Este estudo compõe uma série de ensaios que têm um tema comum: a educação em geral, o ensino de Matemática e, mais particularmente, a geometria escolar na Inglaterra vitoriana, bem como tem a intenção de examinar hermeneuticamente um dos livros de Lewis Carroll: Euclid and his modern rivals, obra de 1879.
Lewis Carroll é mais conhecido por sua literatura de ficção e por dois livros aos quais seu nome está irremediavelmente vinculado: Alice no país das maravilhas e Através do espelho e o que Alice encontrou lá1. Sabe-se, entretanto, que Carroll foi um apaixonado por Matemática e redigiu muitos escritos de natureza didática para seus alunos. Ele elaborou, por exemplo, uma série de doze textos sobre Os elementos de Euclides, publicados entre 1860 e 1888, que foram suas tentativas de tornar os dois primeiros livros de Euclides mais acessíveis aos estudantes (Cohen, 1998).
O Euclides e seus rivais modernos de Carroll, cuja elaboração consumia, às vezes, entre seis e oito horas diárias de trabalho (Cohen, 1998), pode ser visto como a maturidade das historietas e peças de teatro que o autor escrevia para marionetes e com as quais entretinha seus irmãos pequenos (Fisher, 2000). O estilo de composição textual - Carroll escreve como uma sequência de atos e cenas teatrais - pode significar o reconhecimento do autor quanto ao valor do teatro, manifestação artística que admirava (Gardner, 2002).
Em síntese, Euclides e seus rivais modernos é uma peça de teatro desenvolvida em quatro atos que, em seu início, revela um professor no fatigante trabalho de corrigir provas. Exausto, adormece e, sonhando, dialoga com um Euclides fantasmagórico. Desse encontro entre Minos2, o professor exausto, e Euclides, surge o projeto de analisar os livros de Geometria que, à época, como parte de uma reforma do ensino, surgiam a cada dia em quantidades cada vez mais significativas, todos eles com a proposta de ocupar o lugar d'Os elementos, até então o texto por excelência para o ensino de Geometria nas escolas inglesas:
Os elementos, composto por 13 livros, reinou solitário por vinte séculos, até o início da época vitoriana, quando o mercado foi inundado por livros de orientação anti-euclidiana. A tentativa de desafiar as ideias de Euclides redundava, muitas vezes, em deturpação, e a variedade de maneiras de apresentar a geometria euclidiana acabou gerando uma grande confusão no estudo da matéria. Charles3 [...] sentiu-se desafiado a deter essa horda de corruptores de Euclides revitalizando a verdadeira geometria euclidiana. (Cohen, 1998, p. 450)
Nas cenas de Euclides e seus rivais modernos são pouco a pouco, e detalhadamente, julgados os rivais modernos, isto é, os novos autores cujas opiniões contrapunham-se em algum aspecto à sistematização de Euclides e ofereciam, em seus manuais, uma abordagem distinta para o ensino. Os diálogos entre as personagens deixam claro que todos os rivais "apresentam falácias ou incoerências em seu trabalho, e todos sucumbem à lógica e ao arranjo superior de Os elementos de Euclides" (Cohen, 1998, p. 452). A situação surreal permite que o leitor acompanhe Minos e Euclides julgando as obras de Legendre, Cooley, Cuthbertson, Henrici, Wilson, Pierce, Willock, Chauvenet, Loomis, Morell, Reynolds e Wright e, com isso, conheça os diferentes modos como esses autores propunham sua sistematização para a Geometria.
Ao longo do livro Carroll expressa a importância da Geometria euclidiana como a base para a nossa percepção do mundo, um mundo no qual linhas paralelas nunca se encontram. A narrativa literária serve como suporte e visa à compreensão de ideias matemáticas. O autor também atua nas atitudes dos personagens: não negligenciando o estilo que define uma estrutura cênica, ele caracteriza seus personagens de modo a alertar o leitor quão pífias considera algumas das argumentações dos rivais modernos e as demonstrações que propõem.
Segundo Cohen (1998), o resultado foi o esperado: a forma dramática atraiu e prendeu o leitor. A Vanity Fair, em 12 de abril de 1879, julgou-o completamente agradável e definiu-o como um livro maravilhoso pelos resultados que apresentava e pelo humor contagiante com o qual abordava a gravidade do assunto. O English Mechanic, em 2 de maio do mesmo ano, declarou que o autor triunfara na tentativa de provar que, até então, nenhum outro livro publicado poderia ser comparado ao imortal Os elementos, de Euclides, como introdução à geometria para iniciantes4. A primeira edição esgotou em seis semanas e a segunda, que serviu de base à tradução que apoia e motiva este texto, foi publicada seis anos depois, tendo Carroll incorporado ao texto as sugestões que considerou válidas.
