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Brasil, a escolha pela guerra civil

SAUVÊTRE, Pierre; LAVAL, Christian; GUÉGUEN, Haud; DARDOT, Pierre. A escolha da guerra civil: uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021. 364p

1. Introdução

A obra aqui resenhada (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021.) tem como tema a pergunta: como o projeto neoliberal utiliza de fórmulas de guerra civil e seus diversos tipos de violência para viabilizar a sua própria existência?

O neoliberalismo, em suas bases, funda-se em uma escolha pela guerra civil. O que era implícito em sua fundação torna-se explícito em seu desenvolvimento na pós-modernidade. O emprego de formas oficiais e não-oficiais de violência contra a população reafirma esta ideia. Denomina-se guerra civil, pois é desenvolvida contra a sua própria população, em especial, personificada na pessoa do inimigo interno, conduzida pelo direito e pela lei, em plena vigência do Estado de Direito (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 23-24).

Em momentos mais drásticos, o Estado de Direito deixa sua função latente neoliberal assumir oficialmente seu papel: ser declarado Estado de Exceção. Nesse momento, o inimigo interno ganha o palco e holofotes, mesmo que não tenha rosto. A repressão contra movimentos sociais é um exemplo.

Do outro lado da guerra não está o governo, mas, sim, as oligarquias que controlam o governo e sua necropolítica. Mas não é só da luta entre oligarquias e movimentos sociais que esta guerra civil se alimenta. A diferença é combustível para este Estado de Beligerância: Supremacistas versus movimento Black Lives Matters; Neoconservadores versus Ativistas Políticos LGBTQIA+; (In)civilizados Intolerantes versus Comunidades Tradicionais. Estes são alguns exemplos. São formas parecidas de uma guerra civil, não declarada, mas uma guerra civil latente, em que a sociedade se cinde em duas.

Uma das grandes marcas dessa cisão é o questionamento da existência ou legitimidade das instituições democráticas: eleições, Poder Judiciário e Legislativo. Também se utiliza de uma inversão discursiva orwelliana, tal como guerra é paz (si vis pacem para bellum), liberdade é diferença (não igualdade).

Michel Foucault, enfrentando a ideia hobbesiana de guerra de todos contra todos como categoria vidente do Estado de Natureza, afirma que “a guerra civil é a matriz de todas as lutas pelo poder, de todas as estratégias do poder e, por conseguinte, também a matriz de todas as lutas” (FOUCAULT, 2015______. Sociedade Punitiva. São Paulo: Martins Fontes, 2015., p. 13-14).

Essas guerras civis se caracterizam por serem guerras sociais, étnicas, políticas, jurídicas. Logo, são guerras multifacetárias. Não têm uma única estratégia, mas apresentam diversas frentes que se retroalimentam. Essa multifacetariedade indica que não se trata de uma guerra do 1% (ricos) contra os 99% (pobres). Ela tem estrutura diversificada. Pode ser composta de membros da classe média, militares e outros servidores públicos. Obviamente, nas mãos das oligarquias, a sua função latente é proteger os interesses dos 1% (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 31-33).

A racionalidade neoliberal representa uma forma de ver a realidade como verdade civilizada, em que, protegendo a existência do mercado, defende-se a permanência de uma sociedade.

2. Chile, a primeira contrarrevolução liberal

A eclosão neoliberal, que mudaria o século XX e daria passagem ao capitalismo de barbárie no século XXI, se deu em três eventos interligados: o Golpe Militar (Neocolonial) do Chile (1973), a premiação de Friedrich Hayek como Prêmio Nobel de Economia (1974) e a ascensão da Dama de Ferro (Margaret Thatcher) no Partido Conservador (1975).

A figura central de Hayek inspirou a Dama de Ferro e legitimou a retórica de que é melhor uma ditadora neoliberal do que um democrata antiliberal. O caminho para a ruptura democrática chilena origina-se com a eleição de Allende (1972), percorre diversos atentados e sabotagens encabeçadas por proprietários. Também nesse caminho está a incapacidade da esquerda em se impor contra a lei sobre controle de armas. Esse percurso, agregado à incapacidade de oposição política, gera uma espécie de guerra contrarrevolucionária sui generis (SAUVÊTRE et al, 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 49). Assim, “o golpe de Estado é considerado medida de saúde pública diante da situação de guerra que o país enfrenta, pela ação de um inimigo mortal, invariavelmente designado como o comunismo ou o marxismo” (SAUVÊTRE et al, 2021, p. 51).

