Acessibilidade / Reportar erro

A repetência e os serviços escolares da capital federal nos anos 19301 1 Este artigo discute parte dos resultados de pesquisa do meu doutoramento defendido na Universidade de São Paulo, sob o título A estratégia como invenção: as políticas públicas de educação na cidade do Rio de Janeiro entre 1922 e 1935, e incorpora discussões realizadas no âmbito do grupo História da Escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados e no 7º Congresso Brasileiro de História da Educação, realizado em Cuiabá. Vincula-se ao projeto interinstitucional Repetência e evasão na escola brasileira (1890-1930), financiado pelo CNPq.

School failure and school services from the federal capital in 1930

La repetición y los servicios escolares de la capital federal en la década de 1930

Le redoublement et les services scolaires de la capitale fédérale dans les années 1930

Este artigo discute os rumos dos serviços escolares do Departamento de Educação do Distrito Federal entre 1931 e 1935, com base nos resultados estatísticos de rendimento escolar. Assim, aborda-se a produção das estatísticas oficiais para compreender a organização dos serviços de Recenseamento, Matrícula e Frequência, na Divisão de Obrigatoriedade Escolar e Estatística, e de Medida e Eficiência Escolares, na Divisão de Pesquisas Educacionais e, também, as estratégias para conter a evasão e a repetência. A análise da documentação permite concluir que o Departamento de Educação do Distrito Federal se projeta como aparelho estratégico de controle da população escolar.

reformas educativas; estatísticas escolares; processos de escolarização; Anísio Teixeira


This article discusses the paths of school services of the Department of Education of the Federal District from 1931 to 1935 based on the statistical results of school performance. This raises the issue of the production of official statistics to understand the organization of the Census, Registration and frequency services, in the School Division and Statistics and Compulsory School, and Measurement and School Efficiency, in the Educational Research Division, and also the strategies for curb dropout and repetition. The analysis of the documentation shows that the Department of Education of the Federal District projects itself as a strategic instrument of control of the school population.

educational reforms; school statistics; schooling processes; Anísio Teixeira


Este artículo analiza los itinerarios de los servicios escolares del Departamento de Educación del Distrito Federal entre 1931 y 1935 sobre la base de los resultados estadísticos del rendimiento escolar. Así pues, se trata de la producción de estadísticas oficiales para entender la organización de los servicios del censo, el registro de inscripciones y la frecuencia en las escuelas, en la División de Enseñanza Obligatoria y Estadísticas, y de Medición y Eficiencia Escolar, en la División de Investigación Educativa, y también las estrategias para contener el abandono y la repetición a la escuela. El análisis de la documentación nos permite concluir que el Departamento de Educación del Distrito Federal se proyecta como herramienta estratégica de control de la población escolar.

reforma educativa; estadísticas escolares; procesos de escolarización; Anísio Teixeira


Résumé

Cet article analyse les orientations des services scolaires du Secteur de l'Éducation du District Fédéral entre 1931 et 1935 sur la base des résultats statistiques des performances scolaires. Ainsi, nous nous occupons de la production des statistiques officielles afin de comprendre l'organisation des services du recensement, des inscriptions et de l'assiduité, dans la Division de Obligatorieté Scolaire et Statistiques, et de Mesure et Efficacité Scolaires, dans la Division de Recherche en Éducation, et aussi les stratégies pour contenir l'abandon et le redoublement. L'analyse de la documentation nous permet de conclure que le Secteur de l'Éducation du District Fédéral s'est projeté comme outil stratégique de contrôle de la population scolaire.

réformes éducatives; statistiques scolaires; processus de scolarisation; Anísio Teixeira

Em 1933, Anísio Teixeira organizou o Departamento de Educação do Distrito Federal como instância de controle da vida escolar da criança. A partir de mecanismos de medição globais, de estimativas estatísticas, de exames e instrumentos codificadores, procurou criar dispositivos de acompanhamento e diversificação das chances e possibilidade de escolarização na capital federal. A ideia de que era função da administração central do ensino público conhecer o aluno e o acompanhar por meio do sistema escolar conformou serviços como os de Recenseamento, Matrícula e Frequência, na Divisão de Obrigatoriedade Escolar e Estatística, e de Medida e Eficiência Escolares, de Ortofrenia e Higiene Mental e de Antropometria, na Divisão de Pesquisas Educacionais.

Uma parte significativa do trabalho produzido nestas seções do Departamento de Educação do Distrito Federal foi divulgada na forma de estatística e utilizada para expressar os resultados obtidos com as estratégias para conter a evasão e a repetência nas escolas da capital. A análise do modo como os dados foram consolidados oferecem pistas sobre a atuação dos serviços escolares abordados neste texto. Trata-se, primeiro, da caracterização da população escolar e do funcionamento do sistema de ensino. Depois, buscou-se compreender o modo como a aferição do desempenho escolar foi percebida pela administração central. Segue o estudo das estratégias de utilização dos resultados obtidos com a estatística e os testes de aferição no período da reforma conduzida por Anísio Teixeira. Finalmente, a análise atém-se à flexibilização dos programas escolares que o Departamento de Educação sustentou entre 1933 e 1934.

Condições sociais e movimento escolar

Mediante as inspeções especializadas que então instalou e dirigiu, Anísio Teixeira (1935) TEIXEIRA, Anísio. Educação publica: administração e desenvolvimento Relatório do Director Geral do Departamento de Educação do Districto Federal - dezembro de 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935. demonstrou, a partir das flutuações das classes e da irregularidade dos fluxos escolares de frequência, de retenção e de aproveitamento, as condições pessoais de cada aluno:

A unidade do sistema escolar não é o distrito ou a escola, mas o aluno. Qualquer dos serviços da Diretoria Geral que diga respeito à organização da escola só funciona, verdadeiramente, quando conhece o aluno e o acompanha através do sistema escolar, ou mesmo, da cidade. Nem se diga que esse serviço pode ser feito pelo diretor ou pelo professor. É inteiramente impossível. O diretor ou o professor não sabem por onde foi o aluno de um ano para outro e, no próprio correr do ano, não tem elementos para seguí-lo. Só um serviço geral pode assumir essa responsabilidade. (p. 53)

No sentido de verificar mais que os números brutos de matrícula e frequência, para efeito da publicação de estatísticas gerais, o Serviço de Matrícula e Frequência Escolares produziu dados sobre a matrícula de cada ano escolar, a flutuação mensal das classes de aula e a distribuição de alunos por nacionalidade dos pais e condição social. Um conjunto de testes de aferição do rendimento escolar do sistema de ensino carioca foi introduzido pelo Serviço de Testes e Escalas com a finalidade de apurar a eficiência da escola pública no modo como ensinava a ler e a calcular. Ainda como parte desse mesmo esforço de sofisticação dos instrumentos de classificação dos diferentes tipos e grupos de crianças, o Serviço de Classificação e Promoção ficou responsável pela distribuição e reclassificação dos alunos, para o que procedeu a estudos estatísticos quanto às idades, às repetições e aos níveis de inteligência reunidos nos serviços de Matrícula e Frequência Escolar e nos de Testes e Escalas.

