a equivalência subjetiva como forma abstrata e universal do indivíduo autônomo quando o trabalho é subsumido realmente ao capital” (NAVES, 2014, p. 68) e “em Marx o direito é essa forma social sui generis, a forma da equivalência subjetiva autônoma”, logo se deve adotar uma “sentença resolutamente antinormativista: só há direito em uma relação de equivalência na qual os homens estão reduzidos a uma mesma unidade comum de medida em decorrência de sua subordinação real ao capital” (NAVES, 2014, p. 87). 37 37 Também se podem fazer adendos acerca do contexto de subsunção real do trabalho ao capital. Em Marx, esse processo histórico é relatado como a transição das relações de produção fundadas na manufatura (subsunção formal) à situação na qual, depois da completa separação entre trabalhador e meios de produção, com a introdução da maquinaria, os proletários não se vêm mais na possibilidade de controlar e compreender o funcionamento dos meios de produção que utilizam em seu trabalho (subsunção real). No que concerne ao direito, havia, de fato, no momento de gênese inicial da produção capitalista, relações de troca entre os indivíduos, mas elas eram imbricadas também por um forte elemento político e de coerção, o que indica a não expressão da forma jurídica em sua forma mais pura e desenvolvida. Isto é, quando “a subordinação do trabalho ao capital era apenas formal, isto é, o próprio modo de produção não possuía ainda caráter especificamente capitalista”, “a burguesia nascente precisa e emprega a força do Estado para ‘regular’ o salário, isto é, para comprimi-lo dentro dos limites convenientes à extração de mais-valia, para prolongar a jornada de trabalho e manter o próprio trabalhador num grau normal de dependência. Esse é um momento essencial da assim chamada acumulação primitiva” (MARX, 1996b, p. 359). Em sua plena determinação, o modo de produção capitalista só precisa excepcionalmente dessa coerção explícita: “A organização do processo capitalista de produção plenamente constituído quebra toda a resistência, a constante produção de uma superpopulação mantém a lei da oferta e da procura de trabalho e, portanto, o salário em trilhos adequados às necessidades de valorização do capital, e a muda coação das condições econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador. Violência extra-econômica direta é ainda, é verdade, empregada, mas apenas excepcionalmente” (MARX, 1996b, p. 358-359, grifos nossos). (NAVES, 2014______. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões/Dobra Universitária, 2014., p. 87).

Situada em uma realidade em que os trabalhadores são expropriados de seus meios de produção e, com a introdução da maquinaria, incapazes sequer de compreender o processo produtivo em sua totalidade, essa aplicação de trocas e relações equivalentes significa, na prática, a construção de circunstâncias perfeitas para a exploração do trabalho e a edificação da exploração capitalista, cuja especificidade é apresentar-se como resultado de acordos “livres”. Nas palavras do próprio Karl Marx: “Por mais que o modo de apropriação capitalista pareça ofender as leis originais da produção de mercadorias [como a troca simples de equivalentes], ele não se origina de maneira alguma da violação mas, ao contrário, da aplicação dessas leis” (MARX, 1996, p. 217-218, grifos nossos).

Destarte, a centralidade que algumas teorias de interpretação da obra pachukaniana (em especial as que adotam a nomenclatura da Commodity Exchange Theory of Law38 38 Provavelmente, o teórico que mais se apoia nessa denominação é Robert Sharlet (que, inclusive, nomeou sua tese de doutorado como Pashukanis and the Commodity Exchange Theory of Law). Em tal ponto, o autor chega a dizer que considerar as relações de produção, em um texto depois de 1927, marcaria uma “transição crucial” no pensamento de Pachukanis (BEIRNE; SHARLET, 1980, p. 18). Contudo, Márcio Bilharinho Naves mostrou nitidamente (apesar de não subscrevermos a aproximação que ele faz de Pachukanis e Althusser) que, textualmente, o autor de Teoria geral do direito e marxismo, em 1924, já havia feito considerações muito parecidas (Cf. NAVES, 1996, p. 68-70). [Teoria Jurídica da Troca de Mercadorias]) dão à troca de mercadorias, por muitas vezes, leva ao esquecimento do papel central da forma valor no discurso de Pachukanis. Assim, torna-se mais plausível considerar o jurista soviético um teórico circulacionista, que se descuida de pensar as relações de produção. Todavia, a ênfase na analogia com o valor, como forma que, em sua ânsia de autovalorizar-se enquanto devora mais-valor, molda todas as relações econômicas capitalistas - inclusive as produtivas -, não nos permite aterrissar em tais conclusões.

Cumpre indicar, a título de contextualização, que a obra de Pachukanis destaca-se também por seu pioneirismo nessa ênfase da forma-valor como uma pedra de toque para decifrar a crítica à economia política. Em raciocínio coincidente com o de Isaak Il’ytch Rubin, pode-se dizer que Pachukanis estabeleceu as bases de uma nova forma de ler o marxismo, distante tanto do marxismo-leninismo tradicional ou o marxismo da segunda internacional, de um lado, ou da tradição do marxismo ocidental, por outro. Aqui, o projeto de investigação dos dois conjuga justamente o significado heurístico de expôr a peculiaridade das formas sociais descritas por Marx n’O Capital e, em especial, dinamitar o procedimento naturalizador da forma-valor empregado pelos economistas clássicos. Dessa constatação fundamental é possível, então, discernir a artificialidade e historicidade que repousa em torno de noções como “dinheiro”, “trabalho abstrato”, “forma jurídica” e “forma política”. Logo, suas teses estão longe de ser circulacionistas ou de pretenderem reduzir a realidade à esfera da circulação; buscam, em verdade, expôr o caráter fetichista, absurdo e mistificador das relações de produção capitalistas, bem como a possibilidade de as colocar em questão, de, portanto, imaginar novas formas de gestão da vida social para além da tudo-englobadora forma do valor39 39 Nesse sentido, o ensaio no qual Negri revisita a obra de Pachukanis traz a chave heurística de pensar a forma-jurídica pachukaniana em consonância com o desenrolar da forma-valor elaborado por Isaak Rubin. "A questão do direito, enquanto questão de fetichismo, abre para o tema da 'forma do valor' em sua inteira complexidade. Então o que é 'forma'? Naquele mesmo período, Isaak Rubin, estudando O capital, redefiniu a lei do valor: para além de sua substância (trabalho) e grandeza (medida), insistia justamente em sua 'forma', isto é, a 'forma de trabalho social', invólucro geral da produção - historicamente modificável, tecnicamente componível, politicamente articulado. Ora, o conceito de 'forma jurídica' em Pachukanis corresponde ao de 'forma do valor' em Rubin" (NEGRI, 2017). Para um panorama geral e recente da obra de Rubin, situando-o como habilidoso e criativo receptor da empreitada crítica d’O Capital, Cf. DAY; GAIDO, 2017. Além disso, é essencial consultar sua obra principal disponibilizada em português: A teoria marxista do valor (RUBIN, 1987). . Posteriormente, esses esforços serão continuados, intensificados e ramificados por intelectuais associados a discussões como as sobre a Nova Leitura de Marx (ELBE, 2013ELBE, Ingo. Between Marx, marxism and marxisms: ways of reading Marx’s theory. Viewpoint Magazine, [s. l.], 21 out. 2013. Disponível em: <bit.ly/2OXMRea>. Acesso em: 16 mar. 2021.), o Debate sobre a Derivação do Estado (CALDAS, 2015______. Teoria da derivação do estado e do direito. São Paulo: Outras Expressões/Dobra Universitária, 2015.) e a Nova Crítica do Valor (NASCIMENTO, 2015NASCIMENTO, Joelton. Anticapitalismo para o século XXI: um breve panorama da nova crítica do valor. Sinal de menos, [s. l.], ano 7, n. 11, v. 1, p. 23-50, 2015.).

Regressando ao sentido mais geral do argumento apresentado por Pachukanis, indica-se que é dessa maneira de ler criticamente a forma-valor que podemos tirar a essência da forma jurídica: ela, tal como a forma valor, cria uma série de equivalências para propiciar a troca equivalente de mercadorias e a realização de acordos que também representam essa mesma equivalência. Contudo, pretendemos levar essa analogia além: acreditamos ser possível discernir, em Pachukanis, um tratamento, mesmo que breve, da aparência da forma jurídica, suas formas de expressão, que, na nossa já recorrente analogia com o valor, correspondem ao valor de troca. Pretendemos desenvolver essa temática na próxima seção.

4. Valor de troca, lei e decisão judicial

Antes de abordar a questão sugerida, cabe ressaltar que a presente indicação não é completamente inovadora: já foi abordada em outros trabalhos (PAZELLO, 2014a______. Direito insurgente e movimentos populares: o giro descolonial do poder e a crítica marxista ao direito. Curitiba: Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em Direito da Universidade Federal do Paraná, 2014a., p. 172 e PAZELLO, 2014b), os quais detêm todo o mérito de percepção dessa empreitada teórica, a qual traz a qualidade de, ao mesmo tempo, manter a crítica à forma jurídica (com um horizonte demarcadamente antijurídico, que expressa o necessário definhamento dessa forma) e possibilitar uma incursão da teoria pachukaniana para caminhos inovadores da análise das formas aparentes, como as leis e as decisões judiciais, indo além do constante repisar das mesmas considerações sobre a forma jurídica em sua forma essencial, em geral intangível para a maior parte da população.

