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“A Dívida Impagável”: Denise Ferreira da Silva e suas implicações para o Direito, ou reflexões sobre uma obra irresenhável

FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019

Introdução1 1 Agradecemos à leitura minuciosa e às sugestões das pesquisadoras Loyde Cardoso Santos e Raissa Roussenq Alves, também leitoras companheiras de Denise Ferreira da Silva.

Eticamente, a dívida de Dana2 2 Personagem do romance de ficção científica Kindred, de Octavia Butler. é uma dívida impagável: uma obrigação moral que carrega, mas que não deveria saldar, pois a relação refigurada pela mesma é mediada por uma forma jurídica, um título [de propriedade], que não se aplica às relações entre pessoas, isto é, entidades morais (iguais e livres) modernas. [...] Portanto, sim, Dana possui a dívida (eticamente), mas não lhe cabe (economicamente) pagá-la.

Denise Ferreira da Silva

A primeira leitura de Denise Ferreira da Silva pode afugentar potenciais leitoras e leitores. Seja pela profundidade filosófica, que demanda algum letramento no pensamento moderno, ou pela radicalidade de seu experimento, que desafia nossas formas de conhecer sem dar roteiro para outro mundo, figurado numa imagem sabidamente incompreensível; parece ser consenso entre colegas interessados no trabalho daquela professora brasileira formada no estrangeiro que joga tarô e fala de Kant, Hegel, arte e poética negra feminista: "É muito bom, mas é difícil". É também, na mesma medida, potente e encantador.

Nesta resenha crítica, decidimos interagir com as contribuições de Ferreira da Silva tomando como fio condutor o livro “A Dívida Impagável”, que perturba sobretudo noções de justiça, sujeito, valor (materialismo) e tempo a partir do potencial disruptivo do corpo sexual da nativa/escrava. Num primeiro momento, apresentamos a autora e elementos gerais de sua obra. Em seguida, passamos a nos debruçar sobre cada um dos capítulos. Neste singelo esforço de sistematização e comunicação, situamos nossa reflexão em nosso campo de conhecimento, a saber, o Direito.

1. Denise Ferreira da Silva

Denise Ferreira da Silva é uma artista visual e intelectual interdisciplinar brasileira que ao longo das últimas duas décadas ofereceu proposições radicais em torno do lugar da racialidade no pensamento moderno pós-iluminista. Com graduação em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (1985), Mestrado em Sociologia e Antropologia também pela UFRJ (1991) e Doutorado em Sociologia pela University of Pittsburg (1999)3 3 Essas informações foram extraídas do currículo lattes da autora disponível na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/9153860915150061 nos Estados Unidos, a professora

nasceu no Morro do Pasmado (Botafogo), cresceu na Vila Aliança (Bangu), Rio de Janeiro. Tendo morado e ensinado em universidades nos Estados Unidos, Austrália, Inglaterra, atualmente ela vive e trabalha nos territórios da nação indígena Musqueam e é Professora Titular e Diretora do Social Justice Institute da Universidade de British Columbia, em Vancouver, Canadá (EhCho, 2022).

Numa passagem do curso "Luz Negra"4 4 O curso foi ministrado em dezembro de 2019 e disponibilizado no YouTube em setembro de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-47X_7XJnOU&t=9410s , ofertado no Centro Universitário Maria Antônia da Universidade de São Paulo - USP em 2019, Denise compartilhou um pouco de sua trajetória, passando pela introdução ao marxismo e ao método Paulo Freire na Igreja de seu bairro por um padre ligado à teologia da libertação. Além disso, mencionou a militância no grupo de adolescentes da associação de moradores da Vila Aliança - resultado do processo de remoção comum a outras comunidades no Rio de Janeiro, onde presenciou o aumento da circulação de armas e drogas e da violência policial que se acirrava com a ditadura militar nos anos 19705 5 Em pesquisa coordenada por Thula Pires, o relatório da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro traz informações importantes sobre racismo e ditadura militar no Rio de Janeiro. Além da perseguição de militantes, intelectuais e movimentos culturais negros e do papel central do mito da democracia racial no edificio ideológico do regime - dados não abordados pela Comissão Nacional da Verdade -, o relatório destaca o acirramento do controle de comunidades negras por forças de segurança pública no contexto em que Denise Ferreira da Silva cresceu, na forma de "‘Blitz’ prisões arbitrárias, invasão a domicílio, expropriação de seus lugares de moradia (através de remoções), tortura física e psicológica, além do convívio com a ameaça latente dos grupos de extermínio" (PIRES, 2015, p. 16-17). , que vitimou muitos de seus colegas de escola.

A intelectual teve ainda uma breve passagem pelo Partido Comunista do Brasil antes de ingressar na universidade, onde se aproximou do Partido dos Trabalhadores desde a campanha de Benedita da Silva em 1982, vindo a atuar no movimento negro e de mulheres negras (FERREIRA DA SILVA, 2020aFERREIRA DA SILVA, Denise. Curso “Luz Negra", com a professora Denise Ferreira Da Silva aula 1: aula 1. Aula 1. 2020a. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-47X_7XJnOU&t=9410s. Acesso em: 10 ago. 2022.
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). Ferreira da Silva fez parte de um programa de ação afirmativa financiado pela Fundação Ford para formação de pesquisadores negros de primeira linha no Centro de Estudos Afro-Asiáticos, sob direção de Carlos Hasenbalg, concomitantemente ao mestrado com orientação de Yvone Maggie, em que estudou sobre racismo em novelas da Rede Globo (1979-1988). Nesse momento, ela já sinalizava interesse pela relação entre subjugação racial e representação. Fez o doutorado nos EUA também pela Fundação Ford (FERREIRA DA SILVA, 2019, p. 33-34).

Em seu primeiro livro, fruto da tese de doutoramento de 1999, intitulado oficialmente Toward a Global Idea of Race (2007)6 6 Sobre esse livro, é válido ressaltar que a autora se refere em suas comunicações como "Homo Modernus". , a autora mapeia o papel determinante da racialidade no pensamento pós-iluminista - o que chama de texto moderno - e oferece uma crítica onto-epistemológica à teoria do reconhecimento, a qual produziria necessariamente um sujeito transparente e autodeterminado - o Homo Modernus - diante de um outro racial, colonial e afetável. O livro é animado pela pergunta que atravessa toda a sua obra, e a perseguia de algum modo desde a juventude na Zona Oeste do Rio: O que explica a morte sistemática de jovens negros por agentes do Estado? Ou melhor: Como o pensamento moderno produz sujeitos que podem ser excluídos da universalidade jurídica sem desencadear qualquer crise ética?

Enfrentar tais questões depende da compreensão de que o racial organiza o espaço global7 7 A globalidade a que se refere a autora refere-se à obra hegeliana, que estabelece uma relação entre regiões do globo corresponderem a estágios de desenvolvimento humano, sendo o ápice a Europa pós-Iluminista (sec. XIX), concebendo "corpo e mente, tempo e espaço, Natureza e Razão" como "manifestações do Espírito, ou a Razão enquanto Liberdade". (FERREIRA DA SILVA, 2019, p. 39) , uma vez que

a diferença racial (...) transubstancializ[a]8 8 Transubstancialização, segundo a autora, consiste em "desloca[r] do registro existencial para o formal" (FERREIRA DA SILVA, 2019,p. 91). os efeitos de mecanismos coloniais de expropriação em defeitos naturais (intelectuais e morais) que são sinalizados por diferenças físicas, práticas, instituições, etc. (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 35).

Sua escavação ou exumação da representação moderna, em ambos os campos histórico e científico9 9 A autora define História como "região do conhecimento moderno que assume o tempo como dimensão ontoepistemológica privilegiada, isto é, como na História e nas Humanidades"; enquanto a Ciência é entendida como "região do conhecimento que postula o espaço como como dimensão ontoepistemológica privilegiada, isto é, em disciplinas como Física clássica e Química" [tradução livre] (FERREIRA DA SILVA, 2007, p. XV-XVI). , demonstra como a autodeterminação do sujeito construída por esse arsenal de conhecimento - a que nomeia analítica da racialidade -, pressupõe e postula a eliminação de seus outros. Uma das implicações mais relevantes desse investimento é a recusa da lógica sócio-histórica da exclusão, presente até mesmo na base de projetos críticos como a Sociologia das Relações Raciais pela qual a autora foi formada. A analítica da racialidade se afasta de propostas críticas à subjugação racial que apostam em projetos de inclusão, e seguem a reproduzir a possibilidade do sujeito transparente. Para a autora, a existência do sujeito transparente pressupõe a lógica da obliteração, a necessária eliminação de seus outros.

Outra dimensão relevante da analítica da racialidade diz respeito a enfrentar o "comando moral [pós-Segunda Guerra] de apagamento da raça [em sentido biológico] do léxico político moderno” (FERREIRA DA SILVA, 2007FERREIRA DA SILVA, Denise. Toward a global idea of race. Minesotta/London: University Of Minnesota Press, 2007., p. XXVII). Nesse movimento, Ferreira da Silva reinsere, então, o espacial10 10 A respeito da relação entre filosofia, raça e espacialidade o vídeo a seguir de Muniz Sodré pode ser útil: Nós transantlânticos. O Espaço da África no Brasil. Youtube, 11 jan. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8asUpAkFbu4. Acesso em 7 ago 2022. como aspecto relevante do racial11 11 Um exemplo dos efeitos da dimensão espacial/biológica pode ser notado sobre o corpo sexual da nativa/escrava inscrito no texto nacional brasileiro a partir da democracia racial. Na versão tropical do sujeito transparente, há um movimento de obliteração da racialidade por meio do estupro de mulheres colonizadas. Essa miscigenação, antes de um pacto celebratório, consistiria em estratégia de eliminação de negros e indígenas, produzindo um sujeito mestiço cujo destino é desaparecer (FERREIRA DA SILVA, 2006). , estratégia pouco comum na filosofia recente.