O Serviço de Matrícula e Frequência Escolares resolveu a ausência de dados relativos às crianças do Distrito Federal matriculadas nas escolas públicas já em 1932. Quando determinou o número proporcional de repetições de ano e a distribuição das crianças por nacionalidade dos pais e condição social, aquele serviço decompôs os primeiros grupos de diferenciação da população escolar da cidade do Rio de Janeiro.

Tabela 1.
Percentagens de reprovação em relação à matrícula de cada ano escolar.
Tabela 2.
Distribuição por condição social.
Tabela 3.
Distribuição por nacionalidade dos pais.

O contingente de repetentes e de pobres predominou nos anos iniciais de escolarização. Nas séries finais, os indicativos mostraram um equilíbrio entre o número de crianças entendidas como pobres e remediadas e uma acentuada redução de reprovações. À custa de uma evasão significativa, as condições gerais dos alunos das escolas primárias municipais revelaram ter outras características ainda. A nacionalidade dos pais como fator de distinção tão somente completou o quadro de heterogeneidade da escola primária carioca. Ao lado de crianças de todas as idades e nos graus mais diversos de desenvolvimento e situação social, a existência de filhos de portugueses, italianos, espanhóis e franceses, entre outras nacionalidades, confirmou a variedade de perfis que cada ano escolar constituía.

Outro demonstrativo revelador das características de funcionamento do sistema de ensino público na capital do país foi o da flutuação mensal das classes. Pelo número de transferências, eliminações de matrícula e matrículas novas o Serviço de Matrícula e Frequência Escolar apurou algo da mobilidade que incidia sobre as classes todos os meses.

Tabela 4.
Flutuação das classes no mês de julho de 1932.

A intensidade com que os alunos ingressaram e saíram das escolas públicas ou solicitaram transferências no início do segundo semestre foi percebida como questão de importância. Havia o entendimento de que as mudanças da classe interferiam não só na realidade das salas de aula, mas, sobretudo, nos seus problemas. E, assim, conhecer o percurso escolar da criança, acompanhá-la de um ano para outro e mesmo no decorrer do ano foi um meio de melhorar a organização escolar.

Aferição das capacidades

Por outro lado, a administração geral também comprometeu esforços no sentido de uniformizar a eficiência das escolas públicas. O desenvolvimento de processos de verificação objetiva dos resultados escolares constituiu importante iniciativa de apuração do rendimento escolar das crianças. Foi promovida em 1932 uma aferição desse tipo no Distrito Federal. Levando em conta a adaptação do teste de leitura de Waterbury e os testes de aritmética de W.S. Monroe, May-Mac Call e de Otis ao meio escolar do Rio de Janeiro, o Serviço de Testes e Escalas aplicou coletivamente exames para se verificar a capacidade de ler e entender sentenças e a eficiência do ensino dos cálculos fundamentais. As condições da aplicação dos testes e um estudo comparativo dos resultados foram publicados no Boletim de Educação Pública (ano II, n. 1, p. 147-201) INSTRUÇÕES para a matrícula nas escolas primárias. Boletim de Educação Pública, ano II, n. 3 e 4, Rio de Janeiro, 1933, p.74-76., dando a conhecer o conteúdo do relatório preparado pelo chefe daquele serviço sobre os trabalhos. Mas as principais generalizações com base nos resultados alcançados procederam da leitura que Anísio Teixeira fez deles.

De posse dos resumos sobre o teste de leitura, Anísio (1935, p. 76)TEIXEIRA, Anísio. Educação publica: administração e desenvolvimento Relatório do Director Geral do Departamento de Educação do Districto Federal - dezembro de 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935. concluiu acerca da incapacidade da escola pública ensinar inteiramente uma população a ler:

Foram examinados no 1º ano somente os alunos já promovidos ao 2º ano, representando 42% dos matriculados, e pode-se afirmar que, quasi todos repetentes, tinham, em média, dois anos escolares. Das 24 frases que deviam completar, se tivessem lido e compreendido as sentenças explicativas, os 5.835 alunos examinados (os restantes constituíram um grupo de controle, examinados depois) acertaram em média 4,65. Houve 1.965 alunos que não completaram uma só frase! E no primeiro quartil - 4.458 alunos - não houve um só que completasse mais de uma frase. A variabilidade foi muito grande. No segundo ano - em média três anos escolares - os 6.488 alunos examinados conseguiram em média completar 12,05 frases, havendo cerca de 1600 que acertaram menos de 6 frases. A variabilidade foi menor. No terceiro ano - em média quatro anos escolares - a média de frases completadas foi de 15,13 para 4.958 alunos, sendo a variabilidade ainda um pouco menor. Por esses resultados verificou-se que os alunos, depois de quatro e mais anos de classe, nas escolas públicas do Distrito Federal, chegavam a baixíssimo índice de leitura, equivalente ao obtido pelas crianças americanas desde o segundo ano escolar. Se se considerasse que a criança americana iria ter ainda seis anos obrigatórios de escola primária e a criança carioca não chegava, habitualmente, senão ao terceiro ano de escola, poderíamos compreender o estado de ineficiência da nossa instrução elementar, a julgar pela experiência de aplicação de testes em que nos estamos baseando.