Assim como no Brasil, o Chile, com o Golpe de Estado, promulgou uma nova constituição, emanada da vontade de existência de uma nação (Poder Constituinte). Essa constituição defende a soberania e a separação dos Poderes, além de atribuir muitos poderes ao presidente, tais como o de declarar guerra. Em contrapartida, estabelece um Conselho de Segurança Nacional e a autonomia do Banco Central para determinar a política econômica do país. Não difere da Constituição Federal de 1988 do Brasil, que prevê a defesa da livre iniciativa no artigo 1.°, inciso IV e, a nível infraconstitucional, a Lei Complementar n.° 179 de 2021, que, apesar de declarar que o Banco Central do Brasil tem como função o fomento do pleno emprego, também visa a suavização da atividade econômica, conforme se verifica no preâmbulo. Ainda no plano legislativo, o governo de extrema direita, no Brasil, sancionou a lei n.° 13.874 de 2019, que estabelece em seu artigo 1.° “(...) normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica (...)”.

Por possibilitar privatizações e defender o desmonte dos direitos sociais, a Constituição Chilena de 1980 é considerada impostora (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 159). Ela possibilitava que o indivíduo assumisse uma posição racional para buscar a sua própria sobrevivência. Segundo Hayek: “não é a racionalidade que é condição para o funcionamento da concorrência, é antes a concorrência, ou as tradições que a permitem, que produzem o comportamento racional” (HAYEK, 1985c______. Direito, Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. Vol. 3 - A ordem política de um povo livre. São Paulo: Visão, 1985c., p. 81).

3. Demofobia neoliberal

Em plena ditadura militar chilena, a sociedade Monte Pelerin - principal fórum de debate do neoliberalismo - reuniu-se em Vinã del Mar, para discutir os perigos da democracia e saudar a ordem autoritária chilena. Esse fórum indicava os efeitos nefastos que uma democracia ilimitada podia ter: demagogia e decomposição moral. Os pensadores do neoliberalismo, como Hayek e Röpke, declaravam as ditaduras liberais as melhores formas de governo, pois as democracias buscavam um intervencionismo estatal.

A demofobia - ódio ou aversão à democracia - é o traço marcante do neoliberalismo. Considera a democracia, também chamada de coletivismo pelos neoliberais, causa do totalitarismo. Logo, o neoliberalismo se apresenta como uma ideologia de guerra contra a democracia efetiva, principalmente quando os interesses do mercado estão em risco (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 74).

Dentro deste discurso deslegitimante, o neoliberalismo tenta deslegitimar a democracia, atribuindo a esta a origem do totalitarismo. Recusa a possibilidade da igualdade como categoria aceitável.

Sob a luz do contrato social (de Rousseau), pode-se afirmar que existem dois modelos de democracia. O primeiro, chamado de liberal, é o que limita os Poderes do Estado. O segundo seria aquele que levaria o sistema social ao colapso, pois defende a igualdade e o sufrágio universal.

A principal causa, não declarada pelos neoliberais, de recusa do pensamento de Rousseau, é o fato de que este aponta a propriedade privada como um dos grandes males da sociedade, que somente causa desigualdade e violência.

4. Apologia ao Estado Forte

As massas democráticas geram um problema: reinvindicação de direitos. Um Estado forte é aquele necessário para conter essas massas e proteger o mercado.

O neoliberalismo defende um Estado que não intervém. O objetivo do Estado forte é “impedir que a política afete o livre funcionamento do mercado” (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 89). Para isso, ele tem tarefas negativas: o desmantelamento do Estado Social e a repressão violenta contra massas insurgentes.

O fato de o Estado ser uma ditadura ou uma democracia não é relevante, pois ambos são meios de desenvolvimento do mercado. A grande diferença é a simetria entre o regime político violento e a agressividade do sistema econômico. Podemos viver em uma democracia, mas o Estado Neoliberal se desenvolve violentamente, fórmula típica de um regime fascista (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 91).

A forma de garantir que este Estado forte se desenvolva é o controle governamental pelos oligarcas conservadores. Estado forte não é o Estado democrático, mas, sim, aquele que está acima de qualquer conflito. A demarcação dos interesses individuais e a reivindicação das massas é o interesse do mercado. É nesse ponto que a ditadura demonstra a sua funcionalidade: “violência conscientemente utilizada pelo Estado para defender a ordem de mercado contra as demandas democráticas da sociedade” (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 111).

4. Constituição política e Constitucionalismo de Mercado

A ideia de um Estado forte, soberano e com direitos previstos na Constituição não deve ser lida como garantismo de direitos, mas, sim, de um Constitucionalismo de Mercado, em que se defendem os interesses deste em detrimento daqueles.

