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Percepções de estudantes sobre a experiência didático-pedagógica de reescrita de decisões judiciais em perspectivas feministas e antirracistas

Resumo

O objetivo do presente artigo é analisar a percepção de estudantes que participaram dos projetos de reescrita de decisões judiciais em perspectivas feministas entre 2021 e 2022 sobre os impactos da experiência na formação jurídica. Elencamos os efeitos que estudantes de graduação e pós-graduação perceberam que foram produzidos pelo projeto em suas instituições de ensino e na sua formação como juristas. O estudo foi qualitativo e se valeu de um questionário em formato virtual para coleta dos dados. A revisão bibliográfica que informa o presente estudo, considerou a literatura que aborda a dimensão pedagógica dos projetos de reescrita feminista em vários países e os estudos que discutem os desafios da formação jurídica crítica no Brasil. Os resultados da análise confirmam o potencial das atividades de reescrita feminista em favorecer a formação crítica e interdisciplinar de estudantes de direito.

Palavras-chave:
Reescritas Feministas; Decisões Judiciais; Formação Jurídica; Práticas Pedagógicas; Métodos de Ensino

Abstract

This article aims to analyze how students involved in feminist judgment projects in 2021-2022 perceive the impact of such experiences on their legal education. We have enumerated the effects perceived by undergraduate and postgraduate students resulting from the project in their educational institutions and in their formation as legal scholars. The study was qualitative and used a virtual questionnaire for data collection. The literature review encompasses works on the pedagogical aspects of feminist rewriting projects in various countries, including those addressing challenges to critical legal education in Brazil. Our analysis confirms the potential of feminist rewriting practices to enhance the critical and interdisciplinary education of law students.

Keywords:
Feminist rewriting; Judicial decisions; Legal education; Pedagogical practices; Teaching methods

Introdução

Os estudos sociojurídicos de reescritas de decisões judiciais em perspectivas feministas (Feminist Judgment Projects - FJP) emergiram como uma nova forma de produção de crítica jurídica feminista e de formação jurídica crítica. Há uma literatura cada vez mais ampla abordando esse segundo aspecto, que se traduz como os potenciais ou impactos didático-pedagógicos das reescritas feministas.

Para Rosemary Hunter (2012HUNTER, Rosemary. Feminist judgments as teaching resources. Oñati Socio-legal Series, v. 2, n. 5, p. 47-62, 2012.), ao invés da prática corrente de oferecer casos já resolvidos para que estudantes comentem ou abordem questões sociojurídicas a eles referentes, os projetos de reescrita propõem a escrita de decisões alternativas, com o uso de métodos e teorias feministas, buscando considerar os constrangimentos reais de quem originalmente a escreveu. Uma vez realizada a atividade, a turma é convidada a avaliar comparativamente os documentos. Esse tipo de exercício permite operacionalizar perspectivas críticas sobre o direito e pensar criticamente sobre a doutrina jurídica e sobre como a tomada de decisão judicial pressupõe algum grau de indeterminação e de escolha por parte de quem a elabora.

No mesmo sentido, Rosemary Auchmuty (2012AUCHMUTY, Rosemary. Using feminist judgments in the property law classroom. The Law Teacher, v. 46, n. 3, p. 227-238, 2012.) avalia que o modelo de FJP permite alcançar vários objetivos pedagógicos simultaneamente: possibilita a diversificação das formas de avaliação para além dos exames tradicionais; expõe estudantes a ideias e contribuições sociojurídicas até então periféricas em seus estudos; e propicia o ensino de regras jurídicas e técnicas de resolução de problemas por meio do uso de decisões judiciais.

Crawford, Stanchi e Berger (2021) consideram que os FJPs não só oferecem modelos argumentativos para praticantes jurídicos, como também apresentam uma função educacional, sobretudo porque favorecem o aprendizado sobre como o direito funciona, sobre o que os casos significam e sobre como a identidade e a filosofia de juízas e juízes importam. Os julgamentos alternativos podem ensinar como cada juiz ou juíza pode tanto tentar esconder quanto iluminar questões específicas em suas considerações e análises. Podem ainda favorecer um maior engajamento das pessoas com a argumentação jurídica e uma capacidade dos envolvidos de olhar para além da autoridade implícita atribuída à decisão original apenas por ter sido proferida por um tribunal.

O projeto brasileiro “Reescrevendo decisões judiciais em perspectivas feministas” é inspirado nas iniciativas em curso em vários lugares do mundo e teve seu início em 2021 como uma rede acadêmica de professoras. Além de buscar fortalecer outras formas de engajamento com o pensamento jurídico crítico no país, o projeto brasileiro buscou dar ênfase à produção de impacto acadêmicos por meio das reescritas, especialmente, em termos de mudanças nos modelos de formação jurídica oferecidos pelos currículos dos cursos jurídicos brasileiros e de adensamento das reflexões acerca das relações entre ensino, pesquisa e extensão universitários.

O presente artigo tem como objetivo avaliar os resultados do conjunto de práticas realizadas pela rede brasileira entre 2021 e 2022, com foco na formação jurídica e na percepção que os estudantes que participaram das iniciativas têm delas.

