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DA LAB SCHOOL DE CHICAGO ÀS ESCOLAS EXPERIMENTAIS DO RIO DE JANEIRO DOS ANOS 1930

FROM LAB SCHOOL OF CHICAGO TO EXPERIMENTAL SCHOOLS OF RIO DE JANEIRO IN 1930 YEARS

DE LAB SCHOLL DE CHICAGO A LAS ESCUELAS EXPERIMENTALES DE RÍO DE JANEIRO EN LOS AÑOS 1930

DU LAB SCHOOL DE CHICAGO AUX ÉCOLES EXPÉRIMENTALES DE RIO DE JANEIRO DES ANNÉES 1930

Resumo

Neste artigo abordam-se as relações entre o processo de expansão escolar e de difusão do conhecimento científico com as modernas formas de socialização e de organização pedagógica da escola. Parte-se de uma reflexão mais ampla sobre o sentido da instituição escolar e suas relações com a vida moderna e com o modelo republicano de governo para, em seguida, destacar as expectativas que cercaram a implantação das escolas experimentais no âmbito da Reforma Anísio Teixeira no Distrito Federal (1931-1935), em sintonia com o pragmatismo do filósofo norte- americano John Dewey (1859-1952). Adiante, ensaia-se uma interpretação sobre os modos de apropriação da pedagogia de Dewey no projeto das escolas experimentais.

Palavras-chave:
escola nova; pragmatismo; escolas experimentais

Abstract

The article focuses on the relationships between the process of public schools expansion, the scientific knowledge diffusion and the modern ways of socialization and pedagogical school organization. It is based on a reflection about the meaning of school as an institution and its links with modern life and the republican way of governance. At first, highlights the expectations with the experimental schools created during Anisio Teixeira's administration in Educational Department of Federal District - Brazil (1931-1935) in dialogue with the pragmatic though of American philosopher John Dewey (1859-1952). After, presents an interpretation about its influence in the experimental schools project.

Key-words:
new educational movement; pragmatism; experimental schools

Resumen

El artículo trata de las relaciones entre el proceso de expansión escolar y de la difusión del conocimiento científico con las modernas formas de socialización y de organización pedagógica escolar. Parte de una reflexión más amplia del significado de la institución escolar y sus relaciones con la vida moderna y con el modelo republicano de gobierno. Para luego destacar las expectativas en torno a la introducción de escuelas experimentales en el ámbito de la Reforma Anísio Teixeira en Distrito Federal (1931-1935), en sintonía con el pragmatismo del filósofo norteamericano John Dewey (1859-1952). Adelante, ensaya una interpretación a cerca de la apropiación de la pedagogía de Dewey en el proyecto de las escuelas experimentales.

Palabras-clave:
escuela nueva; pragmatismo; escuelas experimentales

Résumé

Cet article traite de la relation entre le processus d'expansion scolaire et de la diffusion des connaissances scientifiques en regard avec les formes modernes de la socialisation et de l'organisation pédagogique de l'école. Au départ, il vient d´une ample réflexion sur le sens de l'école comme institution et de ses relations avec la vie moderne et le modèle républicain de gouvernement pour mettre en évidence les attentes qui ont entouré la mise en place d´écoles expérimentales dans le cadre de la Réforme Anísio Teixeira dans le District Fédéral brésilien (1931-1935) , en accord avec le pragmatisme du philosophe nord-américain John Dewey (1859-1952). Plus loin, il tente une interprétation sur les moyens d'appropriation de la pédagogie de Dewey dans la conception d´écoles expérimentales .

Mots-clé:
éducation nouvelle; pragmatisme; écoles expérimentales

Instituição que se consolidou como instância de difusão dos conhecimentos científicos e de uma mentalidade racional, a escola buscou atender à necessidade de se promover a incorporação dos ideais de civilização dos costumes, com vistas a garantir um tipo de sociabilidade reivindicado pela vida urbana, marcada pelo autocontrole das emoções e pelo respeito a normas hierarquizadas de convivência social. Tal construção histórica também atendeu a fins políticos, contribuindo para criar sentimentos cívicos e patrióticos e, por outro lado, dar a conhecer os contornos geográficos e administrativos, políticos e jurídicos, linguísticos e culturais, indispensáveis ao projeto de conformação dos Estados nacionais modernos e à constituição da República como forma de governo.

Por divulgar o conhecimento e cultivar o sentimento de pertencimento a comunidades unidas em torno de uma identidade nacional própria, a escola, portanto, assumiu um duplo sentido. No Brasil e em outros países da América e da Europa Ocidental as elites políticas e intelectuais de fins do século 19 e início do 20 passaram a definir a escola como um instrumento útil na luta contra a ignorância do povo analfabeto - desconhecedor dos signos de leitura e escrita, das leis, deveres e direitos que regem as chamadas sociedades democráticas, bem como dominados por um tipo de pensamento místico, supostamente distante do acesso à razão e informação científica e, por isso mesmo, incapaz de cultivar hábitos de comportamento considerados saudáveis. Na visão destas elites a ignorância do povo também afetava, sobremaneira, o desenvolvimento econômico, razões pelas quais estas vão se envolver em movimentos pela expansão da escolarização.

A generalização dos grupos escolares pelo território nacional forneceu as bases materiais e simbólicas do projeto republicano de modernização do país pela educação do povo. Foi com o advento da República que se concretizou um amplo programa de construções escolares como decorrência das reformas educacionais nos Estados, culminando com a criação do Ministério da Educação e Saúde, em 1931. Nesse período, educadores como Anísio Teixeira (1997TEIXEIRA, Anísio. Educação para a democracia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.) definiram a escola como máquina de se fazer democracia, concebendo-a como instrumento de difusão de uma mentalidade científica e racional e meio de concretização de uma experiência de vida baseada na participação ativa e coletiva dos alunos, tendo como guia a orientação do professor. Logo, na visão deste educador seria função precípua da escola e papel do professor formar cidadãos capazes de reproduzir, na vida adulta, a experiência republicana e democrática vivida na escola. É nesse contexto que a reforma dirigida por Teixeira no Distrito Federal buscou por em prática o experimentalismo proposto por Dewey, nos EUA, na virada do século 19 para o 20.

