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Discriminação Estética

Aesthetic Discrimination

Resumo

Este artigo examina um fenômeno social bastante presente na nossa sociedade, mas ainda pouco teorizado na literatura jurídica brasileira: o problema da discriminação estética. Essa expressão designa uma série de práticas discriminatórias baseada na utilização da aparência como critério de julgamento da capacidade profissional dos indivíduos, procedimento que afeta de forma negativa uma quantidade significativa de pessoas, especialmente mulheres e membros de grupos raciais subalternizados. Este trabalho recorre a teorias de discriminação, a estudos sociológicos sobre a beleza e à psicologia social da discriminação para apresentar uma análise da discriminação estética capaz de oferecer uma compreensão de sua dinâmica interna e sua relação com outras práticas arbitrárias que impedem o acesso igualitário a oportunidades profissionais.

Palavras-chave:
Discriminação; Estética; Aparência; Beleza; Desigualdade; Injustiça; Racismo; Sexismo

Abstract

This article examines a very common phenomenon in our society which remains widely unacknowledged and undertheorized: the problem of aesthetic discrimination. This concept designates a series of discriminatory practices that uses personal appearance as a criterion for judging the professional capacity, a pattern that negatively affects a significant number of people, especially women and members of racial minorities. This essay develops an analysis of aesthetic discrimination capable of offering an understanding of its internal dynamics and its relationship with other arbitrary practices that impede equal access to professional opportunities based on theories of discrimination, sociological studies on beauty and the social psychology of discrimination.

Keywords:
Discrimination; Aesthetic; Appearance; Beauty; Inequality; Injustice; Racism; Sexism

Introdução

Apesar do número cada vez maior de trabalhos que abordam o tema da discriminação no mundo corporativo, reflexões sobre algumas de suas manifestações permanecem escassas ou inexistentes, realidade que impede o combate de práticas sociais que causam danos significativos a muitas pessoas. Uma delas está relacionada com normas institucionais - muitas vezes oficiais, muitas vezes informais - que estabelecem um padrão visual a ser seguido na contratação e promoção, podendo também ser motivo de demissão. Esses parâmetros não são gratuitos, uma vez que correspondem a ideais estéticos correntes, referências utilizadas de forma constante para o julgamento da competência profissional de candidatos e candidatas a emprego. Eles também operam como fundamentos para a determinação das atribuições de funcionários e funcionárias, embora não tenham absolutamente nenhuma relação com qualquer tipo de qualificação relevante para o desempenho de atividades profissionais. Muitos julgados fazem referência a esse tipo de discriminação, mas quase nenhum deles reconhece essa prática como uma manifestação particular de discriminação que precisa ser analisada a partir de critérios específicos pelo nosso sistema judiciário. Eles geralmente classificam esses comportamentos como expressão de outras formas de arbitrariedade, tais como o racismo, o sexismo, a gordofobia ou o assédio moral. Embora esse procedimento garanta ressarcimento econômico pelos danos causados por empregadores às vítimas desse tipo de tratamento desvantajoso, a ausência de um entendimento dos processos culturais e institucionais envolvidos no fenômeno da discriminação estética trazem prejuízos consideráveis a várias pessoas ao longo de toda a vida laboral.

Três exemplos que retratam situações bastante comuns nos ajudam a entender esse fenômeno de forma mais objetiva. Edweyne Martins foi impedido de cumprir sua jornada de trabalho em função de uma norma que impedia funcionários de uma empresa de transporte urbano usarem barba ou cavanhaque; a violação dessa regra implicaria sanções disciplinares. O sindicato que congrega os trabalhadores da classe ajuizou uma ação requerendo a declaração da invalidade dessa norma por ser, segundo eles, discriminatória. O Tribunal Superior do Trabalho entendeu que ela estabelece um padrão de aparência pessoal que viola o direito de as pessoas poderem controlar a própria aparência física, motivo pelo qual a regra em questão poderia ser classificada como exemplo de discriminação estética. Para o órgão julgador acima referido, não há nenhuma correlação entre essa exigência e as habilidades necessárias para o desempenho de qualquer função, nem há algum aspecto característico da atividade profissional que justifica essa norma, uma vez que ela não pode causar nenhum comprometimento ou risco para os funcionários. A ministra relatora classificou a norma como um exemplo de discriminação estética, mas não ofereceu uma justificação baseada em uma conceituação dela; ela apenas afirmou que a norma era inadequada por ser uma violação de direitos da personalidade.1 1 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. ARR, No. 343-45.2015.07.0003, Órgão Julgador: 2ª. Turma, Relatora Ministra Maria Helena Mallmann, DEJT 17/12/2021.

Marília da Silva trabalhava como telefonista em uma empresa. Seus superiores estavam insatisfeitos com sua aparência porque ela mantinha seus cabelos cacheados. Eles exigiram que ela passasse por um processo de alisamento para que se aproximasse do que consideram ser um ideal estético adequado aos padrões da empresa. Além de exigirem que ela submetesse o cabelo a esse tipo de tratamento, seus superiores pediram que ela o mantivesse preso. Sua recusa gerou uma série de humilhações também de colegas brancas: enojadas com o cabelo dessa mulher negra, elas diziam que raspar seria a única solução porque ele era muito feio. O empregador condicionou o emprego ao alisamento, o que levou essa mulher negra a acatar essa exigência. O Tribunal Regional do Trabalho da 12ª. Região considerou essa prática como um tipo de discriminação estética, mas não apresentou nenhuma definição precisa desse tratamento discriminatório. O juiz que analisou o caso apenas afirmou que a exigência de alisamento pode ser classificada como uma interferência indevida na esfera pessoal, direito que não assiste aos empregadores. 2 2 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª. Região, Recurso ordinário no. 0000613-91.2017.5.12.0025, órgão julgador: 1ª. Câmara, Relatora: Viviana Colluci, 04.07.2018.

Joilda Oliveira de Abreu é uma mulher negra que trabalhava em uma grande rede internacional de supermercados. Seu chefe sempre fazia referências pejorativas à sua obesidade, dizendo que mulheres tão gordas como ela não deveriam ter contato com os clientes. Esse tipo de comportamento também era reproduzido por outros funcionários, pessoas que, seguindo o exemplo do chefe, faziam comentários jocosos persistentes em relação a ela, o que a motivou a pedir demissão e processar a empresa. O Tribunal Superior do Trabalho identificou a incidência do racismo e do sexismo, mas não ofereceu uma análise dos motivos pelos quais esses dois tratamentos discriminatórios poderiam ser classificados como discriminação estética ou sobre a dinâmica deles dentro dessa manifestação de práticas discriminatórias.3 3 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Agravo de Instrumento em Recurso de Revista, No. AIRR - 333-69.2017.5.09.0651. Relatora: Ministra Morgana de Almeida Richa. Publicação: 22/03/2023.

Tendo em vista a ampla frequência e invisibilidade desses casos, a quase inexistência de trabalhos que abordam esse tema e a ausência de compreensão da dinâmica interna do fenômeno da discriminação estética, este artigo examina as práticas institucionais que buscam a homogeneização do corpo de funcionários de empresas privadas por meio de preferências estéticas. Nossos tribunais estão certos: esse fenômeno que pode ser classificado como uma prática discriminatória porque viola direitos da personalidade, suprime a autenticidade dos indivíduos, além de ter um impacto desproporcional sobre membros de grupos subalternizados. Entretanto, é preciso entender as particularidades de sua dinâmica interna. A discriminação estética ocorre por meio da imposição de padrões de beleza com o propósito de padronizar a aparência dos funcionários, o que acaba por acarretar problemas na preservação da diversidade da população brasileira dentro do espaço laboral, além de restringir oportunidades profissionais para membros de vários grupos, em especial mulheres e grupos raciais subalternizados.