1. O projeto de reescritas feministas e a formação jurídica no Brasil

A promoção de transformações nos modelos considerados tradicionais de ensino do direito e de currículos dos cursos jurídicos brasileiros é algo que organiza um campo de estudos já bastante amplo e que ganhou vigor, especialmente, dos anos 1980 em diante, em meio ao chamado ciclo redemocratizante de mudanças no direito, impulsionado pela promulgação da Constituição Federal de 1988 e pela agenda de institucionalização de novos direitos por ela oportunizada. Essa literatura é reconhecida, por exemplo, pelo argumento acerca da crise do ensino jurídico; pela prescrição de currículos que pudessem fomentar a formação jurídica crítica, humanista e interdisciplinar; e pelo entusiasmo com os ganhos que determinados modelos de extensão universitária poderiam trazer para a formação jurídica e para a melhor relação entre universidade e sociedade (AZEVEDO, 1990AZEVEDO, Plauto Faraco. Ensino jurídico: o ensino jurídico e a índole da investigação. Anais da Conferência Nacional da OAB, 13, Belo Horizonte. Brasília: OAB, 1990.; RODRIGUES, 2005RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Pensando o ensino do direito no século XXI: diretrizes curriculares, projeto pedagógico e outras questões pertinentes. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005.; FARIA, 1987FARIA, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris , 1987.; FALCÃO NETO, 1977FALCÃO NETO, Joaquim de Arruda. Crise da universidade e crise do ensino jurídico. In: PIMES - Comunicações 18. A Universidade e seus mitos. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1977.).

Essas reflexões, inclusive, ensejaram transformações significativas nas diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em direito no país. A Portaria nº 1.886/94 do MEC foi um primeiro passo nesse sentido, ao prever, por exemplo, a obrigatoriedade da monografia final, do cumprimento de carga horária de atividades complementares e da realização do estágio de prática jurídica. Na sequência, a Resolução do Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior nº 9/2004 definiu novas diretrizes curriculares nacionais para os cursos de direito, dando destaque à necessidade de que esses cursos viabilizassem uma formação humanística, crítica e interdisciplinar, além de enfatizarem a relevância da pesquisa e da extensão universitárias como complementares ao ensino e de ampliarem o rol de conteúdos curriculares de formação fundamental obrigatórios aos currículos de graduação em todo o país. A partir daí, assistimos a uma ampliação significativa de experiências inovadoras de ensino jurídico, de modo combinado com a própria expansão do número de cursos de direito no país.

Esses novos marcos, somados à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) e à expansão das instituições de ensino superior, deram suporte à emergência de um período de significativa inventividade, em termos de práticas didático-pedagógicas nos cursos de direito, sobretudo a partir dos anos 2000. Tivemos a multiplicação dos Núcleos de Prática Jurídica (NPJs), responsáveis pela oferta de estágio curricular supervisionado para estudantes de graduação e por uma relativa abertura dos cursos ao contexto social. Vimos crescer também os projetos de extensão universitária sob formatos variados, entre os quais estão as assessorias jurídicas populares (ALMEIDA, 2016; ALFONSIN, 1999ALFONSIN, Jacques Távora. Assessoria Jurídica Popular. Breves apontamentos sobre sua necessidade, limites e perspectivas. Revista do Saju - Para uma Visão Crítica e Interdisciplinar do Direito, v. 32, n. 84, p. 51-67, 1999.; LUZ, 2007LUZ, Vladmir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.). Ainda, acompanhamos a ampliação de programas de iniciação científica e a multiplicação das disciplinas de formação geral, de viés humanista e crítico, em quase todos os cursos jurídicos brasileiros. Docentes mais jovens foram também responsáveis por trazerem novas práticas pedagógicas para a sala de aula, na medida em que a sua própria formação testemunhou o início da utilização de parte dessas pedagogias.

Todavia, quase vinte anos depois, descontadas experiências particulares e isoladas no cenário nacional, o diagnóstico geral1 1 De acordo com dados disponibilizados pela plataforma E-MEC, do Ministério da Educação, em 8 de outubro de 2023, existiam 1919 cursos de direito no país, ofertando juntos 364.856 vagas. Do total de cursos, 173 são gratuitos, oferecidos por instituições públicas de ensino. parece ser o de que as mudanças nas diretrizes e nos projetos pedagógicos da maioria dos cursos brasileiros não conduziram, necessariamente, a uma transformação significativa no perfil de bacharel em direito. Segue vigorando o modelo de ensino conteudista e enciclopédico; os núcleos de prática jurídica pouco ou nada dialogam com as atividades de ensino ou de pesquisa; os conteúdos de formação geral ou voltados à formação crítica e humanista, apesar de terem ampliado sua presença em termos de carga horária, não romperam com o seus lugares lateralizados ou marginais em relação aos conteúdos de formação técnica; as metodologias comumente propostas pouco levaram estudantes ao desenvolvimento do aprendizado autônomo. Os desafios para que estudantes bacharéis sejam aprovados no exame da Ordem dos Advogados do Brasil e em concursos públicos de carreiras jurídicas ainda persistem, e a distribuição dos conteúdos curriculares obrigatórios ainda segue a lógica compartimentada das disciplinas mais clássicas do direito (CERQUEIRA, 2019CERQUEIRA, Daniel Torres de. As novas diretrizes curriculares dos cursos de direito: uma nova oportunidade perdida? In.: RODRIGUES, Horácio Wanderlei (Org.). Educação Jurídica no Século XXI: as novas diretrizes curriculares nacionais do curso de direito e seus limites e possibilidades. Florianópolis: Habitus, 2019.).