Algumas das marcas do pensamento da professora são tanto a preocupação com a violência racial praticada pelo Estado12 12 A compreensão da autora de violência do Estado enfatiza violência policial legitimada pelo Judiciário, seja na ditadura militar no Brasil dos anos 1970, nas revoltas frente às agressões de Rodney King em Los Angeles e à chacina de Vigário Geral no Rio na década de 1990, ou no movimento Black Lives Matter nos anos 2010 (FERREIRA DA SILVA, 2019) , quanto a elaboração singular sobre o lugar do racial no texto moderno. Empreende a criação de um léxico filosófico próprio13 13 A respeito do léxico filosófico de Denise Ferreira da Silva conferir o glossário que abre Toward a Global Idea of Race (FERREIRA DA SILVA, 2007), a primeira obra da autora. , que não se limita a criticar o cânone do texto moderno (com destaque para Kant e Hegel), valendo-se de perspectivas críticas como as de Foucault e dos estudos feministas e raciais sem se aliar integralmente a nenhuma delas.

2. A Dívida Impagável (2019)

"A Dívida Impagável" é uma antologia de quatro ensaios que se inserem no esforço da crítica à racialidade, elaborando além das categorias do entendimento kantianas. São textos publicados ao longo de sua trajetória intelectual em inglês, agora reunidos e traduzidos de forma inédita para leitores e leitoras brasileiras. Em cada um dos ensaios/artigos da coletânea, é possível reconhecer o edifício filosófico próprio construído pela autora e vislumbrar suas apostas para confrontar a violência racial.

A obra consiste no segundo livro da autora, o primeiro em língua portuguesa, editado em 2019 pela Casa do Povo - Oficina de Imaginação Política e Living Commons. As antigas preocupações persistem em "A Dívida", bem como nos numerosos artigos publicados em periódicos internacionais14 14 Poucos desses artigos têm sido recentemente traduzidos para o português. (FERREIRA DA SILVA, 2006FERREIRA DA SILVA, Denise. À brasileira: racialidade e a escrita de um desejo destrutivo. Revista Estudos Feministas [online]. 2006, v. 14, n. 1 [Acessado 28 Outubro 2021] , pp. 61-83.; 2014; 2021). Por outro lado, no texto ora resenhado, tornam-se nítidos os esforços criativos e radicais que filósofa tem empreendido em seu trabalho recente, acerca do que aconteceria se abandonássemos os procedimentos críticos possibilitados pelas categorias do entendimento kantianas (em especial o tempo e o espaço), que também oferecem as bases onto-epistemológicas da racialidade.

A aposta em ir afora das categorias kantianas do entendimento acompanha a autora seja em sua produção audiovisual nos documentários Serpent Rain15 15 A sinopse do filme explica muito da aposta intelectual encampada por Denise Ferreira da Silva: “Serpent Rain é tanto um experimento sobre o pensar e o existir desde o corte, sem o tempo linear. Inspirado pela descoberta de um navio negreiro afundado. Em busca de uma imagem de uma vida sem mediação da categoria europeia do humano, Denise Ferreira da Silva e Arjuna Neuman embarcam na impossível missão de fazer um filme sem o tempo. O resultado é um vídeo experimental, no qual os quatro elementos clássicos (agua, terra, fogo, e ar) e o tarô guiam imagens que refletem sobre escravidão, a extração de recursos, a não/importância ética das vidas negras, questionam uma programa ético baseada numa noção vida predicada na violência colonial e racial.” Essa sinopse e o vídeo completo estão disponíveis em: <https://ehcho.org/conteudo/serpent-rain> e 4 Waters: Deep Implicancy16 16 O filme trabalha uma noção transformativa de justiça: “‘4 Waters - Deep Implicancy’ é tanto um projeto de filme, um experimento em colaboração, quanto um conjunto de fragmentos retirados de um cosmos re-imaginado. Esses fragmentos, sons e histórias nos ajudam a transmitir o momento experiencial de emaranhamento, ou melhor, descrevem um momento emaranhado anterior à separação, o que chamamos de “Implicância Profunda” (Deep Implicancy). Uma dessas histórias que seguimos é a água, tanto na medida em que transições de fase com e para outras matérias, incluindo a vida, mas também porque combina díspares geografias, corpos de / na água e quatro ilhas dentro elas - Lesvos, Haiti, Ilhas Marshall, Tiwi. Através de uma série de migrações experimentais e cruzamentos elementais, começamos a questionar a forma do humano universal, suas origens calcificadas e excepcionais e, em particular, seu programa ético. Vagando e imaginando por meio de uma figura transformadora da justiça, perguntamos, e se nossa imagem do mundo lembrasse fase em vez de medida? E o que acontecerá com a ética se abrirmos mão do valor?”. Essa sinopse e o vídeo completo estão disponíveis em: <https://ehcho.org/conteudo/4-waters> - em co-autoria com Arjuna Newton - e em seu experimento “Leituras Poéticas” com Valentina Desideri (FERREIRA DA SILVA; DESIDERI, 2018DESIDERI, Valentina; FERREIRA DA SILVA, Denise. Leituras (Po)éticas. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 19, p. 61-70, jul. 2018. Semestral. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/cadernossubjetividade/article/view/38145. Acesso em: 31 maio 2022.
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), no qual são utilizadas ferramentas como o tarot e a astrologia para analisar questões políticas fora da gramática narcísica do eu e do texto moderno. Diante disso, o trabalho intelectual de Denise Ferreira da Silva tem alcançado o campo disciplinar das artes (FERREIRA DA SILVA, 2019; 2020b), além de oferecer reflexões localizadas no epicentro da teoria jurídica, como se pode observar a partir das temáticas enfrentadas na obra em análise. A recepção tardia da obra da autora no Brasil pode ser um efeito do colonialismo intelectual que não valoriza a produção de intelectuais nacionais que pensam seus contextos ou das imagens de controle que não permitem identificar mulheres negras como sujeitos intelectuais (COLLINS, 2019COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019. 493 p.), ainda mais quando se debruçam sobre a filosofia moderna, reduto da ciência androcêntrica e eurocêntrica onde poucos sujeitos são autorizados a opinar.

A obra pode parecer difícil de adentrar. Por outro lado, contribuições da autora como a noção da justiça como descolonização; sobre o papel disruptivo da poética feminista negra no confronto às bases onto-epistemológicas que conduzem necessariamente a destruição de vidas e eliminação das pessoas negras como sujeitos, ou; a implicação estruturante do racial no colonial e no capital, não apenas como um momento de reconhecimento moral ou simbólico, oferece outras imagens e apostas criativas para questões que têm sido debatidas à exaustão pela teoria (jurídica e) social. Além disso, se a autora mapeia o racial no pensamento moderno e entende que toda crítica que seja feita nas bases ontoepistemológicas que produzem o sujeito transparente que depende da obliteração de sujeitos racializados e afetáveis, estes movimentos são conduvidos para recuperar o mandato de Frantz Fanon em Os Condenados da Terra: não há que se falar em justiça ou ampliação da noção de humanidade sem “o fim do mundo como o conhecemos” (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p.).

2.0. Introdução: (Di)Ante(s) do texto

Para iniciar o livro, a autora oferece uma introdução intitulada “(Di)Ante(s) do Texto”, em que explica os pontos centrais de sua obra, situados em seu percurso de vida e trabalho. Numa série de exercícios de desconstrição telepática (MOMBAÇA, MATTIUZZI, 2019MOMBAÇA, Jota; MATIUZZI, Musa Michelle. Carta à leitora preta do fim dos tempos. In: FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p.) para o desmantelamento do Estado-Capital, a autora parte da constatação da impossibilidade da Justiça para corpos negros no mundo que conhecemos. Propõe "um modo de intervenção, a poética negra feminista", que "expõe a perversidade da lógica" da diferença racial, e "identifica e mobiliza o excesso que sustenta a lógica como um índice de uma outra imagem do mundo e das possibilidades que este abriga" (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 36).

Violando as regras do conhecimento moderno para "libertar a capacidade criativa radical da imaginação", o alvo são os três pilares ontoepistemológicos que sustentam o chamado Mundo Ordenado, o mundo "no qual a violência racial faz sentido" (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 37), a saber: separabilidade, determinabilidade e sequencialidade. Tratam-se de ferramentas de pensamento que reiteram a transubstancialização do racial na ideia de cultura; sem as quais podemos rearticular a diferença sem separabilidade, imageando um Mundo Implicado, um outro mundo, de profundo emaranhamento.

Recorrendo a fórmulas matemáticas e diálogos com a Arte para expor a Coisa, o Excesso e o Valor, contrariando a flecha do tempo, a "Dívida Impagável" retoma o evidente treinamento materialista histórico da autora para rejeitar leituras morais da subjugação racial, lançando luz sobre o caráter jurídico-econômico da expropriação das terras nativas e corpos escravizados, para os quais a única Justiça possível é a restituição total de seu valor.