Embora não seja prevista em qualquer norma legal, a não ser que incida em algum critério juridicamente protegido, a discriminação estética está amplamente presente no espaço laboral, um problema que afeta todos os indivíduos que não correspondem aos ideais de beleza que adquiram força normativa na sociedade brasileira. Estamos então diante da seguinte questão: a pressão por conformidade estética no setor privado pode ser considerada uma violação dos princípios da igualdade, da dignidade humana e da justiça social previstos na Constituição Federal? Partiremos da hipótese de que podemos classificar esse fenômeno como uma prática discriminatória porque traz desvantagens significativas para muitos indivíduos, violando então um aspecto relevante do princípio constitucional da igualdade que é a equidade de tratamento entre pessoas igualmente situadas, preceito central também das noções de dignidade humana e da justiça social.4 4 O artigo terceiro da Constituição Federal diz: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Acreditamos que esta investigação seja muito relevante para o avanço dos estudos do Direito Antidiscriminatório, uma vez que ela nos permitirá compreender a dinâmica interna de práticas que impõem desvantagens a parcelas significativas de nossa população. Também trabalharemos com a hipótese de que a discriminação estética possui um caráter interseccional porque agrava ainda mais a situação de pessoas que já se encontram em uma posição de desvantagem, o caso de pessoas que são membros de dois ou mais grupos subalternizados. Isso ocorre porque a proximidade com o ideal estético branco é um requisito para que as pessoas possam ter acesso a oportunidades profissionais, uma vez que ela pressupõe maior respeitabilidade social. À questão racial, somam-se outros critérios que expressam preferências estéticas, o que torna indivíduos que pertencem a mais de um grupo subalternizado vítimas de um problema que os acompanha em todos os setores da vida.

Além de teorias de discriminação e de conceitos da psicologia social da discriminação, recorreremos a estudos sociológicos sobre a beleza para entendermos a dinâmica psíquica e cultural dos julgamentos estéticos. Observaremos que eles são valorações morais amplamente relacionadas com a institucionalização de um padrão de beleza identificado com traços fenotípicos de pessoas racializadas como brancas, especialmente aquelas de aparência ariana. Esse ideal estético é insistentemente difundido nos meios de comunicação de massa, sendo um aspecto central do processo de socialização dos indivíduos. Mais do que isso, eles são utilizados por membros de todas as culturas e de todas as raças, indistintamente. Embora não se resuma à imposição de traços fenotípicos brancos que se tornaram critérios universais de julgamentos estéticos, a discriminação estética expressa uma tentativa de empresas em promover a homogeneização do corpo de funcionários com a intenção de estabelecer uma associação entre qualidades de serviços e aparência física, mecanismo que beneficia certos grupos de pessoas e prejudica outros de forma sistemática. A exploração deste tema se mostra relevante porque ele é um dos principais mecanismos de reprodução de disparidades sociais, mas seus métodos de operação permanecem amplamente desconhecidos pelo nosso judiciário.

1 - Casos de Discriminação Estética na Jurisprudência Brasileira

Assim como outras formas de tratamento arbitrário, a discriminação estética é extremamente nociva, especialmente a grupos subalternizados, um problema que prejudica esses segmentos sociais de forma significativa no mercado de trabalho. Uma análise de decisões do Tribunal Regional da 2ª. Região dos últimos dois anos demonstra que esse problema tem uma natureza pervasiva nos espaços corporativos.5 5 Este artigo examina decisões judiciais do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região, o que congrega o estado de São Paulo. Restringimos nossa análise às decisões desse órgão julgador porque acreditamos que a população jurisdicionada representa de forma adequada a variedade de elementos envolvidos na discriminação estética, como o gênero, raça, classe e compleição física. Entretanto, ela também releva a ausência de parâmetros teóricos adequados para entender a complexidade desse fenômeno social. Os sessenta julgados examinados utilizam outras categorias para analisar esse tema; a discriminação estética aparece na maioria dessas decisões como exemplo de violação de princípios constitucionais diversos, de direitos da personalidade e ainda racismo, sexismo e gordofobia. Nenhum dos julgados analisados oferece uma definição precisa do que é discriminação estética, nem discute seus pressupostos ou seus modos de operação e consequências. Essa realidade demonstra a urgência do entendimento da sua dinâmica particular por nossos operadores jurídicos.

Como afirmaremos repetidamente durante o artigo, membros de grupos raciais subalternizados são as principais vítimas da discriminação estética na sociedade brasileira. A maioria dos casos examinados envolve a discussão de restrições feitas por empregadores aos penteados feitos por pessoas negras ou ao tamanho do cabelo de pessoas negras, sendo que as mesmas exigências não se aplicam a pessoas brancas. A quase totalidade das decisões condena esse tipo de comportamento e o classifica como uma prática racista que viola direitos da personalidade, o sentimento de honra pessoal e a privacidade dos indivíduos.6 6 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região, 45ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000041-66.2019.5.02.0045, Juiza: Maria Alice Severo Kluwe, 28.10.2019 (condenando empregador por impedir empregado de usar cabelo afro por contrariar regras da empresa sobre aparência dos empregados, o que foi classificado como uma violação de direitos a personalidade); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 48ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000724-26.2021.5.02.0048. Juiz: Helder Campos de Castro, 29.22.2022 (classificando a dispensa de um funcionário baseado na violação de regras de aparência em função de usos de tranças como uma prática preconceituosa que viola a dignidade humana); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. Processo No. 1001050-15.2022.5.02.0706. Órgão Julgador: 9ª. Turma, Relator: Simone Fritschy Louro (Classificando a imposição de encobrimento do cabelo de pessoa negra, mas não de pessoas brancas como uma violação do princípio da dignidade e da privacidade). Alguns julgados analisam o conflito existente entre normas institucionais de apresentação pessoal e o tipo de penteado utilizado por pessoas negras, o que suscita o conflito entre exigências dirigidas a todas as pessoas e a necessidade de proteção da autonomia individual. A exigência de alisamento também aparece em muitos casos, demanda patronal classificada como assédio moral, como violação da intimidade ou como prática racista.7 7 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 18ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000393-71.2021.5.02.0718, Juiza: Ana Paula Freire Rojas, 11.11.2022 (condenando empregador ao pagamento de danos morais pela prática de injúria em função de referências preconceituosas ao cabelo de uma funcionária negra e a imposição de alisamento); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 18ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000393-71.2021.5.02.0718, Juiza: Ana Paula Freire Rojas, 11.11.2022 (condenando empregador ao pagamento de danos morais pela prática de injúria em função de referências preconceituosas ao cabelo de uma funcionária negra e a imposição de alisamento); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 6ª. Região. 1ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1001150-53.2019.5.02.0001, Juíza: Tatiana Arroyo, 07.02.2020 (classificando o impedimento de cumprir jornada de trabalho por utilizas dreadlocks como um tipo de discriminação estética).

A gordofobia apareceu frequentemente na pesquisa jurisprudencial realizada, sendo, portanto, um fator comum de discriminação estética. Empregadores discriminam pessoas obesas, o que ocorre por meio da segregação espacial, por meio da negação da possibilidade de ocupação de cargos de comando ou cargos que exigem contato com o público. Certos estereótipos afetam pessoas obesas de forma persistente no mercado de trabalho, tais como a representação delas como pessoas lentas, preguiçosas e desinteressadas, ideais sempre utilizadas para julgar a capacidade profissional de pessoas com essa característica, mesmo quando elas demonstram ser competentes.8 8 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 6ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000352-83.2020.5.02.0316, Juíza: Marcele Carine dos Prazeres Soares, 14.06.2022 (condenando empregador por assédio moral baseado na perseguição ocorrida em função da obesidade da empregada); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. Recurso Trabalhista No. 1000454-27.2021.5.02.0363, Órgão Julgador: 5ª. Turma, Relatora: Ana Cristina Lobo Petinati, 31.01.2022 (mantendo condenação de primeira instância que garantiu indenização por danos morais a empregada preterida em favor de pessoas magras e bonitas); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. Recurso Trabalhista No 1001032-82.2022.5.02.0321, Órgão Julgador: 18ª. Turma, Relatora: Renata de Paula Eduardo Beneti (condenado empresa por discriminação estética e danos morais cometidos contra empregado obeso e homossexual).

