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CARTILHAS E LIVROS DIDÁTICOS NAS ESCOLAS POMERANAS LUTERANAS NO SUL DO RIO GRANDE DO SUL (1900-1940)

SPELLING BOOKS AND TEXTBOOKS IN POMERANIAN LUTHERAN SCHOOLS IN RIO GRANDE DO SUL (1900-1940)

CEBADORES Y LIBROS DE TEXTO EN LAS ESCUELAS POMERANAS LUTERANAS EN EL SUR DEL RIO GRANDE DO SUL (1900-1940)

LES MANUELS SCOLAIRES ET LES METHODES DIDACTIQUES DANS LES ECOLES POMERANIENNES-LUTHERIENNES DANS LE SUD DE L'ETAT DU RIO GRANDE DU SUD (1900-1940)

Resumo

Neste artigo busca-se comparar cartilhas e livros didáticos utilizados em comunidades pomeranas na região meridional do Rio Grande do Sul orientadas pelas seguintes instituições luteranas: Sínodo de Missouri e Sínodo Riograndense. Para entender a demarcação do campo religioso e a instauração das disposições educativo-religiosas foi usado o conceito de campo e de habitus Pierre Bourdieu (2002; 1983). Cabe destacar que o Sínodo Riograndense apostou no uso das suas cartilhas em escolas étnicas fora do seu viés doutrinário, como, por exemplo, nas escolas católicas e nas independentes, a fim de fortalecer o movimento germanista e a formação geral, enquanto o Sínodo de Missouri procurou, pelas cartilhas, o incremento e fortalecimento da doutrina luterana e pouco envolvimento com questões de cunho ideológico.

Palavras-chave:
cartilhas; luteranismo; pomeranos

Abstract

This article aims to compare spelling books and textbooks used in Pomeranian communities in the southern region of Rio Grande do Sul, driven by the following Lutheran institutions: Missouri Synod, Synod of Rio Grande do Sul. As theoretical methodological scope, there has been used the field concept and habitus ruled by Pierre Bourdieu (2002; 1983). It is worth mentioning that the Synod of Rio Grande do Sul had tried using their textbooks in schools outside their ethnic doctrinal bias, such as Catholic and other independent schools, aiming to increase the German Faith Movement with emphasis on general education, while the Missouri Synod sought, through booklets, the increase and strengthening of Lutheran doctrine and little involvement with political issues of Germanity.

Key-words:
spelling books; lutheranism; pomeranians

Resumen

El artículo trata de comparar los libros de texto y cebadores utilizados en las comunidades pomeranas en la región sur del Rio Grande do Sul, guiados por las siguientes instituciones luteranas: Sínodo de Missouri y el Sínodo Riograndense. Como marco teórico y metodológico, se utilizó el concepto de campo y habitus, basado en Pierre Bourdieu (2002; 1983). Cabe señalar que el Sínodo Riograndense respaldado el uso de sus cebadores en las escuelas étnicas fuera de su sesgo doctrinal, como por ejemplo, em el las escuelas católicas y independientes. Esta dirigida a fortalecer el movimiento germanista y la educación general, mientras que el Sínodo de Missouri buscó, a través de los cebadores, el aumento y fortalecimiento de la doctrina luterana y poco involucrado con cuestiones de sellos ideológicos.

Palabras-clave:
cebadores; luteranismo; pomeranos; doctrina; germanismo

Résumé

Cet article cherche à comparer des livrets d'école et des méthodes utilisés dans les communautés poméraniennes de la région méridionale de l'état du Rio Grande du Sud, Brésil, assistées par les institutions luthériennes suivantes: le Synode de Missouri et le Synode Riograndense. Sur le plan théorique et méthodologique, les concepts de champ et de habitus, basés sur Pierre Bourdieu (2002; 1983). Il faut mettre en évidence que,dans les écoles ethniques,le Synode Riograndense a investi dans l'utilisation des manuels scolaires sans compromis doctrinaire, comme exemple, au écoles catholiques et indépendantes, en vue de renforcerle mouvement germaniste et la formation générale. En revanche, le Synode de Missouri a envisagé, à l'aide des manuels scolaires, l'incrément et la consolidation de la doctrine luthériennemettant au deuxième plan les questions idéologiques.

Mots-clé:
manuels; luthéranisme; poméraniens; doctrine; germanisme

Introdução

O objetivo deste artigo é estudar e comparar dois livros didáticos utilizados em comunidades pomeranas na região meridional do Rio Grande do Sul orientadas pelas instituições luteranas Sínodo de Missouri, Sínodo Riograndense e Igrejas independentes. A instituição central pesquisada, porém, é o Sínodo de Missouri, que foi objeto de longo estudo em pesquisas anteriores. Essas cartilhas foram usadas em escolas paroquiais étnicas no Estado do Rio Grande do Sul, especificamente no interior de Canguçu, São Lourenço do Sul e Pelotas. Essas localidades foram colonizadas, majoritariamente, pela etnia pomerana e, a exemplo das outras etnias de descendentes de imigrantes alemães, esteve, quase sempre, presente a prática em fundar escolas ao lado das igrejas para fortalecer o vínculo comunitário religioso.

Como aporte teórico o trabalho está ancorado no conceito de campo e de habitus de Pierre Bourdieu (2002BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro: Uerj, 2002. ; 1983), no sentido de discutir o fortalecimento do campo religioso, pela difusão educacional e pelo material didático, e a constituição do habitus instaurado na inculcação dada pela orientação educativo-religiosa das instituições envolvidas.