O neoliberalismo busca a inscrição da “constituição na ordem da economia via mediação do direito” (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 116). A princípio, a inclusão da política econômica neoliberal se dava sem a sua constitucionalização a nível de Constituição Política. No entanto, em 2016, no Brasil, essa lógica demonstrou-se equivocada. A emenda constitucional n.° 95/2016 da Constituição Brasileira de 1988 limitou o teto de gastos públicos; outra emenda, a de n.° 103/2019, alterou as regras de aposentadoria. Acrescenta-se, como projeto governamental, o desmonte de empresas públicas, tais como a Empresa de Correios e Telégrafos e a Petrobrás (SAUVÊTRE et al., 2021, p. 117). Constitucionalismo é, a luz do neoliberalismo, segundo Hayek:

Constitucionalismo significa governo com poderes limitados. Mas a interpretação dada às fórmulas tradicionais de constitucionalismo tornou possível conciliá-las com um conceito de democracia segundo o qual essa é a forma de governo em que a vontade da maioria, no tocante a qualquer questão, é ilimitada. Em consequência, já se chegou mesmo a afirmar que as constituições são remanescentes obsoletos, incompatíveis com o conceito moderno de governo. De fato, que papel desempenha uma constituição que torna possível um governo onipotente? Será sua função simplesmente permitir a atuação desimpedida e eficaz do governo, sejam quais forem os objetivos deste? (...) Contudo, não faltam indícios de que a democracia ilimitada caminha para um abismo, no qual cairá não com uma explosão, mas com um suspiro. (HAYEK, 1985aHAYEK, F. A. von. Direito, Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. Vol. 1 - Normas e Ordem. São Paulo: Visão, 1985a., p. XL-XLI)

A cláusula da separação dos poderes, em tese, não deveria dar margem para a invasão da esfera do legislativo ao campo governamental, bem como a tarefa legislativa não deveria ficar a cargo de outro órgão governamental, seja por ato do Poder Executivo, seja por uma transposição de entendimentos sedimentados pela justiça para o campo normativo.

Aspecto importante sobre o Constitucionalismo de Mercado e a Constituição Política são os poderes de crise e as situações de exceção e sua relação com a soberania do Estado. A soberania, segundo Hayek, “reside temporariamente no âmbito do organismo encarregado de fabricar ou emendar a constituição”, ou seja, no Poder constituinte (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 125). Esse poder soberano tem limitação no tempo em que ele existe, ou seja, no qual ele é levado a existir. Esse Poder Soberano deu lugar ao Poder de crise, firmado por Hayek:

Quando um inimigo externo ameaça, quando irrompe rebelião ou violência, ou quando uma catástrofe natural exige ação rápida por todos os meios possíveis, torna-se necessário conferir a alguém poderes de organização compulsória que normalmente ninguém possui. Como um animal em fuga de um perigo mortal, a sociedade pode, nessas situações, ter de sustar por algum tempo até funções vitais de que depende sua existência a longo prazo, se a finalidade disso for escapar à destruição. (HAYEK, 1985c______. Direito, Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. Vol. 3 - A ordem política de um povo livre. São Paulo: Visão, 1985c., p. 129)

O uso do poder emergencial pode levar a uma ditadura, pois autoriza determinados grupos e seus interesses a declarar o que é e o que não é excepcional.

5. O Neoliberalismo e seus inimigos

O neoliberalismo tem seus inimigos perfeitamente identificáveis. Essas pessoas (ou grupos) são consideradas inimigos sociais, verdadeiro perigo, pois defendem discursos diversos da lógica neoliberal, tais como a ampliação de direitos sociais e o estabelecimento de políticas públicas para alguns substratos sociais subalternos.

O estratagema de combate se dá de modo criativo, inclusive vinculando regimes nazistas e fascistas com a mentalidade socialista, raiz de toda a barbárie humana (HAYEK, 2010______. O caminho da servidão. 6. Ed. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010., p. 163-174). Um dos argumentos é que o coletivismo proposto pelo socialismo daria um campo fértil ao desenvolvimento de sociedades totalitárias e seus movimentos brutais: nazismo, fascismo e comunismo soviético (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 141).