As decisões analisadas também demonstram como empregadores dão preferência a pessoas consideras como bonitas, o que garante a elas benefícios profissionais significativos. Essas pessoas ocuparão cargos de comando, representarão a imagem da instituição e exercerão atividades que demandam contato com o público. Pessoas consideradas bonitas são vistas como mais competentes, consideração feita apenas a partir da aparência delas. Enquanto pessoas negras e obesas são afastadas do contato com o público, pessoas consideradas bonitas, quase sempre pessoas brancas, são as primeiras a serem consideradas para oportunidades profissionais. É importante observar como a beleza aparece nesses casos associada com traços fenotípicos de pessoas brancas e com a proporção entre peso e altura. Os traços de pessoas brancas são vistos por empregadores como a referência a ser seguida por serem o padrão existente no mundo corporativo.9 9 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. Recurso Trabalhista No. 1000454-27.2021.5.02.0363, Órgão Julgador: 5ª. Turma, Relatora: Ana Cristina Lobo Petinati, 31.01.2022 (condenando empregador por preferência por pessoas magras e bonitas para cargos de chefia em sua empresa); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. Recurso Trabalhista No 1000613-38.2021.5.02.0017, Órgão Julgador: 12ª. Turma, Relatora: Elizabeth Mostardo (discutindo prática de empregador que utilizava a beleza e forma física como critério para determinação do desempenho da função de segurança); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 1ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000823-02.2021.5.02.0046, Juíza: Fernanda Ferreira Teixeira, 02.09.2022 (condenando empregador por selecionar empregados a partir da aparência e por exigir apresentação e postura dos empregados que o fariam parecer bonitos).

2 - Discriminação Estética: Origens e Definição

Uma vez observada a ausência de uma definição adequada de estética nesses julgados, devemos agora nos debruçar sobre suas origens e conceituação. A estética sempre ocupou um papel importante nas diversas sociedades humanas ao longo da história. Ela está associada a parâmetros culturais de beleza que determinam critérios de apreciação de vários elementos da realidade, o que inclui diversos objetos e suas qualidades. A estética designa, de um lado, um tipo de referência cultural utilizada para o julgamento da conformidade de objetos e corpos a ideais culturais compartilhados. Essas referências são relevantes porque elas desempenham um papel importante no processo de socialização das pessoas, pois conformam a percepção delas sobre uma pluralidade de fenômenos. A estética, por outro lado, pode ser classificada como uma disciplina filosófica preocupada com a sistematização dos princípios de apreciação do belo, o que envolve considerações sobre nossos gostos e sobre sentimentos a ele associados. Os seres humanos utilizam julgamentos estéticos de forma consciente ou inconsciente em uma pluralidade de situações, inclusive para fazer julgamentos morais, processos psíquicos relacionados com o fato de que referencias estéticas assumem a forma de normas culturais a partir das quais o valor de objetos e de pessoas é avaliado. Julgamentos estéticos ocorrem em uma pluralidade de situações tais como a escolha de objetos que decorarão nossas casas, das pessoas com as quais estabelecemos relações de amizade ou dos indivíduos que elegemos como objetos de desejo. (ADAMITIS, 2000ADAMITIS, Elizabeth N. Appearance matters: a proposal to prohibit appearance discrimination in employment. Washington Law Review, v. 75, n. 1, p. 195 - 224, 2000., p. 196 - 197; ROHDE, 2010, p. 45 - 68).

É certo que padrões de beleza variam ao longo do tempo e de uma sociedade para outra, mas alguns elementos são sempre utilizados para a identificação daquelas pessoas que serão consideradas belas. Assim, a idade, o tipo de pele, a coloração dela, a altura, a forma do corpo, a proporção de suas partes e a simetria facial são elementos que conformam padrões de beleza na maior parte da história das culturas ocidentais. Em tempos mais recentes, devido à incorporação do fenótipo ariano como norma universal de beleza, a raça se tornou o critério fundamental para avaliação estética. Assim, pessoas brancas, jovens, com corpos proporcionais entre peso e altura, de cabelos loiros e olhos azuis e sem quaisquer tipos de deficiência representam o ideal universal de beleza. Os indivíduos que correspondem a esse padrão ou que estão próximos dele são representados como os parceiros sexuais socialmente aceitáveis e as pessoas moralmente perfeitas. Os meios de comunicação as presentam como um ideal moral e estético, o que impulsiona o desejo sexual por elas e, com isso, a percepção de que todas elas possuem qualidades positivas. A idealização estética e moral desse fenótipo justifica uma série de representações culturais que beneficiam todos os indivíduos que estão próximos dele e penalizam aqueles que se encontram longe dele. (HOFMANN, 2020; DYER, 1997).

Por que juristas deveriam se preocupar com a onipresença de julgamentos estéticos nas diferentes esferas da vida social? Nossa Constituição Federal estabelece a construção de uma sociedade baseada na justiça social como o objetivo central do nosso sistema jurídico. Viver em uma sociedade justa significa ser reconhecido como uma pessoa que possui o mesmo nível de dignidade de todas as outras pessoas, motivo pelo qual todas elas devem ter o mesmo apreço social. Além disso, há um consenso jurisprudencial e doutrinário de que os direitos fundamentais possuem um caráter horizontal, razão pela qual eles obrigam agentes públicos e privados; agentes privados também devem proteger e promover direitos fundamentais. (DIMOULIS, MARTINS, 2012, p. 105 - 109; ALEXY, 2006, 523 - 533). A utilização de critérios estéticos para a determinação de oportunidades profissionais representa uma forma de injustiça que especialistas classificam como uma discriminação estética. Esse fenômeno provoca uma série de tratamentos injustos baseados na aparência das pessoas, critério que não tem correlação com a competência profissional delas. Tendo em vista o fato de que critérios estéticos utilizam traços de um grupo para julgamento de todos os outros, a discriminação estética opera como um mecanismo produtor de desigualdades. (ADAMITIS, 2000ADAMITIS, Elizabeth N. Appearance matters: a proposal to prohibit appearance discrimination in employment. Washington Law Review, v. 75, n. 1, p. 195 - 224, 2000., p. 197 - 203; MAHAJAN, 2007MAHAJAN, Ritu. The Naked Truth: Appearance Discrimination, Employment, and the Law. Asian American Law Jornal, v. 14, n. 1, p. 165 - 204, 2007., p. 165 - 173).

A discriminação estética pode ser conceituada como uma prática arbitrária baseada na aparência das pessoas, pois envolve a utilização de padrões institucionalizados de beleza para estabelecer tratamento diferenciado entre elas. Eles são critérios a partir dos quais são feitos julgamentos sobre a capacidade profissional dos indivíduos, o que traz vantagens para alguns e desvantagens para outros. Por um lado, a discriminação estética produz desvantagens no espaço de trabalho para aqueles e aquelas que estão distantes de padrões de beleza correntes. Eles são sistematicamente prejudicados em função da atribuição de sentidos negativos a certas características físicas que não correspondem a ideais estéticos, o que motiva tratamentos diferenciados em uma pluralidade de situações. De outro lado, a discriminação estética produz vantagens para muitas pessoas que correspondem a ideais de beleza, característica interpretada como evidência de competência e produtividade profissional. Apesar disso, elas também podem sofrer desvantagens, pois seus corpos são utilizados de forma estratégica, sendo que quaisquer alterações físicas acarretam perda dessas vantagens. Empregadores obtém ganhos financeiros por meio da homogeneização do corpo de funcionários. Esse tratamento, em quaisquer de suas formas, pode ser classificado como arbitrário porque não há correlação entre a aparência pessoal e a competência profissional; ele traz desvantagens porque fere o princípio da igualdade de tratamento entre pessoas igualmente situadas. Há então um fator comum nas duas situações: empregadores estabelecem falsas correspondências entre a aparência e competência e entre aparência e produtividade para garantir oportunidades ou para impedir o acesso a elas. (HOFMANN, 2022; RHODE, 2010RHODE, Deborah L. The beauty bias: the injustice of appearance in life and law. Oxford: Oxford University Press, 2010., p. 91 - 117; TOLEDANO, 2013TOLEDANO, Enbar. The looking-glass ceiling: appearance-based discrimination in the workplace. Cardozo Journal of Law & Gender, v. 19, n. 3, p. 683 - 714, 2013., p. 683 - 690).