Para as instituições luteranas era necessário consolidar um campo religioso e fortalecê-lo, investindo na escola, assim como influenciar o campo familiar dos possíveis fiéis. A consolidação desses campos não se constituiu de forma neutra e aleatória. Fez parte de determinado contexto e espaço social, contando com a participação dos agentes sociais envolvidos neste processo, nesse caso, as instituições luteranas e os seus integrantes, representados, majoritariamente, pela etnia pomerana. Por isso, é preciso perceber que

nos diferentes campos, existe uma correspondência entre as divisões objetivas do mundo social notadamente entre dominantes e dominados- e os princípios de visão e de divisão que os agentes lhe aplicam. [...] A exposição repetida às condições sociais definidas imprime nos indivíduos um conjunto de disposições duráveis e transferíveis, que são a interiorização da realidade externa, das pressões de seu meio social inscritas no organismo. (Bourdieu, 2002BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro: Uerj, 2002. , p. 68)

Qualquer campo apresenta um espaço de lutas e conflitos, mantendo ou modificando interesses que lhe são constituídos. A partir da constituição de um campo acontece interiorização nos indivíduos, disposição em aceitar determinadas práticas. Isso não acontece de forma individualizada, mas relacionada às condições sociais vividas. Essas disposições são denominadas por Bourdieu (1983BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.: p.94) como habitus:

O habitus, sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explícita que funciona como um sistema de esquemas geradores, é gerador de estratégias que podem ser objetivamente afins aos interesses objetivos de seus autores sem terem sido expressamente concebidas para este fim. (Bourdieu, 1983BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983., p. 94)

Nesse estudo o conceito de habitus procura auxiliar o entendimento das práticas religiosas e escolares, influenciadas pelas instituições, a que os grupos vão interiorizando, a partir de determinadas inculcações nas relações sociais. Dessa forma, o habitus interage com o campo que se quer constituir, pois, "os conceitos de habitus e campo são relacionais, no sentido que só podem funcionar um em relação ao outro" (Bourdieu, 2002BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro: Uerj, 2002. , p. 68).

Utilizou-se, ainda, como parâmetro teórico, os conceitos da circulação, da edição e da apropriação das cartilhas embasados em Roger Chartier. A tentativa em compreender as finalidades e objetivos das cartilhas, como esse material auxiliou na formação escolar e como influenciaram a construção do currículo escolar é de especial relevância na discussão desse artigo.

A apropriação de determinado texto é processada de forma diferente, e, frequentemente, é perpassada pela realidade social. As comunidades étnicas pomeranas tiveram, em grande medida, o estímulo da leitura religiosa orientadas pelas instituições luteranas presentes, sendo conduzidas por uma leitura específica, regulada pelo espaço escolar, familiar e religioso. É possível afirmar que, ao compartilhar os mesmos estímulos de leitura, os leitores são circunscritos por determinada tipologia de textos. Por outro lado, ao se apropriar de textos direcionados à realidade comunitária os leitores constituíram formas de fugir deste mecanismo disciplinar, pois "a noção de apropriação torna possível avaliar as diferenças de partilha cultural, na invenção criativa que se encontra no âmago do processo de recepção" (Chartier, 1992CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: Hunt, Lynn. A nova história cultural. São Paulo, 1992, p. 212-237., p. 232).

Nesse sentido, os textos fazem parte de práticas culturais construídas socialmente, que tomam significados diferentes de acordo com a imposição de certa leitura e da forma que se constitui essa apropriação pelos leitores, constituindo-se pela produção, pela circulação e pelo controle dessa prática. Os modos de leitura podem ir da simples maneira de ler até as orientações de condutas e habitus instaurados nos leitores.

Nessa reflexão, Chartier (2002CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 2002.; 1996; 1992) considera um modo específico de pesquisar as práticas de leitura, por vezes difícil a apreensão dessa prática. Pesquisar a constituição histórica do material de leitura, os objetivos desse material ao ser imposto na rede de leitores, identificar a quem se dirige e de que modo ele é editado e produzido são algumas das formas de compreender os processos de leitura e a sua apreensão pelos leitores. Essas questões são fundamentais para entender o processo de circulação de cartilhas e como tais práticas se constituíram: "É o fato de que os textos, quaisquer que sejam, quando são interrogados não mais somente como textos, transmitem uma informação sobre o seu modo de emprego. [...] Há, portanto uma maneira de ler o texto que permite saber o que se quer fazer que o leitor faça" (Chartier, 1996, p 235).

A partir dessa afirmação pode-se compreender que os textos possuem intencionalidade no seu conteúdo, especialmente textos de cunho religioso e educativo. É possível perceber, também, que a leitura não se reafirma pela simples abstração e interpretação solitária e individual. Ela circula e é dirigida a um grupo social que, como outras práticas culturais, são ressignificadas, reinterpretadas e, em muitos casos, fugidias do controle editorial. Ela é circunscrita na apropriação pelo leitor e revela como esta prática se modifica e se constrói.

Mas, de modo geral, as escolas pomeranas, especialmente aquelas relacionadas à instituições religiosas luteranas, buscavam auxílio e apoio em material didático próprio. O material usado precisava ser adaptado à realidade das escolas comunitárias religiosas, também consideradas étnicas. Cabe ressaltar que nessas escolas o ensino era ministrado em língua alemã, a fim de reafirmar o projeto educativo mesclado com a esfera religiosa, muitas vezes entrelaçado com movimento germanista. Por isso, faz-se necessário compreender a produção, circulação e edição das cartilhas e como as instituições se organizavam para atender a comunidade de leitores.

Produção, circulação e edição do material didático

Ao pretender comparar as duas propostas pedagógicas pelas cartilhas é necessário contextualizar as formas de produção, circulação e edição desse material. A contextualização da organização das editoras é relevante na medida em que confundem-se, muitas vezes, com as instituições religiosas, ou seja, as editoras foram reguladas pelos Sínodos.

Diante desse contexto o material didático das escolas orientadas pelos Sínodos foi produzido e posto em circulação por editoras relacionadas com alguma instituição religiosa. O material didático das escolas consideradas étnicas não desapareceu, apesar da perseguição a estes grupos na época da nacionalização.