A continuidade de um modelo mais tradicional de curso jurídico tem trazido consequências graves no que diz respeito à implementação de leis e de instituições derivadas das lutas sociais democratizantes dos últimos quase 30 anos no país. Em 2006, por exemplo, a Lei Maria da Penha trouxe como diretriz, para todos os cursos de ensino superior, a inclusão de gênero, direitos humanos, relações étnico-raciais e violência doméstica como conteúdos curriculares obrigatórios. Todavia, esse dispositivo foi ignorado, inclusive, pelos órgãos de regulação e de avaliação do ensino superior. Não há, como regra, disciplinas em cursos jurídicos que abordem esses temas, tampouco que apresentem teorias jurídicas feministas a estudantes. A Lei Maria da Penha passou a ser estudada, via de regra, em disciplinas de direito processual penal ou de direito penal, de modo apartado de conteúdos que seriam indispensáveis para uma leitura séria do tema, tais como estudos de gênero, teorias feministas e teorias da interseccionalidade. Sob esse quadrante, até hoje prevalece uma leitura domesticada de uma das mais importantes conquistas jurídicas do feminismo brasileiro, que enfatiza apenas seus dispositivos penais (SEVERI, 2018SEVERI, Fabiana Cristina. Lei Maria da Penha e o projeto jurídico feminista brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.).

As experiências de extensão, de estágios curriculares supervisionados ou de práticas didático-pedagógicas envolvendo as temáticas de gênero, relações étnico-raciais e violência doméstica também têm sido bastante escassas. As exceções que podemos citar aqui são experiências no formato de projetos como o das Promotoras Legais Populares; o das Clínicas de Direitos Humanos e o de Direitos Humanos das Mulheres, e de práticas extensionistas nos modelos de educação popular em direitos ou de assessorias jurídicas populares, que envolveram grupos de mulheres, populações indígenas ou minorias sociais (SOUSA JUNIOR; FONSECA; BAQUEIRO, 2019SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; FONSECA, Lívia Gimenes Dias da; BAQUEIRO, Paula de Andrade (Org.). Promotoras legais populares movimentando mulheres pelo Brasil: análises de experiências.Brasília: Universidade de Brasília, 2019.; LAPA, 2014LAPA, Fernanda Brandão. Clínica de direitos humanos: uma proposta metodológica para educação no Brasil. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2014.; BELLO; FERREIRA, 2018BELLO, Enzo; FERREIRA, Lucas Pontes. Clínicas de direitos humanos no Brasil: um estudo sobre seu processo de implementação e funcionamento na prática e no ensino jurídico. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, v. 10, n. 2, p. 170-182, 2018.).

Muitas das professoras brasileiras participantes do projeto de reescritas feministas são provenientes e/ou protagonistas das exceções acima citadas, ou porque mantiveram quando estudantes ou ou porque mantêm agora, já como docentes, algum tipo de interação com esses modelos de atividades. A maioria dessas atividades se caracterizam por levarem a sério o papel das relações democráticas e dialógicas entre estudante e docente, e entre universidade e sociedade como pressupostos indispensáveis para a educação libertária e para o desenvolvimento do pensamento crítico. Também são conhecidas por problematizar as maneiras pelas quais a academia, historicamente, tem se apropriado de saberes populares, descaracterizando-os ou instrumentalizando-os para os fins competitivos de modelos de universidades tecnocratas e elitistas. Todavia, uma parte significativa dessas práticas mantêm posição lateralizada em relação ao currículo dos cursos, abarcando um percentual pequeno de estudantes e dependendo, para a sua sobrevivência, de fontes de financiamento externo à instituição em que estão vinculadas, sendo que a maioria das instituições privadas não têm obrigação legal de oferecer práticas ou programas de pesquisa e de extensão em seus cursos.

Em 2018, foram aprovadas novas diretrizes curriculares nacionais para os cursos jurídicos (Resolução CES/CNE nº 5/2018), e parte dos debates públicos prévios à construção do novo documento foi referente ao eventual caráter simbólico das alterações nos projetos pedagógicos voltadas a incorporar as diretrizes de 2004 (CERQUEIRA, 2019CERQUEIRA, Daniel Torres de. As novas diretrizes curriculares dos cursos de direito: uma nova oportunidade perdida? In.: RODRIGUES, Horácio Wanderlei (Org.). Educação Jurídica no Século XXI: as novas diretrizes curriculares nacionais do curso de direito e seus limites e possibilidades. Florianópolis: Habitus, 2019.). Algumas das mudanças trazidas pelo documento foram as exigências de que i) temas como educação em direitos humanos, educação em relações étnico-raciais e educação em políticas de gênero sejam transversais nos currículos de cursos jurídicos no país, e ii) as atividades dos núcleos de práticas jurídicas sejam mais bem articuladas com as atividades didáticas dos cursos.

Quando pensamos, então, em produzir impactos nos cursos jurídicos com base nas práticas de reescritas de decisões judiciais em perspectivas feministas, a hipótese com que trabalhamos foi a de que a inserção de práticas didático-pedagógicas informadas por abordagens feministas em disciplinas regulares em qualquer curso jurídico, sejam elas de formação geral sejam técnico-profissionais, poderia contribuir com esse conjunto de esforços já de longa data voltados a favorecer a formação crítica e interdisciplinar de estudantes de direito. Reescrever uma decisão judicial sob perspectivas feministas pode ser uma atividade realizada em qualquer disciplina (direito penal, introdução ao direito, direito civil, direito processual etc.). O desenho da atividade pode variar desde a apresentação de uma decisão reescrita para que estudantes possam comparar com a original, até a construção de uma reescrita pela própria turma, após o desenvolvimento de conteúdo curricular voltado às abordagens teórico-metodológicas a ela relativas ao longo do semestre.

