Acessibilidade / Reportar erro

DO CUIDADO, QUE DEVEM TER OS PAYS DOS MININOS DEFUNTOS: PRESERVAÇÃO DA INFÂNCIA E CONSELHOS ESPIRITUAIS DO PADRE JESUÍTA ALEXANDRE DE GUSMÃO, SÉCULO 17

THE CARE THAT SHOULD BE THE PARENTS OF THE DECEASED BOYS: PRESERVATION OF CHILDHOOD AND SPIRITUAL ADVICE OF JESUIT PRIEST ALEXANDRE DE GUSMÃO, 17TH CENTURY

EL CUIDADO QUE DEBERÍAN TENER LOS PADRES DE LOS NIÑOS FALLECIDOS: LA PRESERVACIÓN DE LA INFANCIA Y EL ASESORAMIENTO ESPIRITUAL DEL JESUITA SACERDOTE ALEXANDRE DE GUSMÃO, SIGLO 17

LES SOINS QUI DEVRAIENT ÊTRE LES PARENTS DES GARÇONS DÉCÉDÉS: LA PRÉSERVATION DE L'ENFANCE ET SPIRITUEL PRÊTRE CONSEIL JÉSUITE ALEXANDRE DE GUSMAO, 17E SIÈCLE

Resumo

O presente artigo examina as prescrições realizadas pelo padre jesuíta português Alexandre de Gusmão (1629-1724) sobre os cuidados que os pais deveriam ter na educação e na proteção espiritual de seus filhos, principalmente na ocasião da sua morte, na obra Arte de crear bem os Filhos na idade da Puericia (1685). A análise privilegia os elementos que constituíram as práticas de preservação da infância, os perigos iminentes de morte infantil, os conselhos espirituais relacionados aos cuidados com os pequenos defuntos e as atribuições de culpa aos pais que eram negligentes na educação de seus filhos. Escrito no contexto cristão luso-brasileiro do século 17, as prédicas de Gusmão podem ser entendidas como determinado modelo pedagógico e assistencial para a infância.

Palavras-chave:
morte; infância; Alexandre de Gusmão; educação

Abstract

This article examines the provisions made by the Portuguese Jesuit priest Alexandre de Gusmão (1629-1724) on the care that parents should have in education and spiritual protection of their children, especially at the time of his death, the work Arte de crear bem os filhos na idade da puericia (1685). The analysis will focus on the elements that constituted the childhood conservation practices, the imminent dangers of child death, the spiritual advice related to the care of the dead boys and assignments of blame to parents who were negligent in their children's education. Written in portuguese-brazilian christian seventeenth-century context, Gusmão preachings can be understood as a certain pedagogical and care model for children.

Key-words:
death; childhood; Alexandre Gusmão; education

Resumen

Este artículo examina las disposiciones hechas por el sacerdote jesuita portugués Alexandre de Gusmão (1629-1724) sobre la atención que los padres deben tener en la educación y la protección espiritual de sus hijos, especialmente en el momento de su muerte, en la obra Arte de crear bem os filhos na idade da puericia (1685). El análisis se centrará en los elementos constitutivos de las prácticas de conservación de la infancia, los peligros imminentes de la muerte del niño, el consejo espiritual relacionado con el cuidado de los chicos muertos y asignaciones de culpa a los padres que fueron descuidados en la educación de sus hijos. Escrito en el contexto del siglo 17 portugués cristiano-brasileña, predicaciones Gusmão pueden entenderse como un determinado modelo pedagógico y el cuidado de los niños.

Palabras-clave:
la muerte; la infancia Alexandre Gusmão; educación

Résumé

Cet article examine les dispositions prises par le prêtre jésuite portugais Alexandre de Gusmão (1629 à 1724) sur les soins que les parents devraient avoir dans l'éducation et la protection spirituelle de leurs enfants, en particulier au moment de sa mort, le travail Arte de crear bem os filhos na idade da puericia (1685). L'analyse faveurs sur les éléments qui constituent les pratiques de conservation de l'enfance, les dangers imminents de la mort de l'enfant, les conseils spirituels liés à la prise en charge des garçons morts et les affectations de blâme aux parents qui ont fait preuve de négligence dans l'éducation de leurs enfants. Écrit dans le contexte du 17e siècle chrétien portugais-brésilien, prédications Gusmão peuvent être compris comme un certain modèle pédagogique et de soins pour les enfants.

Mots-clé:
la mort; enfance; Alexandre Gusmão; education

Introdução

Portugal dos séculos 17 e 18 foi marcado por uma intensa proliferação da cultura escrita, com destaque para a publicação de livros que orientavam e prescreviam a educação da infância. Muitas destas obras indicavam e responsabilizavam os pais pela educação dos filhos, focalizando o comportamento social aceito à época, os bons modos e os costumes corteses, os necessários investimentos na aquisição do saber ler e escrever, e, sobretudo, a indicação de como o sujeito infantil deveria ser guiado pelos preceitos e virtudes cristãs, tanto na vida, quanto na morte.