A desolação com os resultados do teste de leitura só aumentou com os de aritmética:

Examinaram-se os mesmos alunos do 2º e 3º anos com os testes de aritmética (quatro operações) de Walter Monroe, e os alunos do 4º e 5º anos, com os testes de frações de May-Mac. Call e de raciocínio aritmético de Otis. Os resultados foram os seguintes, extraídos do relatório que dele nos deu conta e em que nos estamos apoiando: 2º ano - 6.501: 1º teste - adição de números digitos - 24 questões - Média respondida 9,95; 2º teste - subtração de um número digito a um número de 2 algarismos - 24 questões - Média respondida 3,66; 3º teste - Multiplicação de números de quatro algarismos por números digitos - 20 questões - Média respondida 1,98; 4º teste - divisão, com um divisor de número digito - 20 questões - Média respondida 1; 5º teste - adição de números de mais de um algarismo - 24 questões - Média respondida 1,22; 6º teste - divisão de quatro por dois algarismos - 24 questões - Média respondida 0,20. 3º ano - 4.968: 1º teste - adição de números digitos - 24 questões - Média respondida 12,38; 2º teste - subtração de um número digito a um número de 2 algarismos - 24 questões - Média respondida 6,63; 3º teste - Multiplicação de números de quatro algarismos por números digitos - 20 questões - Média respondida 3,78; 4º teste - divisão, com um divisor de número digito - 20 questões - Média respondida 2,32; 5º teste - adição de números de mais de um algarismo - 24 questões - Média respondida 2,14; 6º teste - divisão de quatro por dois algarismos - 24 questões - Média respondida 1,43. De modo geral, os resultados eram ainda mais desoladores do que os de leitura. No segundo ano, pode-se dizer que, em média, o aluno sabia, um pouco, somar números de um só algarismo e, um pouco menos, subtrair de um número de dois algarismos um outro de um só algarismo. No mais só por exceção algum acertaria fazer a operação. No terceiro ano, podemos estender esse julgamento médio até a multiplicação por um algarismo, estando ainda em período de grande insegurança as operações um pouco mais complexas. Repitamos que o aluno do 3º ano tinha, em média, quatro anos escolares e que apenas cerca de 25% dos alunos que estavam no 1º costumavam chegar ao 3º ano de estudos. E veja-se daí se ensinar a ler, escrever e contar é, como querem os místicos do a b c, essa coisa singela que poderia fazer de qualquer modo, se os educadores não estivessem a complicar inutilmente o problema! Resta-nos examinar os resultados com os poucos alunos, privilegiados, que iam até o quarto e quinto anos. Foram examinados 3.291 do 4º ano e 2.072 do 5º ano, com os seguintes resultados: operações de frações - 16 questões: 4º ano - Média obtida de respostas certas 0,65; 5º ano - Média obtida de respostas certas 1,28. raciocínio - 20 questões: 4º ano - Média obtida de respostas certas 5,43; 5º Média obtida de respostas certas, 6, 78. Em frações o resultado foi igualmente baixíssimo. E em raciocínio chegaram os alunos de 4º e 5º anos ao nível correspondente a 11 anos de idade - na escola americana - quando, em média, têm idade de 12 para 13 anos. (Teixeira, 1935, p. 77)

Os resultados dos testes de aproveitamento escolar revelaram as dificuldades de desempenho no sistema público de ensino e implicaram conclusões de três tipos. A mais dramática era a constatação do fracasso da instituição de preparo fundamental dos cidadãos para a vida comum. Para Anísio Teixeira (1935) TEIXEIRA, Anísio. Educação publica: administração e desenvolvimento Relatório do Director Geral do Departamento de Educação do Districto Federal - dezembro de 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935. estava claro que o aluno reprovado não significava êxito do aparelho selecionador que era ou algum dia foi a escola. No entanto, as classes agrupavam alunos que se diferenciavam, profundamente, por idade e por inteligência. Era uma segunda constatação acerca dos níveis de inteligência e as idades cronológicas que cada classe reunia (Teixeira, 1935TEIXEIRA, Anísio. Educação publica: administração e desenvolvimento Relatório do Director Geral do Departamento de Educação do Districto Federal - dezembro de 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935.). E, então, cada escola oferecia uma situação e um problema particular, constituindo um desafio à capacidade organizadora de seus diretores. Por meio de critérios singularmente gerais, a distribuição por idade e de repetentes no sistema escolar do Distrito Federal indicava a desatenção às diferenças individuais dos alunos no momento de formação das classes (Teixeira, 1935TEIXEIRA, Anísio. Educação publica: administração e desenvolvimento Relatório do Director Geral do Departamento de Educação do Districto Federal - dezembro de 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935.).

Uma reflexão acerca das iniciativas de aferição da Diretoria Geral de Instrução Pública, entre 1932 e 1933, está nos estudos de Clarice Nunes acerca da questão dos testes. Valendo-se dos relatórios do Serviço de Testes e Escalas2 2 Trata-se de texto sobre quociente de inteligência de alunos do Arquivo Anísio Teixeira, série produção in-telectual, AT S. Ass. pi 18/30.00.00/2, CPDOC/FGV. , Nunes (2000) NUNES, Clarice. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Bragança Paulista: Edusf, 2000.analisou os discursos pedagógicos e também a acomodação política que resultaram do exame das crianças. Sua crítica ao modo como os testes de desenvolvimento mental, aproveitamento escolar e idade cronológica justificaram medidas de controle da heterogeneidade escolar alcançou as condições de atendimento das diferenças individuais dos alunos. Em razão da ênfase dos relatos na descrição dos instrumentos codificadores e nas repercussões dos resultados dos testes sobre a organização escolar, Nunes (2000) NUNES, Clarice. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Bragança Paulista: Edusf, 2000. entendeu que acabaram por reforçar uma imagem abstrata da criança que frequentava a escola. O principal do seu argumento foi a compreensão de que um tal efeito tornava a criança uma mera categoria codificada em fichas e testes, apagando assim o aluno real. Também atenta à dimensão política dos resultados educacionais da administração do ensino público,Nunes (1994NUNES, Clarice. A escola reinventa a cidade. In: HERSCHMANN, Micael M.; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder A invenção do Brasil moderno medicina educação e engenharia nos anos 1920-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 180-201.; 2000NUNES, Clarice. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Bragança Paulista: Edusf, 2000.) considerou as decisões de gestão parte da reinvenção da prática. Dessa maneira, a descrição que ofereceu do recuo de Anísio perante a utilização dos resultados dos testes de Quociente Intelectual circunstancia os limites da autoridade dos índices obtidos.