Outro interesse didático nosso seria o revigoramento das próprias experiências críticas de ensino, pesquisa e extensão, já em curso há anos no país, por meio da reparação de alguns de seus “vazios”. As reescritas podem favorecer, por exemplo, a inserção da literatura feminista, antirracista e decolonial nas disciplinas orientadas à formação geral, reconhecendo sua fundamentalidade em qualquer debate que se reivindique como crítico e interdisciplinar. As práticas de reescrita também podem introduzir outros aportes às experiências de extensão universitária popular, em termos de modelos de práticas forjados a partir da interação com os movimentos feministas e de mulheres. Por que, por exemplo, as contribuições de bell hooks2 2 Uma das obras da autora em que é possível identificar o diálogo que ela manteve com as obras de Paulo Freire é “Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade” (2013). no campo da educação popular não circularam nos espaços de formação extensionista em conjunto com as reflexões de Paulo Freire, já que o pensamento da feminista negra norte-americana é decorrente do debate direto dela com o autor brasileiro e transformou a produção mais tardia dele? Ou seja, mesmo em práticas extensionistas de viés crítico, as autoras e abordagens feministas e antirracistas não estão necessariamente presentes.

Essa primeira fase de desenvolvimento do projeto de reescritas feministas no Brasil quis chamar atenção ainda para a categoria formação jurídica. O compromisso com a qualificação de estudantes de graduação e pós-graduação em direito tem fundamental importância, e esse aspecto será mais explorado logo abaixo, com a análise das entrevistas.

No entanto, queremos indicar também que todas as pessoas que integram, direta ou indiretamente, o processo de reescrita são participantes de todo o processo. Isso significa dizer, por exemplo, que as docentes envolvidas também experimentam a possibilidade de aperfeiçoar sua formação. Entendendo que a maioria dessas docentes foi formada por um modelo de percepção do direito que não integrava perspectivas feministas e que, em alguns casos, o encontro com tais percepções se deu de maneira “individual”, a experiência de reescrita oferece novas possibilidades de formação (como pesquisadora, ativista ou docente), de reflexão e de experimentação de diferentes métodos, práticas e sentidos.

A atuação em rede, com o compartilhamento dos desafios, das escolhas e da avaliação do processo entre grupos que repercutem posicionalidades sociais, raciais, sexuais e regionais distintas, têm impactos sobre a formação jurídica que transbordam, inclusive, o grupo envolvido na reescrita. Uma vez que as participantes são confrontadas com o que a reescrita explicita, é possível pressupor desdobramentos nos planos de trabalho de todas as disciplinas em que estejam envolvidas: na busca por diferentes marcos teóricos para as discussões; no modo como se pensa e se exerce a atividade de orientação de trabalhos acadêmicos e de elaboração de pareceres para revistas e órgãos de fomento à pesquisa; no compromisso com a comunicação das ideias (seja por meio da escrita, das falas em eventos, na sala de aula, nas reuniões, nas funções técnico-administrativas, nas clínicas de direitos seja em órgãos de atuação jurisdicional e nos mais distintos espaços de convivência); entre outros impactos que podem ser percebidos mediante reflexão permanente sobre tais experiências, conforme está evidenciado em outros artigos que também compõem o presente dossiê.

Trata-se de uma oportunidade de implicação da formação jurídica nos resultados que são objeto de reescrita. Qual a responsabilidade em termos de formação que (re)produzimos nas decisões que nos propomos a reescrever? Em que medida a nossa reescrita (re)produz aspectos que identificamos como incapazes de produzir transformação? Quanto somos capazes de levar o aprendizado da reescrita para todas as nossas formas de atuação? Quem e quais realidades continuam “de fora” desses processos? Como ampliar a comunidade de participantes e reconhecer distintas capacidades de produção da reescrita? Como articular as reescritas aos distintos processos políticos de disputa por uma sociedade mais equitativa? A lista de questionamentos é longa, nosso objetivo é que possa ser sempre atualizada e que o material que apresentamos possa auxiliar nesse processo.

Seria importante, em algum momento, analisar as experiências das professoras com os projetos e com o trabalho em rede. No presente artigo, porém, buscamos abordar apenas a percepção de estudantes que participaram de alguma das atividades realizadas nas diversas regiões do país em relação aos aprendizados, competências ou habilidades decorrentes das práticas de reescritas de decisões judiciais em perspectivas feministas.

2. Metodologia

O estudo foi qualitativo, realizado com estudantes que participaram de projetos de reescritas entre 2021 e 2022. Elaboramos um questionário em formato virtual para que a coleta de dados fosse feita diretamente com estudantes de graduação e pós-graduação. O roteiro contemplou dois conjuntos de questões. O primeiro deles dizia respeito a questões que poderiam nos informar o perfil sociodemográfico das pessoas respondentes. O segundo contemplou questões relativas à percepção das pessoas participantes sobre os efeitos das práticas de reescritas em termos de formação jurídica. Para que a pessoa pudesse acessar o formulário, ela precisava ler o termo de consentimento livre e esclarecido presente na página virtual e dar o seu aceite em local definido no formulário.

Recebemos respostas de 36 estudantes. Para a análise, organizamos previamente as respostas com base na frequência de códigos pré-definidos no conjunto de dados. Depois disso, agrupamos os códigos com maior número de ocorrência em categorias sobre o perfil, sobre a descrição das atividades e sobre os aprendizados decorrentes das atividades de reescritas. Aproximamos o conteúdo dessas categorias aos dois conjuntos de literatura previamente aqui apresentados: sobre formação jurídica no país e sobre os impactos pedagógicos dos projetos de reescritas feministas de decisões judiciais. As citações diretas das respostas feitas abaixo foram anonimizadas com o uso de números atribuídos a cada uma das pessoas participantes.

3. Resultados e discussão

a) Perfil das pessoas respondentes

Os dados das pessoas respondentes sugerem que os projetos de reescritas brasileiros, nesse primeiro momento, envolveram a participação majoritária de estudantes com o seguinte perfil: mulheres cisgênero, jovens, brancas, sem deficiência, heterossexuais, graduandas, oriundas de escolas públicas no ensino médio, sem filhos ou filhas, solteiras, residentes na região sudeste do país, em atividades de estágio profissional ou com alguma modalidade de bolsa acadêmica.