O historiador Fernand Braudel (1970BRAUDEL, Fernand. Civilização material e capitalismo, séculos XV-XVIII. Lisboa: Cosmos, 1970.) afirmou que na França moderna havia "uma igualdade da morte e da vida, uma altíssima mortalidade infantil, fomes e uma subalimentação crônica e poderosas epidemias" (p. 72). As elevadas taxas de óbitos infantis traziam consigo a consciência social quanto precariedade da vida das crianças, bem como quanto aos cuidados que se deveria dispensar a elas. Pela análise de numerosas fontes - biografias, tratados, compêndios, manuais religiosos, manuais filosóficos, iconografia de esculturas e de quadros, monumentos funerários, entre outros -, Philippe Ariès (1981ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.) destacou o desenvolvimento, no período moderno, de manifestações mais evidentes do sentimento de pesar e do lamento em relação à morte na infância. Ariès (1981)ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. considerou o desenvolvimento da maior afetividade e compaixão em relação ao sujeito infantil - referia-se às crianças de boa família, nobres ou burguesas - a partir do século 16, quando também as famílias passaram a conceder importância às crianças como seus núcleos fundamentais, conferindo a elas cuidados cada vez mais exigentes, especialmente em relação à preservação de sua vida.

Os discursos sobre a morte foram mote de grande interesse de variadas e vastas literaturas de espiritualidade publicadas em Portugal, com destaque para os jesuítas, ao longo do século 17. Evidência, nesse sentido, é a intensa quantidade de obras que ensinavam a se preparar para a morte circularam pelo império português neste período e nos séculos subsequentes. A pesquisadora portuguesa Zulmira Santos (1997SANTOS, Zulmira C. Entre a doutrina e a retórica: os tratados sobre os quatro novíssimos (1622) de frei António Rosado O. P. Revista Faculdade de Letras, Porto, p. 161-172, 1997. ) acentuou que, no Portugal do Antigo Regime, a temática da morte e dos últimos dias ganhou grande importância, sobretudo como forma de proporcionar mudanças de atitudes e organização da vida religiosa dos fiéis cristãos. Nesse sentido, publicações que formulavam modelos de perfeito comportamento moral e religioso atendiam às condições discursivas de um clero que enunciava, preponderantemente, a salvação ou condenação eterna das almas, uma vez que a lembrança da perenidade da vida terrena e da eternidade no além, poderia propiciar mudanças nos modos de viver. Discursos estes que tonalizam os "comportamentos sociais e morais no sentido de bem viver, avançando propostas de paradigmas cristãos de virtude, nas diferentes situações de vida social e também no momento da morte" (Santos, 1997SANTOS, Zulmira C. Entre a doutrina e a retórica: os tratados sobre os quatro novíssimos (1622) de frei António Rosado O. P. Revista Faculdade de Letras, Porto, p. 161-172, 1997. , p. 162).

Tratar da morte infantil e das recomendações espirituais quanto aos cuidados com as crianças mortas no século 17 em Portugal1 Numa perspectiva demográfica, Maria Hermínia Vieira Barbosa (2001), em obra intitulada Crises de morta-lidade em Portugal desde meados do século XVI até ao início do século XX, apresentou um interessante estudo do estado da arte acerca da evolução da mortalidade em Portugal. pela literatura jesuítica, na perspectiva teórica da História Cultural, se insere como uma proposta singular e pouco estudada na historiografia brasileira. Distinto para outros períodos, como o século 19, para o qual o historiador Luiz Lima Vailati (2007VAILATI, Luiz Lima. As fotografias de anjos no Brasil do século XIX. Anais do Museu Paulista, v. 14, 2007, p. 51-71., 2010VENANCIO, Renato Pinto (org.). Uma história social do abandono de crianças: de Portugal ao Brasil: séculos XVIII-XX. São Paulo: Alameda , 2010., 2012VAILATI, Luiz Lima. Representações da morte infantil durante o século XIX no Rio de Janeiro e na Inglaterra: um esboço comparativo preliminar. Revista de História (USP), v. 1, 2012, p. 261-294., 2014VAILATI, Luiz Lima. A última morada da infância: representações e transformações dos lugares de sepultamento infantis nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, v. 1, p. 291-306, 2014.) dedicou atenção para a relação entre os temas da morte e da infância no Brasil, descrevendo os rituais e as práticas funerárias dos anjinhos.

