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A Sciencia do Bom Homem Ricardo: um texto de leitura escolar no Brasil Imperial1 1 Este trabalho contou com o apoio financeiro do CNPq.

A universalização do processo de ensino e aprendizagem no mundo ocidental, século 18 e 19, centrou-se fundamentalmente na leitura, na escrita e na aritmética. No caso da primeira, a mesma aconteceu, de modo especial, sustentada em textos bíblicos e em manuais de fundo moral. Particularmente estes últimos tiveram especial importância nos períodos históricos de predominância de políticas seculares em que prevaleciam, de forma hegemônica, conteúdos, se não ostensivamente anticlericais, escritos que tentavam impor uma ética e uma moral claramente laicas.

No século 19, no contexto educacional brasileiro, o reconhecimento do que poderíamos designar como livro didático era difuso e, em diversos casos, problemático. Talvez o termo mais adequado fosse textos utilizados para a leitura no espaço escolar. Muitos deles eram usados conforme o desejo e as necessidades do professor.

Embora tenhamos conhecimento do uso de diversos livros de leitura, tais como os produzidos por Abílio Borges, Hilário Ribeiro, Felisberto de Carvalho, entre outros, suas séries graduadas estavam voltadas para o processo de aquisição e domínio da língua, tanto para a leitura, quanto para a escrita.

Contudo, outros livros eram igualmente usados no espaço escolar, como A ciência do bom homem Ricardo de Benjamin Franklin; Tesouro de meninos, de Pedro Blanchard, História de Simão de Nântua ou O mercador de feiras, de Lourenço Pedro de Jussie, obras que tiveram um uso tanto ou maior do que aquelas anteriormente citadas, demonstrando o quanto certos textos, não necessariamente escritos para uso da escola, foram utilizados como suporte no processo de aquisição da leitura. Ademais, o uso desses textos estava vinculado ao processo de introjeção de valores éticos e morais.

No Brasil, são vários os textos com esta última característica. Um deles com difusão em todo o Império foi a obra A sciencia do bom homem Ricardo, elaborada a partir do Almanaque do Pobre Ricardo - Poor Richard's almanacks - publicado anualmente por Benjamin Franklin, com a idade de 26 anos, a partir de 1732 até 1758. O autor usava o pseudônimo de Ricardo Saunders.

É notável a recepção desta obra em todo o mundo ocidental, com tradução em diversos idiomas e com utilização maciça em sala de aula como equipamento para o processo de obtenção da habilidade de leitura. Não há dúvida que a mesma contribuiu decisivamente para a instauração e, mais precisamente, para a consolidação de uma mentalidade capitalista consentânea com as alterações estruturais decorrentes da Revolução Mercantil e da Revolução Industrial, particularmente na Europa e nos Estados Unidos.2 2 Sobre esta questão veja Weber (1983), onde ele faz um detalhado estudo da contribuição de Franklin na constituição da ideologia capitalista.

Esta obra, guardada as devidas proporções, estaria para o capitalismo como o manifesto comunista elaborado por Marx e Engels estaria para o comunismo, no sentido de constituírem-se em um libelo doutrinário, reduzido em um panfleto que sintetizaria comportamentos e atitudes consentâneos com as práticas adequadas aos respectivos sistemas sociais.

A Sciencia do bom homem Ricardo, eivada de preceitos que ressaltavam a poupança, a ascese, o trabalho, a humildade, a obediência, caiu como uma luva na nova sociedade que precisava um instrumento de legitimação doutrinária para uma prática, de certa forma, calcada na desigualdade social e que carecia de mecanismos de introjeção ideológica capazes de explicarem o porquê das diferenciações sociais e, ademais, carecia naturalizar a estratificação social a partir de características pessoais.

Os provérbios, que constituem um dos elementos importantes do Almanaque, não são todos eles de autoria de Franklin, mas muitos recolhidos por ele representam uma vitrine de toda uma concepção de mundo marcada pela emergência dos ideais liberais convenientes para a consolidação do capitalismo ocidental. É importante ter presente que o Almanaque não era composto apenas destes dísticos mas, ao contrário, estes estavam diluídos em uma série de informações, como se tornou a prática deste tipo de publicação. Ele continha informações astrológicas, horários de trens, humor, entretenimento, datas de eclipses, etc., que compunha um produto com forte apelo popular.

Pragmaticamente, A sciencia do bom homem Ricardo enxugou o escrito destes últimos aspectos, constituindo um texto tipicamente de formação. Sob este aspecto, procurava atuar tanto em uma educação continuada no mundo adulto, quanto na formação inicial das crianças, na medida em que era amplamente utilizado em sala de aula nas escolas de séries iniciais.