3 - Discriminação Estética: Modos de Operação

A compreensão adequada da operação da discriminação estética requer uma breve exploração de alguns conceitos da psicologia social da discriminação. Julgamentos estéticos não são produto da mera internalização de critérios de beleza; eles são consequência de esquemas mentais que moldam a percepção individual da realidade social. Esquemas mentais nascem da convergência de três processos psíquicos importantes: a percepção, a categorização e a generalização. Nossas mentes recebem uma quantidade imensa de estímulos de toda ordem, elementos que constituem o conteúdo dos nossos processos mentais. Para que nossa experiência possa fazer sentido, eles são constantemente classificados a partir de categorias sociais internalizadas, ponto de partida para a generalização da atribuição de sentidos aos diversos fenômenos que fazem parte da realidade. Assim, nossos cérebros criam referências internas que serão acionadas todas as vezes que nos depararmos com uma determinada situação ou com um determinado estímulo. Esquemas mentais são referências cognitivas constantemente criadas e repetidas por indivíduos de forma a permitir a racionalização da experiência humana; os seres humanos estão sempre procurando confirmar o conteúdo dos esquemas mentais que eles criam para compreender a realidade social. (VAN DIJK, 2001, p. 352 - 371; WHITLEY; KITE, 2009, p. 2 - 25)

Esquemas mentais são elementos centrais da operação de preconceitos, de estereótipos e de inclinações cognitivas implícitas. Preconceitos são reações emocionais a indivíduos socialmente construídos como diferentes ou inferiores, são predisposições sobre pessoas com as quais o indivíduo tem pouca ou nenhuma interação, pois ele pensa que as generalizações internalizadas sobre eles são verdadeiras. Estereótipos são falsas generalizações feitas sobre membros de determinados grupos; eles podem ser tanto descritivos, quanto prescritivos. Aqueles são utilizados para designar supostas características de um determinado grupo, enquanto estes designam as funções que podem ser ocupadas por determinados grupos de acordo com as determinações dos grupos dominantes. Inclinações cognitivas implícitas designam a forma como esquemas mentais que operam de forma consciente ou inconsciente direcionam nossa percepção e nosso comportamento em uma direção ou outra revelando ausência de reflexão adequada, uma vez que nossas percepções apenas refletem falsas generalizações sobre categorias de pessoas. (MOREIRA, 2020MOREIRA, Adilson José. Tratado de direito antidiscriminatório. São Paulo: Contracorrente, 2020., p. 357 - 385).

Todos esses elementos estão presentes nas diferentes formas de discriminação estética. A discriminação baseada na aparência das pessoas tem como base antecipações feitas sobre o comportamento e a competência delas a partir da proximidade ou da distância de padrões de beleza; ela encontra fundamento nas generalizações que fazemos sobre membros de certos grupos sociais que apresentam características vistas como incompatíveis com padrões institucionalizados de beleza; ela decorre da internalização de valores culturais que moldam nossa percepção da competência profissional dos indivíduos, fazendo que tenhamos preferências por pessoas que possuem certas características e aversão por pessoas que se afastam desse ideal. A discriminação estética consiste em uma série de mecanismos pelos quais as pessoas são submetidas a situações desvantajosas. Essas práticas incluem o tratamento diferenciado das pessoas que não se enquadram em padrões de beleza institucionalizados, a discriminação contra pessoas que possuem características que se desviam das regras de apresentação pessoal adotadas pela empresa, o tratamento privilegiado de pessoas consideradas como bonitas com a garantia de contratação e melhores salários. A discriminação estética ocorre por meio da associação entre características físicas, traços fenotípicos e qualidades morais; os que são considerados mais atraentes são vistos como mais capazes e mais produtivos, como pessoas que possuem maior autoridade. Se os que correspondem aos padrões estéticos institucionalizados são vistos de forma positiva, os que estão longe deles são socialmente percebidos como pessoas menos competentes, menos inteligentes e menos amigáveis. Esses estereótipos podem impedir o acesso a posições de trabalho, podem motivar a exclusão da possibilidade de promoção, a segregação no espaço de trabalho, a vulnerabilidade a diferentes formas de assédio moral e a práticas discriminatórias. Em suma, a discriminação estética motiva atos individuais e práticas institucionais que impactam alguns de forma positiva e outros de forma negativa. Enquanto a beleza desperta empatia imediata, a ausência dela causa indiferença ou repulsa, fatos que trazem consequências diversas para esses grupos, uma vez que julgamentos estéticos motivam a disposição psicológica que um indivíduo tem em relação ao outro, sendo que quase sempre ela motiva atos prejudiciais às pessoas por estarem baseados em premissas falsas. (HOFMANN, 2022; CORBETT, 2007, p. 155 - 175).

Vemos então que a discriminação estética pode assumir a forma de um critério de análise da possibilidade de admissão de uma pessoa ou então um parâmetro para a análise das chances de progressão profissional de um indivíduo; ela pode produzir a segregação espacial no ambiente laboral motivada pela separação de funções a partir da aparência; ela pode ser responsável pela diferença de salários entre as pessoas porque determina quem poderá desempenhar funções com melhor compensação salarial. A posse de um ou mais traços considerados incompatíveis com ideais estéticos é tomada como critério para o julgamento da capacidade laboral do indivíduo, para a determinação das funções e dos lugares nos quais ele poderá desempenhar suas funções. Ela procura promover uma homogeneização do corpo de funcionários a partir da institucionalização de certos traços culturalmente vistos como ideais ou pela adoção de políticas institucionais que classificam certos traços fenotípicos como incompatíveis com o ambiente corporativo, embora não tenham qualquer tipo de correlação com a capacidade de um indivíduo desempenhar suas funções. A discriminação estética gera um tipo específico de injustiça decorrente da diferenciação de tratamento baseado na aparência, o que produz consequências negativas para muitos indivíduos, entre elas perda de oportunidades profissionais, desigualdade salarial significativa, sofrimento psíquico decorrente de insegurança econômica, entre outros fatores responsáveis pela marginalização de pessoas. (MAHAJAN, 167 - 176; REILLY, 1995REILLY, Gregory B. Employees’ personal appearance. The Labor Lawyer, v. 11, n. 2, p. 261 - 272, 1995., p. 261 - 272).

Devemos também examinar outro fenômeno amplamente relacionado com a discriminação estética: o fenômeno do covering ou acobertamento, conceito proposto pelo jurista Kenji Yoshino.10 10 KENJI, Yoshino. Covering. The Yale Law Journal, p. 01-173, 2001-2002. Esse termo designa o ato de alguém minimizar características pessoais com o objetivo de se aproximar dos padrões tidos como socialmente aceitáveis. A pessoa procura então retirar o foco de um traço pessoal para que outros sejam considerados. Segundo o autor, a discriminação aberta de indivíduos baseada em traços como raça e gênero tem se tornado cada vez menos comum na sociedade norte-americana, pois passou a ser substituída e acobertada por novos tipos de discriminações. Estas não se aplicam a grupos inteiros, mas sim àquelas pessoas que se recusam a encobrir as características que as diferenciam, em outras palavras, não aceitam a assimilação imposta pelas normas do grupo dominante. Importante destacar que a assimilação, em seu modelo clássico, se subdivide em três formas distintas, as quais operam independentemente umas das outras. A primeira delas é o covering, ou seja, quando o indivíduo mascara as características que o diferencia. A segunda chama-se passing e se refere às situações em que a pessoa se comporta de modo a aparentar pertencer ao grupo dominante. Por último, a terceira forma denomina-se conversion e corresponde ao momento em que o indivíduo internaliza aquilo que exteriorizou nas fases anteriores. Esse modelo clássico não apenas indica três formas de assimilação distintas, mas também modelos diversos de discriminação. Isso porque a maior possibilidade de modulação de traços identitários implica também em novas formas de tratamento discriminatório como os acima mencionados. Assim, para evitar desvantagens no mercado de trabalho, muitos membros de grupos raciais subalternizados procuram se aproximar ao máximo do ideal estético dominante; outros tentam a todo custo se apresentar como membros do grupo dominante pelo ocultamento de suas origens, enquanto outros procuram adotar todos os valores e formas de ser dos membros do grupo dominante. (YOSHINO, 2001, p. 783 - 865; HARRIS, 1993, p. 1710 - 1715).