Nosso caminho seguirá o seguinte traçado: primeiro, serão apresentados trechos nos quais Pachukanis ao menos deixa em aberta a nossa proposta aqui colocada e, imediatamente depois de sua citação, serão extraídas as impressões que se podem tirar de cada trecho.

Já no prefácio de sua terceira edição da Teoria geral do direito e marxismo, Pachukanis afirmou, para mostrar os efeitos materiais e extraideológicos do jurídico:

Desse modo, se a análise da forma-mercadoria revela o sentido histórico concreto da categoria do sujeito e expõe as bases abstratas do esquema da ideologia jurídica [expõe a base dos esquemas abstratos da ideologia jurídica - обнажает основу абстрактных схем юридической идеологии], então o processo histórico de desenvolvimento da economia mercantil-monetária e mercantil-capitalista acompanha a realização desses esquemas na forma [в виде] da superestrutura jurídica concreta. Na medida em que as relações entre as pessoas se constroem como relação de sujeitos, temos todas as condições para o desenvolvimento da superestrutura jurídica com suas leis formais, seus tribunais, seus processos, seus advogados, e assim por diante (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a. e PACHUKANIS, 1988, p. 10).

Daqui, podemos depreender, desde o início, a importante relação que traça Pachukanis entre a forma jurídica e suas manifestações, expressões, concretas no mundo exterior e, no caso, os três elementos coincidem com o que Pazello (2014b______. Os momentos da forma jurídica em Pachukanis: uma releitura de Teoria geral do direito e marxismo. Verinotio, Belo Horizonte-MG, n. 19, ano X, p. 133-143, abr. 2014b.) chama de formas aparentes do direito: a lei formal (para além de suas manifestações claramente voltadas à coerção política) e o judiciário (ou momento judicial). Se o direito, em sua forma essencial, tal como o valor, “não é imediatamente observável na realidade” (CARCANHOLO, 2011CARCANHOLO, Reinaldo (org.). Capital: essência e aparência. São Paulo: Expressão Popular, 2011., p. 42), pode-se procurar, nela, espaços que são, em geral, representações concretas dessa forma abstrata, tal como, no âmbito econômico, “a propriedade valor da mercadoria não aparece (não se expressa) por si, não aparece como tal propriedade, mas sim por meio de sua manifestação: o valor de troca” (CARCANHOLO, 2011, p. 35).

Pachukanis, em seu prefácio, vai além: chega a apresentar o tribunal e o processo judicial como os momentos que representam a realização (e, aqui, pode-se dizer que tal termo assume especialmente o significado de “materialização”40 40 No trecho em questão, Pachukanis usa a palavra реализация [realizatsiya], cuja tradução, institivamente, leva-nos a seu equivalente lusitano-tupiniquim “realização”. Seu sentido, no português, é, segundo o dicionário Michaelis, o “ato ou efeito de realizar ou realizar-se”, que, por sua vez, podem assumir vários sentidos: i) “tornar real ou efetivo”; ii) “pôr em ação ou em prática; efetuar, efetivar”; iii) “dar-se, acontecer, efetuar-se, ocorrer”; iv) “considerar como reais (os seres abstratos)”. No russo, o quarto significado (de materializar, concretizar) também pode ser discernido, dado que são listados como sinônimos de реализация termos como материализация [materialização], воплощение [encarnação, personificação] e воплощение в жизнь [encarnação na vida]. Portanto, o tribunal, segundo o que propomos, deveria ser entendido como principal “veículo de encarnação” da forma jurídica. ) da forma jurídica na vida concreta:

Eu não apenas indiquei que a gênese da forma jurídica deve procurar-se nas relações de troca, mas também destaquei aquele momento que, na minha opinião, apresenta-se como a mais completa realização da forma jurídica, em particular: o tribunal e o processo judicial (PACHUKANIS, 1980b______. Общая теория права и марксизм. Em: ______. Избранные Произведения по Общей Теории Права и Государства. Moscou: Nauka, 1980b., p. 39, tradução nossa).

Outros indícios são deixados na introdução à sua obra. Ao comentar sobre a distinção entre norma e faculdade jurídica (direito objetivo e subjetivo), diz: "Entretanto, essa dupla natureza do direito, essa decomposição em norma e faculdade jurídica, tem um significado não menos importante que, por exemplo, a decomposição da mercadoria em valor de troca [valor - стоимость] e valor de uso" (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a., [PACHUKANIS, 1980b, p. 50, tradução nossa]). Sobre esse trecho, são interessantes as seguintes observações: em primeiro lugar, o trecho em colchetes representa a nossa reprodução do texto original, nele, como se pode perceber, a contradição apresentada por Pachukanis não é entre valor de troca e valor de uso (como apresentam ambas as traduções brasileiras consultadas41 41 Segue a citação direta da tradução de 1988: “Entretanto, a dupla natureza do direito, a sua divisão, por um lado, em norma e por outro, em faculdade jurídica, tem uma significação tão importante como, por exemplo, o desdobramento da mercadoria em valor de troca e valor de uso” (PACHUKANIS, 1988, p. 24). ), mas sim valor e valor de uso42 42 Lê-se no original (reproduzimos toda a frase): “А между тем эта двойственная природа права, это распадение его на норму и правомочие имеет не менее существенное значение, чем, например, распадение товара на стоимость и потребительскую стоимость” (PACHUKANIS, 1980b, p. 50). Como se percebe, não há, aí, o uso do termo “меновая стоимость”, equivalente russo ao nosso uso do “valor de troca” em nossas traduções de Marx. Logo, a oposição é entre valor [стоимость] e valor de uso [потребительская стоимость]. . Trata-se da verdadeira oposição discernível na mercadoria segundo a teoria de Marx43 43 "O valor da mercadoria A é expresso quantitativamente por meio da permutabilidade direta da mercadoria B com a mercadoria A. [...] Em outras palavras: o valor de uma mercadoria tem expressão autônoma por meio de sua representação como 'valor de troca'. Quando no início deste capítulo, para seguir a maneira ordinária de falar, havíamos dito: A mercadoria é valor de uso e valor de troca, isso era, a rigor, falso. A mercadoria é valor de uso ou objeto de uso e 'valor'. Ela apresenta-se como esse duplo, que ela é, tão logo seu valor possua uma forma rápida de manifestação, diferente da sua forma natural, a do valor de troca, e ela jamais possui essa forma quando considerada isoladamente, porém sempre apenas na relação de valor ou de troca com uma segunda mercadoria de tipo diferente. No entanto, uma vez conhecido isso, aquela maneira de falar não causa prejuízo, mas serve como abreviação" (MARX, 1996a, p. 187, grifos nossos). . O que indica, além da correta leitura que realizou Pachukanis, a possibilidade dele destacar a diferença existente entre valor e valor de troca, conceituando este como forma aparente, de expressão, daquele. Em segundo lugar, cumpre constatar que não se pretende dizer que a norma cumpra a função de valor e o direito subjetivo a de valor de uso, mas, na verdade, que o direito só se desenvolve completamente quando suas categorias fundamentais são elaboradas e, então, torna-se evidentemente distinguível a fronteira entre direito objetivo e subjetivo44 44 Segue o raciocínio feito por Pachukanis depois do trecho citado. O direito "não existe senão em opostos: direito objetivo e direito subjetivo, direito público e direito privado etc.", mas "só a sociedade burguesa capitalista cria todas as condições necessárias para que o momento jurídico alcance plena determinação nas relações sociais.". Por exemplo: na Europa medieval “todas as oposições mencionadas estão fundidas em um todo indissociável. Não há fronteira entre o direito como norma objetiva e o direito como justificação social. A norma de caráter geral não se distingue de sua aplicação concreta; consequentemente, isso acaba por confundir as ações do juiz e do legislador", falta aqui ainda "a oposição tão característica da época burguesa entre o indivíduo como pessoa natural e o indivíduo como membro da comunidade política" (PACHUKANIS, 2017a, PACHUKANIS, 1988, p. 24). , tal como é característica fundamental da mercadoria desenvolvida desdobrar-se em valor e valor de uso.

Ainda na introdução, Pachukanis, enquanto está a argumentar sobre a importância do jurídico na troca de mercadorias, alude que este elemento não é percebido porque:

nesse caso, quando a relação econômica se realiza no mesmo momento que a jurídica, para o participante dessa relação, que é atual, na esmagadora maioria das vezes, isso se dá justamente pelo aspecto econômico; o jurídico nesse momento permanece em segundo plano [на заднем плане - no plano de trás, ao fundo] e aparece [выступает наружу - aparece para fora, exteriormente] com todas as suas definições [со всей своей определенностью - com toda a sua determinabilidade] apenas em casos especiais, excepcionais (processos, litígios jurídicos). Por outro lado, o detentor do “momento jurídico” no estágio de sua atividade em geral é membro de uma casta especial (juristas, juízes) (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a., PACHUKANIS, 1988, p. 25, [PACHUKANIS, 1980b, p. 52]).