Entretanto, considerando as críticas positivas ao texto, parece estranho seu relativo esquecimento com o passar do tempo. Há pelo menos duas respostas possíveis para isto: a primeira delas considera a hipótese de que Euclides e seus rivais modernos tenha sido comparado com os livros de Alice (Cohen, 1998), um equívoco de alguns críticos que não compreenderam que, apesar de o autor ser o mesmo, o objetivo e o público-alvo do livro eram distintos. Outro possível motivo para o relativo esquecimento da obra é o fato de Carroll contar demasiado com o conhecimento científico já elaborado e trazido pelo leitor, sem dar-se conta de que nem todos tinham a mesma habilidade e afinidade com a disciplina que ele decidira tematizar e ajudara a desenvolver ao longo dos anos. De fato, alguns trechos de Euclides e seus rivais modernos mostram um "assunto absurdamente difícil para a maioria das pessoas - mas que, se não chega a ser leve, é pelo menos inteligente e divertido" (Cohen, 1998, p. 451).
Estes são, em síntese, os traços do livro de Carroll, cuja tradução foi elaborada como ponto de partida e contínuo ponto de apoio para uma hermenêutica dessa obra. Um exame hermenêutico exige não somente que as tramas internas do texto - sua composição, estrutura de seus capítulos, conteúdos tratados, modos de tratamento desses conteúdos - sejam analisadas, mas que também as cercanias da produção e da circulação da obra - sua recepção pelo público, o espaço e o tempo em que ela surgiu - sejam investigadas. John Thompson, sociólogo inglês cujos trabalhos sobre a cultura e os meios de comunicação de massa estão radicados na filosofia de Paul Ricoeur, indica alguns roteiros para uma interpretação de formas simbólicas, dentre as quais os livros, que tem sido mobilizada em educação matemática e à qual ele denomina hermenêutica de profundidade5.
Se a hermenêutica de profundidade vem à cena é devido a uma de suas diretrizes: analisar hermeneuticamente uma obra exige conhecer as cercanias de sua produção e circulação o que, no caso do Euclides e seus rivais modernos, ocorre na Inglaterra vitoriana. Compreender a Inglaterra da segunda metade do século 19, suas políticas educacionais, seu comércio livreiro e suas escolas, por exemplo, nos dá um pano de fundo que alimenta a interpretação do esforço que Carroll empreendeu em favor da obra de Euclides e, ao mesmo tempo, animou a tradução desse seu texto para os leitores de língua portuguesa. É esse, portanto, o foco deste artigo: investigar o contexto no qual Euclides e seus rivais modernos se inscreve, ressaltando, em particular, a educação, o ensino de matemática e o ensino de geometria na Inglaterra da segunda metade do século 19.
A Inglaterra: espaço e tempo de Lewis Carroll
Para compreender Euclides e seus rivais modernos de Carroll, atribuir-lhe significado, interpretá-lo, julgamos necessário perguntar sobre a postura de Carroll como professor e escritor de diversos livros, inclusive de livros-texto de matemática, e buscar pistas sobre o que poderia tê-lo levado a elaborá-los. Levantar alguns aspectos da Era Vitoriana permitiu uma aproximação ao que poderiam ser os motivos deste autor, suas intenções, seus direcionamentos, seu modo de ser, seu tempo, suas cercanias.
Chama-se de Era Vitoriana o período entre 1837 e 1901, em que a rainha Vitória ocupou o trono da Inglaterra, caracterizado por uma euforia advinda do crescimento industrial que deslocou o estilo de vida inglês, até então baseado na agricultura, para uma economia urbana, moderna e baseada no comércio e na indústria (Morais, 2004). Nesse período pós Revolução Industrial, a Inglaterra tornou-se a nação mais industrializada do planeta e passou a ser conhecida como a oficina do mundo: dentre tantas invenções navio a vapor, telégrafo, automóvel, eletricidade -, a que mais alterou o cotidiano e o cenário inglês foram os transportes ferroviários (Flores, Vasconcelos, 2000).
Todas estas modificações contaminaram a produção literária da época. O trem foi um dos responsáveis pela maior circulação de publicações, cujos números também cresciam cada vez mais. O século 19
caracterizou-se pelo rápido desenvolvimento das ciências: a Física levou ao apogeu a imagem mecanicista (cartesiana) do universo; a Biologia, em seu transcurso evolutivo, propõe problemas importantíssimos para o pensamento filosófico - Charles Darwin (1809-1882), com seu tratado sobre a origem das espécies, lançou em crise a ideia do homem que vigorava há séculos. Nasce a genética com Gregório Mendel (1822-1878): as leis de Mendel da segregação e a da independência das características hereditárias (Morais, 2004, p 10).