Para Clarice Nunes, apesar de Anísio utilizar os testes de inteligência a fim de otimizar o funcionamento escolar, os índices obtidos por meio deles obrigou-o a duvidar dos resultados por uma questão de princípios. Diante de demonstrativos em que perto de 50% das crianças examinadas apareciam como portadoras de algum retardamento mental, aceitar as conclusões dos testes de Quociente Intelectual seria admitir a irreversibilidade das condições específicas da clientela da escola primária pública. Em tais circunstancias, acatar as conclusões da iniciativa significava abrir mão da possibilidade da escola atuar sobre a infância. Nesse sentido, as criticas de Anísio às condições de aplicação dos testes de Quociente de Inteligência são percebidas por Nunes (2000) NUNES, Clarice. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Bragança Paulista: Edusf, 2000.como um artifício para abandonar as práticas de mensuração da inteligência dos alunos. Sobretudo, a pouca familiaridade do meio com o processo dos testes, o caráter experimental do ensaio e a sua falta de padronização fornecem os argumentos de que Nunes (2000) NUNES, Clarice. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Bragança Paulista: Edusf, 2000. se utiliza para explicar o recuo de Anísio perante a iniciativa. Assim, feita com habilidade, a interrupção da experiência, ainda segundo Clarice Nunes (2000, p. 268) NUNES, Clarice. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Bragança Paulista: Edusf, 2000., "não colocou em questão a necessidade de administrar o serviço escolar de acordo com as conclusões dos inquéritos". Conquanto Anísio Teixeira manteve firme o seu compromisso de construir uma nova qualidade para a escola primária, o teste expressou um simples fato estatístico.

Sob outro aspecto, não é despropositado inferir que a decisão de Anísio Teixeira tenha provocado tensões no Departamento de Educação. Mais uma vez os limites que as fontes impõem à compreensão das relações administrativas entre o gabinete da direção e a chefia dos serviços educativos dificultaram tratar o episódio sob essa perspectiva. Em todo caso, possivelmente, a posição de Anísio perante o testes de inteligência e o serviço de estatística provocou problemas de convivência nada desprezíveis com Isaías Alves, então sub-diretor técnico da Diretoria-Geral da Instrução Pública. Ainda que sem poder esclarecer aqui os termos e o foco do atrito entre ambos, o indicativo do alcance da crise aparece na mescla de questões ideológicas com intrigas pessoais, que foi o inquérito sobre propaganda comunista no Instituto de Educação em 1936. Segundo Nunes (2000)NUNES, Clarice. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Bragança Paulista: Edusf, 2000., as declarações de Isaías Alves à época motivaram as insinuações que chegavam aos jornais cariocas contra Anísio e Lourenço Filho quando desse episódio. Ainda em 1934, porém, Anísio Teixeira escreveu a Fernando de Azevedo sobre seu descontentamento com Isaías Alves, sinalizando outro indicativo da crise. Nessa oportunidade, confidenciou ao amigo que "no magistério e na administração tenho buscado criar uma carreira profissional comum, que desvie das pessoas para a profissão, o dever de dedicação e de solidariedade. De todos que chamei, só falhou até hoje o Isaías" (IEB. Cp. Cx. 32, 9).

De volta ao âmbito do Serviço de Testes e Escalas, não faltou à abordagem de Clarice Nunes sobre os testes escolares um retrato da reclassificação que o Departamento de Educação realizou em 1934. A descrição que ela fez foi fiel a do relatório do diretor geral da educação naquele ano, mas explicitou as dificuldades do processo de diferenciação dos padrões de promoção para os diversos tipos de alunos.

Assim, Clarice Nunes (2000) NUNES, Clarice. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Bragança Paulista: Edusf, 2000. entendeu que a divisão das classes ocorreu em dois níveis de aproveitamento e estes em três grupos, de acordo com a capacidade de aprendizagem, e mais as notações de aplicação e idade cronológica como um plano de classes inteiramente focado no perfil individual da criança. De fato, os níveis de aproveitamento foram A para atrasado e B para adiantado. Os grupos no interior de ambos os níveis distinguiram V, para aqueles obrigados a satisfazerem o programa mínimo, X, para o programa normal, e Y, para o programa mais desenvolvido e enriquecido. Seguiram as notações de 1 a 4 para a aplicação dos alunos e os agrupamentos por idades cronológicas aproximadas.

Clarice Nunes (2000) NUNES, Clarice. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Bragança Paulista: Edusf, 2000. notou que o conjunto previu 72 tipos de classificação para cada série e gerou dificuldades para a realização de atividades pedagógicas, pois, na prática, crianças de classificações diferentes teriam de ficar reunidas na mesma turma. Outros apontamentos constituíram objeções às exigências científicas de conhecimento da criança. Sobretudo nas suas funções de prognóstico e triagem, o minucioso reconhecimento das possibilidades e limites da aprendizagem nas escolas públicas foi criticado. Não só a aproximação que os critérios de reclassificação escolar dos estudantes efetivaram entre as representações produzidas no âmbito da Psicologia Escolar, da Antropologia e da Medicina Legal, mas a própria conjugação dos esforços do médico, do educador e do estatístico, que se consagraram na escola, adquiriram visibilidade nos estudos deClarice Nunes (1996) NUNES, Clarice. Cultura escolar, modernidade pedagógica e política educacional no espaço urbano carioca. In: HERSCHMANN, Micael; KROPF, Simone; NUNES, Clarice. Os missionários do progresso: médicos, engenheiros e educadores no Rio de Janeiro - 1870-1937. Rio de Janeiro: Diadorim, 1996, p. 155-224.. Mais que as discriminações e o trabalho corretivo provocados pelas instruções para promoção e classificação dos alunos das escolas primárias em 1934, importou sublinhá-las enquanto sintoma do caráter autoritário das instituições escolares. "O processo de classificação dos alunos, que redundava no processo de classificação das instituições de ensino", escreveu Clarice Nunes, "era um exercício de poder, cujo intuito ordenador estabelecia e introduzia categorias estranhas ao cotidiano, forçando a reinvenção da prática" (2000, p. 279).

Implantação das estratégias de otimização do rendimento escolar

A investida do Departamento de Educação contra a heterogeneidade do sistema de ensino, o recuo de Anísio perante a utilização dos testes de idade mental e quociente intelectual e a reclassificação dos alunos foram procedimentos previstos para a educação pública atingir uma organização eficiente. Referências de uma estratégia de controle dos resultados, ao modo como Clarice Nunes demonstrou, as instâncias de sua racionalidade operatória tramaram os tipos e os perfis de classificação das crianças na escola. Ainda que domínios de uma grande abstração em matéria de organização e eficiência escolar, convém delinear alguns de seus aspectos para se ter uma compreensão de como as salas foram formadas durante os anos de 1933 e 1934.