Das pessoas que responderam ao questionário, 75% se declararam brancas, 2% amarelas e 23% negras. A quase totalidade das respondentes, 92% delas, são mulheres cisgênero, e 63% do total são heterossexuais. Não há respondente que tenha declarado ter algum tipo de deficiência. A maioria é solteira (80%), sem filhos ou filhas (92%). Quase a totalidade (98%) está cursando ou já se formou em direito. Do total, 53% informaram cursar a graduação, 25% o mestrado e 22% o doutorado. Metade das respondentes têm até 26 anos, sendo que as mais jovens têm 21 anos e as mais velhas, mais de 39 anos. Do total, 45% das respondentes estudaram o ensino médio integralmente, ou na sua maior parte, em escolas públicas. A maioria teve ou tem algum tipo de bolsa de estudos (67%)3 3 Entre as respondentes, 12 não contaram com bolsa alguma, 12 tiveram bolsa pesquisa, 3 acessaram bolsas de extensão, 5 participaram através da monitoria e 2 tiveram bolsa de permanência estudantil. , sendo que 8% tiveram bolsas ligadas ao projeto de reescrita desenvolvido em sua instituição de ensino. A maioria das respondentes realiza algum tipo de estágio profissional ou já se encontra com vínculo de emprego (84%). Em relação ao estado de origem, 63% estão no estado de São Paulo, 14% no Rio de Janeiro, 9% em Roraima e frações de 3% no Distrito Federal, Pará, Paraíba e Paraná.

b) Descrição de como as atividades de reescritas aconteceram

As respostas obtidas nos ajudaram a descrever a maneira como as atividades de reescrita foram desenvolvidas pela rede de professoras formada entre 2021 e 2022. Tais experiências aconteceram em, ao menos, três contextos acadêmicos distintos: a) disciplinas de graduação ou de pós-graduação; b) grupos de pesquisa; e c) clínicas de direitos humanos, estágios curriculares supervisionados e práticas de extensão universitária.

No primeiro caso, as atividades de reescritas foram incorporadas como recurso didático em disciplinas previamente existentes nos currículos acadêmicos dos cursos em que os projetos se desenvolveram e pelas quais as professoras participantes do projeto já eram formalmente responsáveis. Em alguns casos, eram disciplinas que já contemplavam em seu programa conteúdos relativos a direito e feminismos. Todavia, há muitas experiências em que o plano da disciplina foi significativamente modificado para abarcar a proposta. Algumas das disciplinas em que as práticas se desenvolveram foram: direito penal, direito processual penal, direito civil, criminologia, laboratório de direitos humanos e direito processual.

Em termos de estratégias didáticas, parte dessas disciplinas, sejam elas de graduação sejam de pós-graduação, contou com uma primeira fase teórico-conceitual, caracterizada por aulas expositivas e oficinas de leituras voltadas à compreensão de teorias e métodos jurídicos feministas. Um segundo bloco contemplava a prática de reescrita propriamente dita, iniciada pela escolha dos casos e das abordagens a serem utilizadas. As turmas, então, dividiam-se em pequenos grupos, para que cada um deles elaborasse uma proposta. Outra forma de trabalho era a escolha de um caso único para ser analisado por todo o grupo. A qualidade da decisão alternativa produzida foi o recurso utilizado como meio de avaliação do desempenho da turma na disciplina.

Em diversas dessas experiências, além da avaliação feita pela professora, as reescritas foram examinadas por outras pessoas, que podiam ser docentes do curso, profissionais do direito, estudantes de outras turmas, lideranças comunitárias e/ou ativistas feministas. As descrições abaixo expressam os padrões observados na condução das atividades de reescritas no contexto de uma disciplina teórica:

Tratou-se de uma disciplina eletiva de mestrado, em que discutimos (i) textos introdutórios que contavam sobre a atividade de reescrita feminista - o que envolvia, suas contribuições, desafios e ganhos de projetos concretos de reescrita e afins; (ii) o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero do CNJ - críticas e sugestões; e (iii) um exemplo concreto de reescrita feminista de uma ex-aluna do programa. Essas discussões ofereceram suporte para a atividade final avaliativa do curso: uma semente de reescrita feminista, isto é, uma breve formulação sobre (i) a decisão a ser reescrita; (ii) o problema que se via na decisão original e que motivava a reescrita; e (iii) a linha argumentativa geral que se pretendia desenvolver na reescrita. Assim, a atividade de reescrita em si foi desenvolvida individualmente. Cada aluna ficou livre para escolher por conta própria a decisão que reescreveria. Na última aula do curso, cada uma apresentou às demais sua proposta, ouvindo críticas e sugestões para incorporar e melhor desenvolver a reescrita futura. (Entrevistada n. 14).

A atividade de reescrita foi desenvolvida ao longo de uma disciplina optativa da pós-graduação em Direito. A escolha do caso a ser reescrito foi feita a partir de experiências prévias de atuação na Defensoria Pública de São Paulo. Decidimos reescrever um caso de letalidade policial que já tinha sido atendido por uma de nós na instituição e cuja decisão não só era negativa para os direitos da mãe, como também apresentava inúmeros problemas na qualidade argumentativa e jurídica. A primeira estrutura do trabalho de reescrita (estudo do processo e seleção dos argumentos) foi realizada como um trabalho final da disciplina. Depois, mesmo com o fim da disciplina, fomos elaborando o caso e a escrita da nova decisão para apresentação em congressos nacionais e internacionais. Também apresentamos o trabalho em desenvolvimento no Núcleo de Estudos de Gênero da Faculdade. A partir dessas trocas com outras pesquisadoras, fomos aprimorando a proposta, os argumentos e a estrutura do voto dissidente. A escrita final da decisão foi feita por três autoras em um documento compartilhado. Partimos dos textos que foram sendo escritos e apresentados nos congressos. Depois, dividimos a escrita dos argumentos da decisão judicial e, por fim, fizemos uma revisão cruzada de todo o texto. Ao longo do processo também fizemos reuniões virtuais para trocas, resolução de dúvidas e acompanhamento do processo de escrita. (Entrevistada n. 11).