Os serões de família eram os momentos ideais para leituras com forte apelo moral, pois "quando precisavam de conselhos, [os ingleses] recorriam à literatura" (Morais, 2004, p. 36). Nestes serões lia-se muito a Bíblia, tomando-se as passagens do Gênese como acontecimentos verdadeiros. Não se estranha, portanto, que A origem das espécies tenha provocado, neste cenário, grandes conflitos e tensões, pois aquilo que dizia a autoridade científica ia de encontro às Escrituras. Curiosamente esta visão contrária aos dogmas da Igreja parece não ter abalado às crenças de Carroll: ele ampliou sua biblioteca com 19 obras de Darwin e seus críticos, inventou o darwinismo ao contrário no capítulo quinto de Sylvie and Bruno e criou um jogo, chamado Lanrick, em que o vencedor era o ser mais evoluído da espécie (Cohen, 1998). Carroll era um reverendo6 anglicano atípico, pois não se incomodava com as teorias de Darwin, brincava e divertia crianças e defendia o teatro.
A Era Vitoriana foi, portanto, período de grandes transformações divulgadas por um número cada vez maior de publicações e de leitores. Rumo ao que consideravam ser a modernidade, cujo apogeu foi a grande exposição de 18517, os vitorianos experenciavam uma convivência conflituosa entre as propostas de mudanças e a manutenção de tradições. Esta dicotomia se refletiu na educação, originando mudanças várias, dentre as quais aquelas relativas ao ensino de geometria.
A educação da Inglaterra vitoriana
Na Inglaterra, diferentemente do que passara a acontecer na França desde a Revolução, era totalmente estranha a ideia de ser a instrução um direito do cidadão e uma obrigação do Estado. Chastenet (s/d) relata que cabia à família inglesa a responsabilidade de dar aos seus filhos uma educação que conviesse ao seu sexo e à sua classe, ou seja, a educação dos burgueses e dos membros das classes superiores era sustentada pelo dinheiro dos pais. Apenas face à falta de recursos financeiros era possível recorrer a algumas iniciativas de caráter beneficente. Este estado de coisas contribuía para fazer da Inglaterra o país com a pior escolarização da Europa (Howson, 2010). Além disso, aos ingleses parecia inútil que as ditas classes inferiores adquirissem conhecimentos que julgavam desnecessários à esta camada da população e que poderiam lhes dar ideias que fortalecesse sua percepção sobre a diferença de classes, uma visão em muito alimentada pelo pavor que alguns membros das classes mais abastadas tinham do jacobinismo francês.
Nesta realidade, que negava a muitos o conhecimento e a instrução escolar, Carroll foi um privilegiado: os Dodgsons exemplificavam parte da sociedade vitoriana conhecida como classe média alta que, "na falta de títulos aristocráticos, heranças, terras ou outras propriedades, somente podiam aspirar a algum tipo de ascensão desenvolvendo o espírito - exatamente o que faziam" (Cohen, 1998, p. 24).
Após a Revolução Industrial, o aumento da população, principalmente na capital inglesa, a mudança de classes ocasionada por aqueles que começavam a abrir seu próprio negócio, a necessidade de uma mão-de-obra para a manutenção das máquinas e a crença nos avanços do seu tempo, começaram, pouco a pouco, a impor modificações no sistema escolar inglês. Em 1833 houve o primeiro investimento do governo na educação pública, quando o Parlamento decidiu aprovar um crédito de 20.000 libras para a construção de edifícios escolares, valor que em 1839 atingiu a marca de 30.000 libras. Entretanto, esses dados, que parecem afirmar uma grande mudança, devem ser relativizados: Chastenet (s/d) registra que, no mesmo ano, igual valor foi gasto na ampliação das cavalariças de Buckingham.
A educação restringia-se ao ensino da leitura e da escrita, havendo algumas raras escolas nas quais se ensinava um pouco de aritmética básica. Em 1858 a comissão, montada sob supervisão do duque de Newcastle para averiguar que medidas poderiam ser tomadas para que se estendesse a instrução elementar8 a todas as classes de um modo barato, constatou que das 1.824 escolas públicas semanais, apenas 69,3% ensinavam aritmética, 0,6% ensinavam mecânica, 0,8% ensinavam álgebra e 0,8% ensinavam Euclides. A consequência disso foi um sistema de premiação por resultados, apresentado ao Parlamento em 1862: cada escola receberia até quatro shilings por aluno, e oito shilings adicionais se o estudante fosse aprovado nos exames de leitura, escrita e aritmética.
Algumas modificações, implantadas paulatinamente, podem ser percebidas nas grades de disciplinas. Segundo Howsam; Stray et al (2007), o progresso das disciplinas segue em paralelo ao do status social, começando com livros para educar jovens gentlemen nas línguas clássicas e na Matemática, posteriormente abordando assuntos de ciência - já se considerando como público-alvo também estudantes de classe média -, para somente depois de 1870 e 1880 surgirem os livros designados para a educação dos filhos dos trabalhadores. História e Geografia foram acrescentadas aos conteúdos como resultado da proliferação de temas a serem tratados na instrução, no final do século, bem como as línguas estrangeiras e a literatura. Por volta de 1871, o currículo de matemática estava dividido em seis níveis contendo não mais do que as quatro operações, incluídas apenas as divisões simples, sistema monetário, pesos e medidas comuns, proporção e frações decimais, o que deveria corresponder às necessidades do trabalhador (Howson, 2010).