Do gabinete do diretor da Educação Pública saíram as Instruções para promoção e classificação dos alunos das escolas primárias. Instância primeira de elaboração e execução controlada e racional dos planos de reorganização das classes, o Departamento de Educação expediu, em 1933, as novas determinações para matrícula e classificação dos alunos. As Instruções para matrícula nas escolas primárias em 1933 estabeleceram oito tipos de classes de acordo com a predominância da idade cronológica dos alunos3 3 Conforme publicado em Instruções para a matrícula nas escolas primárias, Boletim de Educação Pública, ano II, n. 3 e 4, Rio de Janeiro, 1933, p. 74-76. . Assim, as classes de tipo A foram previstas para os alunos em idade cronológica normal ou pouco abaixo do normal. Nas classes de tipo B deveriam predominar os alunos em idade cronológica atrasada de mais de um ano e de menos de dois anos e aproveitamento normal ou pouco abaixo do normal. Do tipo C seriam as classes para os alunos em idade cronológica atrasada de mais de dois anos e de menos de três e aproveitamento abaixo do normal, ou de alunos com aproveitamento muito abaixo do normal, independente de idade cronológica, e do tipo D para os alunos em idade cronológica atrasada de três ou mais anos, independente da idade cronológica. Seguiram indicações também para reagrupar as crianças repetentes, de modo que as classes do tipo BE ficaram para as repetentes pela primeira vez, as do tipo FC para as repetentes pela segunda vez, as do tipo GC para as repetentes pela terceira vez e, finalmente, as do tipo HD, para as repetentes pela quarta ou mais vezes.

Para as matrículas, algumas escolas foram indicadas como centros de matrícula sendo assim os locais de registro das inscrições. Num quadro de referência constaram o número de salas, as classes, o número de crianças a matricular e o número de novas classes em cada centro4 4 Conforme o quadro a que se referem às instruções para a matrícula nas escolas primárias publicado no Boletim de Educação Pública, ano II, n. 3 e 4, Rio de Janeiro, 1933, p.76-86. . Assim, por distrito escolar cada um dos seus centros de matrícula organizaram a distribuição por classe das crianças e a distribuição dos cartões de matrícula, documento em que constaram indicação da escola, ano e classe a que iam frequentar como alunos. De acordo com a capacidade das escolas e em obediência às classificações das fichas de promoção o encaminhamento da criança que já pertencia ao sistema público de ensino foi definido segundo o tipo de classe adequado. As Instruções de 1933 cuidaram, ainda, da estratégia de classificação e distribuição dos novos alunos admitidos para o 1o ano e dos alunos não promovidos. Submeteram-nos, ainda nos centros de matrícula, a exames mentais e escolares para só depois serem devidamente classificados e distribuídos pelas escolas. Naquele ano, os serviços de matrícula seguiram um calendário organizado em dez datas do mês de março:

Dia 6 - matrícula;

Dia 7 - matrícula;

Dia 8 - matrícula;

Dias 10 e 11 - distribuição por classe e distribuição dos cartões de matrícula;

Dia 13 - exames dos alunos promovíveis que não foram promovidos;

Dia 14 - testes mentais dos alunos novos;

Dia 15 - apuração e classificação;

Dia 17 - início das aulas. (Boletim de Educação Pública, ano II, n. 3-4, p. 74)

Um ano depois, tipos diversos de classificação foram colocados em relação. Isso diversificou o quadro de regras para formação das turmas escolares. Seguiram-se instruções que estabeleceram em diferentes níveis o regime de classificação dos alunos. Em 1934 a ordem foi organizar níveis de aproveitamento, de velocidade do aproveitamento e de empenho. Portanto, em vez de um critério centrado na faixa etária e na simples promoção, as Instruções para promoção e classificação dos alunos das escolas primárias, nesse momento, constituíram categorias de aproveitamento, combinando-as para tipificar uma classe. Assim, os níveis A e B, os grupos V, X e Y e a notação de 1 a 4 escalonaram as capacidades e velocidades de aproveitamento dos alunos e a intensidade da sua aplicação. Conforme o adiantamento ou atraso, o aproveitamento retardado, normal ou avançado ou os hábitos de estudos, o ajustamento à vida escolar e as atitudes em sala de aula, havia uma escala de classificação que não só distinguiam as crianças umas das outras, mas também serviam para concatenar possibilidades. Agora, asInstruções para promoção e classificação reconheciam identidades de desempenho seguindo constantes que não eram imediatamente dadas à percepção.

Anísio Teixeira buscou, no rendimento escolar e em índices de desenvolvimento social, o fator de classificação da criança. Desta vez, acrescentou ao ajustamento cronológico o aproveitamento em exames tanto quanto possível uniformes para todo o Distrito Federal e a observação sistemática da professora acerca da capacidade de aprendizagem e aplicação dos seus alunos. Por essa operação Anísio Teixeira fez verificar, julgar e considerar as condições e a velocidade de aproveitamento, a aplicação e a idade cronológica para a organização das classes, mediante o que procurou conferir maior homogeneidade às classes de alunos e, assim, aumentar a eficiência da escola. Com as Instruções para promoção e classificação de 1934, o Departamento de Educação constituiu uma multiplicidade de tipos que dizia efetivamente em que consistia a plena realização da graduação escolar:

Teremos, assim numa exemplificação minuciosa:

Classe 1 A V 1 - aproveitamento mínimo ou abaixo da média

velocidade pequena V

aplicação 1

idade cronológica tão aproximada quanto possível

Classe 1 A V 2 - aproveitamento mínimo ou abaixo da média

velocidade pequena V

aplicação 2

idade cronológica tão aproximada quanto possível e ainda,

Classe 1 A V 3 e

Classe 1 A V 4,

Classe 1 A X 1 - aproveitamento médio

velocidade média X

aplicação 1

idade cronológica tão aproximada quanto possível

Classe 1 A X 2 - aproveitamento médio

velocidade média X

aplicação 2

idade cronológica tão aproximada quanto possível e ainda,

Classe 1 A X 3 e

Classe 1 A X 4, - caso haja possibilidade para a subdivisão

Classe 1 A Y 1 - aproveitamento superior

velocidade superior Y

aplicação 1

idade cronológica tão aproximada quanto possível

Classe 1 A Y 2 - aproveitamento superior

velocidade superior Y

aplicação 2

idade cronológica tão aproximada quanto possível e ainda

Classe 1 A Y 3 e

Classe 1 A Y 4.

O mesmo se faria com o aproveitamento B da 1o série, bem como com os aproveitamentos A e B e as velocidades V, X, Y das demais séries.