Neste texto temos por objetivo analisar os discursos do padre português Alexandre de Gusmão2 2 O padre jesuíta Alexandre de Gusmão foi considerado em algumas pesquisas - O'Neill; Domínguez (2001), Arnaut Toledo; Araújo (2008, 2009) e Arnaut Toledo (2015) - como sendo o primeiro pedagogo do Brasil. A cargo desse precedente título de primeiro pedagogo não se refere apenas ao fato de ser o primeiro autor a escrever obras de cunho educativo para crianças, ainda no período colonial, mas por sua atuação no projeto evangelizador instaurado pela Companhia de Jesus por grande parte do território ocupado na principal colônia, bem como por ter desempenhado importante papel na fundação do Seminário de Belém da Cachoeira, na Bahia. Este Seminário foi descrito nas palavras de Serafim Leite (2004, p. 241) como sendo uma instituição de características marcadamente popular, pois "nele se criarem os filhos dos moradores, sobretudo dos pobres, que viviam no sertão, e poderem estudar não só os primeiros elementos de ler e escrever, mas também latim e música". Contando com a contrapartida da Coroa portuguesa e com a colaboração privada, o Seminário de Belém teve importante papel na formação de missionários da Companhia de Jesus e no processo educativo dos sujeitos letrados no Recôncavo Baiano. Considerando este cenário de práticas educativas e de modelos de sujeito cristão, acreditamos que a publicação da obra de Alexandre de Gusmão, em Lisboa no ano de 1685, tem alguns aspectos peculiares para o contexto editorial e social da época, que merecem ser destacados. Primeiro, por se tratar de um tratado católico escrito no território da principal colônia ultramarina de Portugal, portanto distante da sede do Reino, que pode evidenciar além da existência de uma rota comercial de livros e livreiros, também o interesse na leitura de obras que demonstravam o modelo de educação que era implantado na Corte e que vislumbrava sua formação na Colônia; segundo por apresentar um discurso cristão-católico que atendia aos anseios oficiais da Igreja, de difundir a sua fé e a sua moral e aos desejos dos leigos por instrução e elevação espiritual através da leitura de obras religiosas. em uma de suas principais obras3 3 Alexandre de Gusmão escreveu entre textos catequéticos, sermões e tratados para a educação e com-portamento moral, o total de treze obras: Escola de Belém, Jesus nascido no presépio (Évora, 1678); Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia (Lisboa, 1685); História do predestinado peregrino e seu irmão Precito (Lisboa, 1682); Sermão na catedral da Bahia de Todos os Santos (Lisboa, 1686); Meditação para todos os dias da semana (Lisboa, 1689); Meditationes digestae per annum e Menino Cristão, ambos publicados em 1695; Rosa de Nasareth, nas montanhas de Hebron (Lisboa, 1709); Eleição entre o bem & mal eterno (1717) e as publicações póstumas O corvo e a pomba da Arca de Noé e Árvore da vida, ambos publicados em Lisboa, 1734, Compendium perfectionis religiosea (Veneza, 1783) e Preces recitandae statis temporibus ab alumnis Seminarii Bethlemici (s.d., possivelmente em 1783). do século 17, com vistas a compreender os conselhos do autor aos pais que deveriam cuidar dos seus filhos defuntos. Essas instruções não tinham por finalidade refletir intensamente sobre a morte infantil, mas sim, sobre a educação moral e religiosa dispensada pelos pais às crianças na medida em que a salvação de seus filhos dependia de uma vida conduzida cristãmente - ou educando a criança, em vida, longe dos pecados ou buscando sufrágios salvacionistas após morte -, cuja responsabilidade era dos pais.

A obra de Gusmão, Arte de crear bem os filhos na idade da puericia,4 4 A versão aqui utilizada foi digitalizada pela Biblioteca Nacional de Portugal e está disponível online em http://purl.pt/6369. No entanto, a mesma edição foi editada no ano 2000 em versão fac-símile pelos historiadores da educação Elomar Tambara e Gomercindo Ghiggi. foi considerada por muitos pesquisadores como um exemplo de publicação católica sobre tratadística educativa.5 5 Conforme Venâncio; Ramos (2004). Foi publicada inicialmente em Lisboa no ano de 1685, durante o apogeu europeu do projeto da Reforma Católica, tratando-se de uma "síntese elaborada em fins do século 17, época em que os preceitos tridentinos há muito vinham sendo implementados nas sociedades católicas" (Venancio; Ramos, 2004, p. XV). Este livro de Gusmão foi dedicado aos modos de instruir e educar crianças a partir das experiências de ensino do próprio autor, mas particularmente voltado aos modos de como os pais deveriam criar seus filhos na idade da puerícia, para se obter, no futuro, morigerada juventude. Assim, seguiria que "á boa puerícia se segue boa mocidade, assim como á boa vida boa morte" (Gusmão, 1685, p. 21). Embora publicada em Portugal, a obra foi escrita na América portuguesa, sua principal colônia ultramarina, e tinha por objetivo apresentar um modelo pedagógico para educar as crianças pelos bons costumes cristãos. É composta de duas partes: a primeira contém 19 capítulos que orientam os fundamentos teológicos para a boa educação dos meninos. A segunda parte da obra, intitulada Como se hão de haver os pais na criação dos meninos, prescreve, em 25 capítulos, aconselhamentos práticos e edificantes para que os pais educassem seus filhos.6 6 Ao longo das 387 páginas de toda obra Gusmão (1685) desenvolveu ensinamentos que são retomados várias vezes, seja pela demonstração de modelos edificantes de vidas virtuosas e exemplares, seja pela incitação à punição e ao castigo como modo corretivo e disciplinador da boa criação. Neste artigo tomamos como principal procedência de análise apenas o capítulo XVI, da primeira parte, intitulado Do cuidado, que devem ter os pays dos mininos defuntos, que trata das advertências aos pais para procurarem "o bem eterno das almas dos filhos defuntos" (Gusmão, 1685, p. 127).