O livro-texto9, tal como o conhecemos hoje, isto é, com questões, respostas, vocabulário adequado, observações, motivações, surgiu na Inglaterra por volta de 1830 (Howsam; Stray et al, 2007). A distribuição dos livros-texto aumentou em quantidade e agilidade por volta dos anos 1840, devido aos serviços de correio10 e às estradas de ferro, que chegavam até a algumas escolas nos limites rurais:
Inovações recentes como a litografia, que se espalhou rapidamente nas primeiras duas décadas do século [19], facilitaram a impressão "exótica" (isto é, não-romana, incluindo Grego e Hebraico) e de textos matemáticos. Ela também tornou barata e rápida a impressão caseira de material com objetivo de ensino. (Howsam; Stray et al, 2007, p. 3)
Durante o século 19 houve muitas mudanças no cenário escolar da Inglaterra e nos livros-texto. Chastenet (s/d) descreve este processo: o país possuía uma instrução primária desorganizada que, para as classes pobres, era assegurada por duas associações - as Escolas Nacionais, que dependiam da Igreja Anglicana, e as Escolas Britânicas, de inspiração não conformista11, que não atendiam, juntas, mais do que 18.000 alunos. Havia também escolas subvencionadas por agrupamentos de paróquias ou por grandes proprietários, cujas mulheres exerciam, ao mesmo tempo, várias profissões e só ensinavam nas horas vagas. Nas cidades importantes as sociedades de beneficência organizaram escolas que ficaram conhecidas como escolas farroupilhas (Howsam; Stray et al, 2007), que se esforçavam para atrair as crianças que, nos bairros pobres, viviam nas ruas. No campo, as esposas ou filhas do squire12 e do pastor assumiam o papel de mestras em escolas tão pobres que, muitas vezes, faltavam-lhes bancos, ainda que não faltassem os ensinamentos bíblicos. De um modo geral, o ensino quase nunca era gratuito, pois os pais tinham que contribuir, em princípio, com um terço das despesas e, como a frequência não era obrigatória, muitas crianças abandonavam os bancos escolares em busca de algum trabalho. Em 1839, de acordo com Chastenet (s/d), 33,7% dos homens e 49,5% das mulheres casadas não sabiam assinar o nome.
De 1780 até 1870 as escolas de educação elementar eram mantidas por doações religiosas ou individuais, não havendo nenhuma intervenção do governo. Apenas em 1867 a Lei da Reforma, apoiada por políticos como Robert Lowe, começou a alterar paulatinamente este quadro: a Lei Educacional de 1870 tornou compulsório, mas não necessariamente gratuito, o ensino para crianças até 11 anos. Mas o governo manteve-se negligente em seu cumprimento no que se referia às crianças pobres, um número muito pequeno delas foi atendido pela lei, e outras tantas crianças moravam em localidades em que se desconhecia a promulgação da lei. Este compulsório seria lentamente implantado, pois até 1918 o governo ainda não havia providenciado educação gratuita para todos e, qualquer criança acima de 11 anos, tendo atingido alguns padrões, poderia ser dispensada da escola (Howson, 2010).
Uma mudança significativa tem sua origem nas experiências de Andrew Bell (17531832) que, tendo vivido como capelão da Igreja Anglicana no exército da Índia, conheceu o Madras Orphan Asylum, instituição fundada pela Companhia do Leste da Índia para atender aos filhos dos soldados e que empregava tutores para cuidar de pequenos grupos de crianças. A partir deste modelo Bell criou o método de instrução mútua (Cambi, 1999) que, posteriormente, aprimorado por Joseph Lancaster13 (1778-1838), educador e religioso quaker, ficou conhecido como sistema monitoral.
O sistema monitoral consistia em agrupar os alunos por níveis de habilidade: o professor ministrava suas aulas somente àquelas crianças que faziam parte do grupo mais avançado e, depois, selecionava alguns alunos desse grupo para monitorar os demais. Os monitores eram responsáveis pela instrução de seus colegas mais jovens ou em posição menos adiantada14, enquanto o professor agia como supervisor, avaliador e disciplinador (Lesage, 1999). De fato, este era um sistema barato, pois chegava a agrupar até 500 estudantes sob o controle de um único professor.