O empenho por captar os termos em que se processou o diálogo com o pragmatismo de Dewey se inscreve numa perspectiva de análise que centra o foco nos fenômenos de circulação e apropriação de ideias e práticas difundidas a partir de modelos consagrados, com atenção para os procedimentos de negociação e de apropriação, assim como de adaptação que acabam por submeter as diretrizes modelares de uma perspectiva ou projeto mais amplo às lógicas particulares de quem delas se aproximam, conforme nos ensinou Revel (1998REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.). Desse modo, o que iremos identificar como presença de Dewey nas políticas educacionais levadas a efeito no Brasil, na verdade, vai tratar da influência plausível, reinterpretada e adaptada à realidade brasileira, em um contexto específico, conforme já assinalamos.

Inicialmente procederemos a uma breve exposição sobre as linhas gerais da teoria tal como descrita no documento intitulado The theory of Chicago experiment. Nessa direção pretendemos analisar dois níveis de circulação e apropriação do ideário de Dewey: a presença de seus pressupostos teóricos e filosóficos em projetos pedagógicos experimentais e as respostas de uma aluna ao projeto da escola experimental Manoel Bomfim, por meio do seu diário, já estudado por José Gledison da Rocha Pinheiro (2015PINHEIRO, José Gledison Rocha. O diário de Dalila: poética, testemunho e tragédia na formação escolanovista do indivíduo moderno (1933-1934). João Pessoa: UFPB, 2015. 293f. Tese (doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal da Paraíba.).

As denominações escolas experimentais, mais utilizadas entre nós nos anos 1930 ou escolas laboratório, que compunham o léxico dos anos 1950-60, justificam a ideia que as embasava, tendo em vista que ali seriam organizados centros de estudos para difusão e avaliação de métodos experimentais de ensino. No que tange à organização do trabalho pedagógico articulavam-se, no interior destas escolas, as atividades didáticas propriamente ditas, a observação e experimentação teórico-empírica, o debate intelectual e a permanente avaliação e reconstrução da prática docente, indicando que a capacitação do magistério deveria ser um processo contínuo e ininterrupto, articulando, permanentemente, as teorias científicas e as práticas pedagógicas.

Presença de Dewey na reforma Anísio Teixeira

Este tópico destaca a experiência da Laboratory School da Universidade de Chicago, criada por John Dewey em 1896, e procura sublinhar a presença deste ideário na gestão de Anísio Teixeira na Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal. Para compreendermos as formas de apropriação do legado intelectual de Dewey no âmbito das políticas educacionais brasileiras torna-se necessário conhecer a contribuição do educador norte-americano à pesquisa educacional por meio da Escola Laboratório de Chicago. O que iremos identificar como a presença de Dewey nas políticas educacionais levadas a efeito no Brasil, na verdade, vai tratar de sua influência parcial, reinterpretada e adaptada à realidade local.

Do ponto de vista educacional a centralidade da criação das chamadas escolas experimentais na cidade do Rio de Janeiro correspondem, nitidamente, à perspectiva defendida por Dewey em uma das mais interessantes de suas teorias para o interesse da educação, em particular àquela que ele chamou The theory of the Chicago experiment.1 1 Este é o título que introduz o depoimento concedido por Dewey a Katherine Mayhew e Anna Edwards, autoras do livro The Dewey school: the laboratory school of the University of Chicago (1896-1903), relativo à escola laboratório que funcionou junto àquela Universidade como um campo de experimentação do Departamento de Pedagogia, dirigido pelo próprio Dewey, entre 1894 e 1904. Ver Moreira (2002). No depoimento que apresentou sobre a criação Escola Laboratório como um centro de observação, demonstração e experimentação da Universidade de Chicago, John Dewey ressaltou as oportunidades abertas à época pelo fato dos departamentos de Filosofia, Psicologia e Educação se encontrarem sob uma mesma direção.

A respeito do plano de organização ele se empenhou na definição filosófica da questão educacional, remetendo-a a necessidade de harmonizar a formação do indivíduo com os fins e os valores sociais. A perspectiva presente no projeto da escola laboratório se contrapunha à preocupação exacerbada com o desenvolvimento individual, bem como às expectativas dominantes que imputavam à escola a meta de promover o sucesso econômico como se este fosse o único fim da vida social.

Na teoria da escola laboratório a escola era concebida como uma forma orgânica de vida comunitária. Para Dewey só se poderia preparar a criança para a vida social se ela mesma se formasse em um ambiente de intercâmbio e de cooperação, aprendendo e compartilhando seus conhecimentos. Para tanto, se procurou superar a separação entre conhecimento teórico e atividade prática, levando a que o conhecimento escolar e a vida social estivessem articulados na elaboração dos problemas a partir dos quais a escola deveria planejar a seleção de conteúdos a serem ensinados, bem como definir as atividades didáticas a serem desenvolvidas em cooperação, pelos adultos e pelas crianças. Em resumo, ele propugnava o uso criativo da cultura dos indivíduos com o empenho por encontrar respostas racionais - poderíamos dizer de caráter científico -, alcançando, progressivamente, o aprendizado a respeito de seus próprios poderes e propósitos em relação e interação com a vida social.

A proposta pedagógica da Lab School de Chicago configurou um modelo de educação escolar conveniente ao projeto de reconstrução educacional / nacional do Brasil dos anos 1930, visando a afirmação de uma sociedade democrática entre nós. Conforme explica Marcus Vinícius da Cunha (2001CUNHA, Marcus Vinícius da. John Dewey e o pensamento educacional brasileiro: a centralidade da noção de movimento. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro: Anped, n. 17, 2001, 17, 2001, p. 86-99., p. 89), no livro Democracia e educação, Dewey atribui aos educadores a responsabilidade de utilizar a ciência para modificar atitudes e hábitos de pensamento pouco adequados ao projeto de construção da sociedade democrática.