2.1 Prefácio: Carta à leitora preta do fim dos tempos (Jota Mombaça e Michelle Mattiuzzi)

Para abrir a obra há um texto-intervenção intitulado “Carta à leitora preta do fim dos tempos” assinado pelas artistas Jota Mombaça17 17 Segundo dados biográficos disponíveis no portal da 34º Bienal de São Paulo: “Jota Mombaça (1991, Natal, RN) define-se como ‘bicha não binária, nascida e criada no nordeste do Brasil’. Jota pesquisa as relações entre humanidade e monstruosidade, investiga a pertinência do queer como categoria no contexto brasileiro e tensiona a constituição de subjetividades e marginalidades nos centros e periferias do capitalismo. Em suas performances e escritos, seu corpo desafia a branquitude heterossexual cisgênero e masculina que se impõe como norma universal. Jota expõe as violentas políticas de morte e de invisibilidade às quais foram submetidos os corpos racializados ao longo da história colonial, que perduram atualmente sob a ficção da democracia racial.” Disponível em: http://34.bienal.org.br/artistas/7328 e Musa Michelle Mattiuzzi18 18 Segundo dados biográficos disponíveis no portal da 34º Bienal de São Paulo: “Musa Michelle Mattiuzzi (1983, São Paulo, SP. Vive em Berlim, Alemanha) é performer, artista visual, diretora de cinema, escritora e pesquisadora do pensamento radical negro. Musa Michelle Mattiuzzi investiga as marcas da violência colonial, sexista e racista deixadas em seu próprio corpo, e os estigmas sociais e históricos que constituem a subjetividade da mulher negra no Brasil. Em suas performances, ela se apropria dos mecanismos de objetificação e de exotização do corpo feminino negro, e subverte-os: eles passam a ser instrumentos de visibilidade e de reconhecimento de um corpo que é, ao mesmo tempo, objeto de desejo e desumanização pelo imaginário cisnormativo branco. Mattiuzzi interessa-se pela potência do corpo monstrificado, desmedido e não simétrico. Suas ações, nas palavras da artista, ‘são micropolíticas de resistência’ que a livram ‘da rejeição do próprio corpo, o que significa ir em sua direção a toda velocidade na vontade de viver, re-existir’. A artista busca, em sua poética, estratégias de reinvenção e reencenação tanto de raça quanto de gênero e sexualidade.” Disponível em: http://34.bienal.org.br/artistas/8296 , que funciona à moda de um prefácio. Nele, as autoras vagueiam entre parágrafos-perguntas-provocações que mesmo numerados não se submetem à ordenação, à sequência. Iniciam no tópico 000, para o 741 e então retornam para o 173. Antes de esclarecerem linearmente a obra e a autora que seguem, as artistas combinam de forma artesanal textos, músicas, rascunhos à mão que se perturbam com a filosofia de Denise Ferreira da Silva.

Há na Carta provocações como: “222. O que acontece quando pensamos a modernidade, com suas fronteiras e infra-estruturas onto-epistemológicas, como um projeto de constrição telepática?” ou “050. Como descolonizar a matéria?” para em algum momento irromper em um verso de Donna Summer: “504. LOVE TO LOVE YOU BABY” (MOMBAÇA, MATIUZZI; 2019MOMBAÇA, Jota; MATIUZZI, Musa Michelle. Carta à leitora preta do fim dos tempos. In: FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p. p. 15-19). A anti-teleologia do texto vai além de um procedimento estético sofisticado e necessário para para recepcionar a obra e autora que veem à frente. Nesses fragmentos Mombaça e Matiuzzi (2019MOMBAÇA, Jota; MATIUZZI, Musa Michelle. Carta à leitora preta do fim dos tempos. In: FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p.), anunciam categorias que seguirão: luz negra, poética negra feminista, negridade19 19 A tradução de blackness para negridade e não para negritude é proposital, pois a autora quer se distinguir da categoria negritude, originada do contexto pan-africanista do século XX. Sobre essa distinção ver o Curso Luz Negra (FERREIRA DA SILVA, 2020a). , plenum, excesso. Sintetizam bem o esforço que consiste em ler Denise Ferreira da Silva:

999. A caixa de ferramentas que é este livro enseja os limites do mundo como conhecemos e se move como uma força abolitiva que é também um pressentimento, ou um ensaio para jeitos de existir, saber e viver fora dos domínios governados pela Razão Universal. Estas páginas, contudo, não contém promessas e garantias quanto ao que vem, pois o conjunto destes textos não é uma cartografia de outros mundos possíveis, mas uma decomposição do mundo-como-conhecemos a partir da força do que lhe cerca. São facas para cortar as articulações de aço da Racionalidade Moderna, raios para atordoar a Consciência Autodeterminada do Sujeito, ventos para desviar a flecha do Tempo, explosivos para implodir os edifícios do Realismo Científico e sussurros para desorientar as leituras rumo ao limite do que conhecemos e, daí, ao domínio imprevisível daquilo que simultaneamente já está e está porvir. (MOMBAÇA, MATIUZZI; 2019MOMBAÇA, Jota; MATIUZZI, Musa Michelle. Carta à leitora preta do fim dos tempos. In: FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p. p. 17).

A Carta que prefacia a obra arrisca o movimento estético que pretende anunciar, sendo a repercussão das proposições presentes em “A Dívida Impagável” em outras obras das autoras uma oportunidade de se aproximar do pensamento de Denise Ferreira da Silva. A esse respeito, o livro “Ñ Vão nos Matar Agora” de Jota Mombaça (2021MOMBAÇA, Jota. Ñ vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.) consiste em belo experimento que ressoa a contribuição de Denise Ferreira da Silva em(contra) interromper a modernidade a partir de gênero, raça, sexualidade e matéria, em gesto radical.

2.2 Capítulo I: A ser anunciado: Uma práxis radical ou conhecer (n)os limites da Justiça

O ensaio que abre a antologia é: “A ser anunciado: Uma práxis radical ou conhecer (n)os limites da Justiça”. Publicado em 2013, o texto dialoga diretamente com temas e léxicos bastante caros às teorias jurídicas e questiona as limitações da justiça diante das categorias ontoepistemológicas modernas, uma vez que o conhecer depende da violência/negridade.

As epígrafes aludem à Coisa como “objeto sem valor”, quando a escravidão nas Américas é discutida na teoria do reconhecimento de Hegel (Lições de Filosofia da História) e o mandato de radicalidade nos Condenados da Terra de Frantz Fanon, que, junto a diferentes notícias de incêndios em revolta à violência policial contra pessoas negras nos EUA e na Inglaterra, servem para estruturar a questão principal do texto. Para a autora, a violência racial praticada por agentes do Estado e a resposta violenta à mesma não podem ser compreendidas dentro dos quadros explicativos modernos “informados pelas descrições da subjugação social providas pelo materialismo histórico, a sociologia ou pelo pós modernismo” (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p, 52).

A noção de justiça como “um referente de força (...) e como um significante informado pelos textos sócio-científicos e históricos” (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p, 52) aproxima-se explicitamente da contribuição de Derrida em “Força de Lei” e segue em diálogo com outros autores como Michel Foucault, Max Weber e Walter Benjamin. De acordo com Denise, analisar (n)os limites da justiça não propõe sua realização, mas um gesto além da crítica.

A reivindicação da “Coisa” hegeliana localiza a questão da justiça como uma impossibilidade diante da autodeterminação e transparência do sujeito moderno e das categorias políticas dele derivadas, cuja existência sempre dependerá de violência: racialidade e exterioridade. Segundo a autora, a racialidade “faz com que a justiça (como lei e direitos) colapse expondo-a/como violência” (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p, 55). Uma vez que os limites da justiça foram exaustivamente debatidos nos léxicos modernos, a contribuição exposta na obra busca entendê-los não no sentido do que a justiça não pode, mas na imanência da justiça limitada pelo relacionamento entre pessoas, reduzido à gramática que institui sujeitos e seus objetos (FERREIRA DA SILVA, 2019, p, 55).

Dar centralidade à “Coisa”, ao que não foi considerado na teoria do reconhecimento que permeia o pós-iluminismo, tem a ver com recuperar filosoficamente o espaço e a exterioridade (corpo e território) como figurações de um Excesso, que fora da cena da representação “permitem explorar o corpo feminino enquanto referente de desejos não reguláveis e não representáveis” (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p, 62). Se mesmo contribuições críticas importantes como as de Fanon, Georges Bataille e Walter Benjamin sobre violência, desejo e poder reafirmam a soberania no corpo masculino, Denise Ferreira da Silva faz uma pergunta perturbadora: “o que seria possível encontrar se o corpo sexual feminino guiasse a leitura do tripé - Colonialismo, Capitalismo e Patriarcado - no qual operam as estruturas globais ético-jurídicas e seus instrumentos, como, por exemplo o programa de direitos humanos?” (FERREIRA DA SILVA, 2019, p, 62).

Ao longo do texto “a Coisa” é recuperada como: “desejo sexual no corpo feminino”, “Excesso” e principalmente “o corpo da nativa escrava”. Nesse ponto, a relevância do que Denise Ferreira da Silva propõe é mais do que incômoda. Indaga-se o que seria possível encontrar se o eixo das análises - da justiça ou das arquiteturas jurídico-econômico simbólicas modernas como a autora prefere ao longo de sua obra - fosse para “algo” desconsiderado pelas categorias políticas modernas.

Nesse caminho, propõe um diálogo fictício entre Saidiya Hartman, Fred Moten e Lindon Barrett, autores e autoras contemporâneas do pensamento negro radical estadunidense, que ajudam a “pensar a Coisa fora da significação moderna” (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 71). Além disso, o texto fundacional Mama's Baby, Papa's Maybe: An American Grammar Book20 20 O texto foi traduzido para a língua portuguesa em: SPILLERS, Hortense. Bebê da mamãe, talvez do papai: Uma gramática estadunidense. In: BARZAGHI, Clara; PATERNIANI, Stella Z.; ARIAS, André(orgs.). Pensamento Negro Radical: antologia de ensaios. São Paulo: Crocodilo, 2021. p. 29-69. da feminista estadunidente Hortense Spillers, está no fundamento da obra da autora e manifesto neste ensaio. Seja na recusa política às narrativas de violência racial (Hartman); seja no sujeito negro em formas de resistência que não se reduzem a fonemas e palavras (Moten), ou; ao compreender o valor ora como forma ora como violência (Barrett), tais contribuições avançam para uma práxis radical que “abraça a violência como referente de outros desejos” (FERREIRA DA SILVA, 2019, p. 72) e atribui ao “corpo papel ontológico ou epistemológico determinante” (FERREIRA DA SILVA, 2019, p. 74).