A preservação do material didático pelo Sínodo Riograndense foi relativamente eficaz, na medida em que a instituição conseguiu resistir à pressão da política estadonovista do governo Vargas. Já o material do Sínodo de Missouri e das igrejas independentes não foi tão preservado institucionalmente. Essas duas instituições não estavam diretamente vinculadas ao movimento germanista na formação religiosa e escolar de seus fiéis, portanto, ocorreu o processo de resistência passiva, ou seja, elas cederam, mais facilmente, à pressão da política do Estado Novo.

Foi possível localizar alguns livros didáticos utilizados nas escolas dos anos 1920 e 1930 somente por entrevistas com pessoas que foram alunos das escolas étnicas neste período. Entretanto, diversos documentos, como periódicos e as atas da comunidade do Sínodo de Missouri, apontam para utilização de livros didáticos na organização escolar da referida instituição.

Deste modo as duas instituições sinodais - Sínodo de Missouri, atual Ielb, e Sínodo Riograndense, representada inicialmente por Rotermund - tiveram a preocupação em editar e publicar cartilhas e livros para garantir a circulação de material didático nas suas escolas. As igrejas de cunho independente usavam material dos sínodos ou os professores desta instituição possuíam material oriundo da Alemanha.

Desde a fundação do Sínodo de Missouri como distrito Sinodal brasileiro em 1904 levantava-se a possibilidade da constituição de uma editora em solo brasileiro. Assim, na década de 1920 foi fundada no Brasil a Casa Publicadora Concórdia, editora responsável por publicações religiosas e por livros didáticos de leitura. O Sínodo mantinha editora nos Estados Unidos, a qual permitia a edição de livros no Brasil. Era a Concórdia Publishing House.

A publicação de recursos didáticos usados nas escolas era valorizada pela instituição. Esse material era escasso e a dificuldade era grande em manter um ensino planificado e organizado. Observa-se, na análise do professor Rehefeldt, como o Sínodo criou sua editora para suprir as carências de livros didáticos e melhorar a organização curricular das escolas:

Outra dificuldade, com a qual tivemos que lutar aqui em nossas escolas desde o princípio, como já observamos no primeiro relatório do Rev.Broders no 'Lutheraner' é a carência de livros próprios para o ensino. Até a poucos anos nós conseguimos quase que todos nossos livros escolares de nossa casa editora de St. Louis, Missouri. Há dois anos (1923) criou-se aqui uma Sociedade de Acionistas (Sociedade por Ações) que tomou a seu especial cuidado a edição de livros apropriados para nossas escolas. Em primeiro lugar foram impressos diversos títulos com a permissão da casa editora norte-americana para assim vender estes livros aqui por um preço aceitável. (Rehefeldt, 1925REHEFELDT, L. C. Unsere Schulen. In: Beer, Otto. 25 Jaher unter dem Sudlichen Kreutz (1900-1925). Porto Alegre: Concórdia, 1925, p. 25-41., p. 75)

Nota-se que no início da missão do Sínodo de Missouri no Brasil, desde as décadas de 1920, a instituição já tinha conseguido organizar e formar a própria editora, a fim de produzir as suas publicações para as escolas. A editora no Brasil não preservou todas as publicações do período aqui estudado, assim como não houve cuidado para a conservação do material. Já em relação ao projeto pedagógico do Sínodo Riograndense, representado, em grande medida pelos livros didáticos editados por Rotermund, foram largamente preservados. A sua utilização foi ampliada nas escolas étnicas, tanto escolas religiosas luteranas, quanto escolas religiosas católicas se valeram deste material.

Os livros didáticos, produzidos por Rotermund, especialmente analisados nos estudos de Kreutz (2001KREUTZ, Lúcio. Um pastor elaborando e imprimindo material didático: desvio de função? ENCONTRO SUL-RIOGRANDENSE DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 7, 2001. Anais ... Pelotas: Asphe, 2001, p. 229-241.; 1994), foram amplamente usados nas escolas paroquiais. Kreutz analisa o papel de Wilhelm Rotermund (1843-1925), pastor do Sínodo Riograndense, que editou várias coleções de cartilhas utilizadas pelas escolas teuto-brasileiras. Segundo Kreutz (2001), Rotermund

é considerado uma das principais lideranças na fundação do Sínodo Riograndense. Costuma ser descrito e lembrado como um pastor que teve muita influência no meio sócio-cultural dos imigrantes. Além destas funções ainda investiu de forma significativa nos livros didáticos. Pergunto: qual teria sido seu objetivo com os livros didáticos? [...] Entendo que o eixo propulsor da sua opção pelos livros didáticos não foi tanto econômica, mas, principalmente, sócio-cultural e religiosa. (p. 230)

Nesse sentido os estudos de livros didáticos editados por Rotermund revelam a acentuação de um projeto pedagógico que visava a privilegiar a realidade do aluno. Os livros de leitura contemplavam histórias e contos que faziam parte das vivências culturais e sociais dos colonos.

Rotermund editou as cartilhas em alemão, mas apresentava textos na língua portuguesa, talvez porque neste contexto a legislação já começava a cercar a escola de imigrantes alemães e também porque os colonos precisavam de um vocabulário em português para ser exercido na realidade econômica e social, constituindo, assim, inserção como cidadão brasileiro. Os livros produzidos por Rotermund foram reeditados repetidas vezes, devido à demanda que possuíam.

As publicações do Sínodo de Missouri no Brasil foram editadas duas décadas depois de sua instalação. Antes dependiam somente das publicações nos Estados Unidos. Mas o Sínodo sentiu a necessidade de publicar livros didáticos no Brasil devido ao crescimento das comunidades e escolas. Também era necessário obter uma relativa autonomia em relação à matriz e produzir material de acordo com a realidade brasileira.

O formato da cartilha do Sínodo de Missouri, num primeiro momento, é similar com a editada por Rotermund. Os títulos das cartilhas contam histórias curtas, outras mais longas, apresentando diferentes níveis. Algumas histórias da cartilha de Rotermund e do Missouri são idênticas. Provavelmente faziam parte da cultura dos imigrantes, mas apresentam sutis diferenças quanto ao projeto de educação na qual estavam inseridas.