O cenário era diferente para as famílias ricas, cujos filhos estudavam com tutores, e para as de classe média, as quais enviavam suas crianças a externatos. Os estudos secundários eram feitos, segundo a vontade ou os recursos dos pais, numa Grammar School, numa Private School ou numa Public School15 sob a direção de um preceptor. Carroll estudou em duas Grammar Schools, primeiro em Richmond e depois em Rugby: na primeira tinha aulas de Latim, Grego, Religião, Matemática, Literatura Inglesa e Francês. Na segunda predominavam as aulas de letras clássicas, História e sobre a Sagrada Escritura, seguidas pelas de francês e Matemática16.
Na década de 1820, devido à escassez de boas Grammar Schools e à capacidade limitada das escolas públicas, surgiram as Proprietary Schools, organizadas e mantidas por um comitê de proprietários. Estas escolas, destinadas aos filhos da crescente classe média, respondiam à demanda das Forças Armadas, que à época queriam que seus oficiais recém ingressos soubessem Matemática e dominassem algumas técnicas comerciais e industriais (Howson, 2010).
Passada esta fase da educação secundária17 dos rapazes, alguns ingressavam no exército e, outros, na universidade. Na Inglaterra só existiam duas universidades em que um gentleman podia inscrever-se: Oxford e Cambridge (Chastenet, [s/d]). É importante lembrar que Carroll, tendo saído de uma Grammar School, foi para Oxford, instituição na qual os alunos usavam sempre beca e barrete, sendo os estudantes que pertenciam às famílias abastadas diferenciados dos outros pelo uso de uma borla dourada. Carroll, no outro grupo, usava uma preta (Cohen, 1998).
Ambas as universidades não haviam mudado muito desde a Idade Média e mantinham certo status: o cardeal Wolsey, o rei Henrique VIII e fundadores da Christ Church haviam passado por ali; a rainha Elizabeth I havia ali se hospedado, o rei Carlos I se refugiara em Christ Church durante a Guerra Civil, o Parlamento Inglês se reunira ali na crise de 1644. Nas fileiras de retratos dos que lhe antecederam, Carroll "identificaria várias figuras eminentes, sacerdotes, vice-reis, ministros, líderes das mais variadas esferas da sociedade" (Cohen, 1998, p. 55).
Uma vez admitidos, os rapazes dispunham de um quarto e de um gabinete de trabalho. As únicas três obrigações - entrar todas as noites antes das onze horas, não faltar às cerimônias religiosas dominicais, celebradas na capela, e jantar várias vezes por semana no hall - não eram respeitadas por todos os gentlemen de Oxford: as festas, as caçadas, os bailes e a jogatina eram frequentes. Cohen (1998) afirma que a maioria dos alunos - os descendentes dos fidalgos que haviam sido criados praticando equitação, tiro e caça - iam a Oxford apenas para passar o tempo. Os jovens com interesses e ambições intelectuais formavam uma minoria que sabia aproveitar as comodidades extraordinárias que os colégios ofereciam: possibilidade de isolamento, amplas bibliotecas e professores competentes. Tanto em Oxford, quanto em Cambridge, a maioria dos estudantes contentava-se com o programa mínimo, composto por Latim, Grego e História18, mas alguns se aprofundavam em assuntos especiais e adquiriam grande cultura literária. Formavam-se, "de fato, no seio das duas velhas universidades, não só eruditos, legistas, economistas, teólogos e homens políticos, como também poetas, artistas e filósofos" (Chastenet, [s/d], p. 155)19.
Os estudos tinham duração de três anos, intercalados por longas férias, ao final dos quais os alunos recebiam o título de bacharel em Artes. Depois da titulação, alguns ainda permaneciam na instituição por mais dois anos e, sem nenhum exame adicional, mas a um preço consideravelmente alto, recebiam o título de mestre em Artes. Outros que, como Carroll, optavam por ficar lá a vida inteira eram chamados de fellows e precisavam se conservar celibatários, em conformidade com a regra herdada da época anterior à Reforma Protestante (Cohen, 1998).
A educação escolar inglesa, além das diferenças de classes abordadas até aqui, também apresentava diferenças quanto ao gênero: no século 19, devido à crença da inferioridade intelectual das mulheres, a elas cabia um tipo de instrução que reforçasse seu caráter frágil, com ênfase em bordados e atividades para a organização do lar (Morais, 2004). As moças estudavam até por volta dos dezesseis anos e o que lhes era ensinado visava a, principalmente, torná-las boas esposas ou governantas. Aquelas cuja sorte era diferente acabavam, muitas vezes, trabalhando para patrões que pagavam muito pouco sob a desculpa de já lhes darem casa e comida. Devido a isso, em 1843, surgiu a Instituição Benevolente para Governantas (Morais, 2004) que em Londres abriu o Queens College, para garotas acima de 12 anos, com currículo inovador: as alunas podiam escolher entre palestras e aulas sobre Línguas Modernas, Mecânica, Geografia, Geologia, Gramática Inglesa, Literatura Inglesa, Latim, Botânica, Química, Filosofia e Política Econômica. Em 1910 havia cerca de "1000 mulheres ocupando as carteiras universitárias de Oxford e Cambridge, não lhes sendo, contudo, permitida a atribuição de nenhum título" (Morais, 2004, p. 66).