No caso das experiências ocorridas no âmbito de grupos de pesquisa, identificamos duas estratégias principais. A primeira foi escolher uma decisão relacionada a um tema ou área do direito de especialidade do grupo. A segunda foi escolher a decisão a partir de estudos prévios realizados pelo grupo, nos quais a decisão escolhida, ou decisões com o mesmo perfil, havia sido objeto de análise. Nas duas situações, os grupos dividiram-se na elaboração de revisões bibliográficas exploratórias sobre os temas afins ao trabalho e mantiveram reuniões periódicas para divisão das tarefas e para debates. Versões parciais dos trabalhos foram apresentadas em congressos acadêmicos como maneira de validação dos resultados. Também há diversas situações em que os estudos em torno da reescrita do grupo tiveram reflexos nas pesquisas de iniciação científica, de mestrado e de doutorado de integrantes de tais grupos:

Selecionamos duas decisões acerca da mesma temática que envolve direito previdenciário, já que nosso grupo de estudos (...) possui acúmulo sobre essa questão. Nos reunimos para discutir o conteúdo das decisões, debater o porquê da escolha (tema de nosso domínio que provavelmente não seria objeto de outros grupos e nesse sentido poderíamos dar uma contribuição própria e relevância da invisibilidade das mulheres nas decisões sobre o tema escolhido), estruturamos coletivamente como seria o texto e nos dividimos em duplas ou trios para redigir cada parte e para a revisão. Ao final, todas leram o conjunto e foi feita uma revisão para afinar a coerência e fluidez do texto. (Entrevistada n. 05).

Tínhamos como critério, inicialmente, apenas que fosse uma decisão dentro da área do direito penal. Assim, cada uma das pesquisadoras fez uma vasta busca por decisões controversas e estereotipadas, nas quais mulheres figuravam como ambos os polos. Após debater sobre o que havíamos encontrado de mais interessante, optamos por fazer a reescrita de uma decisão que tinha por objeto uma questão que interessava a todas, que era a embriaguez no estupro de vulnerável. O processo de reescrita de fato só teve início após uma série de encontros com leituras prévias designadas, nos quais pudemos nos aprofundar em metodologias de pesquisas feministas, o que até então era algo bem novo para mim. Depois de construir esse alicerce teórico, partimos para a divisão de tarefas, que acabou se dando por uma fragmentação da pesquisa por tópicos. Cada tópico era de responsabilidade de 1 ou 2 pesquisadoras, e assim fomos buscando mais materiais, livros, artigos e pesquisas anteriores, com uma busca agora voltada a um tópico específico. Por fim começamos a redação em si, o que requereu alguns encontros presenciais para ajustar o tom do texto, e sintetizar tudo de forma que ficasse harmônico e coeso, o que por si só é um desafio em um trabalho com tantas autoras. (Entrevistada n. 29).

No terceiro caso, de experiências produzidas no contexto de clínicas de direitos humanos, de estágio supervisionado ou de extensão universitária, tal como aconteceu com aquelas desenvolvidas em grupos de pesquisa, as reescritas foram elaboradas por acadêmicas que já contavam com alguma expertise em temáticas de direito e feminismos ou na área do direito na qual o caso original se enquadrava. Uma das reescritas foi de um caso em que o grupo atuou na assessoria jurídica a uma das partes. Nessa situação, a pessoa atendida participou em algumas das fases de elaboração da reescrita:

O caso selecionado foi o de uma assistida da Clínica de Atenção à Violência da UFPA. Desde 2017 atuamos no caso, considerando todas as reverberações jurídicas e psicossociais existentes nele. No momento da reescrita da decisão, conversamos com todas as pessoas que atuaram no acolhimento de Pilar (Nome fictício), definimos os principais materiais da decisão reescrita e analisamos esses materiais a partir da psicologia, serviço social e direito. Quem participou do psicossocial, por exemplo, escreveu sobre a importância de ter ouvido a mãe e as crianças antes do juiz ter proferido decisão. Quem era do direito falou sobre a ausência do contraditório e a violação à constituição. Após isso, juntei ambos os textos para formar o artigo. (Entrevistada n. 30).

O que parece ter sido comum aos três grupos foi o caráter coletivo da escolha da decisão a ser reescrita, o forte compromisso com a leitura de textos relativos aos projetos de reescrita feminista e o aprofundamento teórico sobre direito e feminismos.

c) Conhecimentos proporcionados pelas experiência com as reescritas

Em termos de conhecimentos advindos da participação nos projetos de reescrita, a maioria das respondentes indicou as próprias teorias feministas, desconhecidas ou pouco compreendidas até então. Algumas das abordagens teóricas mais citadas foram as teorias interseccionais e as teorias decoloniais. Mesmo quando havia conhecimento prévio acerca de teorias feministas, a participação em atividades de reescritas permitiram às participantes conhecerem-nas em maior profundidade e compreenderem como elas podem ser aportes importantes nos processos de tomada de decisão judicial. Algumas teorias mais clássicas do direito também puderam ser conhecidas ou abordadas mais a fundo, agora a partir de lentes feministas ou do propósito de reescrita feminista:

Bem, antes do projeto não considero que o meu conhecimento de teorias feministas era desenvolvido o suficiente para a elaboração da reescrita. A partir do curso tomei conhecimento de teorias feministas além das ditas tradicionais. A que mais me encantou foi o feminismo interseccional. (Entrevistada n. 34).