As classes teriam assim as designações seguintes:

1a série - 1AV, 1AX, 1AY, 1BV, 1BX e 1BY

2ª série - 2AV, 2AX, 2AY, 2BV, 2BX e 2BY

3a série - 3AV, 3AX, 3AY, 3BV, 3BX e 3BY

4a série - 4AV, 4AX, 4AY, 4BV, 4BX e 4BY

5a série - 5AV, 5AX, 5AY, 5BV, 5BX e 5BY. (Teixeira, 1935, p. 86)

Sobretudo foi na montagem de uma estrutura de melhoramento dos resultados que redundou a reclassificação de 1934 nas escolas. Acompanhado de observações por escrito, de coleta de dados e de estudos estatístico o esforço de organização de classes com grupos de alunos com aproveitamento semelhante justificou mudanças no regime de ensino elementar. Nas escolas primárias mudou a divisão do período escolar e os programas de ensino sofreram diversificações. Em relatório o diretor do Departamento de Educação informou que, para 1934, a escola elementar ficou dividida em dois períodos e obedeceu critérios diferentes de promoção dos alunos de uma mesma série. Entre a diferenciação de um período primário, de três anos, e outro intermediário, de mais dois, ocorreram mudanças na atribuição das aulas e nas condições de progressão da criança no sistema de ensino. Anísio Teixeira entregou cada turma dos anos intermediários a vários professores, cada um encarregado do ensino de uma disciplina diferente. Mais do que especializar e aprofundar em setores o ensino, a manobra visou a desenvolver nos dois últimos anos da escola elementar os uso da leitura e da escrita e a bagagem intelectual do aluno (Teixeira, 1935TEIXEIRA, Anísio. Educação publica: administração e desenvolvimento Relatório do Director Geral do Departamento de Educação do Districto Federal - dezembro de 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935.).

Nos três anos iniciais, período primário, portanto, a professora permaneceu a única responsável pelo ensino da leitura, da escrita e da aritmética. Seguiram-se, para as séries intermediárias, docentes de linguagem, de matemática, de ciências físicas e naturais e ciências sociais, de educação física e recreação, de música e de desenho e artes industriais como forma de assegurar o enriquecimento dos programas (Teixeira, 1935TEIXEIRA, Anísio. Educação publica: administração e desenvolvimento Relatório do Director Geral do Departamento de Educação do Districto Federal - dezembro de 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935.). De outra parte, asInstruções para promoção e classificação determinaram transigências no trabalho escolar que, em cada ano do curso, os três grandes tipos de alunos designados pelas letras V, X e Y deveriam cumprir. No modo como Anísio Teixeira (1935) TEIXEIRA, Anísio. Educação publica: administração e desenvolvimento Relatório do Director Geral do Departamento de Educação do Districto Federal - dezembro de 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935. entendeu a graduação das capacidades de progresso de cada um dos grupos pelos anos de estudos, o aluno V faria um programa de quatro anos em cinco de estudos, o aluno X, cinco anos de programa em cinco de estudos e o aluno Y, possivelmente, aproveitaria seis anos de programa em cinco anos de estudos. Assim, o trabalho que nas escolas se desdobrou para fixar ações de classificação dos alunos alcançou os programas escolares e as atribuições do magistério. Nessa medida, fazer do regime de ensino uma instância operatória dos critérios de classificação constituiu o principal das iniciativas.

A flexibilização dos programas escolares

A divisão da escola em dois períodos e o enriquecimento dos programas do quarto e quinto anos acompanharam a revisão dos processos de classificação e promoção dos alunos propiciando, de par com os conhecimentos fundamentais e ainda na escola elementar, uma iniciação em ciência, história das civilizações, desenho e artes. Tal sistema de especialização foi assemelhado ao praticado no ensino secundário, com a diferença que no período intermediário as diferentes disciplinas compunham-se em grupos de matérias. Assim, o ensino de linguagem e matemática ficou a cargo de uma mesma professora, designada como professora do ensino fundamental, enquanto as professoras de ciências, ciências sociais, de educação física e recreação, de música e de desenho e artes industriais representaram as especialidades dos programas escolares. Ainda que a maior parte das escolas elementares não tenha funcionado dessa maneira em 1934, a orientação, em princípio, indicou os parâmetros da flexibilização dos programas escolares, as variações e as possibilidades que, no Departamento de Educação, pensava-se exigir as escolas populares para todos5 5 Conforme avaliou o próprio Anísio Teixeira (1935, p. 91) . Estão de acordo os depoimentos de Juracy Silveira - Alguns aspectos da reforma Anísio Teixeira, no Rio de Janeiro, em Jayme Abreu, Anísio Teixeira:pensamento e ação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960, p. 195 - e Antônio Carneiro Leão - Tendências e diretrizes da escola secundária, Rio de Janeiro: Rodrigues & Cia, p. 228-230 - que perceberam na oferta de um currículo capaz de propiciar a participação responsável e lúcida de cada indivíduo em todas as áreas do saber humano um ganho social para a organização escolar da capital do país. .

Como proposta de oferecer a todos os alunos uma educação adequada aos limites da sua capacidade individual, vingou a ideia de exigir, para a promoção de cada um deles, aquilo que em média a sua classe poderia fazer. Cada classe de alunos obedeceu a um programa com critérios diversos de promoção, foi submetida a exigências proporcionais a que sua capacidade viesse a determinar. Aos professores a administração deu oportunidade de se especializarem numa área do ensino e, mais que encarregá-los da observação dos progressos de cada um dos seus alunos, os responsabilizou pelos registros do aproveitamento dos alunos, dos seus hábitos de estudo, do seu ajustamento à vida escolar e da sua atitude para com o trabalho em classe. Perante os diversos critérios de promoção para uma mesma série escolar, foram todas atribuições para satisfazer uma visão mais delicada do progresso dos alunos. Na concepção de Anísio Teixeira (1935)TEIXEIRA, Anísio. Educação publica: administração e desenvolvimento Relatório do Director Geral do Departamento de Educação do Districto Federal - dezembro de 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935., tratava-se de um regime em que se aferia não por um critério objetivo e estranho aos alunos, mas de acordo com a capacidade de cada um. Nessa perspectiva, o indivíduo não só participou de gradações heterogêneas em todo o processo de classificação, mas foi a principal referência da atuação docente na classe, a unidade fundamental do ensino em massa. Entretanto, muito do que Anísio Teixeira afirmou fazer para viabilizar as tarefas do professorado contribuiu, sobretudo, para reconfigurar as práticas de separação da escola pública.