Daqui, pode-se constatar, novamente, a possível abertura deixada por Pachukanis do momento judicial como um espaço de expressão da forma jurídica: esta só se revela claramente e exteriormente aos olhos da população no momento do litígio e do processo judicial. Mais uma vez nos parece que, em Pachukanis, não foram deixados de lado indícios de prováveis veículos de expressão da forma jurídica na realidade.

Como último trecho da introdução, citamos a primeira abordagem que faz Pachukanis acerca do direito público e as suas dificuldades de enquadramento dentro do quadro conceitual clássico do direito:

Por ora contentar-nos-emos em notar que a forma do valor se torna universal do ponto de vista de uma economia mercantil desenvolvida e que ela reveste ainda, a par das formas primárias, diversas formas de expressão derivadas e artificiais [и принимает, наряду с первичными, ряд производных и мнимых выражений - e reveste/assume, em paralelo com as {formas} primárias, uma série de expressões derivadas e ilusórias45 45 Nossa tradução da presente sentença nos apresenta algumas dificuldades, que não podemos detalhar agora. Cabe, aqui, identificar que não há o uso, no original, do termo formas de expressão (формы выражении). Se assim estivesse redigido, muito fortaleceria a nossa hipótese acerca da existência de uma forma aparente do direito na teoria de Pachukanis. Contudo, não deixa de ser sintomático seu uso do genitivo plural de выражение [expressão], que reforça nossa teoria de que há espaços de expressão da forma jurídica que, por sua vez, nem sempre exteriorizam e esgotam sua essência: a troca de equivalências. A tradução mais recente consultada, por sua vez, simplifica o complexo verbo принимать como “reunir” (Cf. PACHUKANIS, 2017a). ]: surgindo, por exemplo, também sob o aspecto do preço de objetos que não são produtos do trabalho (terra), ou que não têm absolutamente nada a ver com o processo de produção (por exemplo, segredos militares comprados por um espião). Contudo, isso não impede o fato de o valor, como categoria econômica, ser concebido apenas sob o ponto de vista do dispêndio de trabalho socialmente necessário à fabricação de um dado produto. De igual modo, o universalismo da forma jurídica não deve impedir-nos de investigar as relações que constituem o seu fundamento real. Esperamos poder demonstrar mais adiante que estes fundamentos não são essas relações que se denominam relações de direito público (PACHUKANIS, 1988______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988., p. 26, [PACHUKANIS, 1980b, p. 52]).

Aqui, Pachukanis destaca as expressões artificiais do valor, que são, justamente, aqueles preços (valores de troca) de objetos que não são produtos do trabalho. Para o jurista soviético, é possível discernir, no próprio direito, essas expressões da forma jurídica que saem da regra geral, mas que, nem por isso, deixam de romper a validade da teoria em sentido genérico, da mesma forma que, podemos acrescentar, as variações no preço não expressam necessariamente a mudança da essência do valor, mas podem ser apenas manifestação da contradição entre essência e aparência46 46 Seguimos Carcanholo (2011, p. 53): “a expressão relativa do valor (o valor relativo) não é totalmente adequada para expressar as verdadeiras modificações da magnitude do valor. [...] Essa disparidade entre o movimento da magnitude do valor e o do de sua expressão revela, em concreto, para esse caso particular, a contradição que existe entre a essência e a sua manifestação (a aparência)”. .

Passando ao capítulo Relação e norma, nosso autor faz outras considerações que reforçam a nossa impressão aqui esboçada, ao abordar os raciocínios que fazem os positivistas acerca da precedência da norma jurídica à relação:

Contudo, teoricamente, essa convicção de que o sujeito e a relação jurídica não existem fora da norma objetiva é tão errônea quanto a convicção de que o valor não existe e não é determinado a não ser pela oferta e pela procura, uma vez que, empiricamente, se manifesta apenas na flutuação de preço (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a., PACHUKANIS, 1988, p. 51).

Ora, aqui, fica evidente a consideração “de que o sujeito e a relação jurídica estão para a norma assim como o valor está para a oferta e a procura”, o que indica “uma formulação de analogias que parte dos critérios de essência (relação jurídica e valor) e aparência (norma jurídica e lei da oferta e da procura)” (PAZELLO, 2014b______. Os momentos da forma jurídica em Pachukanis: uma releitura de Teoria geral do direito e marxismo. Verinotio, Belo Horizonte-MG, n. 19, ano X, p. 133-143, abr. 2014b., p. 138). Além disso, mais uma vez se dá a entender que a forma essencial do direito não se manifesta empiricamente por si mesma, mas sim através de suas instituições, normas, decisões, etc. Repete-se, também, a mesma consideração sobre a possibilidade do preço não seguir necessariamente os pressupostos do valor e, novamente, diz-se que tal acontecimento não invalida a sua reflexão: o preço, definido pela lei da oferta e da procura, é apenas um veículo de manifestação empírica do valor e, portanto, considerá-lo como o único elemento capaz de proferir uma teoria da riqueza na sociedade capitalista é considerar o valor enquanto mera “aparência sem substância” (MARX, 1996aMARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. t. I. Livro Primeiro. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996a., p. 206).

Por fim - mas sem ter esgotado todas as possíveis referências -, podemos citar o exemplo da forma como Pachukanis aborda o direito penal em seu capítulo sobre as reparações diante do cenário de violações do direito. Para ele, apenas são jurídicas, “juridizadas”47 47 Uma vez que o direito mesmo é uma relação social, diz-nos Pachukanis (1988, p. 42, grifos nossos), ele “pode comunicar-se mais ou menos a outras relações sociais ou transferir para elas a sua forma”. Ou, conforme a mais recente tradução, torna-se “possível entender por que toda uma série de outras relações sociais recebe a forma jurídica” (PACHUKANIS, 2017a). É nessa comunicação que, ao que entendemos, gesta-se o que Pachukanis (1980b, p. 36, tradução nossa, grifos nossos) conceituou como “um processo real de juridização [юридизации] das relações humanas”. , as relações sociais aqui representadas quando estas são regidas pelo princípio da equivalência. Portanto, diz nitidamente que “o processo penal, como forma jurídica, é indissociável da figura da vítima, que exige ‘reparação’ e, consequentemente, é indissociável da forma mais geral do contrato”. Sem essa forma do contrato, “você privará o processo penal de toda a sua 'alma jurídica'”. É esse momento de equivalência que constitui o momento caracterizador da especificidade do jurídico (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a., PACHUKANIS, 1988, p. 127). Consequentemente, as relações que não são equivalentes (como não o são, por exemplo, as fundadas na coerção para a supremacia da classe dominante), representam-se como fecundadas pela forma política:

Quanto mais aguda e tensa for essa luta [de classes], mais difícil se tornará exercer o domínio de classe na forma do direito. Nesse caso, o lugar do tribunal “imparcial” com suas garantias é ocupado pela organização da violência de classe direta, a qual em suas ações se orienta apenas por considerações de conveniência política (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a., PACHUKANIS, 1988, p. 126).

Daqui, tiramos a conclusão de que nem todas as relações construídas em âmbitos que, a princípio, são espaços de expressão do direito revestem-se da forma jurídica, tal como não se deve esperar que a expressão monetária do valor (o preço) seja sempre um fiel espelho da forma valor e da equivalência que lhe é inerente. Por outro lado, as formas de expressão são inconcebíveis sem a existência da forma social generalizada a ela correspondente e, por isso, não podem nunca se afastar completamente do âmago constitutivo das relações repetidas incessantemente na sociedade mercantil: as relações de equivalência decorrentes da troca de mercadorias.

5. Considerações finais

Com o presente trabalho, cremos ter apresentado, ao menos, uma possibilidade de interpretação e desenvolvimento da crítica pachukaniana ao direito, considerando que há, em seu texto, pistas para abordar as normas e as decisões judiciais como formas aparentes do direito, que expressam a relação de sujeitos equivalentes que trocam mercadorias - sua essência.

Além de, com isso, permitir-se uma contribuição (incompleta, é certo) para a discussão teórica acerca da realização de um escrutínio pachukaniano das leis e do momento judicial, temos, também, a possibilidade de questionar e pôr em cheque duas invectivas feitas à teoria de Pachukanis.

A primeira é a de que a teoria do soviético não seria aplicável para os ramos do direito afastados do direito privado48 48 “No es posible reservar el nombre ‘derecho’ - o forma jurídica - exclusivamente para el derecho civil, y mucho menos hacer, como hace Pashukanis, una reducción del derecho al derecho civil” (CORREAS, 1983, p. 24). . Conforme já apresentamos, acreditamos que, em Pachukanis, há o reconhecimento de que o processo de juridização da realidade expande-se para todos os âmbitos da vida social e, inclusive, espreita-se para áreas como, por exemplo, o direito público, quando se ressaltar a importância do formalismo, da segurança jurídica e da equivalência, aspectos ligados essencialmente à forma jurídica.