No meu caso, como eu já estudo(ava) gênero, o aporte teórico contribuiu sobretudo do ponto de vista prático, de um conhecimento aplicável. (Entrevistada n. 31).

Eu nunca tinha tido experiências de pesquisa acadêmica, muito menos de pesquisa que utilizasse metodologia feminista, então todas as obras que tive contato, e todo o conteúdo metodológico era novidade. (Entrevistada n. 29).

Não diria que não eram conhecidos. Diria que houve maior aprofundamento nas leituras de interseccionalidade, em especial de Patricia Collins, assim como sobre os esforços inclusive no exterior para se atacar o déficit de credibilidade das vítimas, a culpabilização das vítimas e os vieses. (Entrevistada n. 36).

Na época, teríamos que criticar a teoria clássica da responsabilidade civil para argumentar que o abandono afetivo seria ato ilícito. Aprender tal teoria e suas críticas me forçaram a solidificar meu conhecimento referente à responsabilidade civil. (Entrevistada n. 1).

Além das práticas em sala de aula, as atividades resultaram em artigos científicos, projetos de mestrado e de doutorado, trabalhos de conclusão de curso e monografias. Algumas das experiências foram apresentadas em congressos científicos. É possível dizer, então, que as experiências de reescrita ensejaram um trânsito permanente das estudantes entre vários gêneros de escrita, de peças processuais a textos acadêmicos.

Algumas das respondentes se referiram a uma ampliação de consciência crítica, para além dos aprendizados teóricos:

A reescrita feminista é uma poderosa ferramenta de conscientização. Ela tem o potencial de nos mostrar como, mesmo em casos aparentemente neutros, gênero existe e faz diferença. Esse aprendizado vai além da atividade realizada apenas dentro de meu grupo, já que tivemos contato com a atividade de reescrita dos demais grupos. Essa atuação em rede também foi algo muito potente, pois o projeto uniu pesquisadoras de todo o país, de várias áreas do Direito, com um objetivo comum. (Entrevistada n. 33).

Fui introduzida à metodologia feminista, que revolucionou a minha maneira de interpretar e estudar o Direito, assim como outras áreas de conhecimento e percepções sobre a realidade. (Entrevistada n. 16).

Esse projeto de reescrita de sentenças feministas está me proporcionando aprendizados valiosos, como aumentar a minha sensibilidade e conscientização sobre questões de gênero, desigualdade e discriminação. Esse envolvimento também me leva a uma compreensão mais profunda das experiências e lutas enfrentadas pelas mulheres e outras minorias de gênero. Além disso, ao reescrever sentenças de uma perspectiva feminista, compreendo a importância de uma linguagem mais inclusiva e empoderadora, que reconheça e valorize a diversidade de experiências e identidades de gênero. O projeto está sendo uma oportunidade de promover a igualdade de gênero e contribuir para a disseminação de mensagens mais justas e representativas. (Entrevistada n. 17).

Em termos de conhecimentos técnico-jurídicos, as respondentes apontaram para um ganho de compreensão sobre como operacionalizar abordagens jurídicas críticas no cotidiano das práticas profissionais, de modo a conseguir identificar, nos fluxos dos processos e nas decisões judiciais, as maneiras como as vozes de grupos subalternizados são silenciadas e como os estereótipos sobre mulheres são utilizados de forma prejudicial à garantia de seus direitos:

  1. Que as discriminações sociais que pesam sobre as mulheres interferem diretamente tanto no modo como um processo é conduzido quanto em seu resultado final.

  2. Que ainda falta preparo por parte do Judiciário em relação a gênero.

  3. Que um Judiciário preparado pode fazer muita diferença para reforçar ou enfrentar as diversas violências por que passam meninas e mulheres nesse país. (Entrevistada n. 31).

Outro aspecto informado refere-se ao desenvolvimento de habilidades para construir peças processuais com o uso de uma linguagem mais acessível, para desenvolver estudos multidisciplinares e para estudar e desenvolver trabalhos de pesquisa em grupo e em rede. Nesse último caso, o trabalho em rede é apontado não apenas como uma habilidade técnica, mas também em uma dimensão política de problematização da relação entre direito e transformação social:

Dentre os inúmeros aprendizados que tive ao participar do projeto, acredito que o principal tenha sido o trabalho em equipe. Sempre preferi trabalhar sozinha, e depois que finalizamos a reescrita pude ver que a somatória de esforços em prol de um objetivo em comum pode trazer um resultado brilhante que jamais teria sido obtido individualmente. Claro que a constatação só ficou ainda mais explícita e tomou outra magnitude quando vi o resultado final do projeto, sintetizado no livro. A cada capítulo novo que leio, tenho mais certeza de que o melhor jeito de empregar nossos esforços para a luta feminista é em rede. (Entrevistada n. 29).

De maneira geral, me fez pensar sobre o potencial transformador de iniciativas reformistas como a de reescrita. Enquanto não podemos jogar tudo para o alto e abandonar o direito, traz um certo "conforto" saber que temos outros caminhos de luta. E acho que o exercício de imaginar um novo direito a partir do que já temos hoje é muito valioso. É difícil fazer revolução e imaginar algo não-compartilhado pelo imaginário social, algo que não temos vocabulário para acessar. Vejo a reescrita como um exercício imaginativo que constrói repertório e nos traz mais para perto disso. (Entrevistada n. 14).