Carroll, o ensino de Matemática e a Geometria na era vitoriana
Carroll, filho de classe média, estudou em boas escolas numa época em que a Inglaterra ainda sequer tinha escolas para todos. Seu encantamento e inclinação para a Matemática foram desde muito cedo percebidos e incentivados por alguns de seus professores20.
A Geometria Euclidiana sempre fora considerada como o instrumento ideal para ensinar a raciocinar e a pensar de maneira lógica. "Como ciência sustentada em verdades absolutas" (Howsam; Stray et al, 2007, p. 4), o estudo da Geometria casava bem com o ensino clássico e oferecia uma preparação adequada para os estudantes que aspiravam a Oxford ou a Cambridge. Augustus De Morgan21, assim como muitos de seus contemporâneos, via a Matemática como um meio de desenvolver a faculdade do raciocínio e como método pelo qual o aluno conseguia, conhecendo os dados iniciais, chegar à conclusão por meio de argumentos lógicos (Howson, 2010). É importante ressaltar, entretanto, que a maioria dos alunos não passava do primeiro e segundo livros de Os elementos (Price, 1994). Aqueles que visavam à carreira na administração pública ou no exército também não escapavam do estudo da Geometria, pois a crença de que estudá-la ajudava a desenvolver o pensamento lógico e organizado a tornava indispensável.
Em contrapartida, outros se mostravam contrários aos esforços necessários para se aprender a Geometria pelo método de Euclides: duvidavam da sua lógica rigorosa e questionavam se seu livro era o mais adequado para iniciantes. O matemático James Joseph Sylvester, professor da Royal Military Academy de Woolwich, em seu discurso de posse como presidente da British Association for the Advancement of Science - Baas declarou: "Os estudos de Euclides que empreendi na infância fizeram de mim alguém que odeia a geometria" (Sylvester apud Price, 1994, p. 23).
Na Inglaterra da década de 1860 duas comissões foram criadas, aos moldes daquela de 185822, para investigar a qualidade da educação inglesa nos estudos secundários: o relatório da Clarendon Commision (1864) sobre as Public Schools mostrou um cenário desastroso em que a Matemática ensinada não era suficiente para que os alunos ingressassem na Royal Military Academy de Woolwichm. O relatório posterior, da Taunton Commission (1868), mostrou haver expressivas diferenças na quantidade e na qualidade da Matemática ensinada nas diferentes Endowed Schools (Howson, 2010). No entanto, estes relatórios causaram menos impacto do que os resultados pífios em relação ao conhecimento matemático de uma competição realizada em Exeter, no ano de 1856, por alunos entre 18 e 23 anos. Com o desencanto quanto à aprendizagem dos alunos que participaram do concurso, surgiram os exames nas escolas de Exeter que, posteriormente, passaram a ser supervisionados por professores de Oxford e Cambridge (Howson, 2010).
A prática dos exames, vistos com propósitos administrativos de certificação e seleção de alunos e como indicadores do que deveria ser mantido ou mudado nos padrões educacionais, desenvolveu-se rapidamente em meados do século 19. No ensino superior, os exames, em especial o Mathematical Tripos23, contribuíam para rever privilégios e eram considerados benéficos por promoverem a competição; sua popularidade pode estar relacionada, em parte, ao interesse dos britânicos pelo esporte (Price, 1994).
Enquanto isso, em outros países, tais como Suíça, Alemanha e França, Euclides era tido como ultrapassado. Na França, onde se adotara o livro Élements de géometrie de Legendre, Jacques Demogeot e Henry Montucci, que haviam sido enviados em 1866 para a Grã-Bretanha a fim de analisarem aquele sistema de ensino, publicaram o resultado de suas pesquisas comparativas24, apontando que o uso de Euclides como livro-texto exercitava somente a memória, não a inteligência, e que sua lógica era robusta, mas seu tratamento era tedioso. Estas afirmações seriam defendidas em solo inglês, posteriormente, por Thomas Arnold, diretor da tradicional Rugby School e um respeitado educador e homem de letras que, entretanto, pouco conhecia de Matemática, mas que, por integrar a Her Majesty's Inspectorate25, tinha crédito em suas declarações (Price, 1994). Outras vozes também se ergueram contra Euclides: Frederick Temple, um dos intregrantes da Taunton Commission, declarou que há muito tempo se usava Euclides como livro-texto e era preciso investigar se não havia outro livro, mais fácil e menos abstrato, para ensinar Geometria aos alunos iniciantes. J. M. Wilson, que trabalhou em Rugby com Temple, afirmou que os alunos conheciam Euclides, mas nada sabiam do espírito, do método ou dos resultados da Geometria e que, devido a isso, um novo método deveria ser buscado. Wilson, posteriormente, se tornaria membro-fundador da Association for the Improvement of Geometrical Teaching - AIGT - e publicaria sua própria sugestão, o Elementary geometry26, para reverter o estado de coisas que criticava. Por outro lado, De Morgan defendia que Euclides, "apesar de algumas pequenas imperfeições lógicas, ainda era o melhor tratado de Geometria, principalmente devido a sua dificuldade" (Price, 1994, p. 23).