Como método de combate ao renascimento do socialismo, algumas alternativas são o ataque ou enfraquecimento dos sindicatos e a implantação de uma forma soberana de consumidor. Esta inversão é importante, pois o sindicato é uma luta entre produtores. Segundo Mises:

Não é cometer uma injustiça chamar o sindicalismo de filosofia de gente de curta visão, de conservadores que desde sempre desconfiam de toda inovação e são a tal ponto cegos que amaldiçoam quem lhes fornece bens mais abundantes, melhores e mais acessíveis. São como doentes que culpam o médico mesmo quando ele consegue curá-los. (MISES, apudSAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 147)

No Brasil, com o golpe parlamentar de 2016, o então vice-presidente sancionou a Lei 13.467 de 2017, reformando as leis trabalhistas, mas, em especial, tornando facultativa a contribuição aos sindicatos; logo, enfraquecendo-os economicamente.

A grande estratégia do neoliberalismo é agir contra o Estado Social, ou seja, uma ordem política, jurídica e institucional para neutralizar qualquer movimento que busque os direitos sociais na ordem constitucional.

A lógica do desafio ou da disputa é a grande narrativa do neoliberalismo: vencedores e perdedores da corrida pela riqueza. Atribui-se uma reprovação moral aos perdedores, que são culpados pelo próprio fracasso em coparticipação com os governos de esquerda, que os impedem de buscar o sucesso livremente.

6. Estratégias neoliberais de evolução social

Tanto a direita quanto a esquerda já se valeram de postulados neoliberais, cindindo-os em duas vias: modernizadora e adaptativa, conservadora e compensatória. Mas é no neoconservadorismo que o neoliberalismo reencontra as suas raízes fundantes: a antidemocracia. Também é pelas suas mãos que valores neoconservadores se tornam dogmas. A antidemocracia é um método de governo, enquanto o neoliberalismo é o escopo e propósito, ou seja, os fins do mercado são gestacionados e geridos a partir da ruptura democrática ou de sua corrosão (BROWN, 2019BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo: A ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., pp. 74-75).

O legado neoliberal, em sua estratégia de modernização, nada mais é que uma continuidade do darwinismo social de Herbert Spencer, em que o Estado não pode intervir mediante políticas públicas, pois impede a luta pela vida e a evolução social que a acompanha. Inclusive, esse preceito daria margem ao evolucionismo e conservadorismo de Hayek. Este recusa a condição de pensador conservador, pois defende o progresso pela destruição dos obstáculos ao livre crescimento. Logo, “ele parte do fato de que as sociedades humanas obedecem a uma dinâmica da evolução cultural, que deve ser bem distinta da evolução biológica” (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 168).

Quando essa evolução social começa a se desviar (desconformidade), o caminho é a coerção, que deve ser arbitrária; somente assim se reestabelece a evolução espontânea pela tradição. A tradição é a forma pela qual os homens se tornam bons, é o conjunto de regras repressoras dos instintos primitivos que, ao longo do tempo, foram sendo absorvidos e abstraídos na mente dos homens, ou seja, um atavismo fundado em emoções originais (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 173).

Ameaçar o sistema de livre mercado é uma digressão à barbárie, verdadeiro incentivador terrorista. Não é por acaso que Marx e Freud são denominados de incentivadores desse ato, pois a psicanálise quer a abolição das repressões pulsionais e o marxismo, a ruptura do sistema capitalista (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 175).

Outro componente elementar é a inserção do argumento da superioridade racial na sociedade ocidental. O progresso da sociedade - de civilização ocidental - se atribui às raças caucasianas, enquanto que aos demais povos fica um sentimento de inveja e tentativa de reproduzir este sucesso. O racismo jurídico dá lugar ao racismo de fato, que permeia toda a tradição neoliberal.

7. A falsa alternativa entre globalistas e nacionalistas

O projeto neoliberal pode ter o seu ápice nos regimes militarizados na América Latina e na política de desmonte do Estado de Bem-Estar Social com os governos Reagan e Thatcher. Antes disso, em 1930 e 1940, já se pretendia um ataque ao estados-nação, repudiando a noção local de organização financeira para que houvesse um modelo globalizado voltado para uma reorganização do trabalho, meios de produção e a livre concorrência de forma supranacional.

Segundo Mises, esse governo supranacional devia ter um poder de polícia, justamente para reprimir os direitos soberanos de cada país (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 185).

Essa nova ordem mundial, segundo Röpke, devia atacar todas as políticas de pleno emprego e demais interesses de sindicatos e agricultores (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 185-186). Esse mesmo teórico confundia as noções de “imperium (dominação política) e dominium (a exploração econômica)” (SAUVÊTRE et al., 2021, p. 186). O arranjo proposto era um imperium nacional, ou seja, um Estado com suas fronteiras, e um dominium baseado em uma economia sem fronteiras.