Nesse sentido, a ideia de movimento, em oposição a uma pedagogia estática, tradicional ou conservadora, está presente, tanto no pensamento de Dewey, quanto no ideário dos educadores brasileiros filiados ao movimento da Escola Nova. Não por acaso, Anísio Teixeira defendeu uma educação científica associada à adoção de métodos pedagógicos ativos, alertando que a formação de atitudes racionais e de relações mais igualitárias na escola, e por meio desta, eram cruciais para o avanço da democracia, ainda que não fossem suficientes para mudar a face do país. Para eles tratava-se de superar o pensamento místico do povo brasileiro e as atitudes românticas e alienadas da realidade social, assim como a cultura de improviso associada aos laços patrimoniais que marcavam as relações políticas em geral. Isto se apresentou como uma grande tarefa para homens de letras e de ações como Anísio Teixeira e Artur Ramos. Intervindo por meio da educação escolar eles esperavam equipar as novas gerações de brasileiros com os instrumentos da razão e da ciência, como demonstraremos adiante.

A concepção de escola que então se configurava teve como base a articulação entre interesse e experiência mobilizados na organização cooperativa em busca do conhecimento, o que, na visão do autor, promoveria a utilização racional da intuição, ou seja, o uso da inteligência na formação de hábitos que estariam na base da condução da vida individual e na busca de soluções para os problemas da vida social. Assim, por meio da reconstrução da experiência do aluno - em fluxo na vida social, mas também e inclusive, na vida escolar - se chegaria à educação progressiva, criando-se condições para a permanente reconstrução da sociedade democrática. Os professores da Escola Laboratório tinham como procedimento a elaboração de relatórios semanais das atividades desenvolvidas na escola, nos quais eram descritos os passos e avaliados os encaminhamentos adequados, configurando uma noção bastante particular do planejamento didático.

Nesse contexto, o planejamento deveria corresponder a um processo contínuo de orientação e de correção de rumos, aberto à incorporação de mudanças, seja no que tange aos objetivos, seja no que se refere ao desenvolvimento das atividades. Nesse aspecto, o contraste com uma preparação prévia para todo o ano, com a fixação de objetivos e metas definidos a priori é gritante. João Roberto Moreira (2002MOREIRA, Carlos Otávio Fiúza. Entre o indivíduo e a sociedade: um estudo da filosofia da educação de John Dewey. Bragança Paulista: USF, 2002.) nos oferece uma interessante chave de interpretação do papel atribuído aos professores na estrutura da Escola Laboratório. Segundo o autor, Dewey teria enfrentado o dilema de dimensionar a liberdade e a responsabilidade dos professores na seleção dos conteúdos e na definição dos métodos para o seu ensino, vislumbrando duas possibilidades: pender pela autonomia profissional ou centrar o foco na liberdade intelectual dos professores. Conforme distingue Tanner (apud Moreira, 2002), a autonomia profissional leva a que cada professor seguisse o seu caminho, enquanto que a liberdade intelectual se remete ao uso da criatividade no desenvolvimento de um projeto, associando independência intelectual e responsabilidade profissional.

Para além da reconstrução da escola propugnado por esta teoria e, por meio dela, da própria vida social, o interesse da Escola Laboratório se associa ao desenvolvimento e fortalecimento da pesquisa empírica possibilitada pela observação in loco das possibilidades de organização curricular, dos processos de desenvolvimento cognitivo dos alunos, bem como dos padrões de comportamentos individual e coletivo.

Articulada ao movimento da Escola Nova, a reforma educacional, promovida por Anísio Teixeira na cidade do Rio de Janeiro, representa a continuidade dos primeiros esforços de modernização do sistema de ensino da Prefeitura na antiga capital da República, contemplando as demandas de racionalização do aparato político administrativo da cidade e o imperativo de extensão da escolarização popular. A reforma buscou articular todos os níveis de ensino, desde a escola primária até a educação superior, com destaque para a formação de professores. Para tanto, a organização administrativa da Secretaria Geral de Educação e Cultura estabeleceu sete divisões que abarcavam a ambição de integrar os diversos níveis e modalidades de ensino, bem como promover a pretendida renovação dos programas e métodos pedagógicos. Merecem destaque a organização do Instituto de Pesquisa Educacionais e a criação das escolas experimentais, espaços que oportunizaram os estudos sobre as práticas educacionais em curso nas escolas da cidade. De acordo com o relato de Juracy Silveira (1960SILVEIRA, Juracy. Alguns aspectos da reforma Anísio Teixeira no Rio de Janeiro. In: ABREU, Jayme et al. Anísio Teixeira: pensamento e ação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960, p. 191-209.), o Instituto de Pesquisas Educacionais inaugurou uma política que se tornou a espinha dorsal de todo um conjunto de iniciativas, dentre as quais se destacam a Seção de Ortofrenia e Higiene Mental, ao lado das instituições complementares da escola tais como museus escolares, bibliotecas e radiodifusão (Silveira, 1960).