Ou seja, a dominação de classe (expressa na existência do Estado) tenta revestir-se de direito, reproduzir suas garantias de troca de equivalências e igualdade entre as partes, mas, no final, temos construções jurídicas que soam contraditórias e artificiais, sem o mesmo nível de coerência interna que podemos encontrar no âmbito do direito privado. Destarte, nem sempre as questões de direito público tratam de indivíduos que trocam mercadorias, mas seus procedimentos são “juridizados”: cada ato judicial, cada intervenção estatal tentam revestir-se de forma jurídica quando almejam efetivar princípios fundamentais à troca de equivalências, como o da segurança jurídica e o da liberdade da vontade. Contudo, não se deve olvidar da artificialidade dessa construção, uma vez que é muito mais importante, na análise do Estado, constatar sua “força extra-judicial, extra-jurídica e extra-legal”, “que se orienta para a defesa da dominação de classe por todos os meios estranhos a qualquer forma jurídica” (PACHUKANIS, 2009______. A teoria marxista do direito e a construção do socialismo. Em: NAVES, Márcio Bilharinho (org.). O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. Campinas-SP: Unicamp, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2009., p. 148).

A segunda é a de que “a norma, como momento ativo do fenômeno jurídico, como reconhecimento da relação social, não aparece nessa construção do jurídico” (CORREAS, 1983CORREAS, Óscar. “El derecho como ‘forma’ social”. Em: ______. Ideología jurídica. Puebla: Universidad Autónoma de Puebla, 1983, p. 9-39., p. 20, tradução nossa). Na verdade, acreditamos que, em Pachukanis, a norma jurídica ocupa o seu verdadeiro lugar: é um espaço de manifestação do direito que, ocasionalmente, pode expressar tanto a forma jurídica, quanto deformações de coerção política associadas a uma correlação de forças específica. Destarte, é possível, com base em Pachukanis, estudar as normas jurídicas e, nelas, identificar quando estas expressam a equivalência (que, a longo prazo, sempre significará a derrota e exploração das classes trabalhadoras, mas, a curto prazo, pode servir de frágil proteção aos desmandos das classes possuidoras49 49 Como exemplo disso, Pachukanis cita a defesa que Lenin fez da luta por liberdade formal dos Estados sob o jugo do neocolonialismo: “Lênin compreendeu o que seus oponentes deixaram de entender: que a reivindicação ‘abstrata’, ‘negativa’ de direitos formais iguais era, em uma dada conjuntura histórica, simultaneamente uma divisa revolucionária e revolucionada [a revolutionary and revolutionizing slogan], bem como o melhor método de fortalecimento da solidariedade de classe do proletariado e de protegê-lo da contaminação do egoísmo nacional-burguês” (PACHUKANIS, 2018, p. 1928 e PASHUKANIS, 1980c, p. 159). Para uma mais aprofundada reflexão acerca da conjugação dos táticos do direito com um horizonte político resolutamente antijurídico, Cf. PAZELLO, 2014a. ) e quando expressam o interesse político de alguma classe (que pode ser por parte da burguesia, para conter a organização do proletariado ou aumentar o ritmo da exploração, ou pelo próprio proletariado, que subverte o formalismo jurídico com a dinâmica da ação política da classe oprimida). Aqui, o jurídico destaca-se mais como um proceder específico que busca subsumir e absorver a complexa dinâmica das relações sociais, como uma forma que conduz, direciona e conforma a atividade humana e sua subjetividade para que ela se adeque às fórmulas clássicas da troca de mercadorias, da equivalência, da segurança jurídica, entre outras.

Enfim, nossas considerações finais, enquanto meros esboços, não pretendem fazer nada além de suscitar o debate acerca do entendimento das normas e das decisões judiciais dentro do esquema teórico elaborado por Pachukanis em sua Teoria geral do direito e marxismo. Em nossa tentativa, aproximamos a forma jurídica à forma valor para, a partir daí, poder fortalecer a hipótese de inserir tanto a norma formal quanto a decisão judicial no conceito de formas aparentes do direito e que, portanto, podem, por vezes, não tomar (ou assumir, aceitar, revestirem-se de) a forma jurídica, quando fecundados por influências externas, como a luta de classes aberta.

Assim, é discernível um possível uso desses institutos na luta da classe trabalhadora, desde que não se esqueça de que tais momentos são, por excelência, espaços de expressão da forma jurídica e, consequentemente, não podem, por si mesmos, levar-nos para além da dominação do capital sobre o trabalho e do ciclo de valorização irrestrita sobre a natureza. O único espaço que pode nos garantir essa ultrapassagem do modo de produção capitalista é a auto-organização do proletariado e de todos os setores oprimidos, completamente libertada das amarras da racionalidade jurídica. Mas, para chegar a este último estágio, a classe trabalhadora terá que saber como lidar com essas pequenas expressões imediatas da forma jurídica que assolam sua luta cotidiana.

O que almejamos, justamente, foi fazer um primeiro esboço abertamente pachukaniano de como realizar essa aproximação entre a forma jurídica, em sua essencialidade burguesa, e os seus espaços de expressão e exteriorização, circunstancialmente mais manipuláveis, porque, como diria um poeta na cidade e no tempo, “a palavra só fala quando emocionada/ pela visão/ sintética, ligadora/ de fatos aparentemente sem importância/ ao fato grande/ do rosto universal dos homens se inventando” (FÉLIX, 1966FÉLIX, Moacyr. Um poeta na cidade e no tempo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966., p. 46). Nessa esteira, é tarefa dos continuadores e continuadoras da empreitada crítica esboçada por Marx e Pachukanis a de conseguir manejar as categorias trabalhadas de modo a compreender a realidade em suas expressões e manifestações concretas, que sempre exigem um rearranjo teórico e epistemológico correspondente.