A seguir, pretende-se apresentar, de forma geral, a comparação dos livros didáticos: o produzido por Rotermund, representando o Sínodo Riograndense, e pela Casa Publicadora Concórdia, representando o Sínodo de Missouri.

Cartilhas das instituições luteranas: diferenças e aproximações

Pretende-se apresentar a forma e conteúdo das cartilhas, a fim de enumerar comparativamente as diferenças e aproximações.

O formato e o tamanho dos dois livros são apresentados quase de forma idêntica. A organização em diferentes níveis de leitura também é similar. O livro de Rotermund analisado data no ano de 1924. Entretanto, o livro do Sínodo de Missouri não apresenta a data. A partir de um modelo de carta no interior da cartilha infere-se que o livro foi editado em meados da década de 1920.

A escrita dos dois livros, especialmente no prefácio e na apresentação, foi impressa na escrita alemã gótica. A maioria das leituras está escrita na forma do alemão gótico, mas em ambos os livros algumas leituras estão com a escrita em alemão latino. Isso demonstra a necessidade de adaptar as comunidades étnicas à realidade local. Ao mesmo tempo em que se valorizava a escrita gótica, usada na escrita da Bíblia e na maioria dos livros em alemão, era necessário fornecer um suporte da escrita latina, ou seja, a que era usada na realidade brasileira. Segue-se a apresentação das capas e referências dos livros utilizados na análise.

Figura 1
Capa dos livros usados no trabalho: à esquerda livro de Rotermund e à direita contracapa do livro da Casa Publicadora Concórdia.

Uma das diferenças marcantes aparecem no prefácio de ambos os livros. Sabe-se que a produção de livros não acontece de forma neutra. O significado do livro não se instituí apenas pelo seu conteúdo escrito, mas é relevante a forma em que é apresentado. Na primeira folha, orações curtas são publicadas, e, logo em seguida, textos sobre a escola, a família, as brincadeiras de crianças são anunciados. Num nível mais avançado as leituras giram em torno de histórias infantis, contos de fábulas, textos lúdicos, representados por adivinhações e pelas charadas.

É interessante comparar as duas obras para tentar entender a circulação do livro em determinada realidade, pois a apropriação do livro pelos leitores está sendo constantemente construída. Os estudos de Roger Chartier (2002CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 2002.) ajudam a entender esta questão. As suas pesquisas não apontam somente sobre a construção do texto a ser lido, mas, também, a apropriação dos leitores pelos textos:

A apropriação, tal qual nós a entendemos, visa a uma história social dos usos e das interpretações, remetidas ás suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que as constroem. Conceder deste modo, atenção às condições e aos processos que, muito concretamente, determinam as operações de construção do sentido (na relação de leitura, mas em muitas outras também) é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que as inteligências não são desencarnadas e, contra as correntes do pensamento que postulam o universal, que as categorias aparentemente mais invariáveis devem ser construídas na descontinuidade das trajectórias históricas. (Chartier, 2002CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 2002., p. 26)

Com o apoio da análise de Roger Chartier (2002CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 2002.; 1996; 1992) compreende-se que o livro didático destinado às escolas étnicas religiosas estava circunscrito por determinadas condições históricas e sociais. Nessa perspectiva infere-se que pelos livros didáticos pode-se perceber o projeto de educação destas instituições, que apresentam diferenças entre si, mas a demarcação destas variações são consideradas importantes para o entendimento da identidade de cada instituição.

No prefácio pode-se perceber a diferenciação de projeto das instituições religiosas. A fim de análise segue o prefácio da cartilha editada por Rotermund:

Concomitante nesta 3º edição de Rotermund, a cartilha que começa com a escrita em alemão, tem um pequeno lançamento B, que começa com a escrita latina. Foi reiterado o pedido de professores de uma cartilha própria para escolas fora da Alemanha. Foram usadas em especial questões pedagógicas relacionadas com as escolas, que em muitos estados brasileiros foram adaptadas para a realidade local. Nós queremos daqui para o futuro: Lançamento A - começar com a escrita alemã. Lançamento B- começar com a escrita latina. Os dois lançamentos que aqui reunimos são para dois anos de aula e também separamos do 1º ano do 2º ano de aula. Amigos e colaboradores desta cartilha, nossos agradecimentos por utilizar na escola e levarem aos alunos as leituras e exercícios que possam usar na vida escolar. Com exceção da última lição de leitura, nenhuma outra foi modificada.

Percebe-se que não era a primeira edição da cartilha de Rotermund. Havia maior circulação desse livro nas escolas étnicas. Os livros de Rotermund eram utilizados por diferentes instituições escolares e conhecidos pelo grande número de publicação (Kreutz, 2001KREUTZ, Lúcio. Um pastor elaborando e imprimindo material didático: desvio de função? ENCONTRO SUL-RIOGRANDENSE DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 7, 2001. Anais ... Pelotas: Asphe, 2001, p. 229-241.). De imediato visualiza-se a preocupação pedagógica em adaptar a cartilha à realidade local, ou seja, essa experiência precisava ser mantida. Os livros apresentavam-se na escrita alemã gótica, estavam imbuídos de valores morais e religiosos da cultura alemã, mas precisavam mostrar a vida do colono no Brasil. A cartilha de Rotermund é ilustrada por gravuras e textos que comprovam a intenção da adaptação do conteúdo à realidade local.

Figura 2
Conteúdo da Cartilha no ensino da letra "g", na escrita cursiva.