É evidente que, com a institucionalização da ONU de um lado e do Banco Mundial e FMI do outro, a ideia de dignidade da pessoa humana entrava em conflito com os interesses do livre mercado.

Os governos de esquerda também, de certa maneira, utilizam preceitos neoliberais. Bill Clinton no EUA e Tony Blair no Reino Unido, este último representante da terceira via, inspirado por Antony Giddens, conduziram desregulação da segurança do salário e desindustrialização, tudo em nome do neoliberalismo globalizante (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 195-196).

Um neoliberalismo autoritário surge em 2016, sendo seu principal representante Donald Trump. O que o antecedeu é que parece ser mais relevante. As esquerdas aderiram ao projeto neoliberal (globalista) junto com as classes populares.

Isso faz com que esses novos autoritários, conservadores em sua essência, resgatem o neoliberalismo nacionalista de inspiração de Margaret Thatcher. Esta repudiava o Conselho Europeu e a forma como as fronteiras estavam sendo redefinidas a partir de Bruxelas e para as suas elites. Pode-se constatar que o neoliberalismo nacionalista (autoritário) é uma reação ao neoliberalismo de esquerda (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 197-198).

8. Guerra de valores e a divisão do povo

São duas faces que compõem o janus bifronte do neoliberalismo: “a modernização da sociedade - para adaptá-la à ordem do mercado - e a defesa ou restauração das formas tradicionais de vida como modos de enquadramento hierárquico e de normalização autoritária da população” (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 205). Os governos populistas da atualidade centralizam o seu discurso na tríade argumentativa da fé-família-liberdade como uma verdadeira premissa para o estabelecimento e continuidade do neoliberalismo.

As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas pela luta e conquista de diversos direitos: descriminalização da homossexualidade, ampliação dos direitos das mulheres, reconhecimento da igualdade de minorias raciais e étnicas. Isso faz com que os valores tradicionais sejam abalados. Em consequência, erguem-se vozes de contrarrevolução cultural, das quais Margaret Thatcher seria a principal representante: de um lado o apego ao tradicional, de outro, as possibilidades modernizadoras que a não-intervenção social poderia ser capaz de gerar.

Essa contrarrevolução, que perdura até os dias de hoje, vem na forma de discurso de ódio e de sua normalização: “esta raiva toma a forma da liberdade de ser racista, sexista, homofóbico ou islamofóbico e de afastar a tirania da esquerda que tenta proibi-la” (Wendy Brown, apudSAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 209).

Esse esquema discursivo pretende a legitimação de violência proveniente de um Estado autoritário (ou uma reação defensiva), na forma de liberdade e direitos, em especial, ao de expressão e de manifestação (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 209). Como representação destes movimentos, surgem cruzadas morais de grupos conservadores, por exemplo, mulheres cristãs. Os valores familiares são uma forma de ataque aos grupos LGBTQIA+. A igualdade de gênero é uma afronta à ordem patriarcal, assim como o combate à violência de gênero.

A bandeira dos governos neoliberais de extrema direita é a defesa da liberdade individual, própria da ideia de tradição de Hayek, em oposição à emancipação. Esta última, um atentado à condição humana racional, é uma verdadeira forma de retorno à barbárie. Com isso, faz-se importante nomear inimigos, aqueles que causam diferença e redefinição. Pode-se dividir em duas categorias: inimigos internos e externos. Estes são, basicamente, os estrangeiros ilegais, refugiados e outros estranhos à comunidade. Os inimigos internos, por sua vez, são aqueles de origem política, bárbaros da emancipação. A determinação de inimigos é essencial, pois somente com ela é possível administrar o pânico moral, o perigosismo que reside nesses grupos e a legitimação do uso da violência estatal contra eles.

Esses valores neoliberais conseguiram captar boa parcela das massas populares, principais vítimas do neoliberalismo. Isso ocorreu porque, uma vez abandonados pela esquerda, também a abandonaram. Em linhas gerais, a esquerda, desde 1980, prosseguiu apoiando a globalização, o consumismo, o avanço tecnológico, o livre mercado, sem enfrentar as desigualdades sociais.

Dividir o povo faz com que ele se volte contra si mesmo. Cria-se o veneno: “desfiliação, as desigualdades sociais, a insegurança econômica”. Também se cria o antídoto; um “nós composto por pessoas bem intencionadas e obediente às normas e a autoridade do Estado” (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 223).

9. No front do trabalho

A mudança no mundo do trabalho se dá em nome da guerra econômica. Pode não ser no sentido militar, mas é um ataque ao(s) direito(s) em nome da modernização, da flexibilização e da viabilização econômica competitiva.