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  • ______. Lênin e os problemas do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 1897-1931, 2018.
  • ______. Fascismo. São Paulo: Boitempo, 2020.
  • PAZELLO, Ricardo Prestes. A produção da vida e o poder dual do pluralismo jurídico insurgente: ensaio para uma teoria de libertação dos movimentos populares no choro-canção latino-americano. Florianópolis: Curso de Pós-Graduação (Mestrado) em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, 2010.
  • ______. Direito insurgente e movimentos populares: o giro descolonial do poder e a crítica marxista ao direito. Curitiba: Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em Direito da Universidade Federal do Paraná, 2014a.
  • ______. Os momentos da forma jurídica em Pachukanis: uma releitura de Teoria geral do direito e marxismo. Verinotio, Belo Horizonte-MG, n. 19, ano X, p. 133-143, abr. 2014b.
  • ______. Acumulação originária do capital e direito. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 2, n. 1, p. , 2016a.
  • ______. Contribuições metodológicas da teoria marxista da dependência para a crítica marxista ao direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 540-574, 2016b.
  • ______. Jardín colgante entre dos cielos: un ensayo sobre el estado del arte de la relación entre marxismo y derecho en Brasil, hoy. Em: ESCALANTE, Víctor Romero (ed.). Marxismo y derecho: obras escogidas. Cidade do México: Ladrones de Leña, 2021a, p. 23-56.
  • ______. Direito insurgente: para uma crítica marxista ao direito. Volume 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021b.
  • PROTOPOPOV, Е. Е. Меновая теория права. Актуальные проблемы российского права. Сборник статей.-М.: МГЮА, Moscou, n. 1, v. 4, 2007, p. 21-24.
  • RUBIN, Isaak Ilitch. A teoria marxista do valor. São Paulo: Editora Polis, 1987.
  • SARTORI, Vitor. “Diálogos” entre Lukács e Pachukanis sobre a crítica ao Direito. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, ano 2, v. 2, n. 1, p. 203-257, 2016.
  • ______. Fetichismo, transações jurídicas, socialismo vulgar e capital portador de juros: o livro III de O capital diante do papel ativo do Direito. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, Niterói, n. 52, p. 124-154, jan./abr. 2019.
  • ______. O livro II de O Capital e o Direito: um debate com Pachukanis. Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 211-256, 2020.
  • SILVA, Vinicius Lima da. Direito e historicidade: uma abordagem thompsoniana de Pachukanis. Revista Direito e Práxis, Ahead of print, Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: <bit.ly/3vexYDB>. Acesso em: 11 jun. 2021.
  • SOARES, Moisés Alves. Pachukanis e os dilemas da transição. Revista Discenso, Florianópolis, n. 1, p. 61-80, 2009.
  • ______; PAZELLO, Ricardo Prestes. Direito e marxismo: entre o antinormativo e o insurgente. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 475-500, 2014.
  • ______; SILVA, Regina Teresa Pinheiro da. Elementos de uma aproximação ontológica do direito em Pachukanis. Monumenta: Revista de Estudos Interdisciplinares, Joinville, v. 1, n. 1, p. 145-167, 2020.
  • STUCKA, Petr Ivanovich. Direito e luta de classes. São Paulo: Acadêmica, 1988.
  • WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
  • 1
    As presentes indicações biográficas foram retiradas de KAMENKA;TAY, 1970KAMENKA, Eugene; TAY, Alice Erh-Soon. The Life and Afterlife of a Bolshevik Jurist. Problems of communism, [s. l.], v. 19, p. 72-79, jan-fev. de 1970., p. 72-73 e HEAD, 2008HEAD, Michael. Evgeny Pashukanis: a critical reappraisal. Londres: Routledge, 2008., p. 157-159. Sobre o nível de esboço de seu trabalho, temos as palavras do próprio Pachukanis (1988______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988., p. 7): “O presente trabalho [...] foi escrito com o fim de esclarecimento pessoal”. O subtítulo da primeira edição foi encontrado, em sua primeira indicação, em HEAD, 2008, p. 158 e, depois, cotejado com o original russo encontrado na internet: “Общая теория права и марксизм. Опыт критики основных юридических понятий”. No entanto, o mais completo ensaio biográfico sobre Pachukanis foi redigido por Naves (2017______. Evgeni Pachukanis (1891-1937). Em: PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Editora Sundermann/Ideias Baratas, 2017, p. 351-358.) e, em sua versão mais recente, consta no compilado da TGDM e outros ensaios publicados pela Sundermann (PACHUKANIS, 2017b______. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Editora Sundermann/Ideias Baratas, 2017b.).
  • 2
    Tais informações foram retiradas a partir do arquivo virtual de vítimas da repressão organizado pela ONG Memorial. O nome de Pachukanis tem como fonte referenciada documentos do crematório no qual teria sido sepultado. Disponibilizamos todas as informações contidas na página dado o escasso acesso que se tem acerca da execução do jurista russo: “Pachukanis Evgeny Bronislavovitch. Nasceu em 1891, cidade de Staritsa; russo; educação superior; membro do Partido Comunista da URSS (Bolcheviques); ocupação: comissário de justiça da URSS; residência: Moscou, Pokrovsky Boulevard, 14/5, apartamento 21. Prisão: 20 de janeiro de 1937. Condenado pelo Colégio Militar da Suprema Corte da URSS em 4 de setembro de 1937, acusação: participação em organização terrorista contrarrevolucionária. Executado em 4 de setembro de 1937. Local de sepultura: Moscou, Cemitério Donskoe. Reabilitado em 31 de março de 1956 pelo Colégio Militar da Suprema Corte da URSS. Fonte: Moscou, lista dos executados - crematório de Donskoe” (MEMORIAL, s.d., tradução nossa [algumas abreviaturas foram expandidas]).
  • 3
    Para uma visão interna acerca desse grupo, Cf. MASCARO, 2011MASCARO, Alysson Leandro. Márcio Bilharinho Naves, pensador do marxismo jurídico. Revista Jurídica Direito e Realidade, Monte Carmelo-MG, v. 1, n. 1, p. 15-17, jan.-jun. 2011. e CALDAS, 2011CALDAS, Camilo Onoda. A difusão da teoria pachukaniana do direito no Brasil. Direito & Realidade, Monte Carmelo, v.1, n. 1, p. 22-24, 2011.. Para uma interpretação de maior fôlego, mas externa, Cf. PAZELLO, 2014a______. Direito insurgente e movimentos populares: o giro descolonial do poder e a crítica marxista ao direito. Curitiba: Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em Direito da Universidade Federal do Paraná, 2014a., p. 429-440 e PAZELLO, 2021a, p. 35-38.
  • 4
    Para um apanhado geral sobre as teorias críticas do direito no Brasil, Cf. PAZELLO, 2010PAZELLO, Ricardo Prestes. A produção da vida e o poder dual do pluralismo jurídico insurgente: ensaio para uma teoria de libertação dos movimentos populares no choro-canção latino-americano. Florianópolis: Curso de Pós-Graduação (Mestrado) em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, 2010., p. 122-152, PAZELLO, 2014a, p. 408-428, WOLKMER, 2002WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2002., p. 77-145.
  • 5
    Para uma leitura dos avanços e recuos dessas propostas em comparação com as propostas originais da teoria crítica do direito brasileira, Cf. SOARES; PAZELLO, 2014______; PAZELLO, Ricardo Prestes. Direito e marxismo: entre o antinormativo e o insurgente. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 475-500, 2014..
  • 6
    Para a indicação de um mais amplo rol de autores e autoras, Cf. PAZELLO, 2021a______. Jardín colgante entre dos cielos: un ensayo sobre el estado del arte de la relación entre marxismo y derecho en Brasil, hoy. Em: ESCALANTE, Víctor Romero (ed.). Marxismo y derecho: obras escogidas. Cidade do México: Ladrones de Leña, 2021a, p. 23-56..
  • 7
    Pense-se, por exemplo, nos Dossiês sobre Direito e Marxismo compilados pela Revista Margem Esquerda (n. 30, de 2018), pela Revista InSURgência (v. 2, n. 1, de 2016), pela conceituada Revista Direito e Práxis (Dossiê 'Direito e Marxismo', no v. 5, n. 2, de 2014), pelo site Marxismo21 (Dossiê Marxismo e Direito, de 10 de outubro de 2013), ou nos dossiês dedicados a discutir os 90 anos da publicação da Teoria Geral do Direito e Marxismo, como o publicado pela Revista Verinotio (n. 19, de 2015). Também cumpre indicar as pioneiras seções sobre Marxismo e Direito presentes nas primeiras edições da Revista Direito e Realidade, ainda em 2011.
  • 8
    Aqui, podemos destacar a publicação da tese de Naves (2000______. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2000.) e da obra de Mascaro (2015MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2015.) já citadas, além da obra de Silvio Luiz de Almeida, Sartre: direito e política (ALMEIDA, 2016ALMEIDA, Silvio Luiz de. Sartre: direito e política. São Paulo: Boitempo, 2016.). Como pináculo desse processo editorial, destaca-se a nova publicação da Teoria Geral do Direito e Marxismo (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a.), posteriormente seguida por uma publicação de artigos sobre o tema do fascismo (PACHUKANIS, 2020).
  • 9
    Salientamos, por exemplo, o grande esforço coletivo perceptível na coletânea Para a crítica do direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas (KASHIURA JR.; AKAMINE JR.; MELO, 2015______ (org.); AKAMINE JR., Oswaldo (org.); MELO, Tarso de (org.). Para a crítica do direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas. São Paulo: Outras Expressões, 2015.). Além disso, houve a publicação de Marx e o direito, de Márcio Bilharinho Naves (2014______. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões/Dobra Universitária, 2014.), de Sujeito de direito e capitalismo, de Celso Naoto Kashiura Junior (2014______. Sujeito de direito e capitalismo. São Paulo: Outras Expressões/Dobra Universitária, 2014.) e de Teoria da derivação do estado e do direito, de Camilo Onoda Caldas (2015______. Teoria da derivação do estado e do direito. São Paulo: Outras Expressões/Dobra Universitária, 2015.).
  • 10
    Marcada pela publicação, em 2017, de uma importante coletânea de textos de Pachukanis, incluindo uma nova tradução da obra clássica do autor: A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929) (PACHUKANIS, 2017b______. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Editora Sundermann/Ideias Baratas, 2017b.).
  • 11