Como se pode visualizar na gravura, o livro menciona o aprendizado do alfabeto na letra gótica cursiva. Nesse caso, o exemplo é o da letra "g". O ensino dessa dificuldade ortográfica é ilustrada pelas paisagens da realidade brasileira, pelos animais, pela vida do campo. Também se contempla a gravura das crianças no meio rural, ora observando aos animais, ora trabalhando na terra. Nessa mesma página, no lado direito, o desenho de moedas brasileiras com o lema da bandeira do Brasil em destaque. As figuras de moedas serviram para o ensino da letra "g". Dinheiro significa Geld em alemão, também se aproveita a página para relacionar outras palavras. No canto inferior direito vê-se um vidro de veneno Gift, com a escrita latina. É interessante notar como a escola deveria estar relacionada ao conhecimento da realidade do colono nestas comunidades. Este conhecimento pedagógico deveria ser socializado, por isso, o investimento na formação daqueles que iriam atuar diretamente na escola. Investia-se, ainda, no intercâmbio dos professores, que, na região de imigração do norte do Estado, reuniram-se em associações tanto católicas como evangélicas.

Em relação à cartilha produzida pelo Sínodo de Missouri algumas diferenças são relevantes nessa análise. Uma das mais marcantes aparece no prefácio:

Antes de qualquer coisa este livro é o primeiro de uma nova série de leitura para as nossas escolas evangélicas luteranas da América do Sul. Com isso integra-se de imediato a cartilha com o primeiro e segundo livro de leitura que existe para o distrito luterano norte americano, parte deste tornou-se e foi aceito como um novo número de leituras curtas adaptadas a própria realidade brasileira. O material de leitura é projetado para dois anos escolares. Junto à seleção, preceito e revisão do material de leitura estivemos nos esforçando para satisfazer o grau de dificuldade das crianças. O material completo recai em três graus, para facilitar a leitura das crianças com dificuldades. No livro, em anexo, estão também alguns pequenos trechos de leitura, os quais adentram na escola superior, com dificuldades aqui e em outros países. Entendemos que a grande ênfase deve ser em que as crianças devem ser ordenadas a assumirem uma visão de vida dentro dos mandamentos da bíblia luterana. Lutero disse: "Em torno da igreja desejamos ter e preservar escolas cristãs. Deus preserva a igreja através da escola." Os jovens se tornarão com o espírito de Deus e santificados para a cristandade se mais cedo possível forem educados e criados em escolas cristãs. Sobre essa exortação nossa igreja reformada se assenta, é desejo vivo do Comitê que este livrinho possa para todos contribuir, para que os luteranos da América do Sul possam construir uma igreja. (Prefácio da cartilha do Sínodo de Missouri)

O prefácio do livro contempla o projeto de educação do Sínodo de Missouri. Pode-se supor que os livros usados pelo Sínodo eram publicados nos Estados Unidos e este livro de leitura foi um dos primeiros a ser usado no Brasil. É interessante notar a preocupação em adaptar o livro à realidade brasileira, enfatizando a necessidade pedagógica em proporcionar a adaptação dos níveis de dificuldade para as crianças. Infere-se, também, que outros livros didáticos haviam sido utilizados nas escolas. Mas diante das experiências das escolas comunitárias religiosas, havia a carência de produzir um livro direcionado para as escolas brasileiras, sem descuidar da parte cristã e doutrinária.

Esse livro não se apresenta como uma cartilha. Ele é um primeiro livro de leitura, começando com leituras bem curtas e, ao longo das páginas, era aumentado o nível de dificuldade. Entretanto, as poucas gravuras que aparecem junto com os textos representam pouco a realidade brasileira, ao contrário do que é enfatizado no livro de Rotermund. As ilustrações são menores e mais raras e não mostram muito da vida dos colonos no Brasil. Porém, apontam para a vida rural, relatando histórias de fábulas de animais e de atividades do campo.

Figura 3
Ilustração da Cartilha do Sínodo de Missouri A criança no cavalinho.

Figura 4
Ilustração da Cartilha do Sínodo de Missouri O sapo e o boi.

Elas apresentam os animais como parte da vida rural. Nota-se que a preocupação com a adaptação do ensino ao contexto não era tão acentuada. Como exemplo, pode-se citar o texto abaixo que mostra a realidade alemã, discorrendo sobre o inverno na Alemanha.

Figura 5
Ilustração da Cartilha do Sínodo de Missouri Inverno na Alemanha.

O texto e a gravura apontam para experiências não vivenciadas pelas crianças que residiam no Brasil, representadas pelas brincadeiras na neve da Alemanha. Apesar de o Sínodo estar instituído nos Estados Unidos o livro, ao abordar esse texto, mantém certa preferência em acentuar a relação com a Alemanha por se considerar um Sínodo que usa a língua alemã. Daí se pode reforçar a necessidade do uso da língua e da questão étnica. Esta relação também se deve ao fato do projeto do Sínodo em valorizar a doutrina luterana, apoiada pelo uso da língua germânica.

No prefácio fica clara a necessidade de educar e ensinar as crianças pela doutrina luterana. É visível a valorização dos ensinamentos luteranos pela cartilha. Apesar de a cartilha de Rotermund ter um caráter religioso com leituras em forma de pequenas orações, não enfatiza a exortação doutrinária luterana e não faz qualquer menção em relação a Lutero. Já o prefácio da cartilha do Missouri remete ao ensinamento luterano, preocupando-se com a educação das crianças e dos jovens no reforço do projeto das escolas ao lado das igrejas. Ao final do prefácio é reafirmado o uso do livro nas escolas para fortalecer o aprendizado doutrinário no espaço escolar e consolidar a instituição religiosa.