Alexandre de Gusmão priorizava, fundamentalmente, na sua escrita, os pecados cometidos pelo homem e, por consequência, enfatizava as prescrições de sanções e suplícios religiosos. Outro aspecto importante foram os enunciados que Gusmão (1685) evocou para a questão educativa. Nele as lições morais e exemplificadoras deram real destaque para particularidades acerca da moralidade e da religiosidade presente no mundo luso-brasileiro do final de século 17, mas principalmente por meio de exemplos que ocorreram na própria Companhia de Jesus entre os séculos 16 e 17.

Preocupação constante na literatura cristã do período, a arte de conduzir a infância edificada no bem viver não se afasta dos constantes pensamentos e apreensões com os devidos cuidados que se deve ter com o bem morrer. De acordo com Fleck e Dillmann (2015FLECK, Eliane Cristina Deckmann; DILLMANN, Mauro. Se viveres como louco, sabes que hás de morrer sem juízo: as orientações para o bem morrer na literatura cristã portuguesa do século XVIII. Revista Brasileira de História, São Paulo, p.183-206, 2015.), no século 18 português a vida e a morte não eram percebidas, pelos escritores religiosos da época, como instâncias separadas, tanto que havia um esforço, por parte do clero, para "instruir os fiéis/leitores sobre a relação de proximidade entre uma e outra". Este preparo espiritual para "a morte significava pensar na fragilidade e na fugacidade da vida, procurando seguir os mandamentos de Deus e levando uma vida santificada" (Fleck; Dillmann, 2015FLECK, Eliane Cristina Deckmann; DILLMANN, Mauro. Se viveres como louco, sabes que hás de morrer sem juízo: as orientações para o bem morrer na literatura cristã portuguesa do século XVIII. Revista Brasileira de História, São Paulo, p.183-206, 2015., p. 192).

Cabe destacar que a infância se tornara objeto peremptório nos discursos religiosos do século 17, evidência de que a Igreja da Reforma Católica elencou a família como lugar privilegiado para a formação cristã. E, nesse sentido, as crianças tornaram-se uma espécie de "tábua da salvação da humanidade" (Venancio; Ramos, 2004, p. 10), cuja transformação e redenção durante a menor idade possibilitaria posteriormente, na idade da razão, adultos úteis e obedientes. Esse empreendimento em muito estava associado a dois importantes fatores: primeiro com os postulados do Concílio de Trento que prescreviam a edificação moral dos costumes a partir de modelos de comportamento perfeitos, tendo em vista uma reforma religiosa e espiritual junto aos cristãos; segundo, com a cultura escolar jesuítica do século 17, que fora sistematizada e ordenada pelo Ratio Studiorum Institutio Societatis Jesu, publicado inicialmente em 1559.7 7 Sobre a cultura escolar implantada pelos jesuítas na América-portuguesa sugere-se: HANSEN, João Adolfo. Ratio studiorum e política católica ibérica no século 18. In: VIDAL, Diana Gonçalves; HILSDORF, Maria Lúcia Spedo (orgs.). Brasil 500 anos: tópicas em história da educação. São Paulo: USP, 2001, p. 13-42.

Para Alexandre de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) o maior responsável pela educação dos filhos, desde a tenra idade, deveriam ser os pais. É nesse sentido que faz inúmeras advertências e prescrições aos modos com que os pais deveriam os educar: a criação dos filhos tanto poderia gerar o "gozo e a glória" (p. 27), como viver em permanente dano e castigo.