    Como principal obra desse editorial que aborda o legado de Pachukanis, destaca-se a compilação Léxico pachukaniano (AKAMINE JÚNIOR, et. al., 2019AKAMINE JÚNIOR, Oswaldo, et. al. Léxico Pachukaniano. Marília: Lutas Anticapital, 2019.).
  • 12
    Para uma breve indicação das propostas, pessoas e grupos envolvidos na discussão entre direito e marxismo trazida à baila pelo IPDMS, Cf. PAZELLO, 2021a______. Jardín colgante entre dos cielos: un ensayo sobre el estado del arte de la relación entre marxismo y derecho en Brasil, hoy. Em: ESCALANTE, Víctor Romero (ed.). Marxismo y derecho: obras escogidas. Cidade do México: Ladrones de Leña, 2021a, p. 23-56., p. 41-44.
  • 13
    Nessas aproximações aos outros livros e momentos d’O Capital, em geral associadas a uma leitura menos adesistas das teses de Pachukanis, Cf. CASALINO, 2015CASALINO, Vinícius. Troca, circulação e produção em Teoria geral do direito e marxismo: sobre a crítica “circulacionista” à teoria de Pachukanis. Verinotio, Belo Horizonte, n. 19, ano X, p. 106-125, 2015., SARTORI, 2019______. Fetichismo, transações jurídicas, socialismo vulgar e capital portador de juros: o livro III de O capital diante do papel ativo do Direito. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, Niterói, n. 52, p. 124-154, jan./abr. 2019. e SARTORI, 2020. Na discussão sobre a dependência, Cf. PAZELLO, 2016b______. Contribuições metodológicas da teoria marxista da dependência para a crítica marxista ao direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 540-574, 2016b.. Em torno dos debates sobre acumulação por espoliação e acumulação originária, Cf. PAZELLO, 2016a e GONÇALVES, 2017GONÇALVES, Guilherme Leite. Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 1028-1082, 2017..
  • 14
    Para um panorama dentro de um debate mais geral sobre o marxismo, Cf. ELBE, 2013ELBE, Ingo. Between Marx, marxism and marxisms: ways of reading Marx’s theory. Viewpoint Magazine, [s. l.], 21 out. 2013. Disponível em: <bit.ly/2OXMRea>. Acesso em: 16 mar. 2021.. Cumpre contextualizar também que as contribuições da NML vem sendo recentemente absorvidas pelo novo panorama da crítica do direito inspirada em Pachukanis em especial por seu sucesso em compreender “a especificidade histórica da economia política de modo muito mais radical” (AKAMINE JUNIOR, 2019AKAMINE JÚNIOR, Oswaldo, et. al. Léxico Pachukaniano. Marília: Lutas Anticapital, 2019., p. 219, nota 18).
  • 15
    Ao pesquisarmos a origem dessa conceituação da teoria pachukaniana como parte integrante da Commodity-exchange theory of law, a mais antiga referência que encontramos é datada em 1949 (FULLER, 1949FULLER, Lon L. Pashukanis and Vyshinsky: a study in the development of Marxian legal theory. Michigan Law Review, Michigan, v. 47, n. 8, p. 1157-1166, 1949., p. 1159), mas, nela, já se aborda o nome como algo comum e já corriqueiramente utilizado (“In this short book, Pashukanis expounds with clarity and coherence an ingenious development of Marxist theory that has been called the ‘Commodity Exchange Theory of Law’”). Também encontramos o uso desse termo em textos russos, como “меновая теория права” (Cf. PROTOPOPOV, 2007PROTOPOPOV, Е. Е. Меновая теория права. Актуальные проблемы российского права. Сборник статей.-М.: МГЮА, Moscou, n. 1, v. 4, 2007, p. 21-24.), todavia não sabemos até que ponto se trata de uma conceituação originariamente russa, ou se se tem um reflexo da interpretação dos autores de língua inglesa. O que nós sabemos, a partir de uma breve pesquisa das palavras utilizadas por Pachukanis nas coletâneas Избранные Произведения по Общей Теории Права и Государства (PACHUKANIS, 1980b______. Общая теория права и марксизм. Em: ______. Избранные Произведения по Общей Теории Права и Государства. Moscou: Nauka, 1980b.) e Selected Writings on Marxism and Law (PACHUKANIS, 1980a), é que, no que foi pesquisado, Pachukanis não utiliza tais termos para descrever sua própria teoria.
  • 16
    Entre outras aproximações dessa temática do método transferida à discussão do direito, podemos destacar: KASHIURA JR., 2011KASHIURA JÚNIOR, Celso Naoto. Dialética e forma jurídica: considerações acerca do método de Pachukanis. Direito & Realidade, Monte Carmelo-MG, v.1, n.1, p. 41-60, 2011., NAVES, 1996NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. Campinas: Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Doutorado), 1996., p. 29-44, e PAZELLO, 2014a______. Direito insurgente e movimentos populares: o giro descolonial do poder e a crítica marxista ao direito. Curitiba: Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em Direito da Universidade Federal do Paraná, 2014a., p. 131-141.
  • 17
    “Marx, como se sabe, inicia suas pesquisas não pela reflexão sobre a economia em geral, mas por uma análise da mercadoria e do valor. Isso porque a economia, como uma esfera específica das relações, diferencia-se quando a troca entra em cena. Enquanto estiverem ausentes as relações de valor, a atividade econômica dificilmente poderá se separar das demais funções vitais com as quais forma um todo sintético” (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a. e PACHUKANIS, 1988, p. 23).
  • 18
    "O desenvolvimento dialético dos conceitos jurídicos fundamentais não apenas nos oferece a forma do direito em seu aspecto mais exposto e dissecado, mas, ainda, reflete o processo de desenvolvimento histórico real, que não é outra coisa senão o processo de desenvolvimento da sociedade burguesa." (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a. e PACHUKANIS, 1988, p. 25).
  • 19
    Diz Pachukanis (2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a. e 1988, p. 24), que o direito "não existe senão em opostos: direito objetivo e direito subjetivo, direito público e direito privado etc.", mas "só a sociedade burguesa capitalista cria todas as condições necessárias para que o momento jurídico alcance plena determinação nas relações sociais". Por exemplo: na Europa medieval “todas as oposições mencionadas estão fundidas em um todo indissociável. Não há fronteira entre o direito como norma objetiva e o direito como justificação social. A norma de caráter geral não se distingue de sua aplicação concreta; consequentemente, isso acaba por confundir as ações do juiz e do legislador", falta "a oposição tão característica da época burguesa entre o indivíduo como pessoa natural e o indivíduo como membro da comunidade política".
  • 20
    Como expressa genialmente Marx, dinheiro e mercadoria não podem ser definidos pura e abstratamente como capital. Para o serem, devem estar situados dentro de um contexto histórico e um emaranhado de relações sociais. "Dinheiro e mercadoria, desde o princípio, são tão pouco capital quanto os meios de produção e de subsistência. Eles requerem sua transformação em capital. Mas essa transformação mesma só pode realizar-se em determinadas circunstâncias, que se reduzem ao seguinte: duas espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias têm de defrontar-se e entrar em contato; de um lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que se propõem a valorizar a soma-valor que possuem mediante compra de força de trabalho alheia: do outro, trabalhadores livres, vendedores da própria força de trabalho e, portanto, vendedores de trabalho. Trabalhadores livres no duplo sentido, porque não pertencem diretamente aos meios de produção, como os escravos, os servos etc., nem os meios de produção lhes pertencem, como, por exemplo, o camponês economicamente autônomo etc., estando, pelo contrário, livres, soltos e desprovidos deles. Com essa polarização do mercado estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista. A relação-capital pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho" (MARX, 1996b______. O Capital: Crítica da economia política. t. II. Livro Primeiro. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996b., p. 340). Portanto, o capital é, afinal de contas, “uma relação social entre pessoas intermediada por coisas” (MARX, 1996b, p. 384).
  • 21
    Na edição antiga: “poderá o direito ser concebido como uma relação social no mesmo sentido em que Marx chamou ao Capital uma relação social?” (PACHUKANIS, 1988______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988., p. 38)
  • 22
    Tal foi a tentativa empreendida por Stutchka (STUCKA, 1988STUCKA, Petr Ivanovich. Direito e luta de classes. São Paulo: Acadêmica, 1988., p. 16): “o direito é um sistema (ou ordenamento) de relações sociais correspondente aos interesses da classe dominante e tutelado pela força organizada desta classe”. Certamente, no decorrer dessa mesma obra, o jurista letão realizará um novo excurso pela análise do direito, definindo-o como relações sociais com formas concretas e abstratas. Esse desenvolvimento será mais positivamente avaliado por Pachukanis.
  • 23
    “O camarada P. I. Stutchka, a nosso ver, colocou de modo muito acertado o problema do direito como sendo um problema das relações sociais. Mas, em vez de começar a buscar objetividades sociais específicas, voltou-se para a definição formal habitual, ainda que limitada por questões de classe” (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a.). A tradução mais recente utiliza o verbo возвращаться [vozvraschat’sya] com o sentido de “voltar-se”, o que, apesar de ser um sentido possível, cremos que não indica o sentido de “voltar” ou “retornar” também possível de se inferir com esse termo e que, pelo contexto, aplica-se às intenções de Pachukanis na oportunidade de criticar Stutchka por regressar à forma habitual de ler o direito. Logo, aqui a edição anterior parece acertar ao expressar que o jurista letão “regressou à determinação formal habitual” (PACHUKANIS, 1988, p. 46).
  • 24
    “Seria possível uma análise das definições fundamentais da forma jurídica [правовой формы] da mesma forma como, na economia política, nós temos uma análise das definições mais gerais e abstratas da forma da mercadoria [формы товара] ou da forma do valor?” (PACHUKANIS, 1980b______. Общая теория права и марксизм. Em: ______. Избранные Произведения по Общей Теории Права и Государства. Moscou: Nauka, 1980b., p. 44, tradução nossa). Na edição da editora Acadêmica (note-se que, nela, há um erro de digitação: em vez de ‘forma mercadoria’, escreveu-se ‘forma mercado’): PACHUKANIS, 1988, p. 17. Esse problema é resolvido na edição da Boitempo: “Seria possível uma análise das definições fundamentais da forma jurídica do mesmo modo que em economia política nós temos a análise das definições fundamentais e mais gerais da forma da mercadoria e da forma do valor?” (PACHUKANIS, 2017a).