A padronização do corpo de funcionários não ocorre apenas pela instituição de padrões estéticos, mas também de conformação comportamental. Assim, é exigido de membros de minorias sexuais que eles se apresentem socialmente como heterossexuais para que não sofram sanções no espaço corporativo; a admissão ou a promoção dependem da presunção feita por empregadores e clientes de que todos os funcionários e funcionárias são heterossexuais. Podemos identificar ainda a existência de outro fenômeno conexo que é o reverse covering (encobrimento reverso), o que atinge especialmente mulheres. A cultura corporativa exige que elas exibam algumas qualidades masculinas como a assertividade e a agressividade, mas também requer que elas não percam a feminilidade, situação presente no caso Price Waterhouse v. Hopkins, no qual, a corporação, ao mesmo tempo que demandava um comportamento mais assertivo de Hopkins para que se tornasse sócia, impunha a ela a obrigação de falar, gesticular e andar de forma mais feminina. Assim sendo, no mundo corporativo, para que uma mulher seja bem-sucedida, é imposto a ela que saiba balancear traços tanto masculinos quanto femininos, ou seja, ao mesmo tempo que deve ser assertiva, precisa continuar sendo uma mulher simpática (YOSHINO, 2001, p. 811 - 836).

No que diz respeito à discriminação racial, é possível notar que diversas das formas pelas quais ela se materializa permanecem ignoradas pelo ordenamento jurídico, fazendo com que elas tomem a forma de um covering reforçado11 11 KENJI, Yoshino. Covering. The Yale Law Journal, p. 01-173, 2001-2002. . Nesse mesmo sentido, minorias raciais que permanecem silentes quanto ao racismo que sofrem dão continuidade e reforçam a prática do covering, uma vez que elas deixam de lado sua individualidade e passam a agir e aparentar do modo como o mundo corporativo exige. Essa atitude toma forma na maneira de se vestir, se comunicar e se portar, distanciando-as de suas raízes. Por fim, frisa-se que a necessidade de encobrir características para ser aceito é algo que traz demasiado cansaço psicológico, pois esses indivíduos não podem agir espontaneamente, ou seja precisam pensar constantemente a respeito de como irão se apresentar aos outros. (HARRIS, 1993; WHARTON, 2009)

4 - Discriminação Estética e outras Formas de Tratamento Diferenciado

Vimos que a discriminação estética está baseada na presença pervasiva de julgamentos feitos a partir da aparência pessoal, o que ocorre especialmente no espaço laboral, uma vez que muitos indivíduos responsáveis pela admissão ou promoção de candidatos utilizam critérios estéticos para tomar uma série de decisões. Ela é amplamente praticada por vários motivos: por causa de um processo de socialização que ensina as pessoas cotidianamente a estabelecerem correlações diretas entre beleza física e qualidades morais, para atender as preferências privadas de consumidores potenciais, para criar uma identificação entre a qualidade de produtos com segmentos sociais privilegiados e por causa da prevalência do racismo nas sociedades humanas. A presença desse problema social decorre ainda da inexistência de legislação que reconheça a aparência como um critério de proteção jurídica especial; veremos adiante que condenações dessa prática são justificadas a partir da discriminação baseada na raça ou no gênero. Por outro lado, certas jurisdições permitem que empregadores deixem de contratar ou despeçam funcionários por quaisquer motivos, entre eles critérios estéticos.

A discriminação estética está amplamente associada a outras práticas discriminatórias que operam no espaço corporativo, como a discriminação interseccional, a discriminação racional, a discriminação institucional e a discriminação inconsciente. Algumas vezes ela aparece como manifestações delas; outras vezes essas discriminações surgem como efeitos da discriminação estética. Observamos que membros de mais de um grupo subalternizado são especialmente vulneráveis à discriminação baseada na aparência, especialmente mulheres que são parte de minorias raciais. A raça opera como um fator de discriminação estética em sociedades nas quais critérios de beleza são identificados em pessoas brancas; a discriminação estética pode afetar especialmente mulheres de pele escura, pois incide sobre a raça e sobre o gênero dos indivíduos. Mulheres são sempre pressionadas para demonstrarem perfeição estética, especialmente no espaço corporativo. (GINES, 2011; BARTLETT, 1994; FRIEDRICKS, 2015FRIEDRICKS, Sarah E. Sexy sex discrimination: why appearance-bases discrimination is sex discrimination. Journal of Corporation Law, v. 40, n. 2, p. 503 - 520, 2015.).

Muitos empregadores procuram justificar preferências estéticas como um tipo de discriminação racional: segundo eles, a preferência por funcionários brancos, por funcionários jovens e por funcionários magros não expressa animosidade em relação a membros de certos grupos, mas simplesmente uma tentativa de alinhamento dos critérios de seleção com as preferências privadas de clientes ou com o público ao qual seus produtos são dirigidos, comportamento alinhado aos interesses do negócio. A discriminação estética seria um tipo de cálculo racional baseado em interesses institucionais e não na intenção de excluir membros de grupos subalternizados de oportunidades profissionais. (ALEXANDER, 1992, p. 151 - 166).

Por ser praticada por representantes de instituições públicas e privadas, a discriminação estética também pode ser caracterizada como um tipo de discriminação institucional. Esse tipo de discriminação pode assumir quatro modalidades distintas, sendo elas: (i) negação de acesso à instituição; (ii) discriminação dentro da instituição; (iii) discriminação no oferecimento do serviço; e (iv) negação de acesso aos serviços da instituição. A discriminação baseada na aparência assume todas essas formas: critérios estéticos são utilizados para impedir o acesso de pessoas a postos de trabalhos nas instituições, para impor formas de tratamento arbitrários a indivíduos com certas características que trabalham nelas; a aparência física determina a forma como funcionários tratam clientes e pode determinar se uma pessoa será atendida ou não por funcionários. (MOREIRA, 2020MOREIRA, Adilson José. Tratado de direito antidiscriminatório. São Paulo: Contracorrente, 2020., p. 456 - 465).

É importante notar que esse tipo de tratamento desvantajoso não decorre apenas de políticas institucionais; ele pode acontecer independentemente de normas oficiais dessa natureza, uma vez que indivíduos são culturalmente treinados para reconhecer competência profissional apenas em certos grupos de pessoas e para associar a incompetência profissional a outros. A discriminação estética pode ocorrer de forma consciente ou inconsciente por pessoas que desempenham cargos de poder dentro do espaço de laboral. Com isso, a prática dessa modalidade de discriminação, de forma implícita ou explícita, faz com que, mesmo pessoas que não se consideram racistas, imponham desvantagens a membros de certos grupos subalternizados. Isso está intrinsecamente relacionado com a questão da discriminação inconsciente, tendo em vista que o julgamento estético também possui um caráter individual. Esse tipo de discriminação ocorre de forma quase automática, uma vez que certas características físicas despertam reações emocionais e cognitivas imediatas, sendo que elas estão baseadas em construções e vivências individuais. (LAWRENCE III, 1986; MOREIRA, 2020MOREIRA, Adilson José. Tratado de direito antidiscriminatório. São Paulo: Contracorrente, 2020., 434 - 439).

É importante então reconhecer que julgamentos estéticos determinam a proximidade e a distância entre as pessoas dentro de um ambiente. Isso porque elas tendem a se unir àqueles com os quais se identificam. Essa identidade pode ser conferida por meio de diversos aspectos, como social, cultural e físico. Por ser o primeiro aspecto por meio do qual as pessoas identificam o status das demais, a aparência constitui a primeira barreira ou o primeiro fator de promoção da integração social, o que demonstra os problemas relacionados com a imposição de padrões estéticos como critério de respeitabilidade social, pois os que não estão dentro deles sempre enfrentam diferentes formas de discriminação nos diversos espaços sociais. Por fim, entende-se que não se pode esperar que uma lei antidiscriminatória suprima, de modo independente, todas as formas de discriminação existentes nos espaços de trabalho, visto que isto está enraizado na sociedade. Portanto, por se tratar de um problema complexo e profundo, para uma efetiva mudança, é necessária uma transformação nos valores e nos paradigmas sociais. (BAGENSTOS, 2006BAGENSTOS, Samuel R. The Structural Turn and the Limits of Antidiscrimination Law. California Law Review, v. 94, n. 1, p. 1-48, 2006., p. 5 - 15; GREEN, 2007GREEN, Tristin. A structural approach as antidiscrimination mandate: locating employer wrong. Vanderbilt Law Review, v. 60, n. 3, p.854 - 905, 2007., p 854 - 865)

Critérios de beleza, produto de representações culturais que espelham as relações de poder existentes dentro de uma sociedade, sempre expressam características dos membros dos grupos dominantes. Muitas empresas tendem a contratar e selecionar seus empregados para que esses se transformem no “corpo estético” da organização. Com isso, os funcionários passam a ser a personificação da instituição, eles expressam a identidade dela. Isso se dá por conta da discriminação estética, processo que, como anteriormente definido, consiste na adoção de critérios de beleza para a contratação de funcionários e funcionárias. Um dos grandes problemas relacionados a esse tipo de discriminação decorre da possibilidade de que diversas pessoas qualificadas sejam desconsideradas em razão de sua aparência e não a partir de seu desempenho. Uma vez que não há quaisquer correlações entre aparência e competência, as empresas também sofrem perdas econômicas significativas por contratarem funcionários especialmente por causa da beleza física. (WARING, p. 193 - 207).