Essa lógica de guerra está muito relacionada à forma competitiva inserida em um contexto empresarial, onde lutar (trabalhar) e sobreviver (continuar tendo trabalho) são paradigmas pulsantes. Essa metáfora, da guerra, se desenvolve na lógica da competitividade, também denominada de racionalidade neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2013DARDOT, P.; LAVAL, C. A Nova Razão de Mundo. São Paulo: Boitempo, 2013.; FOUCAULT, 2008FOUCAULT, M. O Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.).

A metáfora da guerra também pode estar expressa na agressividade ofensiva que a classe capitalista emprega contra as “potencialidades democráticas do trabalho” (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 229). Nessa guerra, pretende-se destruir o inimigo, a consciência de classe que gera a potencialidade de conversão de cada indivíduo em inimigo do capitalismo.

Uma dessas frentes, ou batalhas, que compõe essa guerra, é o combate ao sindicalismo, cujo objetivo é enfraquecer o poder de negociação da classe trabalhadora. Um registro da história recente é a greve dos mineiros (1984-1985) no Reino Unido. Margaret Thatcher formou uma força policial de intervenção para atacar os manifestantes, uma verdadeira guerra civil. Posteriormente, essa repressão - da greve - implicou diversas alterações da legislação britânica, inclusive a responsabilização penal dos sindicatos quando praticarem ações ilegais (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 230).

Outro caso emblemático foi o processo da France Telecom. Privatizada em 2004 em nome do neoliberalismo, provocou o suicídio de diversos funcionários. A mudança de gestão, que anteriormente era considerada modelo, seguiu o tom agressivo da agenda da livre concorrência, em que a produção de lucros também se dá pelas demissões em massa.

Outra frente de batalha é o desmonte do assalariamento das mãos do autoempreendedorismo, ou seja, a pessoa que trabalha de forma flexível, sem nenhuma proteção jurídica ou social.

Esse movimento pode ser bem observado desde a chamada terceira via, cujos principais representantes, Tony Blair e Schroder, implantaram uma nova forma - mais dinâmica - de desenvolver o espírito empresarial, verdadeira forma de precarização representada pelo discurso empreendedor (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 237-238).

Assim, o fracasso, a cobrança, o desempenho e o sucesso dependem, na lógica do empreendedorismo, de si mesmo, ou seja, “o empresário de si é constrangido a fazer-se o inimigo de si” (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 240).

10. Governar contra as populações

O uso do termo guerra civil não é mera metáfora. O emprego das forças policiais e judiciárias em face daqueles tidos como subversivos é bem claro. Os movimentos de lei e ordem mantêm-se vivos e direcionam-se aos inimigos do mercado.

Na França, um exemplo é a forte repressão do movimento dos Coletes Amarelos, que protestavam contra flexibilizações de direitos sociais em 2018 e 2019. No Brasil alguns anos antes, mais especificamente em junho de 2013, vários integrantes de partidos de esquerda foram presos, sob o argumento de que integrariam uma organização criminosa (quadrilha), com o desígnio de promover protestos. Uma das medidas cautelares imposta aos acusados era a proibição de participar de manifestações e protestos (BRASIL, 2015).

Para Michel Foucault:

o exercício cotidiano do poder deve poder ser considerado uma guerra civil: exercer o poder é de certa maneira travar a guerra civil, e todos esses instrumentos, essas táticas e podem ser distinguidas, essas alianças devem ser analisáveis em termos de guerra civil. (FOUCAULT, 2015______. Sociedade Punitiva. São Paulo: Martins Fontes, 2015., p. 21)

De outro lado, o Estado Liberal oferece segurança, verdadeira abdicação da liberdade individual em prol da soberania. Esta, por sua vez, autoriza intervenções excepcionais contra situações perturbadoras da sociedade. Essa mesma excepcionalidade, denominada de Estado de Exceção, se torna cada vez mais a regra. Não são só as leis de luta ou emergência, mas o Estado Policial que se manifesta na própria estrutura jurídica ordinária (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 247).

Apesar de o exemplo mais clássico ser o ato patriótico estadunidense, não podemos esquecer que o próprio direito penal oficial assume funções subterrâneas, selecionando, processando e encarcerando aqueles que incomodam a ordem neoliberal. É assim que o pacto pela segurança se desenvolve em tempos incertos: enfrentar um “inimigo permanente e polimorfo que é preciso combater” (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 249).