Surgiram vários livros que se propunham a ensinar Geometria de um modo mais rápido, fácil e moderno. Um livro bastante recomendado, à época, passou a ser o A treatise on geometry, que Robert Wallace publicou em 1831, no qual "a conexão da teoria com a prática nunca é omitida quando pode ser introduzida" (Howsam; Stray et al, 2007, p. 9). Outro, o Principles of geometry (1848), de Thomas Tate, propunha-se a ensinar o conteúdo de Euclides usando referências a objetos e situações cotidianas. No entanto, quando se começou a pensar no manual de Tate como o novo livro-texto para todas as escolas, ele foi atacado pelo Civil Engineer and Architect's Journal: "o verdadeiro espírito da geometria seria perdido na Inglaterra, bem como em qualquer outro lugar, se Euclides cessasse de ser nosso livro-texto" (Howsam; Stray et al, 2007, p. 9).
Primeiro a conta-gotas e depois como uma represa de comportas abertas, apareceram diversos manuais que se propunham a substituir Os elementos: na segunda metade do século 19 havia nada menos que 73 publicações distintas para o ensino da Geometria (Price, 1994): "Sopravam ventos de mudança. A classe média reclamava uma abordagem mais prática da matemática, enquanto a educação tradicional e clássica se via relegada a um segundo plano" (Wilson, 2009, p. 114). Por outro lado, Euclides era um texto clássico, o ápice da cultura grega, que se presumia fazer aflorar benefícios morais e espirituais. O uso de Euclides encaixava-se perfeitamente com a educação da classe dominante e podia ser defendido como base de seu valor humanístico.
Quando começou a atuar como professor, em 1855, Carroll percebeu esse cenário caracterizado pelo surgimento de escolas populares, com seus conteúdos ralos, professores mal preparados e alunos mal formados que começavam a fazer coro na defesa de um ensino de Geometria que não fosse tão rígido, quanto aquele parametrizado pelo livro de Euclides e que, além disso, fosse também mais prático. Após a Grande Exposição de 1851, o governo estabeleceu o Department of Science and Art que, recebendo grandes somas de dinheiro, além da responsabilidade de prover os museus, deveria trabalhar para que houvesse um ensino de ciências que "assistisse às classes industriais" (Howson, 2010, p. 28), o que resultou em várias experiências curriculares26. A Baas estabeleceu um comitê, do qual participavam Sylvester e Wilson, mas também outros professores de Cambridge, amigos de De Morgan, que apoiavam sua opinião, para investigar outros métodos de ensino de Geometria, abordando-a junto das Ciências Naturais.
Wilson, no prefácio de seu livro, afirmava que "a Geometria, quando tratada como uma ciência e de maneira natural, segue certa ordem na qual não haverá muita variação, e os manuais de Geometria não diferirão uns dos outros, assim como ocorre com os manuais de álgebra ou química" (Wilson apud Carroll, 2012, p. 238). Tendo isto como verdade, os exames de Geometria, feitos nas escolas e nas universidades, não precisavam mais ter como base somente Os elementos, pois à época já havia várias opções. Carroll contrapunha-se à ideia, cada vez mais popular, da possibilidade de se realizar exames e avaliá-los utilizando vários livros.