No livreto intitulado Família e escola, da coleção de divulgação científica da Prefeitura do Distrito Federal, fica claro o objetivo do Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental - Sohm -, criado por Teixeira, em 1933TEIXEIRA, Anísio. Educação progressiva: uma introdução á philosophia da educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933., e chefiado por Artur Ramos, a partir de 1934RAMOS, Arthur. A família e a escola: conselhos de higiene mental aos pais. Rio de Janeiro: Departamento de Educação do Distrito Federal, 1934. :

Um verdadeiro trabalho de higiene mental visa prevenir a eclosão de desvios mentais na criança com defeitos de caráter, conservar e orientar a criança normal e corrigir a criança mal-ajustada. Prevenindo e orientando, porém, a higiene mental sai do âmbito das escolas e penetra largamente nos lares e na vida social. É um verdadeiro deslocamento do seu eixo de ação - do problema do tratamento para o da prevenção e orientação. (Ramos, 1934RAMOS, Arthur. A família e a escola: conselhos de higiene mental aos pais. Rio de Janeiro: Departamento de Educação do Distrito Federal, 1934. , p. 7)

Ficam claras as expectativas do Sohm, sobretudo quando se leva em conta o significado da palavra 'deslocamento' no contexto acima. Quer dizer, a higiene mental teria um caráter mais preventivo que curativo em relação ao surgimento dos desajustamentos e da eclosão de doenças mentais; daí seu interesse se voltar para as famílias e as crianças em idade pré-escolar. Não que a higiene mental abandone a ação sobre os alunos mais velhos, especificamente as crianças difíceis ou problema, como se referia Ramos. Na verdade, o Sohm continuaria dando apoio à escola, mas esse apoio era apenas parte de uma ação mais ampla, já que sua ação extrapolava os muros da escola.

Ao se referir à atuação do serviço em sua obra O negro brasileiro (1934), Ramos fez uma importante revelação sobre os setores socioculturais alvos do novo serviço: "pus-me a estudar a população proletária dos morros do Rio de Janeiro e por aí, progressivamente penetrei no recôndito das macumbas e dos centros de feitiçaria" (Ramos, 2007 [1934], p. 743). Apoiado em Lévy- Bruhl, o autor argumenta que era preciso atuar sobre as chamadas "representações coletivas" do pensamento pré-lógico, típicas de determinadas culturas "atrasadas" ou de pessoas em situações especiais. Fazem parte desses "grandes grupos pré-lógicos: selvagens, crianças, adultos em determinadas condições: poesia, mito, sonho, nevrose, psicose." (Ramos, 1934, p. 12). Para Ramos, diante dessa realidade e sem uma intervenção higienista, o projeto educacional defedido fracassaria. A nosso ver, na prática, o Sohm funcionaria como uma espécie de órgão de prevenção e enfrentamento de possíveis resistências ao projeto escolanovista.

Em carta enviada por Anísio a Ramos, em 1939, ele não poupa elogios ao seu colaborador, afirmando que o Sohm agiu como um "ladrão no meio da noite", para, assim, realizar um verdadeiro "ensaio de educação moral científica2 2 Para maiores detalhes ver Pinheiro (2015). " (Teixeira, 2005, p. 15). Da mesma forma que Ramos, mas com outros argumentos, o importante para Anísio era fazer com que o pensamento lógico-racional avançasse, o que significava superar a moral tradicional, rompendo de um modo geral com os costumes, os hábitos, as tradições (Teixeira, 1934).

As escolas experimentais, criadas pela Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal, foram em número de cinco: Escola Bárbara Otoni, a Escola Manuel Bonfim, e as escolas Argentina, Estados Unidos e México. O percurso dessas escolas não foi longo, na medida em que a continuidade do projeto necessitava da permanência de uma política que o apoiasse ou, na pior das hipóteses, que não considerasse tais escolas negativamente, como focos de divergência do padrão oficial de organização escolar. Portanto, o experimentalismo não sobreviveu ao Estado Novo e, após a demissão de Anísio Teixeira da Secretaria Geral de Educação e Cultura, em 1936, foram extintas as escolas experimentais.

Cada uma das escolas experimentais implantadas seguia um modelo pedagógico, de acordo com a escolha das equipes gestoras, o que pode ser interpretado como demonstração de liberdade e de gestão descentralizada. Mas isto não quer dizer que não houvesse um cuidadoso controle das atividades escolares em andamento, tanto por parte dos professores sobre os alunos, quanto por parte das equipes gestoras sobre os professores, conforme demonstrou Pinheiro (2015PINHEIRO, José Gledison Rocha. O diário de Dalila: poética, testemunho e tragédia na formação escolanovista do indivíduo moderno (1933-1934). João Pessoa: UFPB, 2015. 293f. Tese (doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal da Paraíba.). Para tanto, tratou-se de vincular a liberdade criativa com o compromisso profissional, traduzido em termos de engajamento social, político e moral. Por meio destes elos buscou-se forjar a adesão dos professores e alunos, em um trabalho pedagógico com forte dimensão modernizadora, seja no que tange às atividades de socialização, seja no que se refere à formação da subjetividade do aluno.

O experimentalismo na Escola Manoel Bonfim

A apropriação de ideias de Dewey no experimentalismo da Escola Manoel Bomfim pode ser percebida a partir de pistas deixadas pelos discursos de Anísio Teixeira (1930, 1933, 1934) e de Alba Canizares Nascimento (1933NASCIMENTO, Alba Cañizares. Pratica de pedagogia social: experiencias de escola-nova: o plano Dalton e os novos sistemas escolares. Ensaio de Educação integral. O metodo na Psicologia. Rio de Janeiro: Typografia Alba, 1933. )3 3 Além de professora de Psicologia e Pedagogia na Escola Normal Wenceslau Braz, convertida em Instituto de Educação por Anísio Teixeira, Nascimento exerceu os cargos, inicialmente, de inspetora e, depois, de superintendente de Educação Pública do Distrito Federal. . Tomando como referência o primeiro é possível notar que a escola experimental é criada como modelo de educação progressiva, caraterizado pela presença de três princípios básicos da vida moderna: espírito científico, industrialismo e democracia. Já aí é possível identificar uma apropriação das ideias de Dewey. Não por acaso é quando Teixeira defendeu a relação entre vida e educação, no bojo das discussões sobre os fundamentos da escola progressiva, que o nome de Dewey é mencionado. É também nesse contexto que emergiu sua representação do que devia ser uma escola experimental: nela a vida seguiria movida pela alegria, diversão, som e riso. Os alunos se movimentariam numa admirável desordem. Animados, estariam sempre conversando, planejando, trabalhando, formando clubes e debatendo tarefas. Tudo que integra a cidade despertaria seu interesse: luz elétrica, linhas de bonde, corpo de bombeiros, correios. A classe seria marcada por uma impressionante mobilização e senso coletivo, sem falar da inusitada aliança entre "recursos technicos dos nossos dias com a imprecisão das capacidades infantis" (Teixeira, 1933, p. 56).