Os métodos de intimidação da população inimiga da ordem pública remontam formas e modelos de ocupação territorial: a militarização policial, uso de helicópteros, por exemplo. Sem novidades para o Brasil, que convive com esse modelo de exceção como regra há décadas.

11. O Direito como máquina de guerra neoliberal

O direito não é um simples elemento de superestrutura, que recobre as intenções do sistema de produção (ou improdutividade capitalista). Sua instrumentalidade legitima a atuação da classe dominante.

A tomada de controle sobre os servos escravos, proletariados e precariado, sempre se deu através do direito. Foi nas bases jurídicas que o colonialismo e o neocolonialismo se desenvolveram, que a globalização econômica rompeu com a segurança jurídica e que estados democráticos fracos e regimes totalitários ergueram suas bases. É pelas garras dos juízes que leis são rasgadas (reinterpretadas), direitos fundamentais são reconsiderados (flexibilizados) e a condição humana realocada nas diretrizes do livre mercado (encarceramento em massa de inimigos internos).

Então, o neoliberalismo usa o direito, não o desconsidera, mas é nas mãos de uma “instituição judiciária obediente a uma rigorosa imparcialidade, livre de corrupção e de viés político (...)” (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 263), que o direito se desdobra. O que se nota nos países ditos democráticos, inspirados em um Estado de Direito, é o uso do Poder Judiciário, que é contaminado por vieses políticos como instrumento de guerra contra seus inimigos internos (SAUVÊTRE et al., 2021, p. 264). É preciso lembrar que uma guerra não se desenvolve sob a ótica militar, mas perpassa por diversos âmbitos institucionais.

Apesar de a arena judicial ser apontada como elemento de guerra e arma, simultaneamente, a sua funcionalidade não pode se restringir à luta contra o terrorismo e à neutralização de inimigos sociais do neoliberalismo. Isso seria limitar o âmbito das chamadas criminalizações. Os pobres, os drogados, os pequenos traficantes de drogas, também devem ser considerados inimigos do neoliberalismo, pois estão fora da sistemática ou em uma sistemática diversa do livre mercado.

Essas fórmulas excepcionais de combate - leis de luta contra o terrorismo, guerra às drogas, lei e ordem nas cidades - acabam integrando o direito penal oficial, são exceções tornando-se regra, subvertendo as garantias fundamentais, flexibilizando a garantia do devido processo e criminalizando comportamentos irrelevantes (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 266-267).

Uma expressão do direito como instrumento de batalha é o lawfare, que consiste no uso de fórmulas legais, em especial o procedimento penal, como meios de destruição dos inimigos do neoliberalismo. Podemos afirmar que a Operação Lava Jato é um exemplo recente de lawfare. Em 2022, o Comitê de Direitos Humanos da ONU reconheceu o objetivo político dessa ação penal.

A estratégia não é nova: Otto Kirchheimer, na obra Political Justice - The use of legal procedure for political ends (1961KIRCHHEIMER, O. Political Justice: The use of legal procedure for Political Ends. Greenwood: Greenwood Press, 1961.), afirma que o julgamento criminal pode ser útil nos conflitos políticos, sendo normal a atribuição de um fato delituoso ao adversário político, em alguns casos envolvendo crime de corrupção. Nesse aspecto, “o julgamento pode ter sido provocado por esforços meticulosos de grupos políticos rivais, através de um jornal de maior circulação ou via perseguição de um indivíduo por rancor pessoal” (KIRCHHEIMER, 1961KIRCHHEIMER, O. Political Justice: The use of legal procedure for Political Ends. Greenwood: Greenwood Press, 1961., p. 53).

A militarização dos países foi substituída pela burocracia de seus juízes e ministros, que inviabilizam a participação dos inimigos do neoliberalismo no jogo democrático das eleições. Nesse sentido, a expansão das estruturas judiciais esconde um objetivo que vai além do acesso à justiça. Segue a ordem de, em nome do novo constitucionalismo, ampliar as armas de controle jurisdicional, verdadeira “dominação das elites políticas e econômicas” (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 274). Devemos lembrar que, no Brasil, as estruturas judiciais são formadas, basicamente, pelos estratos mais altos da sociedade, que se constituem praticamente numa casta.

O Brasil é um caso exemplar de guerra jurídico-política. Em 2016, a presidenta eleita, Dilma Rousseff, sofreu um golpe parlamentar, pois se recusou a implantar medidas de austeridade: reforma previdenciária, administrativa, ampliação de benefícios fiscais às empresas e intervenção nas investigações de parlamentares, com especial destaque a Eduardo Cunha, que autorizou a instauração do processo de impeachment. O objetivo subterrâneo do processo em questão era criminalizar a política de não submissão às agendas neoliberais de austeridade (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 277).