Ao localizar a questão da justiça no corpo da nativa/escrava, a autora não está interessada em apresentar respostas ou fórmulas, mas em demonstrar a necessidade de uma práxis radical que não se fixe nas mesmas categorias que constroem e reproduzem os sujeitos e eventos de violência racial (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 82). Conhecer no corpo da nativa escrava - o limite factual da justiça quando se observa a forma como o Direito lida com as mulheres negras na regulação de seus corpos pelo Direito Penal21 21 A esse respeito ver: FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Raça, gênero e criminologia: reflexões sobre o controle social das mulheres negras a partir da criminologia positivista de Nina Rodrigues. 2017. 150 f. Dissertação (Mestrado em Direito) —Universidade de Brasília, Brasília, 2017. ou na recusa de direitos trabalhistas às trabalhadoras domésticas22 22 A este respeito, ver: RAMOS, Gabriela Batista Pires. “Como se fosse da família”: o trabalho doméstico na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. Dissertação(Mestrado em Direito) - Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2018. LOPES, Juliana Araujo. Quem pariu Amefrica? Trabalho doméstico, constitucionalismo e memória em pretuguês. Revista Brasileira de Políticas Públicas - RBPP. Dossiê Gênero, Raça e Direito - Articulações Empíricas e Epistemológicas, vol. 10, n. 2, ago 2020. , por exemplo - propõe avançar além das categorias do entendimento. Essa discussão fundamenta a práxis radical que Denise Ferreira da Silva localiza na Poética Feminista Negra, que é trabalhada nos próximos capítulos de “A Dívida Impagável” e em outras intervenções estéticas da autora.

2.3 Capítulo II: Para uma Poética Negra Feminista: A Busca/Questão da Negridade Para o (Fim do) Mundo

O segundo ensaio da coletânea é intitulado "Para uma Poética Negra Feminista: A busca/questão da Negridade para o (fim do) mundo"23 23 Texto publicado pela primeira vez na revista "The Black Scholar" em 2014. . A autora, animada pela urgência de confrontar a violência autorizada pelo Estado, indaga sobre as possibilidades de uma práxis radical que aborde as dimensões jurídica, econômica e simbólica do político. Inspirada pelo corpo sexual da nativa/escrava, busca emancipar a Negridade dos modos de conhecer da Ciência e da História, "ou seja, sem tudo que sustenta a trajetória transparente do sujeito da razão universal e seu controle sobre nossa imaginação política" (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 88). A radicalidade do corpo sexual feminino - o qual remete à Coisa abordada no capítulo anterior - se dá por seu exílio da representação moderna, que anuncia outras possibilidades de conhecer, fazer e existir, "desde fora de sua inscrição como objeto, outro ou mercadoria"(FERREIRA DA SILVA, 2019, p. 86).

Aqui, ela concentra seus esforços sobre o pilar ontoepistemológico da separabilidade. Ao revisitar a noção de Mercadoria, aponta o apagamento da expropriação da capacidade produtiva de corpos escravizados e terras nativas pela tese marxista. São eles que "constitu[em] a própria estrutura (o sangue e a carne) do capital global" - e não momento anterior a ele (enquanto acumulação primitiva) -, produzindo assim um "controle sobre a imaginação radical" (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 90-91). Recorrendo à descrição de CLR James24 24 Refere-se à obra de CLR James intitulada "Os Jacobinos Negros", que conta a história da Revolução Haitiana (1791-1804), então maior colônia francesa, que produzia grande parte do açucar consumido no planeta, e tornou-se um Estado constitucional negro em plena Era das Revoluções, influenciando lutas por liberdade por toda a América, inclusive no Brasil. Em: JAMES, C.R.L. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. Tradução de Afonso Teixeira Filho. São Paulo: Boitempo, 2007. Sobre a influência do haitianismo no Brasil, consultar QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa. Constitucionalismo brasileiro e o Atlântico Negro: a experiência constitucional de 1823 diante da Revolução Haitiana. Lumen Juris, 2018. sobre a brutalidade e terror calculados para extração desse valor enquanto parte da arquitetura jurídico-econômica colonial, que implicam o "colapso da distinção entre propriedade e trabalho", afirma que

É crucial começar com a escravidão exatamente porque um dos efeitos mais produtivos das ferramentas da razão científica, responsáveis por produzir a Categoria da Negridade, é precisamente - algo possível graças à presunção de separabilidade - a oclusão da relação entre trabalhadores escravizados e seus proprietários como um tipo de arranjo jurídico, capturada através do conceito da propriedade, que não faz parte das relações capitalistas, porque estas seriam mediadas somente por contratos (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 89).

No mesmo movimento em que recobra o valor decorrente da capacidade produtiva do corpo sexual da nativa/escrava, chama também atenção para a sua capacidade criativa, "somente perceptível quando se contempla o mundo como Plenum" (não totalidade ordenada); que mobiliza a práxis radical feminista negra para expor e dissolver a separabilidade e reivindicar o valor total expropriado (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 96). A oclusão do caráter econômico da subjugação racial é possibilitada pelas ferramentas do Conhecimento. Isso é efeito jurídico-econômico das arquiteturas coloniais, traduzida (equivocadamente) como falha moral/preconceito dos brancos ante a diferença física/mental do outro racial25 25 Isso está presente, por exemplo, na Sociologia das Relações Raciais; teoria dos contatos e trocas culturais e ciclo das relações raciais. .

Denise identifica a relação entre Sujeito e Tempo26 26 Ferreira da Silva retoma a Tabela do Homem da História Natural em autores como Charles Darwin e J. G. Herder e sua influência na distinção identidade x diferença em sua exposição sobre o tempo, além do já mencionado G. F. W. Hegel, que se apropria da “noção das “raças dos homens”, uma tabela classificatória que mobiliza diferenças corporais e territoriais para demarcar diferenças/identidades entre as populações ao redor do planeta. [...] Hegel acentua ainda mais o processo de apreensão do Mundo como um salão de exposição de algo que pertence ao tempo, quer dizer, uma coisa interior. Lá, ele descobre que o Espírito não tinha afetado e não iria realizar seu trabalho nas mentes e territórios Africanos, pois o Negro não possuía as ideias que registram sua presença” (FERREIRA DA SILVA, 2019, p. 103). , sendo a Negridade “categoria de separação fundamental [...] entre os coletivos humanos que compreende e mapeia” (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 104). A separabilidade emerge no Tempo, informa a distinção entre Sujeito e Objeto e o Princípio da Identidade e Diferença. “Expor como o Tempo opera através de nossas Categorias” faz parte da exumação da dialética racial (FERREIRA DA SILVA, 2019, p. 102). Passando pela dupla consciência de W. E. B. Du Bois, e pelo enunciado de Frantz Fanon que situa o Homem Negro entre Objetos, o desafio colocado neste projeto é conceber a Negridade desarticulada da autoconsciência (trajetória de realização espaço-temporal da razão universal, que é, por sua vez, efeito do Pensamento), na esperança de que o Fim do Mundo emancipe a Coisa das Categorias do Entendimento.

Amparada na já mencionada Hortense Spillers, a tarefa da Poética Negra Feminista de desmantelar o Pensamento Ocidental e emancipar o escravo das “garras da mercadoria” começa ao encararmos a escravidão como uma série de crimes contra a carne27 27 Sobre o conceito de carne em Spillers (2021, p. 34) “Eu faria, no entanto, uma distinção neste caso entre ‘corpo’ e ‘carne’ e imporia essa distinção como a central entre posições de sujeito cativo e libertado. Nesse sentido, antes do ‘corpo’ existe a ‘carne’, aquele grau zero de conceituação social que não escapa da dissimulação sob a escova do discurso ou dos reflexos da iconografia. Mesmo que as hegemonias europeias, conjunto com o ‘intermediário’ africano, roubassem corpos - alguns deles femininos - das comunidades da África Ocidental, consideramos essa irreparabilidade humana e social como crimes graves contra a carne, uma vez que a pessoa de mulheres africanas e homens africanos registrou as feridas. Se pensarmos na ‘carne’ como uma narrativa primária, então queremos dizer que ela está cauterizada, dividida, rasgada em pedaços, rebitada no buraco do navio, caída ou 'fugida' para o mar". . Segundo Denise Ferreira da Silva (2019, p. 110) “a carne ferida, inscrições da violência calculada, registram o que a Categoria da Negridade esconde: capital morto-vivo lucrando a partir da capacidade produtiva dos corpos escravos e terras indígenas”.

Libertar a imaginação com a suspensão das leis da razão universal aponta não para separabilidade, mas para implicabilidade profunda, figurada pelas personagens da ficção científica de Octavia Butler: Dana, de Kindred, Anyanwu, de Wild Seed28 28 Traduzido no Brasil pela Editora Morro Branco como "Semente originária" (2021). e Olamina de Parable of the Sower29 29 Traduzido no Brasil pela Editora Morro Branco como "Parábola do semeador" (2018). . Dana viaja no tempo para a Maryland do período Antebellum para salvar seu ancestral senhor de escravos. Olamina sente o que as outras pessoas sentem (física e emocionalmente). Anywanu se transforma em qualquer animal e pode curar ferimentos. Juntas, exemplificam as propriedades da virtualidade, transubstancialidade, transversalidade e atravessabilidade que ensaiam/especulam outro Mundo.