5 - Discriminação Estética e a Racionalidade do Mercado

A discriminação estética dentro do ambiente de trabalho também tem sido classificada como um tipo de exploração econômica, um tipo de lookism, termo que designa a adoção de um padrão de beleza e atratividade que opera como um critério de julgamento da competência profissional para considerações sobre a possibilidade de admissão de uma pessoa. Essa prática pode ser analisada a partir de uma perspectiva econômica porque empregadores tendem a contratar pessoas com características físicas semelhantes, como uma estratégia de propaganda. Isso ocorre, não apenas com a finalidade de ter um corpo laboral homogêneo, mas também para criar uma imagem comercial compatível aos seus produtos, com o objetivo de seduzir clientes e atraí-los pelo conceito da marca. Porém, essa técnica vai além da contratação, sendo mascarada como a cultura da empresa, por meio de códigos de vestimenta e higiene. Com isso, os empregadores mantêm seus funcionários consoante a seus padrões mínimos de aparência, o que possibilita àqueles obter compensação financeira a partir do critério estético. Assim, muitas empresas buscam ativamente contratar funcionários com uma aparência consistente com a classe social do grupo que ela pretende atingir, de forma a facilitar a identificação dessas pessoas com os produtos da empresa. (WARING, 2011WARING, Peter. Keeping up Appearances: Aesthetic Labour and Discrimination Law. Journal of Industrial Relations, 53, n. 1, p. 193-207, 2011., 1p. 199 - 201; HOFMANN, 2022; RHODE, 2012, p. 40 - 65).

O caso Gonzales v. Abercrombie & Fitch Stores, Inc.12 12 ESTADOS UNIDOS. González v. Abercrombie & Fitch Stores, Inc., No. 3:03-cv-02817. demonstra a realidade da exploração econômica ocorrida por meio da busca da homogeneidade estética do corpo de funcionários, uma referência interessante para entenderemos um fenômeno que também ocorre na sociedade brasileira. Essa famosa rede de lojas de roupas foi processada pela prática de discriminação racial, em razão de sua “política de aparência” utilizada para contratar seus funcionários. A empresa em questão tinha a prática de contratar preferencialmente pessoas jovens e brancas de aparência ariana ou pessoas de outras raças próximas desse ideal. Elas deveriam ser extremamente atraentes, o que excluía quaisquer pessoas obesas, pessoas com pele muito escura, pessoas muito baixas ou com algum tipo de deficiência. A presença de trabalhadores bonitos tornou a marca extremamente conhecida, sendo que suas lojas eram sempre visitadas por pessoas interessadas em ver funcionários que tinham a aparência de modelos. Algumas delas localizadas em grandes centros urbanos dos Estados Unidos se tornaram verdadeiras atrações turísticas. (MAcBRIDE, 2005). Essa estratégia de associar a marca a jovens brancos de classe alta era refletida no preço das mercadorias, bastante acima da média praticada por marcas que atendiam o público jovem. Esse tipo de comportamento institucional suscita algumas questões éticas que precisam ser abordadas. Qual é o limite da liberdade dos empregadores de contratar apenas funcionários que são compatíveis com a imagem da empresa e com o que eles querem vender para o mercado e até onde isso se torna algo antiético, em virtude da objetificação dos corpos dos empregados, elementos que se tornam objetos de vigilância constante dos empregadores?

A resposta a essa pergunta é complexa, uma vez que não há um consenso a respeito da forma como os empregadores devem atuar de modo a incentivar a igualdade tanto antes, quanto depois da contratação de seus funcionários. Desse modo, a legislação e o sistema judiciário se mostram de extrema importância, já que, na falta de consenso entre os particulares, são eles que devem decidir qual é a melhor forma de agir. Estamos diante de uma forma específica de atividade laboral que é o trabalho estético, um tipo de atividade baseada no apelo estético e sexual das pessoas com a finalidade de chamar atenção para um aspecto comum do comportamento humano: fazer julgamentos morais a partir de julgamentos estéticos. (WARING, 2011WARING, Peter. Keeping up Appearances: Aesthetic Labour and Discrimination Law. Journal of Industrial Relations, 53, n. 1, p. 193-207, 2011., p. 194 - 196). Não podemos ignorar o fato de que esse trabalho estético implica benefícios, mas também a exploração de seres humanos que correspondem aos ideais estabelecidos pela empresa. Além disso, essa prática pressupõe a discriminação sistemática daqueles grupos que não correspondem a esses padrões, o que inclui inúmeros grupos minoritários como grupos raciais subalternizados, pessoas com deficiência, pessoas obesas, pessoas idosas e até mesmo homens efeminados e mulheres masculinizadas. Ainda, importa notar o quanto tais práticas tendem a impactar com mais força o gênero feminino, posto que as mulheres possuem sobre si muitas expectativas e estereótipos construídos ao longo de gerações. Nesse sentido, políticas de aparência e a obrigatoriedade de se moldar a elas contribuem para reforçar os estereótipos existentes quanto às imagens femininas. Assim, as mulheres se veem obrigadas a gastar tempo e energia a fim de alcançar o ideal de beleza feminina. Em razão disso, muitas mulheres são obcecadas por beleza e por sua aparência física. Isso, porém, é extremamente danoso, pois faz com que elas se mantenham em segundo plano na sociedade, aumentando sua vulnerabilidade e os meios de exploração delas pelos homens. (WARING, 2011, p. 197 - 201; MAHAJANT, 2007MAHAJAN, Ritu. The Naked Truth: Appearance Discrimination, Employment, and the Law. Asian American Law Jornal, v. 14, n. 1, p. 165 - 204, 2007., p. 172 - 173)

6 - Discriminação Estética: História e Jurisprudência Estrangeira

Da mesma forma que outras teorias de discriminação, análises sobre o tema da discriminação estética tiveram início nos Estados Unidos, jurisdição na qual empregadores possuem uma ampla margem de autonomia para implementar critérios para a contratação ou demissão de funcionários. Eles podem deixar de contratar ou demitir funcionários sem quaisquer causas concretas, desde que os motivos não violem regras presentes na legislação estadual ou federal. Essas normas impediram diversas práticas presentes no mercado de trabalho como formas sistemáticas de discriminação baseadas na raça e no gênero, desenvolvimento responsável pelo aumento da diversidade nos espaços corporativos. Entretanto, sistemas discriminatórios possuem uma natureza dinâmica, motivo pelo qual membros de grupos majoritários sempre criam estratégias para manter certos grupos sociais em uma condição subordinada. Surge, então, a dificuldade de identificar e combater essas práticas a partir das categorias legalmente protegidas. A dificuldade de identificação e combate torna a discriminação estética extremamente prejudicial, visto que ela é tão repugnante quanto as demais discriminações, como a racial e de gênero. Os atributos sobre os quais ela incide não podem ser alterados e, além disso, eles não possuem uma relação racional com o propósito dos empregadores em selecionar as pessoas mais competentes. É preciso indicar, ainda, a dificuldade associada com a identificação do peso da discriminação estética como motivação para tratamento desvantajosos, um dos motivos pelos quais muitas jurisdições não a reconhecem expressamente como uma violação do princípio da igualdade. (TOLEDANO, 2013TOLEDANO, Enbar. The looking-glass ceiling: appearance-based discrimination in the workplace. Cardozo Journal of Law & Gender, v. 19, n. 3, p. 683 - 714, 2013., p. 685 - 690).