Em 1871 foi criada a Association for the Improvement of Geometrical Teaching - AIGT - que se mostrou preocupada com a proliferação dos livros-texto e com a imparcialidade dos exames: como avaliar com justiça a explicação ou numeração das proposições se o candidato tivesse estudado por outros sistemas e livros?27 Uma das preocupações principais da AIGT passou a ser a elaboração de um novo livro-texto de Geometria. Deste modo, o cenário da educação vitoriana voltaria ao início do século 19, quando apenas um livro, a edição de Simson28, era utilizado (Howson; Stray et al, 2007). A primeira reunião da AIGT, realizada em 17 de janeiro, foi convocada por uma circular enviada para os diversos diretores e professores que mostrava, no sexto item, o que a Associação pretendia propor com relação aos livros-texto:
(6) Este grupo é da opinião que em qualquer novo livro-texto (a) os seguintes princípios, parcialmente reconhecidos por Euclides ou até mesmo ausentes, devem ser adotados: (i) Construções hipotéticas; (ii) Definição aritmética de proporção; (iii) Superposição; (iv) Conceitualização de ponto em movimento e de retas em revolução; (b) as seguintes limitações devem ser removidas: (i) A restrição do número de axiomas para somente aqueles que não admitem prova; (ii) Restrições que excluem todos os ângulos não menores que dois retos; (c) termos modernos como locus, projeção etc devem ser introduzidos. (Price, 1994, p. 25)
Dos vinte e oito integrantes que formaram a primeira lista oficial da AIGT, publicada em outubro daquele ano, somente dois eram professores universitários. Em sua organização original a AIGT teve Thomas Hirst (1830-1892) como seu primeiro presidente, Wilson como um dos dois vice-presidentes e R. Wormell como tesoureiro. Wilson e Wormell publicaram novos livros de Geometria, satisfazendo as condições expostas na lista anterior, os quais foram minuciosamente considerados e analisados por Carroll em Euclides e seus rivais modernos.
Na primeira brochura publicada pela AIGT a página de rosto era uma carta dos secretários R. Levett e E. F. MacCarthy que criticava o uso do livro de Euclides, atribuindo-lhe o cenário caótico do ensino de Geometria. Os elementos, segundo eles, havia se fossilizado: assunto e estilo precisavam ser simplificados e modernizados, proposições consideradas inúteis deveriam ser eliminadas, o livro não servia mais à formação de matemáticos nem às necessidades de uma sociedade mecanizada (Price, 1994). Citando também o relatório dos franceses Demogeot e Montucci, a carta comentava a "rejeição universal" (Price, 1994, p. 27) a Euclides nos países do continente, tomando isso como uma prova a mais da sua inadequação.
Tornou-se prioridade da AIGT elaborar um manual que fosse reconhecido como válido e de qualidade pela Baas, o que ocorreu em 1873. O primeiro manual continha os livros de um a quatro de Euclides, e foi apoiado pela Baas. Esta, porém, demandava que a AIGT produzisse um texto que contivesse até o sexto livro, intento alcançado somente em 1876, ano a partir do qual a Baas começou a pedir às instituições que o considerassem. No entanto, importantes professores de Cambridge e Oxford - Price (1994) cita textualmente o nome de Carroll dentre eles - continuavam opondo-se às reformas e defendendo Euclides: o sistema de exames era particularmente complicado, compreendendo um grande número de bancas autônomas e, como não havia nenhum mecanismo para uniformizar os exames de Geometria, os examinadores mantinham-se quase todos fiéis a Euclides, pois ele era mais conhecido.
A AIGT não recuou e antes de completar dez anos havia formado subcomitês cujos trabalhos estendiam-se além do sexto livro de Euclides, abordando a geometria dos sólidos, a geometria plana superior e as cônicas. A Associação seguiu insistindo para que as bancas examinadoras pelo menos aceitassem o The elements of plane geometry como livro didático alternativo ao de Euclides. A discussão seguiu por bastante tempo, deixando para trás até mesmo a origem da própria Associação: em 1897, a AIGT mudou seu nome para Mathematical Association e passou a reunir professores e estudantes de Matemática que continuavam trabalhando para tomar o espaço de Euclides nas salas de aula.
Firmes à tradição e à memória de Euclides, mantinham-se Lewis Carroll e suas convicções. Sua dedicação ao elaborar Euclides e seus rivais modernos, entretanto, não foi suficiente para devolver a Euclides o lugar que havia sido por ele ocupado por tanto tempo, mas pelo menos deixou claro que é preciso ter cuidado na elaboração de material didático, pois muitos dos livros que se propunham substituir Os elementos apresentavam falhas no que diz respeito a conceitos e à organização, falhas que sequer eram percebidas, seja por professores, seja por matemáticos eminentes.
Se, por um lado, Carroll criticava o ensino repetitivo29, por outro lado sabemos que ele apoiava o ensino da Geometria a partir do livro de Euclides, cuja avaliação compreenderia refazer - o que não deixa de ser repetir - as demonstrações seguindo, sempre que possível, a ordem e a numeração das proposições d'Os elementos. Isto nos leva a crer que, quando o assunto era a ciência sistematizada por Euclides, Carroll mantinha-se apegado à sua origem, ao classicismo, à pressuposição de que ela formaria um pensamento erudito e elevado: a sua época e a sua história haviam apresentado a ele a Geometria deste modo e, em virtude disto, ele assim a percebia, motivo pelo qual suas críticas relativas à repetição se aplicavam somente aos outros conteúdos. Tudo que fosse relativo ao ensino poderia mudar - os métodos, as avaliações, as práticas docentes -, menos o que fosse relativo à Geometria, que deveria seguir sendo ensinada utilizando-se Os elementos como livro-texto, assim como vinha sendo feito por dois mil anos.