  • 25
    “A categoria da totalidade perde o caráter dialético se é entendida apenas horizontalmente, como relação das partes e do todo, e se se desprezam os seus outros caracteres orgânicos; a sua dimensão ‘genético-dinâmica’ (criação do todo e a unidade das contradições) e a sua dimensão ‘vertical’, que é a dialética do fenômeno e da essência” (KOSIK, 1976, p. 63).
  • 26
    “Toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica, o elemento mais simples e indivisível, que não pode mais ser decomposto. É por ele, então, que começaremos nossa análise.” (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a. e PACHUKANIS, 1988, p. 68).
  • 27
    “As mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. As mercadorias são coisas e, consequentemente, não opõem resistência ao homem. Se elas não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar de violência, em outras palavras, toma-las. Para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas mediante um ato de vontade comum a ambo, se aproprie da mercadoria alheia enquanto se aliena da própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma. As pessoas aqui só existem, reciprocamente, como representantes de mercadorias e, por isso, como possuidores de mercadorias” (MARX, 1996aMARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. t. I. Livro Primeiro. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996a., p. 209-210).
  • 28
    Aqui, a tradução de 1988 da Acadêmica mostra-se incapaz de expressar o significado do texto: “a relação jurídica entre as diferentes unidades econômicas não é mais o reverso da relação entre os produtos tornados mercadorias” [PACHUKANIS, 1988______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988., p. 47]. Para cotejo, seguem traduções da edição portuguesa: “a relação jurídica entre os sujeitos é apenas o reverso da relação entre os produtos de trabalho tornados mercadorias” (PACHUKANIS, 1977, p. 95), inglesa: “The legal relationship between subjects is only the other side of the relation between the products of labour which have become commodities” (PACHUKANIS, 1980a, p. 62) e o original russo: “Юридическое отношение между субъектами есть только другая сторона отношения между продуктами труда, ставшими товарами” (PACHUKANIS, 1980b, p. 78).
  • 29
    Comentando sobre o escambo, Carcanholo (2011CARCANHOLO, Reinaldo (org.). Capital: essência e aparência. São Paulo: Expressão Popular, 2011., p. 47) diz: “as relações mercantis ainda não existem; ou só existem como potenciais ou, no máximo, como embrionárias. Poderíamos [...] identificar essa troca como um intercâmbio pré-mercantil de presentes. Nesta etapa, o objetivo do produtor é a produção de valores de uso, e só às vezes, excepcionalmente, o excedente produzido, ou parte dele, chega a ser trocado. Não existe, portanto, intercâmbio sistemático de mercadorias; sua ocorrência é eventual, casual, fortuita. As relações mercantis não se encontram desenvolvidas, tampouco a mercadoria. Na realidade, o que existe não é ainda uma verdadeira mercadoria com todas as suas determinações, é ainda um embrião de mercadoria”.
  • 30
    “É justamente o litígio, o conflito de interesses, que traz à vida a forma do direito e a superestrutura jurídica”, porque é nesse litígio que “os sujeitos econômicos aparecem já como partes, i.e., como participantes da superestrutura jurídica” (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a., e PACHUKANIS, 1988, p. 54).
  • 31
    “Somente em situações de economia mercantil nasce a forma jurídica abstrata, ou seja, a capacidade geral de possuir direitos [a capacidade de possuir direitos em geral - способность иметь право вообще] se separa das pretensões jurídicas concretas”. Se à troca mercantil precedeu “atos de troca ocasionais e outras formas de troca” (note-se que a edição da Acadêmica introduz o termo “primitivo”, inexistente no argumento de Pachukanis), o sujeito jurídico também teve suas formas precedentes. Na Idade Média, “a ideia de um status jurídico formal comum a todas as pessoas, a todos os cidadãos, estava completamente ausente”, tal aspecto só se desenvolve com a repetição regular das relações jurídicas, tal como “a repetição regular dos atos de troca constitui o valor na qualidade de categoria em geral” (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a. e PACHUKANIS, 1988, p. 76-77)
  • 32
    Nesse caso específico, optamos pela nossa tradução, porque ela segue a completa repetição sintática expressa no texto original: “как продукт труда приобретает свойство товара и становится носителем стоимости, человек приобретает свойство юридического субъекта и становится носителем права” (PACHUKANIS, 1980b______. Общая теория права и марксизм. Em: ______. Избранные Произведения по Общей Теории Права и Государства. Moscou: Nauka, 1980b., p. 106), fato que não é completamente realizado nem pela tradução inglesa (“simultaneously with the product of labour assuming the quality of a commodity and becoming the bearer of value, man assumes the quality of a legal subject and becomes the bearer of a legal right”, PACHUKANIS, 1980a, p. 76), nem pela edição portuguesa (“ao mesmo tempo que o produto do trabalho reveste as propriedades da mercadoria e se torna portador de valor, o homem se torna sujeito jurídico e portador de direitos”, PACHUKANIS, 1977, p. 136), nem pelas edições brasileiras que utilizamos, seja a de 1988 (PACHUKANIS, 1988, p. 71) ou a da Boitempo: “Por isso, ao mesmo tempo que um produto do trabalho adquire propriedade de mercadoria e se torna o portador de um valor, o homem adquire um valor de sujeito de direito e se torna portador de direitos”.
  • 33
    Aponta-se uma “forma duplamente enigmática” que reveste as relações de produção: “relações entre coisas, que são ao mesmo tempo mercadorias”, por um lado, e “relações de vontade entre unidades independentes e iguais umas perante as outras” (sujeitos de direito), por outro. “Ao lado da propriedade mística do valor aparece algo não menos enigmático: o direito”. A relação unitária reveste-se de dois aspectos “o econômico e o jurídico” (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a. e PACHUKANIS, 1988, p. 75).
  • 34
    “Tanto o valor como o direito à propriedade foram engendrados por um único e mesmo fenômeno: a circulação de produtos tornados mercadorias. A propriedade em sentido jurídico nasce não porque deu na cabeça das pessoas atribuírem-se reciprocamente tal qualidade jurídica, mas porque precisavam trocar mercadorias, o que só era possível apresentando-se como proprietários. ‘O poder ilimitado de dispor das coisas’ é somente um reflexo da circulação ilimitada de mercadorias” (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a. e PACHUKANIS, 1988, p. 82).
  • 35
    Pachukanis (1980b______. Общая теория права и марксизм. Em: ______. Избранные Произведения по Общей Теории Права и Государства. Moscou: Nauka, 1980b., p. 36, tradução nossa, grifos nossos) chega a considerar que a vitória do princípio do direito “não é nem só nem tanto um processo ideológico [...], quanto um processo real de juridização [юридизации] das relações humanas, que opera depois do desenvolvimento da economia monetário-mercantil [...] e que envolvem mudanças profundas e detalhadas de caráter objetivo". Na edição da Boitempo, o termo “juridização” foi transformado em “um processo real em que as relações humanas tornam-se jurídicas” (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a.).
  • 36
    Cabe citar mais especificamente o raciocínio de Naves: “o que é o específico do direito, seu elemento irredutível, é a equivalência subjetiva como forma abstrata e universal do indivíduo autônomo quando o trabalho é subsumido realmente ao capital” (NAVES, 2014______. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões/Dobra Universitária, 2014., p. 68) e “em Marx o direito é essa forma social sui generis, a forma da equivalência subjetiva autônoma”, logo se deve adotar uma “sentença resolutamente antinormativista: só há direito em uma relação de equivalência na qual os homens estão reduzidos a uma mesma unidade comum de medida em decorrência de sua subordinação real ao capital” (NAVES, 2014, p. 87).
  • 37
    Também se podem fazer adendos acerca do contexto de subsunção real do trabalho ao capital. Em Marx, esse processo histórico é relatado como a transição das relações de produção fundadas na manufatura (subsunção formal) à situação na qual, depois da completa separação entre trabalhador e meios de produção, com a introdução da maquinaria, os proletários não se vêm mais na possibilidade de controlar e compreender o funcionamento dos meios de produção que utilizam em seu trabalho (subsunção real). No que concerne ao direito, havia, de fato, no momento de gênese inicial da produção capitalista, relações de troca entre os indivíduos, mas elas eram imbricadas também por um forte elemento político e de coerção, o que indica a não expressão da forma jurídica em sua forma mais pura e desenvolvida. Isto é, quando “a subordinação do trabalho ao capital era apenas formal, isto é, o próprio modo de produção não possuía ainda caráter especificamente capitalista”, “a burguesia nascente precisa e emprega a força do Estado para ‘regular’ o salário, isto é, para comprimi-lo dentro dos limites convenientes à extração de mais-valia, para prolongar a jornada de trabalho e manter o próprio trabalhador num grau normal de dependência. Esse é um momento essencial da assim chamada acumulação primitiva” (MARX, 1996b______. O Capital: Crítica da economia política. t. II. Livro Primeiro. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996b., p. 359). Em sua plena determinação, o modo de produção capitalista só precisa excepcionalmente dessa coerção explícita: “A organização do processo capitalista de produção plenamente constituído quebra toda a resistência, a constante produção de uma superpopulação mantém a lei da oferta e da procura de trabalho e, portanto, o salário em trilhos adequados às necessidades de valorização do capital, e a muda coação das condições econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador. Violência extra-econômica direta é ainda, é verdade, empregada, mas apenas excepcionalmente” (MARX, 1996b, p. 358-359, grifos nossos).