O projeto de Lutero sempre foi o de constituir a igreja voltada para a educação universal, ou seja, deveria abranger maior número de crianças na escola. Nos estudos de Walter Altmann (1994ALTMANN, Walter. Lutero e libertação. São Leopoldo, Sinodal e Ática, 1994. ), sobre a trajetória de Lutero, é reforçada a preocupação do teólogo com a educação:

Ademais, Lutero enfatizou a demanda de que o sistema educacional deixasse de ser inacessível para a maioria da população e que sua abrangência fosse maior. Nesse contexto enfatizou mesmo a importância de que os cidadãos financiassem as escolas. Asseverava que seria necessário não apenas que reconhecessem a necessidade da educação própria e dos filhos e filhas, mas também de sustentar economicamente as escolas. [...] Não obstante, esse desafio à cidadania ainda não era fundamental para ele. Ficava sempre na dependência dos pais. Como será exposto mais adiante, Lutero haveria de responsabilizar as autoridades políticas municipais pela criação e manutenção das escolas. (Altmann, 1994ALTMANN, Walter. Lutero e libertação. São Leopoldo, Sinodal e Ática, 1994. , p. 201)

A partir desses estudos percebe-se que o ideário luterano teve, em grande medida, no seu projeto de igreja, a difusão da educação a todos. A escola deveria servir para a educação relacionada com a religião. Inicialmente chama atenção para o compromisso dos pais, ou seja, num auxílio comunitário entre família, igreja e escola. Logo em seguida chama atenção do Estado para responsabilidade educacional. Porém, no processo de formação das escolas étnicas no Brasil as comunidades reunidas em famílias sustentaram as escolas, como no caso do Missouri, ligadas à doutrina religiosa luterana.

Outro aspecto relevante contido na cartilha são as exortações morais que faziam parte deste ideário pedagógico, ressaltadas a partir do exemplo do título 48: "A tarefa de aprender e tomar a lição". O texto, acompanhado de ilustração, revela como as crianças deveriam aproveitar o tempo livre, inclusive, nas férias de verão, como são orientadas a investir na formação religiosa. Essa historia reproduzida, usando personagens infantis, relata que a vizinha Elizabeth, a menina mais velha, auxilia os irmãos Berta e Theodor no trabalho de ensinar e tomar a lição do catecismo, especificamente conteúdos sobre os dez mandamentos e os artigos do Credo:

Berta é muito solícita, ela está estudando o catecismo, os dez mandamentos com a explicação, ela já sabe. Agora ela está estudando o 2º artigo da confissão. Ela está naquela explicação de Lutero: Eu creio que Jesus Cristo, verdadeiro Deus criado não gerado...e assim por diante. Deve ser decorado. Esta frase comprida na língua alemão é a mais bonita. Berta não deixa de ler até decorar. E que Deus dê a graça em colocar em nossas mentes, mas também em nossos corações. Após os irmãos ter aprendido a Palavra de Deus como se espera de crianças educadas e cristãs (Cartilha Do Sìnodo De Missouri, p. 59)

A mensagem do texto a partir de pequenas historietas fazia parte de um projeto educacional que visava ao controle da conduta. Mesmo em casa, nas horas de descanso, nas férias era necessário não descuidar da parte espiritual e doutrinária. O aprendizado do catecismo e da Bíblia não deveria visar somente ao conhecimento, era necessário ser inculcado nos corações, ou seja, o grupo precisava estar imbuído dessas práticas.

Percebe-se como o livro era usado em favor da divulgação de práticas religiosas e na inculcação do habitus que privilegiasse a cultura religiosa calcada na cultura alemã luterana. Havia necessidade de controle das crianças na vida doméstica, no convívio com a família e nas horas de lazer.

A partir desse texto, ainda reforçado pelos depoimentos encontrados, era grande a valorização no currículo o conhecimento da religião, em seguida, de acordo com a graduação de importância dada pela instituição, viriam os outros conteúdos, que também tinham de preparar as crianças como cidadãos e cristãos educados.

Dados quantitativos em relação às cartilhas

Neste ponto quer-se apontar dados quantitativos do conteúdo das cartilhas, representados pelos títulos e chamadas dos dois livros. Preliminarmente, a fim de corroborar com a idéia de que a cartilha do Sínodo de Missouri mantinha um projeto centrado na doutrina luterana, pode-se observar o número de títulos relacionados com aspectos doutrinários luteranos, em comparação com a cartilha de Rotermund.

Na cartilha de Rotermund constam 135 títulos de leitura: 27 do primeiro estágio, 60 do segundo estágio e 48 do terceiro estágio, esse com leituras avançadas. Desses títulos nove estão relacionados diretamente com a religião em forma de orações, histórias da Bíblia e exortações para prática da vida religiosa.

Entretanto, na cartilha do Sínodo de Missouri faltam algumas páginas no final, têm-se 140 títulos: 46 do primeiro estágio, 67 do segundo estágio e 27 do terceiro, que está incompleta. Desses títulos 24 apresentam textos religiosos como pequenas orações, guia aos fiéis, orientando-os na vida religiosa e doméstica pelas canções religiosas, das histórias da Bíblia resumidas, das histórias sobre Lutero e das histórias doutrinárias. Comparando o número dos títulos, é visível a ênfase na religião por parte do Missouri, especialmente na questão doutrinária.

Por outro lado, as cartilhas são similares na forma dos textos e na organização dos títulos e nos níveis de leitura: indo dos textos mais simples aos mais complexos. Também foram comparados os títulos que relacionam os animais domésticos e animais peculiares da fauna brasileira. Muitos títulos são iguais, mas apresentam conteúdos diferentes, apesar de o tema e de a forma serem quase idênticas. As cartilhas tentavam chamar atenção da criança para leitura pelas suas vivências, daí a utilização das histórias de animais.

Outra forma lúdica, que demonstra à preocupação pedagógica de ambas as cartilhas, é o uso de charadas e provérbios nos textos. Muitas vezes são leituras curtas que compõe rimas ou apresentam textos em forma de piadas. Na cartilha de Rotermund são quatro textos em forma de charadas e provérbios, na cartilha do Missouri contam-se 10. Essas leituras estão distribuídas ao longo do texto, aparecendo em todos os níveis de leitura.

Encontraram-se três histórias iguais nas duas cartilhas comparadas: um título refere-se a uma oração da noite. Ademais, não se admira que as cartilhas apresentem semelhanças: foram produzidas na mesma época, para um modelo de escola étnica, escritas na mesma língua e com as mesmas formas. É mais fácil encontrar semelhanças do que diferenças.