É esse clima de uma vida tipicamente moderna que Teixeira esperava encontrar nas escolas experimentais fundadas no Rio, a partir de 1932. E é por dar conta de toda essa dinamicidade que a teoria de Dewey conseguiria compreender adequadamente a relação entre vida e educação, respondendo, assim, aos desafios da chamada sociedade em permanente mudança. A teoria deweyana era especialmente importante porque conseguia restabelecer, segundo Teixeira, as relações orgânicas entre educação espontânea e educação escolar. Tida como uma atividade singularmente sistemática e complexa, esta apenas retomaria a educação espontânea incorporada diretamente da vida, para então torná-la mais rica e consciente.

Criada em 1932 a Escola Manoel Bomfim ou 2ª Experimental, como era conhecida, só foi instalada em 1933, à rua Conde de Bomfim, no bairro da Tijuca. Região mais afastada do centro da capital, a Tijuca, apesar disso, já tinha características de subcentro da Zona Norte, como bem destaca Villaça (2001VILLAÇA, Flávio. O espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel/Fapesp, 2001.). Na prática isso significava dizer que, em termos de comércio e de serviços, o bairro tinha a mesma importância para a zona Norte que o centro para a zona Sul. Além do futebol e do cinema como formas de lazer, seus moradores dispunham de uma quantidade significativa de instituições de ensino (Oliveira; Aguiar, 2004OLIVEIRA, Lili Rose Cruz; AGUIAR, Nelson. Tijuca, de rua em rua. Rio de Janeiro: Rio, 2004. ). No início da década de 1920 uma parte das ruas do bairro já era pavimentada e algumas calçadas, arborizadas.

Assim, diferente das outras escolas experimentais, a Manoel Bomfim estava situada numa área habitada predominantemente por classes mais abastadas. É claro que parte dos alunos matriculados na escola pertencia a extratos sociais mais populares, alguns até moravam nas casas dos próprios patrões. Outros eram filhos de operários que habitavam próximo das fábricas instaladas na região. Por isso parece ser a luta por hegemonia educacional, pela disputa em torno do modelo de formação do indivíduo moderno brasileiro que explica, pelo menos parcialmente, a criação da 2ª Escola Experimental na privilegiada rua Conde de Bomfim. Não por acaso Xavier (2004XAVIER, Libania Nacif. O manifesto dos pioneiros da educação nova como divisor de águas na história da educação brasileira. In: XAVIER, Maria do Carmo (org.). Manifesto dos pioneiros da educação: um legado educacional em debate. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 21-38.) realça as disputas pelo controle da educação escolar nesse momento, por posições estratégicas no âmbito do Estado, da memória e do imaginário social.

Instalada num palacete alugado pela prefeitura a escola atendia a turmas mistas, de 1º ao 5º ano do ensino primário. A pista para compreender de maneira mais precisa a influência de Dewey em suas práticas está na concepção teórico-metodológica adotada pela escola em caráter experimental. Sobre essa concepção pedagógica Teixeira se limita a afirmar que se tratava do método Dalton. Criado por Helen Parkhurst, na década de 1920, ele foi testado na cidade de Dalton - Georgia, EUA - e era uma espécie de modelo didático de aplicação escolanovista.

Para Alba Nascimento (1933NASCIMENTO, Alba Cañizares. Pratica de pedagogia social: experiencias de escola-nova: o plano Dalton e os novos sistemas escolares. Ensaio de Educação integral. O metodo na Psicologia. Rio de Janeiro: Typografia Alba, 1933. ), superintendente da rede municipal de ensino, o Plano Dalton era um dos mais robustos sistemas de educação renovada, assentado em sólidos princípios de psicologia científica. Criticado por uns e arduamente defendido por tantos outros, o Plano Dalton responderia aos anseios das sociedades mais avançadas: "Dominam hoje os capazes de grandes e continuados esforços. Vencem os corajosos, os habeis, os bem aparelhados pelo saber e pela tecnica, numa palavra, OS FORTES." (Nascimento, 1933, p. 63) Mas esse homem forte, segundo ela, não quer dizer egoísta, que se volta para os próprios interesses. Pelo contrário, a formação daria conta de fazê-lo perceber a importância do senso de coletividade, de vida pública. Daí a importância de Dewey, conforme Nascimento, na defesa que faz da educação democrática, pois, nesta, primaria a solidariedade no lugar da concorrência. Não por acaso, uma das principais marcas do Plano Dalton seria a valorização da liberdade do aluno.

O clima de liberdade seria essencial para a formação da personalidade, por dar lugar às tendências naturais em direção à chamada vitória social (Nascimento, 1933NASCIMENTO, Alba Cañizares. Pratica de pedagogia social: experiencias de escola-nova: o plano Dalton e os novos sistemas escolares. Ensaio de Educação integral. O metodo na Psicologia. Rio de Janeiro: Typografia Alba, 1933. ). Por outro lado, isso não quer dizer que o professor fosse um mestre passivo, argumenta Nascimento (1933), afirmando que ele exerce direção no lugar de autoridade. Em outras palavras, seria o professor quem daria direção às energias individuais dos alunos, de modo a evitar que elas se desviem do caminho natural e assumam, assim, um caráter antissocial.