A dificuldade de identificação desse tipo de discriminação pode ser demonstrada em uma das primeiras decisões nas quais o tema, do que hoje chamamos de discriminação estética, foi discutida, fato que gerou uma literatura significativa sobre esse tipo de tratamento diferenciado. A decisão da Suprema Corte de Nova York no caso Rogers v. American Airlines expressa essas dificuldades. De um lado tínhamos uma mulher negra que alegava ter sido vítima desse tipo de prática discriminatória em função de uma política institucional de higiene que estabelecia parâmetros para a apresentação física dos funcionários, entre eles a proibição do uso de cabelos inteiramente trançados. Renee Rogers não se submeteu a essa exigência porque entendeu ser um artificio utilizado especificamente para impedir que mulheres negras pudessem utilizar cabelos trançados. Ela argumentou que não se tratava apenas de um penteado, mas sim de expressão de sua identidade racial, o que seria apagado em função de uma regra institucional baseada no ideal estético do grupo racial dominante. Entretanto, a Suprema Corte de Nova York decidiu que a norma não tinha natureza discriminatória. Ela não poderia ser classificada nem como discriminação racial e nem como discriminação de gênero, pois era aplicada a homens e mulheres e a negros e brancos indistintamente. 13 13 ESTADOS UNIDOS. Rogers v. American Airlines, Inc., 527 F. Supp. 229 (S.D.N.Y. 1981).

Podemos perceber a ausência de sensibilidade daquele órgão julgador em entender a dinâmica cultural subjacente ao caso em questão, uma vez que desconsidera o impacto desproporcional que a norma tinha em grupos subalternizados. Ao classificar a norma como neutra, o julgado ignora o fato de que práticas institucionais podem promover a discriminação, mesmo quando não utilizam qualquer tipo de tratamento discriminatório. A proibição do uso de cabelo inteiramente trançado afeta em maior grau as mulheres negras, visto que, historicamente, a utilização de cabelo trançado faz parte da sua identidade cultural. Ou seja, homens e mulheres brancas não seriam impactados da mesma forma por essa política. Deste modo, fica claro que a Suprema Corte de Nova York falhou em proteger os vulneráveis e identificar a discriminação ao dar maior importância aos interesses da American Airlines do que aos efeitos que sua “política de higiene” possui sobre seus funcionários. (MAHAJAN, 2007MAHAJAN, Ritu. The Naked Truth: Appearance Discrimination, Employment, and the Law. Asian American Law Jornal, v. 14, n. 1, p. 165 - 204, 2007., p. 173 - 175).

Alguns temas conexos foram discutidos no caso McManus v. MCI Communs. Corp. Nele, Wandra McManus, uma mulher negra, ajuizou uma ação alegando ter sido vítima de discriminação racial e estética pela empresa na qual trabalhava, instituição que a despediu sob o argumento de que sua substituição se mostrava necessária para que o corpo de funcionários refletisse melhor o espírito corporativo norte-americano. Seus superiores não aprovavam seus trajes étnicos, nem os penteados que utilizava. O órgão julgador afirmou que ela não produziu provas suficientes que comprovassem animosidade racial, pois não houve substituição por uma pessoa de outra raça. Ela foi substituída por outra pessoa negra cujas vestimentas eram mais compatíveis com os parâmetros estabelecidos dentro da cultura corporativa. Mais uma vez, uma compreensão limitada do racismo como discriminação direta impediu que aquele órgão julgador pudesse garantir a devida proteção jurídica.14 14 ESTADOS UNIDOS. McManus v. MCI Communications Corp., No. 98-CV-1268, 2000.

Decisões ocorridas em outros países também foram responsáveis pelo interesse legal e teórico no tema da discriminação baseada na aparência das pessoas. Por exemplo, um tribunal japonês considerou as alegações feitas por um alto funcionário da marca italiana Prada. Segundo ele, seu superior imediato exigiu a demissão de todas as pessoas que não correspondiam à aparência da marca: pessoas idosas, obesas ou consideradas feias. A marca em questão exigia a contratação de pessoas que correspondessem ao que seu público consumidor consideraria pessoas atraentes, o que não inclui indivíduos com as características acima mencionadas. Esses exemplos designam o que autores classificam como trabalho estético: um conjunto de contratações baseadas na preferência de pessoas com certo apelo visual que clientes podem identificar como direcionados para pessoas da classe social ao qual eles pertencem. (WARING, 2011WARING, Peter. Keeping up Appearances: Aesthetic Labour and Discrimination Law. Journal of Industrial Relations, 53, n. 1, p. 193-207, 2011., p. 194).

Grande parte das jurisdições estrangeiras não incluem a aparência como um critério legalmente protegido contra discriminações, embora tribunais utilizem outros fatores para garantir proteção às pessoas que sofrem esse tipo de tratamento desvantajoso. Uma decisão australiana mostra as particularidades da discriminação baseada na aparência. Esse é o caso de uma empresa de aviação que estabeleceu critérios para a admissão baseados em um tipo de estética organizacional pautada em juventude, vigor e afabilidade. As campanhas de publicidade muito claramente sexualizavam o corpo feminino, uma tentativa de despertar o interesse do público masculino. Além disso, os candidatos eram obrigados a cantar e a dançar para funcionários da empresa para demonstrarem que tinham as qualidades relacionadas com a estética organizacional da empresa.15 15 AUSTRÁLIA. Nicole Julie Hopper and others v. Virgin Blue Airlines Pty Ltd [2005] QADT 28.

Decisões recentes ocorridas nos Estados Unidos revelam outro aspecto da discriminação estética, problema que afeta especialmente mulheres. Uma delas diz respeito a decisão do Citibank de demitir uma mulher por ela ser excessivamente atraente, o que comprometia a concentração de seu superior. (FRIEDRICKS, 2015FRIEDRICKS, Sarah E. Sexy sex discrimination: why appearance-bases discrimination is sex discrimination. Journal of Corporation Law, v. 40, n. 2, p. 503 - 520, 2015., p. 508 - 509). Outro processo judicial trazia a mesma alegação: um empregador decidiu despedir uma funcionária porque ele a considerava irresistível, situação que ameaçava seu casamento.16 16 ESTADOS UNIDOS. Nelson v. Knight, 834 N.W.2d 64 (Iowa, 2013). O problema do tratamento discriminatório dessa natureza também esteve presente em um acaso no qual uma mulher alegou ter sido impedida de progredir profissionalmente porque seus superiores a consideravam apenas uma garota bonita que usa roupas sensuais. Esses três casos demonstram que a discriminação baseada na aparência pode trazer benefícios para mulheres, mas eles são apenas aparentes, uma vez que são muitas vezes expressões de sexismo. A aparência feminina é vista como um objeto de exploração econômica ou ponto de partida para práticas discriminatórias, baseadas na premissa de que mulheres comprometem o ambiente profissional. Vemos então que, se de um lado a discriminação estética prejudica mulheres que são membros de grupos subalternizados em função da preferência por mulheres brancas, essas últimas estão sempre expostas à possibilidade de serem objetificadas no ambiente de trabalho. (FRIEDRICKS, 2015, p. 508 - 515).

Muitos julgados classificam o comportamento dos empregadores como discriminação estética, mas eles sempre recorrem a categorias legalmente protegidas para condenar os empregadores que praticam a discriminação baseada na aparência. Muitos casos mencionam normas institucionais referentes a apresentação dos funcionários; muitos casos envolvem falas jocosas de funcionários sobre a aparência das pessoas, falas que expressam o tratamento efetivo que os indivíduos recebem no espaço de trabalho. Por esse motivo, os julgados classificam essas regras como violações de direitos da personalidade, uma vez que elas interferem no direito de as pessoas poderem determinar a expressão da aparência pessoal sem sofrerem danos arbitrários. Além de classificarem a discriminação baseada na aparência como violação de direitos da personalidade, alguns julgados também classificam normas que regulam a apresentação pessoal como desrespeito ao direito da privacidade. Um número significativo de decisões desse tribunal classifica o comportamento de empregadores como assédio moral, sejam aqueles nos quais os empregadores exigem que mulheres negras alisem o cabelo, sejam aqueles nos quais empregadores e funcionários fazem referência a aparência das pessoas para ridicularizarem as pessoas.17 17 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 6ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000352-83.2020.5.02.0316, Juíza: Marcele Carine dos Prazeres Soares, 14.06.2022 (condenando empregador por assédio moral baseado na perseguição ocorrida em função da obesidade da empregada); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. Recurso Ordinário No. Nº 1000374-14.2021.5.02.0444, Órgão Julgador: 12ª. Turma, Relator: Benedito Valentini (condenando empresa por impedir progressão profissional de empregado em função da cor do cabelo e em função de sua homossexualidade); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 48ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000352-83.2020.5.02.0316, Juíza: Marcele Carine dos Prazeres Soares, 14.06.2022 (classificando o impedimento de cumprir jornada de trabalho em função do uso de tranças como uma agressão à honra pessoal); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 10ª. Vara do Trabalho de São Paulo. Processo No. 1000872-25.2020.5.02.071. Juiz: Luciana Carla Corrêa Bertocco, 31.01.2022 (classificando a proibição de dreadklocks no ambiente do trabalho como uma violação do direito à honra e uma violação da autoestima).