2.4 Capítulo III: 1 (vida) ÷ 0 (negridade) = ∞ - ∞ ou ∞ / ∞: sobre a matéria além da equação de valor

“1 (VIDA) ÷ 0 (NEGRIDADE) = ∞ - ∞ OU ∞ / ∞: (Sobre a) Matéria para Além da Equação de Valor” é terceiro capítulo do livro em análise. Parte de percepções sobre a obra In Pursuit of Bling da artista Otobong Nkanga, a qual utiliza diversos minerais para iluminar a presença da violência colonial. À obra de arte que reluz a presença violenta da colonialidade nas partículas, Denise Ferreira da Silva ainda quer pensar a dimensão ética do valor diante da morte de pessoas negras, especificamente na questão levantada pelo movimento político Black Lives Matter. Para a filósofa, a importância das vidas negras será sempre uma questão, que, investigada bem, receberá resposta negativa, porque se estrutura nas mesmas condições de possibilidade do sujeito moderno. Buscará, então, acionar a negridade não como denúncia ou reivindicação simbólica de alargamento de humanidade, mas como a negridade pode interpelar a cena do valor, ela mesma, materialmente, em suas repercussões éticas e econômicas.

Para explicar as análises que permitem a proposição da poética negra feminista da “equação do valor”, Denise Ferreira da Silva discute a determinabilidade - entendida como um dos três pilares onto-epistemológicos do texto moderno - para interferir no valor e por consequência em novas formas de existência. A referida equação, dispara a negridade para liberar outras possibilidades além do Mundo Ordenado.

A determinabilidade, enquanto “determinação formal articulada como um tipo de causa eficiente” (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 123), é uma das consequências da ciência moderna, que no século XVI, a partir das contribuições de Francis Bacon e René Descartes, localiza na mente o lócus da produção de um conhecimento eficiente, excluindo o corpo. Desse modo, a determinabilidade proporciona a explicação mensurável da qual depende a autodeterminação (hegeliana) que diferencia a Europa de suas colônias:

a efetividade se refere a ambas a capacidade dos sentidos de acessar as coisas do mundo (sendo afetado ou movido por elas) e a capacidade da mente de resolver a diversidade acessada com o uso das ferramentas básicas (categorias) que estão disponíveis para o Entendimento produzir cognições “mais elevadas” - isto é, a abstração e a reflexão -, assim como para cumprir o que então se torna a principal tarefa do conhecimento, isto é, a determinação (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p.134).

O capítulo nos leva a imaginar que no palco da determinação, a negridade sempre adentrará pela violência racial que produz a obliteração de corpos negros. Daí a aposta em uma fórmula matemática, justificada pela autora em outro texto quando comenta outra proposição, a equação do desejo sexual:

A propósito, meu uso de símbolos matemáticos aqui, incluindo o número 1 (um), é um truque representacional que me permite produzir uma análise composicional - por meio da nomeação do movimento e da delimitação do significado dos termos (palavras e sinais matemáticos) - sem ter que transferir todos os significados possíveis de qualquer termo dado. Nada do que vem a seguir reivindica ou confia na suposição de que a matemática tem uma relação privilegiada com a ontologia - como para Badiou, que postula que a matemática é ontologia. (FERREIRA DA SILVA, 2021FERREIRA DA SILVA, Denise. Hackeando o Sujeito: feminismo negro e recusa além dos limites da crítica. In: BARZAGHI, Clara; PATERNIANI, Stella Z.; ARIAS, André(orgs.). Pensamento Negro Radical: antologia de ensaios. São Paulo: Crocodilo, 2021. p. 193-225., p. 204, nota de rodapé).

Deve-se atentar, portanto, nos movimentos empreendidos na fórmula, a negridade que é um negativo (-1), movimenta-se livremente entre o sinal de igualdade e rejeita sua representação como simples negativo, porque se trata de recusar a dialética para compreender a negridade. Ao reduzir a equação do valor a zero divido por zero, o indivísivel, o Corpus Infinitum, a autora tenta demonstrar o potencial da negridade fora da contradição. Ela pode tornar-se tudo e todos a sua volta irrepresentáveis. A negridade revela que diante do que não tem resposta dentro do conjunto dos símbolos conhecidos, é preciso então de outras categorias, o fim do mundo.

2.5 Capítulo IV: Dívida Impagável: Lendo Cenas de Valor Contra a Flecha do Tempo

O quarto capítulo da coletânea tem como ideias-chave a atravessabilidade, o capital e o valor na construção do conceito de dívida impagável30 30 O conceito de dívida impagável foi introduzido em “Accumulation, Dispossession, and Debt: The Racial Logic of Global Capitalism - An Introduction”, texto em co-autoria com Paula Chakravatty publicado em 2013 na obra Race, Empire and the Crisis of the Subprime, editada por Ferrreira da Silva e Chakravatty. . Aqui, Denise traz para o centro da conversa a imagem das personagens Dana e Rufus em Kindred: Laços de Sangue'' (BUTLER, 2017BUTLER, Octavia. Kindred: Laços de Sangue. São Paulo: Morrobranco, 2017.), romance de ficção científica de Octavia Butler. Na trama, Dana Franklin é uma mulher negra de 26 anos da Califórnia de 1979 que inesperadamente passa a realizar viagens no tempo para salvar a vida de Rufus Weylin, um garoto branco que se tornaria senhor de escravos na Maryland do período pré-Guerra Civil - e quem ela descobre ser seu ancestral. Cenas da relação entre Dana e Rufus são retomadas ao longo do texto: Dana ensinando ao menino que não podia chamá-la de crioula; Dana contemplando a fuga; Dana cravando a faca para matar o amigo-antepassado que faz valer sua condição de senhor ao tentar estuprá-la.

Quando reverte a flecha do tempo, transitando entre a década 1970 e o contexto escravista, Dana “viola os três pilares ontoepistemológicos [...] responsáveis por sustentar o tempo linear e seu Mundo Ordenado (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 149-150). Aqui, o alvo da autora é o pilar da sequencialidade (separabilidade + determinabilidade), uma vez que ela atravessa o tempo linear. Substituindo o Entendimento pela Imaginação,

é possível reapresentar a cena econômica do valor de uma forma que transforma as categorias do materialismo histórico em ferramentas intelectuais que finalmente sirvam à decolonização [...].[Kindred, desafiando as Categorias, indica que] é possível imagear as implicações profundas referidas pelo sexual no corpo feminino, isto é, conexões que excedem os limites do Espaço-Tempo, as quais são matéria prima e ferramentas da poética negra feminista (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 151-152).

Podemos entender atravessabilidade como emaranhamento, implicação profunda, ausência de separação entre o eu e o outro, e de sequencialidade entre presente, passado e futuro, que aponta para padrões de repetição intergeracionais da escravidão. Dana volta no tempo para salvar o pai/proprietário, obrigação que só faz sentido se ignoradas as Categorias do Entendimento. Dana não escolheu a dívida que a conecta a Rufus. Pela simples condição de ser negra e estar viva, vê-se diante da obrigação de manter a existência dele para preservar sua própria, ao mesmo tempo que a propriedade que ele exerce sobre ela impõe uma ameaça; redesenhando a dialética senhor-escravo. Sua dívida é ética e economicamente impagável, sustentada por

uma forma jurídica... que não se aplica nas relações entre pessoas [título de propriedade]... que rege uma relação econômica... [que] autoriza o uso da violência total de modo a extrair o valor total criado pelo trabalho escravo, o que resulta em descendentes vivendo na escassez ou defasagem econômica (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 153).

A imagem da dívida impagável é informada pela crise do Subprime nos EUA, a bolha imobiliária sustentada pela exploração da vulnerabilidade econômica de pessoas negras e latinas, que aponta a continuidade do racial na acumulação capital global. A sequencialidade é escolhida como alvo pois “o que é sucessivo consiste em um estágio do progresso” (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 154). Somente numa leitura implicada, fora da temporalidade linear, no exercício de suspensão da separabilidade (pensamento fractal), expondo os elementos da dívida que se carrega mas não deve ser paga, a descolonização é concebível.

A autora abre a seção seguinte com uma citação de Karl Marx que define a colonização como momento de acumulação primitiva (na pré-história do capital), e afirma que as análises críticas da relação entre racial e capital tratam o racial como datum (dado, matéria empírica ou natural, organizada pelas Categorias), a exemplo das abordagens de Aníbal Quijano e Sylvia Wynter. Em Quijano, a colonialidade se apoia numa distinção entre estrutura e cultura, mantendo o racial como datum social, não categoria econômica. Em Wynter, a colonialidade é articulada numa distinção entre ciência e cultura, em que enunciados descritivos europeus têm efeito de estigmatização dos outros, mais que efeitos econômicos.

Nesse sentido, propõe uma figuração fractal da tríade Colonial-Racial-Capital desde o corpo sexual da nativa/escrava, que “por não significar o sujeito nas equações do poder (...), é capaz de expor e dissolver a violência colonial e o excesso que esta anuncia” (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 162). O colonial, resolvido num texto moral, tem sua dimensão econômica ofuscada em dois momentos. Primeiro, pelo arsenal da racialidade31 31 Seguindo o método de Michel Foucault na História da Sexualidade para desarticular a oclusão do racial, a abordagem de Denise da racialidade lembra aquela empreendida na tese de Sueli Carneiro. Em: CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de doutorado (Programa de Pós-Graduação em Educação), Universidade de São Paulo - USP, 2005. , que transforma a diferença racial em significante de déficit moral, produzindo o espaço global como Mundo Ordenado, delimitando fronteiras da liberdade. Segundo, pelo texto materialista histórico, que situa o colonial num tempo anterior ao capital (como acumulação primitiva), e o trabalhador escravizado como propriedade, meio de produção, coisa/ferramenta32 32 Aqui, introduz a noção de mão de obra viva [living labor]. Uma vez que possui capacidade produtiva, a escrava não é uma coisa, um mero meio de produção. .

Intuição e imaginação guiam as heroínas de Butler a violar “limitações conceituais mais resilientes - a saber, as formas jurídicas da propriedade privada e do contrato” (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 183). Perturbam, assim, nossas próprias dívidas e horizontes de liberdade.