No formato que circulou pelo mundo a obra A sciencia do bom homem Ricardo constitui-se da introdução do último almanaque elaborado por Benjamin Franklin em 1757 para a edição de 1758 e, por vezes, publicado com o título O modo de fazer fortuna - The way to wealth - ou As falas do pai Abraão - Father Abraham's speech. Em português, de modo geral, foi publicado com o titulo Sciencia do bom homem Ricardo, com o sub-título O caminho da fortuna, como pode ser percebido na edição da Nicolau Alves de 1884.

Figura 1
sciencia do bom homem Ricardo, capa da edição de 1884.

De certa forma, os ditames do Almanak refletem um estudo de caso, que é o do próprio autor, o qual, pelo próprio esforço, ascendeu da pobreza à riqueza. Benjamin Franklin, tipógrafo, filósofo, físico e estadista norte-americano nasceu em Boston em 1706 e morreu na Filadélfia em 1790. Filho de um modesto fabricante de velas iniciou a vida profissional aos dez anos como aprendiz do seu pai e, mais tarde, passou a trabalhar como impressor na tipografia de seu irmão Jayme. Em 1723 visitou Nova York e Filadélfia e passou depois à Inglaterra, onde se aperfeiçoou nesta atividade. Ao regressar aos EUA fundou uma imprensa, a partir da qual criou um jornal e fundou o Almanaque do pobre Ricardo.

Consolidou sua posição de estadista desde o princípio da revolta das colônias da América do Norte, quando foi designado pelos colonos, em 1757, para ir a Londres levar as suas queixas. Ademais, foi ele que, com Jefferson e John Adams, redigiu o manifesto da declaração da independência em 1776.

Chama atenção o efeito que a publicação do Almanaque do pobre Ricardo provocou na vida de Franklin. Em sua autobiografia, o mesmo atesta que esta publicação significou o ponto de virada, que retirou sua família de uma vida de pobreza para a abastança. (Brooks, 1964, p. VII)

De imediato o periódico caiu nas graças da população, particularmente a de menor poder aquisitivo, de modo que com grandes tiragens, para a época, seu autor pode ter um lucro extraordinário. A par deste sucesso econômico, houve reconhecimento social que lhe proporcionou a ascensão a postos sociais de relevância na estrutura colonial norte-americana. Benjamin Franklin se tornou o representante das aspirações dos colonos em relação aos problemas com a Inglaterra.

O almanaque teve a capacidade de atingir, indistintamente, letrados e iletrados, pois, de uma forma ou outra, os ditames preceituados acabavam sendo assimilados pela sociedade inteira. Um aspecto que deve ser salientado é a criatividade de Benjamin Franklin em associar ao texto ilustrações que tornavam a assimilação da mensagem muito mais efetiva.

Como se pode observar nos exemplos reproduzidos na seqüência e publicados, respectivamente, nos almanaques dos anos de 1754 e 1758 e que enfatizam a questão da perda de tempo.

Figura 2.
Representação publicada no Almanaque de 1754.

Figura 3.
Representação publicada no Almanaque de 1758.

Nota-se que o periódico é um libelo ao cidadão que trabalha arduamente, que resiste à ociosidade, que paga seus impostos, que poupa, que é constante na busca dos objetivos propostos, particularmente os vinculados a garantir o sucesso material. Todo este comportamento está consentâneo com a nova concepção de mundo em consolidação no mundo ocidental, à época, a capitalista. O novo homem que se buscava construir, tanto o proletário, quanto o burguês, deviam apresentar-se com estes elementos constitutivos, de modo que a compilação destes procedimentos em um texto destinado para divulgação, poderiam contribuir para a introjeção do perfil de cidadão almejado.

Portanto, nada mais apropriado do que a adoção deste documento como texto de leitura nas escolas de primeiras letras. Particularmente no Brasil, como se tem observado em inúmeros inventários de materiais escolares existentes nas aulas de ensino primário no século 19, a presença do texto elaborado por Benjamin Franklin é muito freqüente.3 3 Sobre isto veja os trabalhos elaborados por Tâmara Regina Reis Sales e Ester Vilas Boas Carvalho do Nascimento (2013; 2014).

Assim, o texto escolar A sciencia do bom homem Ricardo rivalizou com obras como Tesouro de meninos, Compêndio de civilidade, Catecismo de Montpellier, Fábulas de Esopo, Simão de Nantua, entre outros4 4 Sobre textos escolares de leitura veja TAMBARA, Elomar. Trajetórias e natureza do livro didático nas escolas de ensino primário no século 19 no Brasil. Hist. Educ. (Online), v. 6, n. 11, 2002, p. 25-52. , como suporte para a aquisição da leitura e para constituição da mentalidade moral e cívica do novo homem necessário ao estágio de desenvolvimento econômico-social do Império brasileiro. Como podemos identificar, por exemplo, no inventário da escola primária da Vila de Cachoeira no Rio Grande do Sul em meados do século 19:

Relação dos utensílios pertencentes à Escola Publica de Instrução Primaria da Villa de Cachoeira em 31 de dezembro de 1858 Vinte e cinco compêndios de civilidade Dez compêndios de moral Vinte e cinco ditos de doutrina Cinco Tesouro de Meninos Seis Bibliotecas Seis Parnasos Juvenis Vinte Compêndios da Sciencia do Homem Ricardo Doze ditos de Fabulas de Esopo Trinta exemplares para leitura. Rodrigo Alves Ribeiro Professor Público5

Em diversos catálogos essa obra era sucessivamente anunciada, como se pode ver no catálogo da Editora Laemmert, de 18496.