Portanto, ao sinalizarmos para essa literatura de cunho espiritual que, entre outros fatores, anunciava formas de bem viver e de conduzir a vida de acordo com a doutrina cristã-católica, estamos abordando-a enquanto modelo de educação, já que possuía constante preocupação pedagógica. Trata-se de perceber a educação enquanto uma prática social e histórica, constituída por processos institucionais ou não-institucionalizados,

intencionais ou não, diversificados e difusos entre os grupos sociais", como por exemplo, a educação direcionada pela família, por mestres, professores domésticos, aias, amas de leite, preceptores, da mesma forma por sistemas de aprendizagens realizados nas oficinas de artistas e artesões, por associações religiosas e leigas, entre outras. (Gondra; Schueler, 2008GONDRA, José Gonçalves; SCHUELER, Alessandra. Educação, poder e sociedade no Império brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008. , p. 19)

Para melhor sistematização de análise dividimos o artigo em duas partes: primeiro apresentamos alguns aspectos relativos à ideia de preservação da vida da criança no período moderno europeu, quando se revelaram sentimentos mais aflorados de cuidados e atenções específicas com as crianças, tanto em aspectos físicos, quanto em espirituais, notadamente diante de perigos iminentes, como a morte precoce. Para tanto, nos valemos de considerações historiográficas, de discursos presentes na obra de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) e ainda de algumas gravuras do século 16 publicadas em obras religiosas dos séculos 17 e 18; segundo, analisamos o capítulo Do cuidado, que devem ter os pays dos mininos defuntos na intenção de perceber como o padre Alexandre de Gusmão (1685) privilegiou certos discursos que compunham as práticas cristãs ideais no cuidado com os pequenos defuntos e como descreveu aconselhamentos aos pais, especialmente aqueles que diziam respeito aos sufrágios e indulgências necessárias para a salvação da alma do tenro filho8 8 Importante referir que neste período - séculos 17 e 18 - a literatura religiosa-pedagógica culpabilizava com veemência pais negligentes e crianças de comportamentos desviantes e aversivos à ordem social, essencialmente burguesa, que se instaurava. e aqueles que apontavam para atribuições de culpa aos pais negligentes na educação de seus filhos.

Preservação da vida da criança

O campo da história da infância e da juventude há algumas décadas desponta o interesse de inúmeros pesquisadores,9 9 Entre outros veja-se LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude. História dos jovens. V. 1 e 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. sendo crescente, no Brasil,10 10 Nas duas últimas décadas houve uma intensa publicação de estudos relativos à história da infância. Des-tacamos alguns autores brasileiros que recorrentemente são referências de análise: Mary Del Priore (1999, 2007), Luciano Mendes de Faria Filho (2007), Moysés Kuhlmann Jr. (2015), Marcos Cezar de Freitas (2011) e Sandra Corazza (2004). o número de pesquisas sob vários enfoques e perspectivas teórico-metodológicas.

Contemporaneamente o sentido e o significado que o Ocidente atribui à infância é resultado de todo saber relativo que se constituiu sobre o sujeito infantil. Pode-se dizer que esse processo de constituição é efeito de históricas relações de poder-saber que incidiram sobre esta categoria11 11 O significado da categoria infância, atualmente, é genérico, pois além de permitir inúmeras definições, também decorre do sentido social e cultural que lhe é atribuído. De acordo com Kullmann Jr (2015) as definições dicionarísticas, em língua portuguesa, consideram-na como período de crescimento, que vai desde o nascimento até a puberdade. Para além do período cronológico e biológico, o autor destaca sua acepção legislativa no Brasil que considera a criança até os 12 anos de idade incompletos e adolescente entre os 12 e os 18 anos. Sobre a infância como categoria veja-se Qvortrup (2010). . Ser criança e suas formas de dizer e ver a infância foram constituídos ao longo dos últimos três séculos a partir de diferentes conhecimentos estabelecidos sobre a infância e suas configurações sociais no funcionamento de distintas instituições: escolas, asilos, igrejas, hospitais, exércitos. Problematizar a infância como uma invenção histórica significa romper com a concepção de que a criança faz parte de um desenvolvimento natural do ser humano12 12 Philippe Ariès (1981), em História social da criança e da família discorre sobre a compreensão acerca do fenômeno da infância. Ao discutir as idades da vida, Ariès (1981) mostra que a consolidação de um significado moderno para o termo infância ocorreu apenas em meados do século 17, entre a burguesia francesa. A infância estava ligada à ideia de dependência, segundo o vocabulário utilizado nas relações entre os senhores e seus serviçais. Por volta do século 18, o termo infância passou a ter sentido generalizado, abrangendo todas as classes sociais. Etimologicamente o termo infância - do latim infans - designa aquele que ainda não fala, ou seja, refere-se às crianças muito pequenas. Posteriormente, o termo tornou-se mais abrangente, incluindo crianças maiores. . Metodologicamente tomamos a infância enquanto categoria de análise a fim de problematizar as instruções e o discurso do padre Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.), que se constituem também enquanto evidência de uma dada percepção cuidadosa da infância, tal como destacou Ariès (1981ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.), e da preservação da vida do sujeito infantil.