2.6 O abrir-mão para o futuro: Pedro Daher

O posfácio do livro é assinado por Pedro Daher, que se apresenta como leitor e aluno de Denise Ferreira da Silva. Daher comenta as possíveis dificuldades de mergulhar o pensamento da autora, o que demanda persistência e o reconhecimento da atualidade da obra: trata-se de um programa ético-político denso e transformador que ao revelar o racial e não ocultá-lo, não se furta de enfrentar questões urgentes do nosso tempo.

O posfácio funciona ao modo de um recurso narrativo de familiaridade. Finalmente, a leitora e o leitor do fim dos tempos, ora anunciadas, podem se reconhecer na incompreensão e na repetição. Fala-se em não abrir-mão, e então depara-se com a recusa. Não se pode abrir mão de ler uma intelectual que afronta tão intensamente os já conhecidos equívocos modernos. Ou todo ele, o aparato simbólico-moderno.

3. Notas para ler-aprender o indecifrável

O que mais se pode fazer, dizer, lembrar, contar, escrever, criar, depois que tudo foi feito e dito? Quantas vezes mais deve o trabalho crítico e criativo recitar os episódios de violência colonial e racial? Quantas vezes deve-se exigir o reconhecimento de que ocorreu uma injustiça? De que outra maneira se pode articular o grito por justiça? Quantos corpos mortos teremos que acumular até que haja bastante evidência? Quantas pessoas negras foram mortas pela polícia nos Estados Unidos e no Brasil durante a crise do novo coronavírus?" (FERREIRA DA SILVA; MATTIUZZI; MACHADO, 2020).

“XVI: A TORRE: Catástrofe. Todas as estruturas desabam.” (DESIDERI, FERREIRA DA SILVA, EhCho, 2022).

Como explicar uma obra “irresenhável”? Nas páginas anteriores, buscamos realizar o estudo de uma obra complexa, situada no emaranhado de ideias, filósofos, perguntas, personagens, performances e fórmulas matemáticas de uma autora ainda pouco lida no Brasil33 33 No Curso Luz Negra, Denise Ferreira da Silva (2020a) comenta sua percepção de que sua obra não foi lida por seus contemporâneos, na primeira década dos anos 2000, mas sim pela geração atual. Destacamos que a recepção atual da obra não é acaso, pois estamos há duas décadas de implementação de políticas de ações afirmativas na universidade que viabilizaram o acesso de estudantes negras e negras que transformam este espaço, inclusive na inserção de agendas de pesquisa e rupturas epistemológicas. . Nossa intenção ao apresentar a antologia está distante de oferecer uma síntese de “A Dívida Impagável”, texto irredutível, mas em dialogar com Denise Ferreira da Silva ao entender que suas proposições trazem questões urgentes ao Direito. Se todos os caminhos parecem indecifráveis, é preciso persistir neles porque a autora questiona as arquiteturas jurídico-econômicas a partir do sexual no corpo da nativa escravizada. Em outras palavras, se o pensamento é complexo é porque estrutura uma pergunta transgressora. O que acontece quando se questiona o Direito Outra-mente? O que acontece quando na centralidade das arquiteturas jurídico-econômicas está o corpo de mulheres racializadas perturbando conhecimento e matéria?

A complexidade do texto pode limitar seu acesso a mais pessoas leitoras. O uso de fórmulas matemáticas também afasta durante a leitura, pois só fazem sentido quando explicadas por argumentos presentes em outras produções de Denise Ferreira da Silva. Além disso, há ressonância da investigação de Pedro Daher sobre como confrontar as categorias do entendimento kantianas e a cena da representação quando ainda se permanece nelas. Texto escrito, fórmulas matemáticas, autores europeus. Compartilhamos que o estudo da obra de Ferreira da Silva tem funcionado melhor por meio de leituras em grupo, em temperança34 34 A carta da Temperança é uma boa imagem para guiar a leitura de uma obra como a de Denise Ferreira da Silva. De acordo com as instruções disponibilizadas na Plataforma EhCho, o arcano XIV do tarot: “XIV - TEMPERANÇA: Equilibrar, acompanhar o fluxo, ser calmx, mesclar os opostos". In: DESIDERI, Valentina; FERREIRA DA SILVA, Denise. Poetichal Reading. Disponível em: https://ehcho.org/conteudo/poethical-reading , com o apoio de vídeos de conferências e cursos proferidos pela autora que se multiplicaram no período da pandemia.

Habitante nômade da parte norte da geopolítica do conhecimento, o livro é uma oportunidade para que a comunidade leitora brasileira se aproxime de autoras negras radicais como Hortense Spillers, Saidiya Hartman, Fred Moten, Sylvia Winter e outras. Bem como é tarefa da leitora ou do leitor aproximar o pensamento da filósofa brasileira junto a outras intelectuais com quem o texto tem muito a conversar: o acionamento feminista da psicanálise para confrontar a construção nacional por Lélia Gonzalez (1984GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje - Anpocs, p. 223-244, 1984.); a corporalidade/espacialidade em Beatriz Nascimento (2018NASCIMENTO, Maria Beatriz. Transcrição do documentário Orí [1989]. Em: Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidade nos dias de destruição. Ed. Filhos de África. São Paulo, 2018.); ou a produção intelectual de Muniz Sodré sobre espaço, raça e filosofia, dentre várias conexões que atravessam à leitura.

A obra permite indagar sobre qual o lugar das mulheres negras no Direito, sobre os lugares que são autorizadas a habitar na teoria jurídica. Ao se conformar com a cena da representação moderna, o Direito (e a pesquisa jurídica) onto-epistemologicamente aprisiona as mulheres negras às cenas de sujeição: clientes do sistema penal, trabalhadoras sem direitos reconhecidos, vítimas de violência e outras imagens que recriam a violência racial e colonial, como mencionado na epígrafe. Distante de respostas acabadas, a produção intelectual de Denise Ferreira da Silva permite que outras perguntas, estas sim radicais, possam ser feitas no campo do Direito.

“A Dívida Impagável” funciona como um convite à imersão nas águas profundas da filosofia da autora. É também anúncio editorial da tradução de sua principal obra Toward a Global Idea of Race, que está para ser publicada pela Editora Cobogó em 2022 e do lançamento de Unpayable Debt, livro inédito com previsão de publicação para agosto de 2022. Ainda que sejam homônimos e percorram temas e personagens comuns, segundo a autora são textos absolutamente distintos. O primeiro - que resenhamos - consiste numa reunião de textos publicados nos anos 2010 em inglês para serem apresentados ao público brasileiro, já a obra vindoura aprofundará a poética negra feminista em confronto com as arquiteturas ético-jurídicas do capital-colonial a partir do romance Kindred da escritora estadunidense Octavia Butler.

Abrem-se caminhos para entender a confrontação onto-epistemológica presente nas teorias sociais críticas produzidas por mulheres negras e outras comunidades afro-diaspóricas que não se limitam aos vocabulários e experiências do Estado Nação.