Durante a participação do projeto tive a oportunidade de trabalhar com mulheres formadas, doutoras, advogadas, atuantes no mundo do direito penal. Todo o conhecimento que pude adquirir em suas companhias será levado para minha vida profissional. Além disso, tive acesso a muitos textos acadêmicos brilhantes, de escritoras mulheres, o que foi excelente para o meu aprimoramento. Por fim, conseguir reformular uma sentença injusta com um viés de gênero no direito é uma sensação sem igual, mesmo que a realidade ainda não tenha sido mudada. (Entrevistada n. 26).

O projeto me deu acesso a uma ferramenta pedagógica até então desconhecida e com potencial de transformar as narrativas e a aplicação do direito em casos concretos. Também possibilitou o intercâmbio entre pesquisadoras e aumentou a rede de contatos à nível nacional, privilegiando o trabalho coletivo. (Entrevistada n. 10).

De certa forma, as experiências com as reescritas favoreceram uma compreensão crítica acerca da relação entre justiça e sociedade e sobre as noções de imparcialidade judicial, de modo a levar as participantes a entenderem que o conhecimento técnico sobre o direito não inibe, necessariamente, a influência de aspectos subjetivos na tomada de decisão:

O projeto ajuda a mostrar a existência de diversas disputas de narrativa dentro do direito. Na faculdade aprendemos que o juiz deve ser imparcial e neutro e o projeto ajuda a quebrar esse paradigma, mostrando que é possível outras respostas jurisdicionais seguindo os mesmos parâmetros legais, mas partindo de premissas diferentes. O projeto também ajuda a dar voz para perspectivas que muitas vezes são silenciadas e/ou invisibilizadas no curso de direito. (Entrevistada n. 4).

d) Impactos dos projetos nos cursos jurídicos

Além das questões sobre os aprendizados, perguntamos também sobre os impactos que o projeto teve (ou pode ter) no curso ou instituição onde foi desenvolvido. O principal impacto didático-pedagógico informado foi a maior incorporação das teorias feministas e abordagens de gênero e interseccionais nos currículos de cursos jurídicos:

Acredito que o projeto impacta positivamente a instituição de ensino, uma vez que garante a incorporação dos estudos de gênero no currículo regular, trazendo para o debate autoras e experiências feministas pouco conhecidas. O projeto também envolve as alunas e alunos em uma atividade pedagógica de pesquisa e possibilita a produção de artigos e trabalhos para a publicação. (Entrevistada n. 10)

Acredito que o projeto pode impactar significativamente o curso de direito ao adotar uma abordagem feminista na linguagem legal, pode-se promover a igualdade de gênero no sistema jurídico, aumentar a conscientização sobre questões de gênero e empoderar mulheres e minorias. A utilização de linguagem inclusiva pode refletir uma visão mais justa e equitativa nas decisões e processos legais, contribuindo para um ambiente mais igualitário e representativo na prática do direito. Além disso, o projeto pode inspirar mudanças institucionais e influenciar a criação de políticas que abordem a discriminação de gênero e promovam a diversidade e a inclusão no campo jurídico. (Entrevistada n. 17)

Não sei avaliar isso no momento. Penso que foi uma atividade muito pontual para afetar a instituição ou o curso de mestrado. O que consigo ver é que planta uma sementinha para o projeto de reescrita no Brasil. Nos coloca em contato com isso, com vocês que estão tocando essa iniciativa aqui, com as nossas redes feministas. Acho que ainda vai demorar um pouco até isso chacoalhar os currículos universitários e afins. (Entrevistada n.14).

Nenhuma das pessoas respondentes informou algum tipo de impacto mais amplo, de caráter institucional, sendo que parte delas não soube identificar impactos no curso provocados pelo projeto. As respostas mais longas e detalhadas foram dadas à pergunta sobre os aprendizados pessoais ensejados pela experiência.

Conclusões

De modo geral, a análise das respostas obtidas reitera resultados já relatados por experiências de reescritas de outros países. A proposta demonstrou ser uma estratégia didático-pedagógica efetiva de formação jurídica crítica, especialmente por aproximar estudantes e pesquisadoras à literatura feminista como resultado de uma atividade prática em contexto disciplinar.

Uma fração do que identificamos como passível de ser reescrito é fruto da formação jurídica ofertada até então. O projeto brasileiro “Reescrevendo decisões judiciais em perspectivas feministas” se orienta no sentido de uma formação comprometida com a construção de uma sociedade efetivamente democrática. Parte do trabalho não poderá ser feito exclusivamente pela academia jurídica brasileira, precisará se articular com os movimentos sociais e com as diversas carreiras jurídicas.

Espera-se que as reescritas possam permanentemente nos oferecer novos marcos teóricos-metodológicos, novos fluxos processuais, maior atenção à linguagem que mobilizamos (de forma que seja capaz de permitir a comunicação com toda sociedade); que as sentenças deem conta da multiplicidade do que somos e de nossas formas de vida, sem reproduzir as hierarquias de opressão que distribuem desproporcionalmente o poder e a violência entre nós.

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  • 1
    De acordo com dados disponibilizados pela plataforma E-MEC, do Ministério da Educação, em 8 de outubro de 2023, existiam 1919 cursos de direito no país, ofertando juntos 364.856 vagas. Do total de cursos, 173 são gratuitos, oferecidos por instituições públicas de ensino.
  • 2
    Uma das obras da autora em que é possível identificar o diálogo que ela manteve com as obras de Paulo Freire é “Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade” (2013).
  • 3
    Entre as respondentes, 12 não contaram com bolsa alguma, 12 tiveram bolsa pesquisa, 3 acessaram bolsas de extensão, 5 participaram através da monitoria e 2 tiveram bolsa de permanência estudantil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2023
  • Aceito
    15 Out 2023
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