7 - Conclusão

A discriminação estética é um problema extremamente comum na sociedade brasileira. Ela traz várias consequências negativas para os indivíduos, especialmente para membros de grupos sociais subalternizados. A discriminação baseada na aparência consiste em um tipo de discriminação que cria dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, impede a progressão profissional e provoca danos psicológicos em muitas pessoas. Com isso, ela promove a reprodução de desigualdades sociais, notoriamente desigualdades entre grupos raciais. É importante notar que mesmo membros do grupo racial dominante também são prejudicados, uma vez que não são contratados em função de competência, mas para garantir ganhos econômicos para seus empregadores. Eles obtêm vantagens profissionais de um lado, mas são prejudicados pelo controle institucional de seus corpos. Curiosamente, a discriminação estética, uma prática generalizada em nossa sociedade, traz perdas significativas para as empresas, uma vez que elas deixam de contratar os profissionais mais qualificados, pessoas muito mais aptas a garantirem a sobrevivência da própria empresa.

8 - Referências Bibliográficas

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  • WHITLEY Jr., Bernard B.; KITE, Mary E. The psychology of prejudice and discrimination. 2a ed. Belmont: Wadsworth, 2010.
  • 1
    BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. ARR, No. 343-45.2015.07.0003, Órgão Julgador: 2ª. Turma, Relatora Ministra Maria Helena Mallmann, DEJT 17/12/2021.
  • 2
    BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 12ª. Região, Recurso ordinário no. 0000613-91.2017.5.12.0025, órgão julgador: 1ª. Câmara, Relatora: Viviana Colluci, 04.07.2018.
  • 3
    BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Agravo de Instrumento em Recurso de Revista, No. AIRR - 333-69.2017.5.09.0651. Relatora: Ministra Morgana de Almeida Richa. Publicação: 22/03/2023.
  • 4
    O artigo terceiro da Constituição Federal diz: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
  • 5
    Este artigo examina decisões judiciais do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região, o que congrega o estado de São Paulo. Restringimos nossa análise às decisões desse órgão julgador porque acreditamos que a população jurisdicionada representa de forma adequada a variedade de elementos envolvidos na discriminação estética, como o gênero, raça, classe e compleição física.
  • 6
    BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região, 45ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000041-66.2019.5.02.0045, Juiza: Maria Alice Severo Kluwe, 28.10.2019 (condenando empregador por impedir empregado de usar cabelo afro por contrariar regras da empresa sobre aparência dos empregados, o que foi classificado como uma violação de direitos a personalidade); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 48ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000724-26.2021.5.02.0048. Juiz: Helder Campos de Castro, 29.22.2022 (classificando a dispensa de um funcionário baseado na violação de regras de aparência em função de usos de tranças como uma prática preconceituosa que viola a dignidade humana); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. Processo No. 1001050-15.2022.5.02.0706. Órgão Julgador: 9ª. Turma, Relator: Simone Fritschy Louro (Classificando a imposição de encobrimento do cabelo de pessoa negra, mas não de pessoas brancas como uma violação do princípio da dignidade e da privacidade).
  • 7
    BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 18ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000393-71.2021.5.02.0718, Juiza: Ana Paula Freire Rojas, 11.11.2022 (condenando empregador ao pagamento de danos morais pela prática de injúria em função de referências preconceituosas ao cabelo de uma funcionária negra e a imposição de alisamento); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 18ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000393-71.2021.5.02.0718, Juiza: Ana Paula Freire Rojas, 11.11.2022 (condenando empregador ao pagamento de danos morais pela prática de injúria em função de referências preconceituosas ao cabelo de uma funcionária negra e a imposição de alisamento); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 6ª. Região. 1ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1001150-53.2019.5.02.0001, Juíza: Tatiana Arroyo, 07.02.2020 (classificando o impedimento de cumprir jornada de trabalho por utilizas dreadlocks como um tipo de discriminação estética).
  • 8
    BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 6ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000352-83.2020.5.02.0316, Juíza: Marcele Carine dos Prazeres Soares, 14.06.2022 (condenando empregador por assédio moral baseado na perseguição ocorrida em função da obesidade da empregada); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. Recurso Trabalhista No. 1000454-27.2021.5.02.0363, Órgão Julgador: 5ª. Turma, Relatora: Ana Cristina Lobo Petinati, 31.01.2022 (mantendo condenação de primeira instância que garantiu indenização por danos morais a empregada preterida em favor de pessoas magras e bonitas); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. Recurso Trabalhista No 1001032-82.2022.5.02.0321, Órgão Julgador: 18ª. Turma, Relatora: Renata de Paula Eduardo Beneti (condenado empresa por discriminação estética e danos morais cometidos contra empregado obeso e homossexual).
  • 9
    BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. Recurso Trabalhista No. 1000454-27.2021.5.02.0363, Órgão Julgador: 5ª. Turma, Relatora: Ana Cristina Lobo Petinati, 31.01.2022 (condenando empregador por preferência por pessoas magras e bonitas para cargos de chefia em sua empresa); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. Recurso Trabalhista No 1000613-38.2021.5.02.0017, Órgão Julgador: 12ª. Turma, Relatora: Elizabeth Mostardo (discutindo prática de empregador que utilizava a beleza e forma física como critério para determinação do desempenho da função de segurança); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 1ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000823-02.2021.5.02.0046, Juíza: Fernanda Ferreira Teixeira, 02.09.2022 (condenando empregador por selecionar empregados a partir da aparência e por exigir apresentação e postura dos empregados que o fariam parecer bonitos).
  • 10
    KENJI, Yoshino. Covering. The Yale Law Journal, p. 01-173, 2001-2002.
  • 11
    KENJI, Yoshino. Covering. The Yale Law Journal, p. 01-173, 2001-2002.
  • 12
    ESTADOS UNIDOS. González v. Abercrombie & Fitch Stores, Inc., No. 3:03-cv-02817.
  • 13
    ESTADOS UNIDOS. Rogers v. American Airlines, Inc., 527 F. Supp. 229 (S.D.N.Y. 1981).
  • 14
    ESTADOS UNIDOS. McManus v. MCI Communications Corp., No. 98-CV-1268, 2000.
  • 15
    AUSTRÁLIA. Nicole Julie Hopper and others v. Virgin Blue Airlines Pty Ltd [2005] QADT 28.
  • 16
    ESTADOS UNIDOS. Nelson v. Knight, 834 N.W.2d 64 (Iowa, 2013).
  • 17
    BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 6ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000352-83.2020.5.02.0316, Juíza: Marcele Carine dos Prazeres Soares, 14.06.2022 (condenando empregador por assédio moral baseado na perseguição ocorrida em função da obesidade da empregada); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. Recurso Ordinário No. Nº 1000374-14.2021.5.02.0444, Órgão Julgador: 12ª. Turma, Relator: Benedito Valentini (condenando empresa por impedir progressão profissional de empregado em função da cor do cabelo e em função de sua homossexualidade); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 48ª. Vara do Trabalho de São Paulo, Processo No. 1000352-83.2020.5.02.0316, Juíza: Marcele Carine dos Prazeres Soares, 14.06.2022 (classificando o impedimento de cumprir jornada de trabalho em função do uso de tranças como uma agressão à honra pessoal); BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª. Região. 10ª. Vara do Trabalho de São Paulo. Processo No. 1000872-25.2020.5.02.071. Juiz: Luciana Carla Corrêa Bertocco, 31.01.2022 (classificando a proibição de dreadklocks no ambiente do trabalho como uma violação do direito à honra e uma violação da autoestima).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2023
  • Aceito
    27 Jul 2023
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