4. Referências Bibliográficas

  • BUTLER, Octavia. Kindred: Laços de Sangue. São Paulo: Morrobranco, 2017.
  • CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de doutorado (Programa de Pós-Graduação em Educação), Universidade de São Paulo - USP, 2005.
  • COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019. 493 p.
  • DENISE, Ferreira da Silva por Aléxia Bretas. Youtube: Rede Brasileira de Mulheres Filósofas, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6K0RsHENZhA Acesso em: 28 jun. 2022.
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  • DESIDERI, Valentina; FERREIRA DA SILVA, Denise. Leituras (Po)éticas. Cadernos de Subjetividade, São Paulo, n. 19, p. 61-70, jul. 2018. Semestral. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/cadernossubjetividade/article/view/38145 Acesso em: 31 maio 2022.
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  • DESIDERI, Valentina; FERREIRA DA SILVA, Denise. Poetichal Reading. Disponível em: https://ehcho.org/conteudo/poethical-reading 2022a
    » https://ehcho.org/conteudo/poethical-reading
  • EHCHO. A Dívida impagável. Disponível em: https://ehcho.org/conteudo/a-divida-impagavel-denise-ferreira-da-silva?rq=denise Acesso em: 28 jun. 2022.
    » https://ehcho.org/conteudo/a-divida-impagavel-denise-ferreira-da-silva?rq=denise
  • FERREIRA DA SILVA, Denise. À brasileira: racialidade e a escrita de um desejo destrutivo. Revista Estudos Feministas [online]. 2006, v. 14, n. 1 [Acessado 28 Outubro 2021] , pp. 61-83.
  • FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p.
  • FERREIRA DA SILVA, Denise. Curso “Luz Negra", com a professora Denise Ferreira Da Silva aula 1: aula 1. Aula 1. 2020a. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-47X_7XJnOU&t=9410s Acesso em: 10 ago. 2022.
    » https://www.youtube.com/watch?v=-47X_7XJnOU&t=9410s
  • FERREIRA DA SILVA, Denise. Hackeando o Sujeito: feminismo negro e recusa além dos limites da crítica. In: BARZAGHI, Clara; PATERNIANI, Stella Z.; ARIAS, André(orgs.). Pensamento Negro Radical: antologia de ensaios. São Paulo: Crocodilo, 2021. p. 193-225.
  • FERREIRA DA SILVA, Denise Ler a arte como confronto. Logos: Comunicação e Universidade, [s. l], v. 27, n. 03, p. 290-296, jan. 2020b. Semestral. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/logos/issue/archive Acesso em: 31 maio 2022.
    » https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/logos/issue/archive
  • FERREIRA DA SILVA, Denise Ninguém: direito, racialidade e violência. Meritum, Belo Horizonte, v. 1, n. 9, p. 67-117, 2014. Quadrimestral. Disponível em: https://www.sumarios.org/artigo/ningu%C3%A9m-direito-racialidade-e-viol%C3%AAncia Acesso em: 28 jun. 2022.
    » https://www.sumarios.org/artigo/ningu%C3%A9m-direito-racialidade-e-viol%C3%AAncia
  • FERREIRA DA SILVA, Denise. Toward a global idea of race. Minesotta/London: University Of Minnesota Press, 2007.
  • FERREIRA DA SILVA, Denise; MATTIUZZI, Musa Michelle; MACHADO, Laís. After it's all said. 2020c. Goethe-Institut. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jOSBe_DxdYs Acesso em: 28 out. 2021.
    » https://www.youtube.com/watch?v=jOSBe_DxdYs
  • FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Raça, gênero e criminologia: reflexões sobre o controle social das mulheres negras a partir da criminologia positivista de Nina Rodrigues. 2017. 150 f. Dissertação (Mestrado em Direito)-Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
  • GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje - Anpocs, p. 223-244, 1984.
  • JAMES, C.R.L. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. Tradução de Afonso Teixeira Filho. São Paulo: Boitempo, 2007.
  • LOPES, Juliana Araujo. Quem pariu Amefrica? Trabalho doméstico, constitucionalismo e memória em pretuguês. Revista Brasileira de Políticas Públicas - RBPP. Dossiê Gênero, Raça e Direito - Articulações Empíricas e Epistemológicas, vol. 10, n. 2, ago 2020.
  • MOMBAÇA, Jota; MATIUZZI, Musa Michelle. Carta à leitora preta do fim dos tempos. In: FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p.
  • MOMBAÇA, Jota. Ñ vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
  • NASCIMENTO, Maria Beatriz. Transcrição do documentário Orí [1989]. Em: Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidade nos dias de destruição. Ed. Filhos de África. São Paulo, 2018.
  • O Evento Racial, uma proposição de Denise Ferreira da Silva. Youtube, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T_QBEPK7too&t=5627s Acesso em: 28 jun. 2022.
    » https://www.youtube.com/watch?v=T_QBEPK7too&t=5627s
  • PIRES, Thula. Colorindo memórias e redefinindo olhares: Ditadura militar e racismo no Rio de Janeiro. In: RIO DE JANEIRO (Estado). Comissão da Verdade do Rio. Rio de Janeiro: CEV-Rio, 2015, p. 16-17. Disponível em: <http://www.cev- rio.org.br/site/arq/Pires-T-Colorindo-memorias-e-redefinindo-olhares-Ditadura-militar- e-racismo-no-Rio-de-Janeiro.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2022.
    » http://www.cev- rio.org.br/site/arq/Pires-T-Colorindo-memorias-e-redefinindo-olhares-Ditadura-militar- e-racismo-no-Rio-de-Janeiro.pdf
  • QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa. Constitucionalismo brasileiro e o Atlântico Negro: a experiência constitucional de 1823 diante da Revolução Haitiana. Lumen Juris, 2018.
  • RAMOS, Gabriela Batista Pires. “Como se fosse da família”: o trabalho doméstico na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. Dissertação(Mestrado em Direito) - Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2018.
  • FERREIRA DA SILVA, Denise; NEUMAN, Arjuna. Plattform. Serpent Rain - Talk and film screening. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vIpjy153xqc Acesso em: 20 mar. 2022.
    » https://www.youtube.com/watch?v=vIpjy153xqc
  • FERREIRA DA SILVA, Denise; NEUMAN, Arjuna. 4 Waters - Deep Implicancy. Disponível em: https://whttps://ehcho.org/conteudo/4-waters Acesso em: 12 ago. 2022.
    » https://whttps://ehcho.org/conteudo/4-waters
  • SPILLERS, Hortense. Bebê da mamãe, talvez do papai: Uma gramática estadunidente . In: BARZAGHI, Clara; PATERNIANI, Stella Z.; ARIAS, André(orgs.). Pensamento Negro Radical: antologia de ensaios. São Paulo: Crocodilo, 2021. p. 29-69.
  • 1
    Agradecemos à leitura minuciosa e às sugestões das pesquisadoras Loyde Cardoso Santos e Raissa Roussenq Alves, também leitoras companheiras de Denise Ferreira da Silva.
  • 2
    Personagem do romance de ficção científica Kindred, de Octavia Butler.
  • 3
    Essas informações foram extraídas do currículo lattes da autora disponível na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/9153860915150061
  • 4
    O curso foi ministrado em dezembro de 2019 e disponibilizado no YouTube em setembro de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-47X_7XJnOU&t=9410s
  • 5
    Em pesquisa coordenada por Thula Pires, o relatório da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro traz informações importantes sobre racismo e ditadura militar no Rio de Janeiro. Além da perseguição de militantes, intelectuais e movimentos culturais negros e do papel central do mito da democracia racial no edificio ideológico do regime - dados não abordados pela Comissão Nacional da Verdade -, o relatório destaca o acirramento do controle de comunidades negras por forças de segurança pública no contexto em que Denise Ferreira da Silva cresceu, na forma de "‘Blitz’ prisões arbitrárias, invasão a domicílio, expropriação de seus lugares de moradia (através de remoções), tortura física e psicológica, além do convívio com a ameaça latente dos grupos de extermínio" (PIRES, 2015PIRES, Thula. Colorindo memórias e redefinindo olhares: Ditadura militar e racismo no Rio de Janeiro. In: RIO DE JANEIRO (Estado). Comissão da Verdade do Rio. Rio de Janeiro: CEV-Rio, 2015, p. 16-17. Disponível em: <http://www.cev- rio.org.br/site/arq/Pires-T-Colorindo-memorias-e-redefinindo-olhares-Ditadura-militar- e-racismo-no-Rio-de-Janeiro.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2022.
    http://www.cev- rio.org.br/site/arq/Pire...
    , p. 16-17).
  • 6
    Sobre esse livro, é válido ressaltar que a autora se refere em suas comunicações como "Homo Modernus".
  • 7
    A globalidade a que se refere a autora refere-se à obra hegeliana, que estabelece uma relação entre regiões do globo corresponderem a estágios de desenvolvimento humano, sendo o ápice a Europa pós-Iluminista (sec. XIX), concebendo "corpo e mente, tempo e espaço, Natureza e Razão" como "manifestações do Espírito, ou a Razão enquanto Liberdade". (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 39)
  • 8
    Transubstancialização, segundo a autora, consiste em "desloca[r] do registro existencial para o formal" (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p.,p. 91).
  • 9
    A autora define História como "região do conhecimento moderno que assume o tempo como dimensão ontoepistemológica privilegiada, isto é, como na História e nas Humanidades"; enquanto a Ciência é entendida como "região do conhecimento que postula o espaço como como dimensão ontoepistemológica privilegiada, isto é, em disciplinas como Física clássica e Química" [tradução livre] (FERREIRA DA SILVA, 2007FERREIRA DA SILVA, Denise. Toward a global idea of race. Minesotta/London: University Of Minnesota Press, 2007., p. XV-XVI).
  • 10
    A respeito da relação entre filosofia, raça e espacialidade o vídeo a seguir de Muniz Sodré pode ser útil: Nós transantlânticos. O Espaço da África no Brasil. Youtube, 11 jan. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8asUpAkFbu4. Acesso em 7 ago 2022.
  • 11
    Um exemplo dos efeitos da dimensão espacial/biológica pode ser notado sobre o corpo sexual da nativa/escrava inscrito no texto nacional brasileiro a partir da democracia racial. Na versão tropical do sujeito transparente, há um movimento de obliteração da racialidade por meio do estupro de mulheres colonizadas. Essa miscigenação, antes de um pacto celebratório, consistiria em estratégia de eliminação de negros e indígenas, produzindo um sujeito mestiço cujo destino é desaparecer (FERREIRA DA SILVA, 2006FERREIRA DA SILVA, Denise. À brasileira: racialidade e a escrita de um desejo destrutivo. Revista Estudos Feministas [online]. 2006, v. 14, n. 1 [Acessado 28 Outubro 2021] , pp. 61-83.).
  • 12
    A compreensão da autora de violência do Estado enfatiza violência policial legitimada pelo Judiciário, seja na ditadura militar no Brasil dos anos 1970, nas revoltas frente às agressões de Rodney King em Los Angeles e à chacina de Vigário Geral no Rio na década de 1990, ou no movimento Black Lives Matter nos anos 2010 (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p.)
  • 13
    A respeito do léxico filosófico de Denise Ferreira da Silva conferir o glossário que abre Toward a Global Idea of Race (FERREIRA DA SILVA, 2007FERREIRA DA SILVA, Denise. Toward a global idea of race. Minesotta/London: University Of Minnesota Press, 2007.), a primeira obra da autora.