Há de se relativizar, no entanto, estas interpretações historiográficas, especialmente de Ariès (1981ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.), de que apenas no período moderno europeu houve consideração efetiva sobre a vida e a morte das crianças. Existem opiniões contrárias sobre a emergência da puerícia na modernidade descrita por Philippe Ariès (1981), uma vez que alguns autores refutaram a ideia genérica de existência de um sentimento de indiferença às crianças nas sociedades medievais. Exemplo destas críticas foi feita pelo historiador Jacques Gélis (2009GÉLIS, Jacques. A individualização da criança. In: ARIÈS, Philippe; CHARTIER, Roger. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 305-320., p. 318), ao discorrer que o "interesse ou a indiferença com relação à criança não são realmente a característica desse ou daquele período da história". Ainda, Gélis (2009) considera que a evolução destes sentimentos, de indiferença e interesse, além de não se manifestarem linearmente, possivelmente "coexistem no seio de uma mesma sociedade, uma prevalecendo sobre a outra em determinado momento por motivos culturais e sociais que nem sempre é fácil distinguir" (Gélis, 2009, p. 318).

Para Philippe Ariès (1981ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.), até por volta do século 16 não existia uma plena e particular consciência sobre o universo infantil e, consequentemente, sentimentos vinculados à necessária preservação da saúde e da vida da criança. Estas seriam as justificativas dos frequentes abandonos, das indiferenças com os modos de viver na pobreza, das difíceis condições dos infantis sobreviverem pelo favor e pela caridade e dos constantes casos de infanticídios.13 13 Sobre o tema da história da morte infantil identificamos a ocorrência de poucos estudos, entre os quais destacamos Pancino; Silveria (2010). Não obstante, como relatou Ariès (1981)ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981., uma criança morta era rapidamente substituída por outros sucessíveis nascimentos, que poderiam facilmente ocupar o lugar daquele que morreu.

Todavia, atentamos para as possíveis representações dos sentimentos de uma família quando se deparava com a inevitável morte de um filho na ilustração do artista alemão Hans Holbein the Younger (1497-1543), considerado um dos mestres do retrato no Renascimento, e utilizada em uma edição de Dance of death (1791) para representar a morte roubando o filho mais novo de uma camponesa. Diante de insuficientes condições para preparar a refeição para todos os filhos, a mulher, ao coçar a cabeça, parece demonstrar uma possível confusão diante da miséria que se encontra sua família, enquanto o filho maior - com mais condições de sobrevivência - com as mãos sobre a cabeça, parece não querer aceitar a morte do irmão. Na legenda da imagem, em latim, descreve-se que "o homem, nascido de uma mulher, pode viver brevemente, quando preenchido com muitas misérias, como se fosse uma flor, que pode ser destruída, e que desaparece como a sombra" (Holbein, 1791).

Figura 1
A visita da morte

A caveira carrega na mão esquerda uma ampulheta, demonstrando por este marcador o quão relativo podia ser o tempo de vida, bem como representava que era chegada a hora da morte, ainda que diante da breve vida do menino. Com a mão direita puxa a criança para fora de casa, que ainda parece acenar aos seus familiares. Os sentimentos relativos ao cuidado e à preservação da vida da criança - afeto, amor, carinho - parece se ressaltar quando se trata da possibilidade iminente da morte do sujeito infantil. Gélis (2009GÉLIS, Jacques. A individualização da criança. In: ARIÈS, Philippe; CHARTIER, Roger. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 305-320., p. 308) destacou que nos finais do século 14 já era possível perceber, nos meios mais abastados, "demonstrações de afetividade" que representam "uma vontade cada vez mais reafirmada de preservar a vida da criança". E essa vontade de salvar a criança só teria se ampliado nos séculos subsequentes, sendo que "a partir do século XVI a vontade de tratar-se e sarar manifesta-se tão fortemente que não deixa dúvida quanto ao novo olhar que o homem agora lança sobre si mesmo" (Gélis, 2009GÉLIS, Jacques. A individualização da criança. In: ARIÈS, Philippe; CHARTIER, Roger. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 305-320., p. 316).