O principal exemplo de lawfare judiciário foi a Operação Lava Jato, com suas prisões midiaticamente orientadas, delações premiadas, vazamento seletivo de conversas ilegalmente interceptadas e simulacros de apoio popular da operação. Sobre este último, um dos procuradores da Operação foi demitido do Ministério Público Federal por pagar um outdoor apoiando a Operação.

Nesse ambiente de alta criminalização, institutos jurídicos tiveram suas bases desestabilizadas; um grande exemplo foi a criação de uma nova modalidade de prisão-pena. Criou-se, jurisprudencialmente, um novo tipo de prisão (prisão em segunda instância), que ocorre quando a sentença condenatória é confirmada em um tribunal de segundo grau. Isto foi essencial para que o candidato adversário do presidente eleito fosse mantido na prisão durante o processo eleitoral de 2018.

Na sua superestrutura, a Operação Lava Jato pretendia o combate à corrupção, mas a estrutura demonstrava a tentativa/concretização de uma “operação de restauração do poder das oligarquias econômicas e políticas, ao preço da autorização das práticas as mais contrárias aos direitos dos acusados e da defesa” (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 278).

O atual Estado de Direito deveria se chamar Estado de Direito Privado, em que a liberdade sintetiza a livre atividade empresarial. O neoliberalismo consiste na reorganização da sociedade na forma empresarial. Para que essa estrutura funcione, é importante a atuação do Poder Judiciário, considerada a outra face dessa sociedade.

12. Neoliberalismo e autoritarismo

O que o neoliberalismo traz de novo? A resposta divide-se em duas abordagens: (i) surgimento de um novo fascismo, mas com características do antigo fascismo; (ii) relação direta com certo tipo de autoritarismo, como o que antecedeu o nazismo (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 283).

Na atualidade, diversos nomes se deram a esse movimento: populismo de extrema direita, neoliberalismo autoritário, autoritarismo ou liberdade autoritária antidemocrática e antissocial (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 284). O emprego de velhas práticas é reproduzido nessa forma neofascista de governo: excitação por um líder, desfiles militares, normalização/legitimação de um racismo (discurso de inferioridades), uso de instituições oficiais para atingir adversários ou para romper com a estrutura democrática.

O neoliberalismo construiu um arsenal demolidor de esperanças, construtor de apatia política e de revoltas populares contra grupos minoritários, transformando cada cidadão em uma espécie de soldado. No fascismo inspirado no liberalismo, o Estado era considerado o principal elemento para que estas forças totalizantes se levantassem. O neoliberalismo atual vê o seu enfraquecimento e a transformação de instituições públicas em privadas-concorrenciais (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 287-288).

Os correios brasileiros, alvo de processo de privatização, é um exemplo. Pretende-se, com sua privatização, que ele se torne uma empresa privada, tal como a Amazon. A forma pela qual se faz esse processo de liberação econômica é pelo Estado Forte. Logo, há um paradoxo estabelecido. De um lado se advoga um Estado Fraco na intervenção econômica, de outro, um Estado Forte na proteção da liberdade e interesses empresariais. Tudo em detrimento da dignidade da pessoa humana e dos reais interesses da população. Trata-se de um “liberalismo autoritário” (SAUVÊTRE et al., 2021SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021., p. 294-295).

O intervencionismo neoliberal positivo não se dá no âmbito econômico; este é o fim, sendo o meio a cultura, a política, o direito. São esses instrumentos que enfrentam os adversários (inimigos) em diversas frentes de uma mesma guerra civil.

13. Conclusão

A obra identificou a multiplicidade de estratégias (políticas e antipolíticas) de guerra civil, em especial quando observamos os ataques a inimigos do neoliberalismo.

O liberalismo, ao contrário do chamado Estado Forte (de direitos), poria fim à guerra civil, pois desloca o poder a uma minoria. O poder exercido por todos geraria um Estado de Beligerância.

A luta de classes se traduz, no neoliberalismo, em guerra civil. Nessa guerra, o bárbaro (socialista) precisa ser eliminado, pois é criminoso e inimigo da civilização.

Como alternativa, a obra propõe a recomposição de grupos populares e as suas agendas: igualdade, solidariedade e emancipação política.

Referências bibliográficas

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  • SAUVÊTRE, P. et al. A escolha da guerra civil: Uma outra história do neoliberalismo. São Paulo: Elefante, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2022
  • Aceito
    26 Set 2022
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