Figura 4.
Anúncio do Livro de B. Franklin no Catálogo da Livraria Universal - 1850.

Pequenas editoras provinciais também anunciavam em seus catálogos a obra de Benjamin Franklin, como se observa no extrato do catálogo da Livraria Americana de 1897.

Figura 5.
Anúncio no catálogo da Livraria Americana - Pelotas, 1897.

É notável também o fato de que apesar de ter sido utilizado em todo território nacional e de ter tido várias edições, é um texto raro. Ao contrário, constitui-se em raridade bibliográfica disputada no mercado de livros usados. De modo que a publicação de uma de suas edições, na revista História da Educação, é uma valiosa contribuição à área da história da educação, particularmente para a história da leitura escolar.7 Assim, publica-se a versão original contida na edição do almanaque de 1758, de modo que os pesquisadores em história da educação possam fazer uma análise da tradução para o português com seus eventuais acréscimos e lacunas.

Referências

  • ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1968.
  • BATISTA, Antônio Augusto Gomes; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira Livros escolares de leitura no Brasil elementos para uma história. Belo Horizonte:Autêntica; Campinas: Mercado das Letras, 2009.
  • BITTENCOURT, Circe. Livro didático e saber escolar (1810-1910). Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
  • BROOKS, Van Wyck. An introduction. In: SAUNDERS, Richard. Poor Richard. The Almanack for the years 1733-1758. Philadelphia. George Macy Companies, 1964. p. VII-XII.
  • NASCIMENTO, Ester V. C. do; SALES, Tâmara R R. O almanaque do bom homem Ricardo: práticas educacionais norte-americanas que circularam no Brasil Oitocentista. Cadernos do Tempo Presente, v. 1, 2014, p.72-85.
  • LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1999.
  • SALES, Tâmara Regina Reis Contribuições do Almanaque do Pobre Ricardo para a história da educação brasileira . SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 27, 2013. Anais ... . Natal: Anpuh, 2013.
  • SAUNDERS, Richard. Poor Richard The almanack for the years 1733-1758. Philadelphia: George Macy Companies, 1964.
  • TAMBARA, Elomar. Trajetórias e natureza do livro didático nas escolas de ensino primário no século 19 no Brasil. Hist. Educ. (Online) . Porto Alegre: Asphe, v. 6, n. 11, 2002, p. 25-52.
  • WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1983.
  • 1 Este trabalho contou com o apoio financeiro do CNPq.
  • 2 Sobre esta questão veja Weber (1983), onde ele faz um detalhado estudo da contribuição de Franklin na constituição da ideologia capitalista.
  • 3 Sobre isto veja os trabalhos elaborados por Tâmara Regina Reis Sales e Ester Vilas Boas Carvalho do Nascimento (2013; 2014).
  • 4 Sobre textos escolares de leitura veja TAMBARA, Elomar. Trajetórias e natureza do livro didático nas escolas de ensino primário no século 19 no Brasil. Hist. Educ. (Online), v. 6, n. 11, 2002, p. 25-52.
  • 5 Elaborado a partir de documento manuscrito do acervo dos autores, descriminando apenas o material utilizado como suporte de leitura escolar.
  • 6 Catalogo dos livros em portuguez publicados e à venda na Livraria Universal dos editores-proprietarios Eduardo e Henrique Laemmert, oferecendo uma variada escolha de obras de instrucção e recreio que se achão tambem à venda nas melhores lojas de livros das Províncias do Brasil. Rio de Janeiro, Typographia Universal de Laemmert, 1849, p. 60.
  • 7 Esta edição está contida em MONTEVERDE, Emilio Achilles. Methodo facílimo para aprender a ler tanto a letra redonda como a manuscripta. Lisboa, Imprensa Nacional, 1878. Exemplar comercializado pela Livraria Americana de Pelotas, RS.
  • 8 Extrahido da obra do sábio Benjamim Franklin, intitulada La science du bom homme Richard.
  • 9 Corresponde ao proverbio portuguez: Se queres ser pobre sem o sentir, mette obreiros, e deita-te a dormir.
  • 10 Os portuguezes dizem: Boa mesa, mau testamento.
  • 11 Em França e alguns outros paizes, podia o credor não só executar, mas até prender o devedor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2014
  • Aceito
    14 Mar 2015
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