Teixeira salienta que essa valorização da liberdade opera, nas palavras de Dewey, uma verdadeira revolução copernicana na educação, ao torcer o eixo da escola em direção à criança. Ao mesmo tempo, como a responsabilidade derivaria diretamente da liberdade, segundo Nascimento (1933NASCIMENTO, Alba Cañizares. Pratica de pedagogia social: experiencias de escola-nova: o plano Dalton e os novos sistemas escolares. Ensaio de Educação integral. O metodo na Psicologia. Rio de Janeiro: Typografia Alba, 1933. ) ela devia ser exercitada mediante o envolvimento do aluno em uma série de tarefas, mediante a assinatura de compromissos e contratos. Dewey, mais uma vez, é evocado, pela associação, conforme Nascimento (1933), que faria entre interesse e esforço. Citando-o, novamente, Nascimento (1933) defende que a didática daltoniana valoriza o princípio da educação pelo trabalho, sem se confundir com formação profissional. Importava, em última instância, incentivar no aluno "o interesse pelo trabalho socialmente útil" (1933, p. 86).

Dois instrumentos, nas palavras de Nascimento (1933NASCIMENTO, Alba Cañizares. Pratica de pedagogia social: experiencias de escola-nova: o plano Dalton e os novos sistemas escolares. Ensaio de Educação integral. O metodo na Psicologia. Rio de Janeiro: Typografia Alba, 1933. ), eram a mola mestra da prática de ensino de Dalton: os laboratórios e os livros. Uma reflexão sobre eles ajuda a compreender ainda mais a presença de ideias apropriadas de Dewey na dinâmica escolar da Manoel Bomfim. O laboratório era visto como lugar não de ensino, mas de atividade, de aprendizagem. E apesar de comportar atividades coletivas, ele é tido como o lugar por excelência do trabalho individual. É nele que o aluno exercita o autodesenvolvimento, a autoeducação, a autoinvestigação, o autodidatismo, a autoexperiência, faz trabalhos, realiza consultas, desenvolve experiências (Nascimento, 1933).

A liberdade do aluno é exercitada já na escolha do laboratório e nele o aluno permaneceria pelo tempo que quisesse, segundo Nascimento (1933NASCIMENTO, Alba Cañizares. Pratica de pedagogia social: experiencias de escola-nova: o plano Dalton e os novos sistemas escolares. Ensaio de Educação integral. O metodo na Psicologia. Rio de Janeiro: Typografia Alba, 1933. ). Caso o encontrasse lotado, passaria a frequentar outro livremente. Aos poucos fica claro como a lógica do laboratório tende a ser a lógica do indivíduo, por forçar o aluno a pensar e decidir sozinho. Exercita-se a lógica da autonomia, de modo a fazer o aluno atuar como indivíduo, a fortalecer a forma individual da subjetividade (Pinheiro, 2015PINHEIRO, José Gledison Rocha. O diário de Dalila: poética, testemunho e tragédia na formação escolanovista do indivíduo moderno (1933-1934). João Pessoa: UFPB, 2015. 293f. Tese (doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal da Paraíba.).

E como reagiram os alunos a essa didática inspirada, em alguma medida, no pragmatismo de Dewey? Sem a pretensão de generalizar ou mesmo aprofundar a discussão, vale a pena destacar algumas impressões deixadas por Dalila, que escreveu, na condição de aluna da Escola Manoel Bomfim, um diário4 4 Localizado na Biblioteca Nacional, o diário integra o acervo de Arthur Ramos. É um texto datilografado e se trata do único diário existente neste acervo, ao lado de um vasto material de pesquisa produzido sobre as escolas experimentais durante o período em que Ramos foi chefe do Sohm. Mais detalhes sobre o diário ver Pinheiro (2015). da vida escolar. Em 1933, quando escreveu o diário, Dalila se referiu a pelo menos três laboratórios - Geografia, Matemática e Linguagem - e relatou a dificuldade que teve para lidar com a lógica organizacional deles, já que era forçada a exercitar a todo instante sua capacidade de decidir:

Não sei de maneira alguma dividir meu tempo e isso aborrece-me muito. Quando chego á Escola fico atrapalhada, sem saber para que laboratorio vou, e quanto tempo devo ficar. Conseguindo decidir um laboratorio para ficar, passo o tempo todo pensando para que sala devo ir depois. E assim passo a hora toda, pensando... pensando. (Dalila, diário, 13/06/1933)

Mas até mesmo essas dificuldades eram previstas pelo plano (Nascimento, 1933NASCIMENTO, Alba Cañizares. Pratica de pedagogia social: experiencias de escola-nova: o plano Dalton e os novos sistemas escolares. Ensaio de Educação integral. O metodo na Psicologia. Rio de Janeiro: Typografia Alba, 1933. ). Se o aluno não conseguisse acompanhar o ritmo da turma, a escola lhe recomendaria que frequentasse uma classe de ajustamento. Dalila não chegou a frequentá-la, mas dá notícia da sua existência em sua escola. Temia, no entanto, que um dia chegasse a frequentá-la. Para Dalila, e quem sabe para seus colegas de um modo geral, a "classe de ajustamento" não era bem vista. Numa primeira referência a respeito, ela diz que "foi creada uma classe de ajustamento - é o nosso hospital" (21/06/1933).