Como já foram mencionadas as diferenças são pequenas no uso dos textos que privilegiam a religião. Mas uma diferença que chamou atenção diz respeito a textos sobre a família na cartilha do Missouri. Logo no início do livro de leitura muitos textos estão relacionados à família, mas os ligados à religião são destacados. Um dos textos menciona o engajamento dos membros da casa na educação religiosa das crianças.

A casa paterna

O pai e a mãe são minha família. Eles são para mim as pessoas mais amadas na Terra. Eu vivo com meus pais em sua casa. A minha casa paterna é muito amorosa para mim. Eu aspiro neles muita alegria. Nenhum lugar é mais bonito que na casa paterna. Eles me fazem todos os dias muito bem. Comida e bebida , vestes e calçados eu recebo deles. Na noite, eu deito na minha cama. Durante o dia eu fico na sala e brinco no jardim. Dos meus pais eu escuto a Palavra de Deus. O meu pai lê de manhã e de noite a Bíblia. A minha mãe ora comigo. O meu avô conta histórias bonitas. A minha avó é muito simpática. Domingo nos visitam a minha tia e o meu tio. Com a minha irmã e irmão eu consigo cantar canções alegres (Cartilha do Sínodo de Missouri, p. 2)

Pode-se notar que o chamamento dos familiares é em torno da igreja. Tanto os pais, quanto os avós fazem parte da família, mostrando que a organização da família nas comunidades pomeranas reuniam muitas gerações, os filhos, netos e avós, e que todos eram orientados ao grande apego religioso. Pelo menos o Sínodo de Missouri pretendeu incutir essa necessidade de a religião estar presente no lar.

Práticas disciplinares e ideológicas

As cartilhas do Sínodo de Missouri estimularam práticas disciplinares que deviam ser exercidas pelos pais, pastores e professores. Do mesmo modo, os conteúdos apresentados na cartilha do Sínodo Riorgandense são compostos por discursos ideológicos, especialmente aqueles que reforçam aspectos do movimento germanista.

A preocupação com os aspectos disciplinares da educação infantil volta-se ao papel dos pais, pastores e professores, orientando-os a serem rígidos e disciplinadores. As crianças precisavam ser disciplinadas para a sua conduta ser moldada na obediência aos mais velhos e aos valores das comunidades étnicas.

O rigor na educação é valorizado, junto com os ensinamentos cristãos. Interessante é um texto que comprova este ideal educativo, retratando Lutero como pai. O texto apresenta a família de Lutero e mostra a forma que ele educava seus filhos. Segundo o texto ele tinha seis filhos e gostava de contar histórias bíblicas e cantar para eles. Não se descuidava dos aspectos educacionais, abordando elementos lúdicos nas práticas educativas, ao mesmo tempo, em que era rígido:

Mas por ele ter sido um pai tão bom, ele era rigoroso. Quando suas crianças não queriam ouvi-lo ele pegava a vara. Pais de fato são muito bons quando sabem ser rigorosos. Por isso diz na Bíblia: "Quem ama o seu filho, o disciplina." Uma vez João cometeu uma injustiça. Lutero não conversou três dias com ele, e não permitia que chegasse perto dele, até que João humildemente pediu desculpas. Quando a mãe e a senhora da casa intercedeu por João, Lutero falou fortemente: 'Eu prefiro ver meus filhos mortos do que desobedientes.' Ele disciplinou as crianças não com raiva mas pela verdade em que ele tinha para com eles. Por isso, todas as crianças devem tornar-se boas e honrar e obedecer os seus pais (Cartilha do Sínodo de Missouri, p. 79)

A mensagem da leitura reforça o modelo de educação rigorosa e disciplinada que o Sínodo queria imprimir. Lutero destaca-se no papel de pai que ama e ensina especialmente conhecimentos religiosos, mas que também não descuida da disciplina dos seus filhos.

Ao contrário da cartilha do Sínodo de Missouri, as cartilhas de Rotermund não se preocupam tanto com conteúdos disciplinares relacionados à religiosidade. Entretanto, ao final da cartilha de Rotermund são apresentados textos maiores, talvez para um nível mais adiantado. Esses textos são as fábulas e histórias infantis contadas de forma detalhada e dividida em capítulos. O que se quer salientar são as histórias relacionadas à história e à geografia brasileira. Os últimos títulos da cartilha de Rotermund abordam da colonização portuguesa e também da história da colonização alemã, assim como abordavam assuntos da fauna brasileira de modo mais aprofundado.

É interessante notar que os textos têm uma preocupação em formar as crianças para serem cidadãos responsáveis e cumprirem os deveres da Pátria:

Vós crianças que nasceram aqui no Brasil, não são mais alemães, e sim brasileiros. Mas mesmo assim não devem conservar a língua de seus ascendentes e não devem treiná-la? [...] Certamente vocês são brasileiros, por isso, temos que aprender a língua da terra de vocês e praticar na escola a fim de que mais tarde possamos fazer parte da verdadeira vida cidadã de nosso país. Mas em casa, entre a família, com o pai e com a mãe, aí vocês devem falar alemão através de vossos bons ascendentes que tem a sua Pátria. Sem esta força de conduta não poderão ser bons brasileiros. Empolgante comparação que vocês tem como brasileiros é o honrar os pais de vocês com a sua terra e com o Brasil. Como disse Olavo Bilac: 'Ser brasileiro é cumprir os seus deveres'. É um dos componentes mais empolgantes é de fato honrar os pais e respeitar a sua procedência onde vivem. (Cartilha de Rotermund, p. 150)

O discurso ideológico está contemplado nesse texto, conhecido como movimento germanista. Esse movimento valorizava a cultura alemã, demonstrado pela religiosidade e pela língua, mas estimula o exercício da cidadania brasileira, como o cumprimento das obrigações civis brasileiras.