É importante destacar que diante das elevadas taxas de mortalidade infantil15 15 De acordo com as análises apresentadas por Santos (1986), apesar da ausência de dados estatísticos para a mortalidade infantil em Portugal até o século 18, sabemos que na França, na segunda metade do século 17 e princípios do século 18, a proporção de crianças que morriam antes de completar o primeiro ano de vida estaria compreendida entre 25% e 33%. Na segunda metade do século 18 esta taxa decairia para 18% a 26%. nos séculos 16-18 alguns mecanismos de poder-saber, especificamente os saberes médicos da época, foram configurados na tentativa de reduzir estes indicativos. De acordo com Cândido dos Santos (1982SANTOS, Cândido. Nota sobre a mortalidade infantil nos séculos 18 e 19. Humanidades: Revista Trimestral da Aeflup, n. 2, p. 47-75, 1982.) os registros paroquiais portugueses não informavam especificamente os óbitos infantis nos séculos 16 e 17, e mesmo no século 18 ainda havia algumas precariedades nos registros. Para o autor as altas taxas de mortalidade infantil e juvenil se justificam pela "frequência das epidemias, as crises frumentárias, a falta de cuidados higiênicos"16 16 De acordo com dados levantados por Santos (1986) os exíguos registros eclesiásticos indicavam o pre-domínio das febres como principal causadora da morte de crianças. Tais febres eram distinguidas por maligna, catarral, febre vermelha, febre tísica e febre podre. Também havia mortes derivadas de diarreia (disenteria), bexigas (varíola), sarampo e o sarampão, outras possíveis causas frequentes. Na América portuguesa, ao que tudo indica, as taxas de mortalidade infantil se assemelhavam com as europeias, todavia, considera-se, conforme estudo de Leite (2011) para o caso do Rio de Janeiro, que as taxas de natalidade eram relativamente inferiores "devido à fraqueza de constituição" (p. 30). (Santos, 1982SANTOS, Cândido. Nota sobre a mortalidade infantil nos séculos 18 e 19. Humanidades: Revista Trimestral da Aeflup, n. 2, p. 47-75, 1982., p. 47).

Além das causas identificáveis acima é sabido que a maioria da população neste período não era urbana, não cultivava hábitos de higiene regulares,17 17 Para uma reflexão mais apurada sobre os processos de higienização em Portugal, neste período, suge-rimos a consulta de Cosme (2014). enfrentava escassez de alimentos e fome generalizada. Assim sendo, o descuido e maus tratos com as crianças eram elementos que reforçavam a necessidade de medidas assistenciais e de caridade material. Para a historiadora portuguesa Ana Cristina Araújo (1997ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa: atitudes e representações (1700-1830). Lisboa: Notícias, 1997., p. 49) a "morte marcava de um modo constante o quotidiano das sociedades de Antigo Regime" português, de modo que o medo e comportamentos de nervosismo eram elementos presentes nas situações de contágio de doenças diversas, o que "conferia um acrescido grau de risco e violência à mortalidade, sobretudo epidêmica".

Outro dispositivo para a preservação da vida infantil se destacava, a assistência espiritual promovida pela Igreja, bastante confortadora para uma população que buscava minimizar o medo eminente da morte, de adultos e de crianças. Diante do quadro de elevadas taxas de mortalidade infantil, mesmo entre os mais abastados, as leituras de livros espirituais despontavam como eficazes possibilidades de minimização do sentimento da dor da perda das crianças, bem como para justificar algumas mortes infantis e condenar supersticiosamente os culpados pelos precoces óbitos. Boa parte da literatura devocional jesuíta valeu-se da noção de bem morrer, apresentando-a por uma relativa variação nos seus discursos, tanto em estilo, quanto em conteúdo, conforme alertou o historiador Daniel Martins Ferreira (2015).

Na obra do jesuíta Alexandre de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685., p. 171), encontramos algumas considerações aos pais diante das experiências de incertezas quanto à sobrevivência das crianças. Uma preocupação constante que os "antigos pais" deveriam ter era "nam faz[er] festa quando lhes nasciam os filhos, senam quando os desmamavão". O motivo poderia estar baseado nos receios provocados pela frequente mortalidade infantil, sobretudo dos recém-nascidos. O desleitar da criança parecia ser o momento de maior segurança, considerando que a criança teria, a partir de então, maiores chances de vida diante dos inúmeros perigos. No entendimento do padre, "se não davaõ por seguros a q´está exposto o infãte todo o tempo de mama", ou seja, o período de vida correspondente ao tempo de amamentação era o mais frágil e de maior risco de morte.

Diante disso Gusmão alertou para três possíveis casos de grande vigilância dos pais sobre os meninos quando ainda fossem infantes:

Primeira, guardalos das Bruxas, que os nam matem antes dos Bautismo; segunda, que se bautisem a tempo, & com a solenidade, & boa eleiçam de padrinhos, que a Igreja costuma. Terceira, que quanto for possivel criem as mãys os filhos a seus peitos, & quanto por justas causas nam possa, estas, tenham grande escolha na eleiçam das amas. (Gusmão, 1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685., p. 171)