É com certa naturalidade que ela se refere à classe como 'nosso hospital'. Porém, esta não é uma representação gratuita, pois, certamente, alguma coisa foi dita aos alunos para que Dalila fizesse esse tipo de associação. A pista sobre o que teria sido dito está nas palavras, provavelmente repassadas por Nascimento (1933NASCIMENTO, Alba Cañizares. Pratica de pedagogia social: experiencias de escola-nova: o plano Dalton e os novos sistemas escolares. Ensaio de Educação integral. O metodo na Psicologia. Rio de Janeiro: Typografia Alba, 1933. ) e reapropriadas por professores, diretora e alunos:

Os alunos que por certo motivo perderam o ritmo, a marcha media dos demais alunos do grupo, são carinhosamente solicitados á chamada sala do ajustment (especie de hospital mental para o residuo sub-normal), onde recebem tratamento adequado até que possam ser reintegrados á liberdade e á autonomia nos laboratorios. (Nascimento, 1933NASCIMENTO, Alba Cañizares. Pratica de pedagogia social: experiencias de escola-nova: o plano Dalton e os novos sistemas escolares. Ensaio de Educação integral. O metodo na Psicologia. Rio de Janeiro: Typografia Alba, 1933. , p. 68)

Como a organização das turmas parecia obedecer a uma lógica rítmico-simétrica (Simmel, 2013SIMMEL, Georg. Filosofia del dinero. Madrid: Capitán Swing, 2013.), o aluno acabava pagando um preço alto, caso não soubesse usufruir da liberdade de que supostamente desfrutava. É importante notar como a linguagem médico-psiquiátrica deixa escapar a força do ideário higienista da época, assim, o atraso do aluno constituiria um desvio de certo padrão de velocidade de aprendizagem, associada, por sua vez, a uma suposta limitação mental.

De qualquer forma, em outro momento do seu diário, ao se referir à professora D. L.5 5 Via de regra os nomes próprios aparecem abreviados e quando se trata de professora ele vem acompanhado do pronome de tratamento dona, daí o uso do "D.". , de Matemática, Dalila tem uma posição menos neutra em relação à classe de ajustamento:

D.L..., tão indiferente de sempre. Explicou-nos tudo o que pedimos; com toda calma e boa vontade. Entristeci-me quando ela disse que quem não fizesse a prova de matematica muito certa, sabado, que vem, iria para o ajustamento, e não seria recebido na sua sala [...] já estou acostumada com ela; ao passo que para a professora de ajustamento, sou uma estranha. Hei de conseguir boa prova, esforçar-me-ei bastante esta semana. (Dalila, diário, 22/07/1933)

Parece que a classe de ajustamento estava mais para castigo do que para prêmio. Pelo menos para Dalila todo esforço era válido para evitar frequentá-la.

Por outro lado, a preocupação em relacionar liberdade com responsabilidade, esforço com trabalho, parece ter feito a escola convencer os alunos a se engajarem num número exagerado de atividades. Não é à toa que Dalila noticia uma enorme quantidade de tarefas nas quais estava envolvida: escrita do diário, clube literário, jornal, clube de saúde, cooperativa, monitoria, asseio das salas, afora as atividades dos laboratórios. Esse tarefismo não deixou de aborrecer um pouco a diarista:

Sou novamente monitora e ainda por cima secretaria! Que massada! Sendo secretaria, tenho que fazer os relatórios (Dalila, diário, 18/07/1933).

Na reunião dos novos membros da cooperativa, (sou tambem secretaria, tenho portanto que fazer as atas, que massada! Já não basta ser do club de Saúde? Ainda bem que o club literario não tenho nado[a?] com as atas, sou presidente). (Dalila, diário, 25/08/1933)

Não resta dúvida que parte dessas atividades era desejada por Dalila. De todo modo, seu aborrecimento faz algum sentido quando se leva em consideração que além das atividades ligadas ao diário, clube literário e de saúde, monitoria, cooperativa, asseio das salas, ela precisa também se dedicar aos trabalhos ligados aos laboratórios, à música, à recreação e aos jogos.

O livro, outro importante instrumento da didática de Dalton, também colaborava, conforme Nascimento (1933NASCIMENTO, Alba Cañizares. Pratica de pedagogia social: experiencias de escola-nova: o plano Dalton e os novos sistemas escolares. Ensaio de Educação integral. O metodo na Psicologia. Rio de Janeiro: Typografia Alba, 1933. ), para exercitar a autonomia e a liberdade discentes, seu autodidatismo. Ele contribuiria para o aluno superar, com mais facilidade, os desafios de seu itinerário experimentalista. Apreciado, o aluno deveria saber consultá-lo e interpretá-lo com destreza e, diferente do ensino chamado tradicional, em que o livro supostamente apenas estimulava o exercício mecânico da memorização, ele estaria atrelado à resolução de problemas, incentivando, por sua vez, outras habilidades cognitivas, como o pensar, o criar, o descobrir (Nascimento, 1933). Ele atenderia, assim, à expectativa de uma aprendizagem socialmente útil, constituindo-se num verdadeiro instrumento de trabalho e de ação (Nascimento, 1933). O ideal é que houvesse uma biblioteca especializada para cada laboratório. Na prática, porém, Dalila deixa entrever que prevaleceu a ideia de uma biblioteca geral, por falta de espaço, talvez.

É nesse contexto que a professora de Linguagem solicitou a Dalila uma conferência sobre a importância do livro para os colegas mais novos, do 1º ano. A incumbência recaiu sobre Dalila porque Dulce sabia de sua paixão pelos livros. Na escola ela presidiu, por um tempo, o clube literário. Mas seu interesse pelos livros ia além daqueles estabelecidos pela escola: ela deseja ser uma poeta, quem sabe uma escritora. Conta que já tinha lido muitos livros quando ingressou na escola Manoel Bomfim e possuía uma predileção especial pela literatura romântica. Nem sempre ela se identificava com os livros indicados pela escola.

Apesar da boa relação com a maioria das professoras, com a diretora e parte das colegas e, apesar de apreciar muito a escola, até mesmo pela oportunidade que ela tinha de exercitar, como diarista, a escrita poética, a experiência de Dalila, como aluna da Manoel Bomfim, foi marcada por importantes conflitos, culminando, inclusive, no abandono da escola, em agosto de 1933. Foge às pretensões deste texto explorar as razões de sua atitude. De qualquer forma, alguns aspectos contribuíram para deteriorar sua relação com a escola. Assim, foi difícil, para ela, saber lidar com a didática de Dalton por não saber equacionar adequadamente as escolhas dos laboratórios com o tempo que deveria permanecer em cada um deles.