Para alcançar a seus objetivos os textos abordavam a realidade histórica e a organização social das comunidades. Muitos estudos sobre os teuto-brasileiros abordam os conceitos da necessidade de difusão da ideia do duplo pertencimento nas comunidades étnicas (Gertz, 1994GERTZ, René. A construção de uma nova cidadania. In: MAUCH, Claúdia e VASCONCELLOS, Naira (org.). Os alemães no sul do Brasil: cultura, etnicidade e cultura. Canoas: Ulbra, 1994, p. 43-54.; Kreutz, 1994KREUTZ, Lúcio; RAMBO, Arthur. Germanismo pedagógico no Rio Grande do Sul: perspectivas de pesquisa. Estudos Leopoldenses, v. 30, n. 137, 1994, p. 79-92.; Rambo, 1994RAMBO, Arthur Blásio. Nacionalidade e cidadania. In: MAUCH, Claúdia; VASCONCELLOS, Naira (org.). Os alemães no sul do Brasil: cultura, etnicidade e história. Canoas: Ulbra , 1994, p. 43-53.; Seyfert, 1994). Do mesmo modo o Sínodo Riograndense utilizava-se da realidade local e das questões sociais no currículo escolar, utilizando o método conhecido como Realia, ou seja, pela realidade das coisas no contexto em que se vivia deveria estar pautada a forma de ensinar (Rambo, 1994, 2003; Kreutz, 1990, 2004). Essas pesquisas, em sua maioria, foram realizadas na região de imigração no Vale do Rio dos Sinos do Rio Grande do Sul, mas o livro de Rotermund foi também usado na realidade pomerana.

Entretanto, a cartilha do Sínodo de Missouri não parece apresentar nenhum texto com as características do movimento germanista e do método da Realia. Na cartilha do Sínodo de Missouri há apoio ao uso da língua germânica e da cultura alemã, porém, relacionado mais com o espírito doutrinário luterano do que com o movimento germanista.

Por isso que as diferenças são pequenas. A análise comparativa foi feita para verificar se o Sínodo de Missouri apresentava um projeto educacional diferenciado. Ao que tudo indica a instituição se diferenciou nos aspectos doutrinários e na elaboração de seu material didático.

A análise desse material foi importante para o conhecimento do projeto educacional do Sínodo de Missouri e do Sínodo Riograndense. Embora se reconheça que, metodologicamente, a análise de apenas uma cartilha do Sínodo de Missouri e de uma cartilha de Rotermund possa ser considerada insuficiente, o estudo buscou apresentar aspectos importantes das organizações religiosas no contexto pomerano, ainda não analisadas em outras pesquisas.

Considerações finais

Ao entender alguns aspectos da cultura escolar nota-se no currículo a presença de práticas religiosas e de leituras específicas usadas nas escolas orientadas pelos sínodos luteranos. Essas escolas possuíram material didático próprio. Analisaram-se dois livros: um produzido pelo Sínodo de Missouri, pela sua editora no Brasil, outro a cartilha de Rotermund, produzido por um pastor do Sínodo Riograndense. Estes livros circularam e foram editados com objetivos específicos e apropriados de diferentes formas, constituindo um campo religioso específico através dos currículos escolares.

A análise do material didático foiimportante para confirmar e revelar o projeto educacional diferenciado das referidas instituições analisadas. A comparação entre as duas cartilhas contribuiu para entender a construção de uma identidade teológico-pedagógica específica do Síndo de Missouri e do Sínodo Riograndense. As diferenças da cartilha do Sínodo de Missouri entre a cartilha de Rotermund serviram para comparar a perspectiva de educação que se queria dar nas escolas das comunidades. Percebe-se que as diferenças foram sutis. Ambos os livros possuíam o mesmo formato e disposição gráfica. Os conteúdos apresentaram semelhanças. Apesar de os dois livros apresentarem leituras relacionadas com a religião e com a conduta moral dos alunos, a cartilha de Rotermund também apresentou textos sobre religião em forma de orações, versos, mas o diferencial foi não contemplar leituras religiosas específicas da doutrina luterana.

Ainda, a cartilha de Rotermund apresentava textos da realidade social e política da imigração, não aparecendo esse conteúdo na cartilha do Sínodo de Missouri. Ou seja, o Missouri buscou não se envolver em questões sociais e políticas. Procurou formar uma identidade alinhada aos princípios hierárquicos de uma igreja que deveria estar preocupada em formar, pela educação, alunos e fiéis nos conhecimentos ortodoxos da religião luterana e promover uma conduta moral aceitável na vida pessoal.

Constata-se importante diferenciação no projeto educacional das instituições luteranas abordadas. Revelam-se as especificidades das organizações religiosas e as estratégias para cada uma delas delimitar e formar o campo. Neste sentido, a educação formal, representada pelas escolas paroquiais, teve papel fundamental para consolidar este objetivo. Em decorrência disso o material didático e material de leitura foi pensado neste contexto, com investimentos editoriais pelo fomento da circulação das cartilhas nas escolas paroquiais. A partir da análise destas cartilhas pode-se perceber o modo de ensinar e quais os conteúdos considerados relevantes, compreendendo, de certa forma, o projeto educacional ambicionado pelas instituições religiosas, mas, inevitavelmente, entrelaçado com o projeto religioso. Por isso, a instauração de um habitus religioso foi necessário para que estas práticas diferenciadas pudessem se fortalecer.

Entende-se que essas questões não se encerram neste trabalho. As pesquisas neste campo são escassas, especialmente em relação à organização escolar que envolveu as comunidades pomeranas na região meridional do Rio Grande do Sul e as instituições luteranas. Mas, de qualquer forma, percebe-se, pelo material didático apresentado, os objetivos das instituições luteranas, que a primeira vista, mostravam ser idênticas no seu currículo, já que eram criadas e mantidas escolas dentro de um contexto próximo, mas que apresentaram determinadas peculiaridades e demarcaram o campo religioso com formas específicas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2016
  • Aceito
    28 Jul 2016
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