  • 14
    Poucos desses artigos têm sido recentemente traduzidos para o português.
  • 15
    A sinopse do filme explica muito da aposta intelectual encampada por Denise Ferreira da Silva: “Serpent Rain é tanto um experimento sobre o pensar e o existir desde o corte, sem o tempo linear. Inspirado pela descoberta de um navio negreiro afundado. Em busca de uma imagem de uma vida sem mediação da categoria europeia do humano, Denise Ferreira da Silva e Arjuna Neuman embarcam na impossível missão de fazer um filme sem o tempo. O resultado é um vídeo experimental, no qual os quatro elementos clássicos (agua, terra, fogo, e ar) e o tarô guiam imagens que refletem sobre escravidão, a extração de recursos, a não/importância ética das vidas negras, questionam uma programa ético baseada numa noção vida predicada na violência colonial e racial.” Essa sinopse e o vídeo completo estão disponíveis em: <https://ehcho.org/conteudo/serpent-rain>
  • 16
    O filme trabalha uma noção transformativa de justiça: “‘4 Waters - Deep Implicancy’ é tanto um projeto de filme, um experimento em colaboração, quanto um conjunto de fragmentos retirados de um cosmos re-imaginado. Esses fragmentos, sons e histórias nos ajudam a transmitir o momento experiencial de emaranhamento, ou melhor, descrevem um momento emaranhado anterior à separação, o que chamamos de “Implicância Profunda” (Deep Implicancy). Uma dessas histórias que seguimos é a água, tanto na medida em que transições de fase com e para outras matérias, incluindo a vida, mas também porque combina díspares geografias, corpos de / na água e quatro ilhas dentro elas - Lesvos, Haiti, Ilhas Marshall, Tiwi. Através de uma série de migrações experimentais e cruzamentos elementais, começamos a questionar a forma do humano universal, suas origens calcificadas e excepcionais e, em particular, seu programa ético. Vagando e imaginando por meio de uma figura transformadora da justiça, perguntamos, e se nossa imagem do mundo lembrasse fase em vez de medida? E o que acontecerá com a ética se abrirmos mão do valor?”. Essa sinopse e o vídeo completo estão disponíveis em: <https://ehcho.org/conteudo/4-waters>
  • 17
    Segundo dados biográficos disponíveis no portal da 34º Bienal de São Paulo: “Jota Mombaça (1991, Natal, RN) define-se como ‘bicha não binária, nascida e criada no nordeste do Brasil’. Jota pesquisa as relações entre humanidade e monstruosidade, investiga a pertinência do queer como categoria no contexto brasileiro e tensiona a constituição de subjetividades e marginalidades nos centros e periferias do capitalismo. Em suas performances e escritos, seu corpo desafia a branquitude heterossexual cisgênero e masculina que se impõe como norma universal. Jota expõe as violentas políticas de morte e de invisibilidade às quais foram submetidos os corpos racializados ao longo da história colonial, que perduram atualmente sob a ficção da democracia racial.” Disponível em: http://34.bienal.org.br/artistas/7328
  • 18
    Segundo dados biográficos disponíveis no portal da 34º Bienal de São Paulo: “Musa Michelle Mattiuzzi (1983, São Paulo, SP. Vive em Berlim, Alemanha) é performer, artista visual, diretora de cinema, escritora e pesquisadora do pensamento radical negro. Musa Michelle Mattiuzzi investiga as marcas da violência colonial, sexista e racista deixadas em seu próprio corpo, e os estigmas sociais e históricos que constituem a subjetividade da mulher negra no Brasil. Em suas performances, ela se apropria dos mecanismos de objetificação e de exotização do corpo feminino negro, e subverte-os: eles passam a ser instrumentos de visibilidade e de reconhecimento de um corpo que é, ao mesmo tempo, objeto de desejo e desumanização pelo imaginário cisnormativo branco. Mattiuzzi interessa-se pela potência do corpo monstrificado, desmedido e não simétrico. Suas ações, nas palavras da artista, ‘são micropolíticas de resistência’ que a livram ‘da rejeição do próprio corpo, o que significa ir em sua direção a toda velocidade na vontade de viver, re-existir’. A artista busca, em sua poética, estratégias de reinvenção e reencenação tanto de raça quanto de gênero e sexualidade.” Disponível em: http://34.bienal.org.br/artistas/8296
  • 19
    A tradução de blackness para negridade e não para negritude é proposital, pois a autora quer se distinguir da categoria negritude, originada do contexto pan-africanista do século XX. Sobre essa distinção ver o Curso Luz Negra (FERREIRA DA SILVA, 2020aFERREIRA DA SILVA, Denise. Curso “Luz Negra", com a professora Denise Ferreira Da Silva aula 1: aula 1. Aula 1. 2020a. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-47X_7XJnOU&t=9410s. Acesso em: 10 ago. 2022.
    https://www.youtube.com/watch?v=-47X_7XJ...
    ).
  • 20
    O texto foi traduzido para a língua portuguesa em: SPILLERS, Hortense. Bebê da mamãe, talvez do papai: Uma gramática estadunidense. In: BARZAGHI, Clara; PATERNIANI, Stella Z.; ARIAS, André(orgs.). Pensamento Negro Radical: antologia de ensaios. São Paulo: Crocodilo, 2021. p. 29-69.
  • 21
    A esse respeito ver: FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Raça, gênero e criminologia: reflexões sobre o controle social das mulheres negras a partir da criminologia positivista de Nina Rodrigues. 2017. 150 f. Dissertação (Mestrado em Direito) —Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
  • 22
    A este respeito, ver: RAMOS, Gabriela Batista Pires. “Como se fosse da família”: o trabalho doméstico na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. Dissertação(Mestrado em Direito) - Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2018. LOPES, Juliana Araujo. Quem pariu Amefrica? Trabalho doméstico, constitucionalismo e memória em pretuguês. Revista Brasileira de Políticas Públicas - RBPP. Dossiê Gênero, Raça e Direito - Articulações Empíricas e Epistemológicas, vol. 10, n. 2, ago 2020.
  • 23
    Texto publicado pela primeira vez na revista "The Black Scholar" em 2014.
  • 24
    Refere-se à obra de CLR James intitulada "Os Jacobinos Negros", que conta a história da Revolução Haitiana (1791-1804), então maior colônia francesa, que produzia grande parte do açucar consumido no planeta, e tornou-se um Estado constitucional negro em plena Era das Revoluções, influenciando lutas por liberdade por toda a América, inclusive no Brasil. Em: JAMES, C.R.L. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. Tradução de Afonso Teixeira Filho. São Paulo: Boitempo, 2007. Sobre a influência do haitianismo no Brasil, consultar QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa. Constitucionalismo brasileiro e o Atlântico Negro: a experiência constitucional de 1823 diante da Revolução Haitiana. Lumen Juris, 2018.
  • 25
    Isso está presente, por exemplo, na Sociologia das Relações Raciais; teoria dos contatos e trocas culturais e ciclo das relações raciais.
  • 26
    Ferreira da Silva retoma a Tabela do Homem da História Natural em autores como Charles Darwin e J. G. Herder e sua influência na distinção identidade x diferença em sua exposição sobre o tempo, além do já mencionado G. F. W. Hegel, que se apropria da “noção das “raças dos homens”, uma tabela classificatória que mobiliza diferenças corporais e territoriais para demarcar diferenças/identidades entre as populações ao redor do planeta. [...] Hegel acentua ainda mais o processo de apreensão do Mundo como um salão de exposição de algo que pertence ao tempo, quer dizer, uma coisa interior. Lá, ele descobre que o Espírito não tinha afetado e não iria realizar seu trabalho nas mentes e territórios Africanos, pois o Negro não possuía as ideias que registram sua presença” (FERREIRA DA SILVA, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. 198 p., p. 103).
  • 27
    Sobre o conceito de carne em Spillers (2021SPILLERS, Hortense. Bebê da mamãe, talvez do papai: Uma gramática estadunidente . In: BARZAGHI, Clara; PATERNIANI, Stella Z.; ARIAS, André(orgs.). Pensamento Negro Radical: antologia de ensaios. São Paulo: Crocodilo, 2021. p. 29-69., p. 34) “Eu faria, no entanto, uma distinção neste caso entre ‘corpo’ e ‘carne’ e imporia essa distinção como a central entre posições de sujeito cativo e libertado. Nesse sentido, antes do ‘corpo’ existe a ‘carne’, aquele grau zero de conceituação social que não escapa da dissimulação sob a escova do discurso ou dos reflexos da iconografia. Mesmo que as hegemonias europeias, conjunto com o ‘intermediário’ africano, roubassem corpos - alguns deles femininos - das comunidades da África Ocidental, consideramos essa irreparabilidade humana e social como crimes graves contra a carne, uma vez que a pessoa de mulheres africanas e homens africanos registrou as feridas. Se pensarmos na ‘carne’ como uma narrativa primária, então queremos dizer que ela está cauterizada, dividida, rasgada em pedaços, rebitada no buraco do navio, caída ou 'fugida' para o mar".
  • 28
    Traduzido no Brasil pela Editora Morro Branco como "Semente originária" (2021).
  • 29
    Traduzido no Brasil pela Editora Morro Branco como "Parábola do semeador" (2018).
  • 30
    O conceito de dívida impagável foi introduzido em “Accumulation, Dispossession, and Debt: The Racial Logic of Global Capitalism - An Introduction”, texto em co-autoria com Paula Chakravatty publicado em 2013 na obra Race, Empire and the Crisis of the Subprime, editada por Ferrreira da Silva e Chakravatty.
  • 31
    Seguindo o método de Michel Foucault na História da Sexualidade para desarticular a oclusão do racial, a abordagem de Denise da racialidade lembra aquela empreendida na tese de Sueli Carneiro. Em: CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese de doutorado (Programa de Pós-Graduação em Educação), Universidade de São Paulo - USP, 2005.
  • 32
    Aqui, introduz a noção de mão de obra viva [living labor]. Uma vez que possui capacidade produtiva, a escrava não é uma coisa, um mero meio de produção.
  • 33
    No Curso Luz Negra, Denise Ferreira da Silva (2020a) comenta sua percepção de que sua obra não foi lida por seus contemporâneos, na primeira década dos anos 2000, mas sim pela geração atual. Destacamos que a recepção atual da obra não é acaso, pois estamos há duas décadas de implementação de políticas de ações afirmativas na universidade que viabilizaram o acesso de estudantes negras e negras que transformam este espaço, inclusive na inserção de agendas de pesquisa e rupturas epistemológicas.
  • 34
    A carta da Temperança é uma boa imagem para guiar a leitura de uma obra como a de Denise Ferreira da Silva. De acordo com as instruções disponibilizadas na Plataforma EhCho, o arcano XIV do tarot: “XIV - TEMPERANÇA: Equilibrar, acompanhar o fluxo, ser calmx, mesclar os opostos". In: DESIDERI, Valentina; FERREIRA DA SILVA, Denise. Poetichal Reading. Disponível em: https://ehcho.org/conteudo/poethical-reading

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2022
  • Aceito
    26 Set 2022
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