O conflito com a professora de Matemática atingiu o auge quando ela viu escrita a expressão deficiência intelectual, ao lado de seu nome, no caderno da professora. Não foi fácil atender às expectativas de racionalização dos sentimentos exigida pela escola, obrigando-a a passar por certos constrangimentos morais, como também foi complicado ter que aturar as críticas ao seu recorrente estado melancólico, suposta herança da educação tradicional. Também não se pode ignorar a pressão exercida pelo clima higienista6 6 De fato, Dalila já estava fora da escola quando foi instalado o Sohm, em janeiro de 1934. Apesar disso, conforme Pinheiro (2015), em 1933 já era intenso o ideário higienista das escolas experimentais. Não por acaso, ao menos institucionalmente, é nesse mesmo ano que é criado o Sohm. Assim, o próprio diário, segundo esse autor, guardaria motivações higienistas. que pretendia combater, conforme Pinheiro (2015PINHEIRO, José Gledison Rocha. O diário de Dalila: poética, testemunho e tragédia na formação escolanovista do indivíduo moderno (1933-1934). João Pessoa: UFPB, 2015. 293f. Tese (doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal da Paraíba.), dentre outras heranças culturais brasileiras, o romantismo, ao qual parecia estar mais ligada Dalila. Nesse sentido, o pragmatismo escolanovista, tal como fora apropriado por Anísio Teixeira, parecia duelar com outros valores culturais.

Considerações finais

Finalizamos com a ressalva de que não se tratou aqui de discutir a presença propriamente dita do pensamento de Dewey nas escolas experimentais, mas de ressaltar certas apropriações que se fez dele para organizar determinadas práticas educacionais. Assim, em diferentes momentos seu nome é citado como referência para fundamentar as propostas de uma educação moderna para o Brasil. Quando se pensa a transformação da escola para acompanhar o dinamismo social, Dewey é mobilizado como pensador capaz de sustentar a importância do que Teixeira chamava de principais diretrizes da vida moderna, como a democracia, o industrialismo e a ciência. Na própria concepção de aprendizagem defendida pelo escolanovismo em curso na Reforma Anísio Teixeira, ele se faz presente, assim como também é requerido para orientar diversos modelos didáticos do escolanovismo, como ficou claro em relação ao Plano Dalton, desenvolvido pela Escola Manoel Bomfim.

O novo conceito de educação moderna, inspirado em Dewey, foi aplicado às escolas experimentais sob o argumento de que, naquele início dos anos 1930, o Distrito Federal já comportava importantes marcas do espírito dinâmico moderno, típico de outros grandes centros urbanos do chamado mundo civilizado. Partindo de uma relação indissociável entre vida, experiência e aprendizagem, Teixeira propôs, apoiado em Dewey, que a educação fosse um permanente processo de reelaboração da experiência vivida espontaneamente. Mas, apesar de esta reconstrução valorizar as habilidades cognitivas do pensamento lógico-racional, do chamado espírito científico, de defender a democracia, a liberdade individual e sua harmonização com o interesse coletivo, de buscar articular escola e práticas sociais, a formação do indivíduo ajustado, autodisciplinado e de hábitos modernos foi marcada por adesões e resistências.

O desejo de formação escolanovista encarnado pelas escolas experimentais não deixava de expressar certa ambiguidade: de um lado, estimulava-se o desenvolvimento do aluno, valorizando amplamente sua liberdade, seu poder decisório; de outro, havia a preocupação de que toda essa energia liberada não resultasse em atitudes antissociais. Além disso, estava em jogo, no caso da atuação higienista, não apenas o cuidado em condenar os castigos sofridos pelas crianças na escola ou na família, sem dúvida um avanço, mas, também, a tentativa de cortar a aliança com determinadas culturas consideras ultrapassadas. É nesse contexto, ao mesmo tempo rico, complexo e contraditório, que se pode inserir, por exemplo, a experiência de Dalila, que amava e ao mesmo tempo resistia à escola em que estudava. Paradoxalmente, a escola que alimentava e oportunizava seu desejo de ser uma escritora ou poetiza era a que instaurava obstáculos a sua imaginação e escrita românticas.

Referências

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  • 1
    Este é o título que introduz o depoimento concedido por Dewey a Katherine Mayhew e Anna Edwards, autoras do livro The Dewey school: the laboratory school of the University of Chicago (1896-1903), relativo à escola laboratório que funcionou junto àquela Universidade como um campo de experimentação do Departamento de Pedagogia, dirigido pelo próprio Dewey, entre 1894 e 1904. Ver Moreira (2002).
  • 2
    Para maiores detalhes ver Pinheiro (2015).
  • 3
    Além de professora de Psicologia e Pedagogia na Escola Normal Wenceslau Braz, convertida em Instituto de Educação por Anísio Teixeira, Nascimento exerceu os cargos, inicialmente, de inspetora e, depois, de superintendente de Educação Pública do Distrito Federal.
  • 4
    Localizado na Biblioteca Nacional, o diário integra o acervo de Arthur Ramos. É um texto datilografado e se trata do único diário existente neste acervo, ao lado de um vasto material de pesquisa produzido sobre as escolas experimentais durante o período em que Ramos foi chefe do Sohm. Mais detalhes sobre o diário ver Pinheiro (2015).
  • 5
    Via de regra os nomes próprios aparecem abreviados e quando se trata de professora ele vem acompanhado do pronome de tratamento dona, daí o uso do "D.".
  • 6
    De fato, Dalila já estava fora da escola quando foi instalado o Sohm, em janeiro de 1934. Apesar disso, conforme Pinheiro (2015), em 1933 já era intenso o ideário higienista das escolas experimentais. Não por acaso, ao menos institucionalmente, é nesse mesmo ano que é criado o Sohm. Assim, o próprio diário, segundo esse autor, guardaria motivações higienistas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2016
  • Aceito
    08 Jul 2016
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