Repetidas vezes Anísio Teixeira descreveu a escola elementar como um instrumento de seleção dos alunos mais capazes, uma instituição que historicamente visou a recrutar os mais capazes de continuar a carreira de estudos. Ainda que tenha reconhecido essa função da escola primária como legítima, jamais admitiu os privilégios dos grupos selecionados para aprender (Teixeira, 1935TEIXEIRA, Anísio. Educação publica: administração e desenvolvimento Relatório do Director Geral do Departamento de Educação do Districto Federal - dezembro de 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935.;1936TEIXEIRA, Anísio. Educação para a democracia: introdução à administração educacional. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1936.). Anísio Teixeira importou-se em combater a indiferença vigente nas escolas com a ineficiência do ensino para os que viessem a fracassar. As críticas que então construiu acerca dos critérios de rendimento do sistema escolar fizeram da reprovação um índice contraproducente. Em vez de índice da qualidade seletiva do ensino, entendeu a reprovação como medida "do fracasso da instituição de preparo fundamental dos cidadãos, homens e mulheres para a vida comum" (Teixeira, 1936, p. 142TEIXEIRA, Anísio. Educação para a democracia: introdução à administração educacional. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1936.).

Tamanha guinada de compreensão suscitou problemas para os quais o Departamento de Educação encontrou como solução satisfatória o escalonamento dos critérios de promoção. À classificação uniforme e rígida dos alunos, de acordo com exigências de aproveitamento predeterminadas, a administração pública do ensino opôs categorias flexíveis de verificação da capacidade de cada um progredir na escola. Tanto no enfoque, quanto na ênfase da distância entre os dois processos de organização das classes, a Divisão de Classificação e Promoção representou o poder de modificar a realidade dos inquéritos e estatísticas. Foi por onde a ambição de atender melhor as diferenças individuais tornou a distribuição dos alunos uma ação efetiva de controle do rendimento escolar, de cada um e do todo. Na fórmula que, entre 1933 e 1935, determinou a formação das classes na cidade do Rio de Janeiro, osregulamentos de distribuição prevaleceram sobre as funções seletivas da escola.

Mais que preparar o quadro intelectual do país ou suas elites profissionais, interessou a administração geral do ensino fazer da educação pública um meio para redistribuir, não parte, mas toda a população escolar pelas diversas ocupações e meios de vida em que se repartiam as atividades humanas. No Departamento de Educação do Distrito Federal, Anísio Teixeira (1935, p. 90)TEIXEIRA, Anísio. Educação publica: administração e desenvolvimento Relatório do Director Geral do Departamento de Educação do Districto Federal - dezembro de 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935. tomou a sério a tarefa, fazendo maleável os programas e diferenciados os graus de exigência:

A escola devia desenvolver o seu programa até o máximo das suas possibilidades, conservando-lhe, entretanto, a flexibilidade para atender a toda espécie de alunos, fossem quais fossem as suas variedades individuais. Não podia continuar a escola elementar a ser apenas o instrumento de seleção, que em realidade era, dos alunos mais capazes, afim de os conduzir posteriormente aos cursos que se seguissem. Sem perder, possivelmente, essa função, que não é para desprezar, urgia que a escola oferecesse a todos os alunos aquele mínimo de educação que a sua capacidade hereditária viesse a determinar. Com esse novo objetivo, já não era admissível a classificação uniforme e rígida dos alunos de acordo com um grau de aproveitamento anteriormente fixado, o que fazia com que a criança, capaz ou incapaz, ficasse na mesma classe todo o tempo em que não chegasse a apresentar o desenvolvimento determinado. Destinando-se a escola a todos os alunos e sendo todos os alunos profundamente diversos em inteligência e capacidade, a escola devia servir a cada grupo segundo as possibilidades de cada grupo. A classificação e a promoção não podiam ser uniformes como em uma escola seletiva, mas variadas e flexíveis como o exigem as escolas populares, para todos. Grande e laborioso foi o trabalho que se desdobrou para fixar esse novo ponto de vista e, ainda assim, estamos, apenas, no início da tarefa. As regras de classificação que chegamos finalmente a adotar parecem-nos suficientemente amplas e, ao mesmo tempo eficazes para o fim desejado. Em cada ano do curso temos três grandes tipos de alunos que designamos pelas letras V, X, e Y, de acordo com a capacidade de aprendizagem e a inteligência. Cada um desses grupos poderá ser dividido ainda em outros quatro subgrupos, de acordo com a aplicação e ainda outros subgrupos de acordo com a idade cronológica, ou, melhor ainda, idade social.

Em relatório, Anísio Teixeira mostrou assim quais foram as condições que as regras de classificação do Departamento de Educação atenderam. De sua parte, admitiu a otimização do atendimento escolar como uma finalidade do cálculo das possibilidades de inteligência e empenho de cada classe de alunos. Por meio da mudança do regime de promoções do ensino elementar e da variedade e flexibilidade dos seus programas, procurou fazer melhorar o aproveitamento nas escolas públicas da capital. A estandardização e a estatística dos resultados serviram para mensurar o desempenho dos alunos em tais condições. Elas foram uma terceira instância de administração das diferenças escolares das crianças. A validade da organização das classes formadas em 1933 e 1934 envolveu comparação estatística, um cálculo de correlações entre os resultados obtidos antes e depois da mudança dos processos de classificação escolar.

Após as Instruções de 1933, o Departamento de Educação procurou aferir outra vez a qualidade do aproveitamento escolar das crianças. Mediante a reedição dos testes de linguagem e de raciocínio, averiguou novamente os índices de leitura das séries do período primário e os níveis de raciocínio das crianças das duas últimas séries elementares. Desta vez o empreendimento possibilitou não apenas estabelecer parâmetros, mas pô-los em comparação de um ano para outro. Nesse sentido, os testes e os demonstrativos que se seguiram àsInstruções de 1933 registraram um aumento excepcional do rendimento escolar em relação a 1931. Depois de informar sobre os critérios de conversão da escala de notas obtidas nos testes de um ano e outro, o relatório de 1934 manifestou o progresso alcançado:

Linguagem

1º ano - Em 1931, um quarto dos alunos obteve nota de 4 para baixo, enquanto que em 1933 obteve nota de 25 para baixo.

Em 1931, a metade dos alunos obteve nota de 20 para baixo e em 1933 nota de 56 para baixo.

Três quartos dos alunos, em 1931, tiveram nota de 29 para baixo, enquanto que em 1933, de 95 para baixo.

2º ano - Em 1931, um quarto dos alunos obteve nota de 25 para baixo e em 1933 de 39 para baixo.

A metade, em 1931, obteve de 50 para baixo e em 1933 de 63 para baixo.

Três quartos, em 1931, de 67 para baixo e em 1933 de 81 para baixo.

3º ano - Em 1931, um quarto dos alunos obteve nota de 44 para baixo e em 1933 também de 44 para baixo.

A metade de 60 para baixo em 1931 e de 58 para baixo em 1933.

Três quartos, de 73 para baixo em 1931 e de 71 para baixo em 1933.

Matemática

4º ano - A metade dos alunos obteve nota de 17 para baixo em 1931 e nota de 36 para baixo em 1933.