  • 38
    Provavelmente, o teórico que mais se apoia nessa denominação é Robert Sharlet (que, inclusive, nomeou sua tese de doutorado como Pashukanis and the Commodity Exchange Theory of Law). Em tal ponto, o autor chega a dizer que considerar as relações de produção, em um texto depois de 1927, marcaria uma “transição crucial” no pensamento de Pachukanis (BEIRNE; SHARLET, 1980BEIRNE, Piers; SHARLET, Robert. Editor's Introduction. Em: ______; ______ (ed.). Pashukanis: selected writings on Marxism and law. London: Academic Press, 1980, p. 1-36., p. 18). Contudo, Márcio Bilharinho Naves mostrou nitidamente (apesar de não subscrevermos a aproximação que ele faz de Pachukanis e Althusser) que, textualmente, o autor de Teoria geral do direito e marxismo, em 1924, já havia feito considerações muito parecidas (Cf. NAVES, 1996NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. Campinas: Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Doutorado), 1996., p. 68-70).
  • 39
    Nesse sentido, o ensaio no qual Negri revisita a obra de Pachukanis traz a chave heurística de pensar a forma-jurídica pachukaniana em consonância com o desenrolar da forma-valor elaborado por Isaak Rubin. "A questão do direito, enquanto questão de fetichismo, abre para o tema da 'forma do valor' em sua inteira complexidade. Então o que é 'forma'? Naquele mesmo período, Isaak Rubin, estudando O capital, redefiniu a lei do valor: para além de sua substância (trabalho) e grandeza (medida), insistia justamente em sua 'forma', isto é, a 'forma de trabalho social', invólucro geral da produção - historicamente modificável, tecnicamente componível, politicamente articulado. Ora, o conceito de 'forma jurídica' em Pachukanis corresponde ao de 'forma do valor' em Rubin" (NEGRI, 2017NEGRI, Antonio. Pachukanis, 44 anos depois. Em: PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017 [edição digital em formato .epub].). Para um panorama geral e recente da obra de Rubin, situando-o como habilidoso e criativo receptor da empreitada crítica d’O Capital, Cf. DAY; GAIDO, 2017DAY, Richard B. (ed.); GAIDO, Daniel F. Responses to Marx's Capital: from Rudolf Hilferding to Isaak Illich Rubin. [s. l.]: Brill, 2017.. Além disso, é essencial consultar sua obra principal disponibilizada em português: A teoria marxista do valor (RUBIN, 1987RUBIN, Isaak Ilitch. A teoria marxista do valor. São Paulo: Editora Polis, 1987.).
  • 40
    No trecho em questão, Pachukanis usa a palavra реализация [realizatsiya], cuja tradução, institivamente, leva-nos a seu equivalente lusitano-tupiniquim “realização”. Seu sentido, no português, é, segundo o dicionário Michaelis, o “ato ou efeito de realizar ou realizar-se”, que, por sua vez, podem assumir vários sentidos: i) “tornar real ou efetivo”; ii) “pôr em ação ou em prática; efetuar, efetivar”; iii) “dar-se, acontecer, efetuar-se, ocorrer”; iv) “considerar como reais (os seres abstratos)”. No russo, o quarto significado (de materializar, concretizar) também pode ser discernido, dado que são listados como sinônimos de реализация termos como материализация [materialização], воплощение [encarnação, personificação] e воплощение в жизнь [encarnação na vida]. Portanto, o tribunal, segundo o que propomos, deveria ser entendido como principal “veículo de encarnação” da forma jurídica.
  • 41
    Segue a citação direta da tradução de 1988: “Entretanto, a dupla natureza do direito, a sua divisão, por um lado, em norma e por outro, em faculdade jurídica, tem uma significação tão importante como, por exemplo, o desdobramento da mercadoria em valor de troca e valor de uso” (PACHUKANIS, 1988______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988., p. 24).
  • 42
    Lê-se no original (reproduzimos toda a frase): “А между тем эта двойственная природа права, это распадение его на норму и правомочие имеет не менее существенное значение, чем, например, распадение товара на стоимость и потребительскую стоимость” (PACHUKANIS, 1980b______. Общая теория права и марксизм. Em: ______. Избранные Произведения по Общей Теории Права и Государства. Moscou: Nauka, 1980b., p. 50). Como se percebe, não há, aí, o uso do termo “меновая стоимость”, equivalente russo ao nosso uso do “valor de troca” em nossas traduções de Marx. Logo, a oposição é entre valor [стоимость] e valor de uso [потребительская стоимость].
  • 43
    "O valor da mercadoria A é expresso quantitativamente por meio da permutabilidade direta da mercadoria B com a mercadoria A. [...] Em outras palavras: o valor de uma mercadoria tem expressão autônoma por meio de sua representação como 'valor de troca'. Quando no início deste capítulo, para seguir a maneira ordinária de falar, havíamos dito: A mercadoria é valor de uso e valor de troca, isso era, a rigor, falso. A mercadoria é valor de uso ou objeto de uso e 'valor'. Ela apresenta-se como esse duplo, que ela é, tão logo seu valor possua uma forma rápida de manifestação, diferente da sua forma natural, a do valor de troca, e ela jamais possui essa forma quando considerada isoladamente, porém sempre apenas na relação de valor ou de troca com uma segunda mercadoria de tipo diferente. No entanto, uma vez conhecido isso, aquela maneira de falar não causa prejuízo, mas serve como abreviação" (MARX, 1996aMARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. t. I. Livro Primeiro. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996a., p. 187, grifos nossos).
  • 44
    Segue o raciocínio feito por Pachukanis depois do trecho citado. O direito "não existe senão em opostos: direito objetivo e direito subjetivo, direito público e direito privado etc.", mas "só a sociedade burguesa capitalista cria todas as condições necessárias para que o momento jurídico alcance plena determinação nas relações sociais.". Por exemplo: na Europa medieval “todas as oposições mencionadas estão fundidas em um todo indissociável. Não há fronteira entre o direito como norma objetiva e o direito como justificação social. A norma de caráter geral não se distingue de sua aplicação concreta; consequentemente, isso acaba por confundir as ações do juiz e do legislador", falta aqui ainda "a oposição tão característica da época burguesa entre o indivíduo como pessoa natural e o indivíduo como membro da comunidade política" (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a., PACHUKANIS, 1988, p. 24).
  • 45
    Nossa tradução da presente sentença nos apresenta algumas dificuldades, que não podemos detalhar agora. Cabe, aqui, identificar que não há o uso, no original, do termo formas de expressão (формы выражении). Se assim estivesse redigido, muito fortaleceria a nossa hipótese acerca da existência de uma forma aparente do direito na teoria de Pachukanis. Contudo, não deixa de ser sintomático seu uso do genitivo plural de выражение [expressão], que reforça nossa teoria de que há espaços de expressão da forma jurídica que, por sua vez, nem sempre exteriorizam e esgotam sua essência: a troca de equivalências. A tradução mais recente consultada, por sua vez, simplifica o complexo verbo принимать como “reunir” (Cf. PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a.).
  • 46
    Seguimos Carcanholo (2011CARCANHOLO, Reinaldo (org.). Capital: essência e aparência. São Paulo: Expressão Popular, 2011., p. 53): “a expressão relativa do valor (o valor relativo) não é totalmente adequada para expressar as verdadeiras modificações da magnitude do valor. [...] Essa disparidade entre o movimento da magnitude do valor e o do de sua expressão revela, em concreto, para esse caso particular, a contradição que existe entre a essência e a sua manifestação (a aparência)”.
  • 47
    Uma vez que o direito mesmo é uma relação social, diz-nos Pachukanis (1988______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988., p. 42, grifos nossos), ele “pode comunicar-se mais ou menos a outras relações sociais ou transferir para elas a sua forma”. Ou, conforme a mais recente tradução, torna-se “possível entender por que toda uma série de outras relações sociais recebe a forma jurídica” (PACHUKANIS, 2017a______. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017a.). É nessa comunicação que, ao que entendemos, gesta-se o que Pachukanis (1980b, p. 36, tradução nossa, grifos nossos) conceituou como “um processo real de juridização [юридизации] das relações humanas”.
  • 48
    “No es posible reservar el nombre ‘derecho’ - o forma jurídica - exclusivamente para el derecho civil, y mucho menos hacer, como hace Pashukanis, una reducción del derecho al derecho civil” (CORREAS, 1983CORREAS, Óscar. “El derecho como ‘forma’ social”. Em: ______. Ideología jurídica. Puebla: Universidad Autónoma de Puebla, 1983, p. 9-39., p. 24).
  • 49
    Como exemplo disso, Pachukanis cita a defesa que Lenin fez da luta por liberdade formal dos Estados sob o jugo do neocolonialismo: “Lênin compreendeu o que seus oponentes deixaram de entender: que a reivindicação ‘abstrata’, ‘negativa’ de direitos formais iguais era, em uma dada conjuntura histórica, simultaneamente uma divisa revolucionária e revolucionada [a revolutionary and revolutionizing slogan], bem como o melhor método de fortalecimento da solidariedade de classe do proletariado e de protegê-lo da contaminação do egoísmo nacional-burguês” (PACHUKANIS, 2018______. Lênin e os problemas do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 1897-1931, 2018., p. 1928 e PASHUKANIS, 1980c, p. 159). Para uma mais aprofundada reflexão acerca da conjugação dos táticos do direito com um horizonte político resolutamente antijurídico, Cf. PAZELLO, 2014a______. Direito insurgente e movimentos populares: o giro descolonial do poder e a crítica marxista ao direito. Curitiba: Programa de Pós-Graduação (Doutorado) em Direito da Universidade Federal do Paraná, 2014a..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2021
  • Aceito
    25 Fev 2022
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