5º ano - A metade dos alunos, em 1931, obteve de 22 para baixo e de 41 para baixo em 1933. (Teixeira, 1935, p. 94)

O resumo desses resultados melhorou a visualização da evolução verificada.

Tabela 5.
Resumo dos resultados dos testes de 1933.

Considerações finais

A eficácia com que Anísio Teixeira usou os índices então apurados deu a medida de verificação do padrão de aprovação do sistema escolar. O diretor do Departamento de Educação valeu-se da diferença dos indicadores obtidos em 1931 e 1933 para sustentar que o aumento das promoções entre 1931 e 1934 não se fez às custas de uma diminuição dos padrões de aprovação. Ao contrário, explicou o bom desempenho das crianças nos inquéritos mais recentes como indicativo do aumento na massa de aprendizagem conseguida pelo aluno (Teixeira, 1935TEIXEIRA, Anísio. Educação publica: administração e desenvolvimento Relatório do Director Geral do Departamento de Educação do Districto Federal - dezembro de 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935.). A partir disso, Anísio Teixeira associou, aos procedimentos de formação das classes adotados, outros fatores de qualificação do ensino público. Sobretudo, sublinhou a atenção que se conseguiu dar às diferenças individuais e às necessidades educativas dos diferentes tipos de alunos. Ainda como consequência, Anísio Teixeira (1935) TEIXEIRA, Anísio. Educação publica: administração e desenvolvimento Relatório do Director Geral do Departamento de Educação do Districto Federal - dezembro de 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935. apostou na redução do atrito entre elementos muito diversos na mesma classe. Também na homogeneidade da classe, na redução do número de repetições e na elevação de nível no ensino de grau intermediário ele viu avanços fundamentados na reclassificação dos alunos nas escolas.

A interpretação que Anísio Teixeira publicou acerca da elaboração estatística dos dados de 1931 e 1933, emprestou prestígio aos critérios por meio dos quais o Departamento de Educação separou e distribuiu a população escolar. Mais que um sistema de classificação, o modo como os resultados foram apresentados e comparados legitimou uma maneira de raciocinar a respeito da relação entre a causalidade e a liberdade das condutas individuais. Sob a estrutura formal das estimativas estatísticas, as informações a respeito do proveito das mudanças efetuadas na escola elementar do Distrito Federal sugeriram como ver todo um domínio de avaliação da organização e da eficiência escolar.

Referências

  • CARNEIRO LEÃO, Antônio. Tendências e diretrizes da escola secundária. Rio de Janeiro: Rodrigues & Cia, 1936.
  • INSTRUÇÕES para a matrícula nas escolas primárias. Boletim de Educação Pública, ano II, n. 3 e 4, Rio de Janeiro, 1933, p.74-76.
  • NUNES, Clarice. A escola reinventa a cidade. In: HERSCHMANN, Micael M.; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder A invenção do Brasil moderno medicina educação e engenharia nos anos 1920-1930. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 180-201.
  • NUNES, Clarice. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Bragança Paulista: Edusf, 2000.
  • NUNES, Clarice. Cultura escolar, modernidade pedagógica e política educacional no espaço urbano carioca. In: HERSCHMANN, Micael; KROPF, Simone; NUNES, Clarice. Os missionários do progresso: médicos, engenheiros e educadores no Rio de Janeiro - 1870-1937. Rio de Janeiro: Diadorim, 1996, p. 155-224.
  • SILVEIRA, Juracy. Alguns aspectos da reforma Anísio Teixeira, no Rio de Janeiro. In: ABREU, Jayme (org). Anísio Teixeira pensamento e ação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960.
  • TEIXEIRA, Anísio. Educação para a democracia: introdução à administração educacional. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1936.
  • TEIXEIRA, Anísio. Educação publica: administração e desenvolvimento Relatório do Director Geral do Departamento de Educação do Districto Federal - dezembro de 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935.
  • 1 Este artigo discute parte dos resultados de pesquisa do meu doutoramento defendido na Universidade de São Paulo, sob o título A estratégia como invenção: as políticas públicas de educação na cidade do Rio de Janeiro entre 1922 e 1935, e incorpora discussões realizadas no âmbito do grupo História da Escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados e no 7º Congresso Brasileiro de História da Educação, realizado em Cuiabá. Vincula-se ao projeto interinstitucional Repetência e evasão na escola brasileira (1890-1930), financiado pelo CNPq.
  • 2 Trata-se de texto sobre quociente de inteligência de alunos do Arquivo Anísio Teixeira, série produção in-telectual, AT S. Ass. pi 18/30.00.00/2, CPDOC/FGV.
  • 3 Conforme publicado em Instruções para a matrícula nas escolas primárias, Boletim de Educação Pública, ano II, n. 3 e 4, Rio de Janeiro, 1933, p. 74-76INSTRUÇÕES para a matrícula nas escolas primárias. Boletim de Educação Pública, ano II, n. 3 e 4, Rio de Janeiro, 1933, p.74-76..
  • 4 Conforme o quadro a que se referem às instruções para a matrícula nas escolas primárias publicado no Boletim de Educação Pública, ano II, n. 3 e 4, Rio de Janeiro, 1933, p.76-86INSTRUÇÕES para a matrícula nas escolas primárias. Boletim de Educação Pública, ano II, n. 3 e 4, Rio de Janeiro, 1933, p.74-76..
  • 5 Conforme avaliou o próprio Anísio Teixeira (1935, p. 91) TEIXEIRA, Anísio. Educação publica: administração e desenvolvimento Relatório do Director Geral do Departamento de Educação do Districto Federal - dezembro de 1934. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica do Departamento de Educação, 1935.. Estão de acordo os depoimentos de Juracy Silveira - Alguns aspectos da reforma Anísio Teixeira, no Rio de Janeiro, em Jayme Abreu, Anísio Teixeira:pensamento e ação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960, p. 195 - e Antônio Carneiro Leão - Tendências e diretrizes da escola secundária, Rio de Janeiro: Rodrigues & Cia, p. 228-230 - que perceberam na oferta de um currículo capaz de propiciar a participação responsável e lúcida de cada indivíduo em todas as áreas do saber humano um ganho social para a organização escolar da capital do país.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2014
  • Aceito
    03 Mar 2015
Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação UFRGS - Faculdade de Educação, Av. Paulo Gama, n. 110 | Sala 610, CEP: 90040-060 - Porto Alegre/RS, Tel.: (51) 33084160 - Santa Maria - RS - Brazil
E-mail: rhe.asphe@gmail.com