A primeira preocupação de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) estava relacionada com a possível presença de bruxas entre as famílias e a crença nos seus malefícios.18 18 De acordo com Daniela Buono Calainho (2011) nenhuma mulher considerada bruxa foi queimada no Brasil. Uma possível justificativa seria que todos os casos de réus acusados pelo Santo Ofício eram enviados para Portugal e lá eram julgados. Sobre os processos de bruxaria e inquisição em Portugal sugerimos consultar Paiva (1997). O indicativo da presença desses seres malignos poderia ser uma justificativa para a falta de cuidados dos pais, como por exemplo a entrega dos filhos, pelas mães, a quaisquer amas de leite. Outro efeito da presença de bruxas era a possibilidade de o sujeito infante vir a ser corruptível e, na idade da razão, ter sua alma tomada pelo vício e pelo pecado. De outro modo, "para castigo dos pays, ou para bem dos mesmos filhos, que por ventura se condenariam se chegassem á idade maior" (Gusmão, 1685, 173):

as Bruxas sam huas diabólicas mulheres feiticeiras, que costumam matar as creanças chupandolhes o sangue, ou dandolhes a chupar as tetas inficionadas com veneno; [...] E destas femeas infernaes ouve alguas tam cruéis, que chegaram a matar grande numero de creanç, elas as. [...] ouve Bruxa, que chegou a matar quarenta infantes, & em Germania a alta foram queimadas oito Bruxas, que confessaram aver morto cento, & quarenta inocentes. (Gusmão, 1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685., p. 172)

De acordo com o padre Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) as bruxas possuíam duas finalidades quando promoviam o ataque às crianças. O primeiro era que buscavam "fazerem do sangue, & carne dos innocentes infantes os seus unguentos, & encantamentos, como hua convencida confessou". O segundo 'porque lhes tem persuadido o Demonio a estas tristes, que matando certo número de infantes, ham de ficar impassiveis para as penas do inferno" (Gusmão, 1685, p. 172).

Todavia não é de se espantar que uma série de estratégias fossem utilizadas para afastar as crianças desses considerados espíritos maléficos. Pancino (2010PANCINO, Cláudia; SILVERIA, Lygia. Pequeno demais, pouco demais: a criança e a morte na idade moderna. Cadernos de História da Ciência, Instituto Butantan, v. 5, n. 1, 2010, p. 179-212., p. 206) acredita que as crianças eram "metodicamente protegidas por amuletos, talismãs, pedras preciosas, medalhas de coral" (p. 206). Estes amuletos poderiam dar indícios de possíveis perigos, vestígios de que a criança estaria adoecendo ou mesmo algum sinal premonitório de morte. Alexandre de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) prescreveu alguns possíveis "remédios para prevenir este mal [as Bruxas]". Primeiro "he armar os innocentes infantes com o sinal da Cruz [...], Agua benta, reliquias, & imagens de Santos" também são importantes recursos para afastar "os inimigos infernaes", para que "temam combater os Soldadinhos de Christo". Ainda, discorda de alguns métodos utilizados pelos antigos, os quais desconhecemos, por serem "supersticiosos, ou ineficazes para tam grande mal". O segundo alerta estava na forma com que as bruxas costumavam assumir, "entrar ás creanças em figuras de gatos, cachorros, & outros domesticos animaes, por isso he necessario, que naquelles dias antes do Bautismo haja nisto muita vigilância" (p. 173). Para tanto, era importante estar atento aos sinais visíveis que uma criança sob a astúcia de uma bruxa poderia manifestar:

Os sinaes de estar a creança embruxada nam sam faceis de conhecer; pòde ser sinal (como notou DelRio)19 19 Alexandre de Gusmão se referia ao padre jesuíta Martín del Rio (1551-1608), nascido em Amberes, Antuérpia, autor de Disquisitionum magicum e considerado como um importante tratado na literatura demonológica. Sobre o tema ver García (1999). ver alguas gotas de sangue, ou picaduras de alfinetes, ou os beicinhos feridos da peçonha; & se acaso enxergarem algum destes sinaes, he necessario acodir primeiro ao remedio da alma, que he o bautismo, & logo a Deos, & seus Santos pelo remedio do corpo. [...] se a crença estiver a perigo de morrer, a bautisem em casa por meyo do Sacerdote, ou Diacono, se acaso se acharem presentes, quando nam, por qualquer pessoa q´seja, fazendo para isso a fórma, por nam errar em negocio de tanta importancia, que he a seguinte. Lançando sobre a creança agua natural, que he, ou a do mar, rio, poço, ou da chuva, demodo que toque na carne da creança, diga: Antonio, eu te bautiso em nome do Padre, & do Filho, & do Espirito Santo. Amen. (Gusmão, 1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685., p. 173)

Na passagem acima podemos perceber que as crianças embruxadas deviam ser batizadas com certa pressa, sendo admitido, inclusive, o batismo realizado por leigos nos casos em que se deduzia que o recém-nascido estava à mercê de algum perigo. E aqui está a segunda preocupação de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) sobre a necessidade de vigilância dos pais sobre os meninos: batizar rápido, a tempo e com solenidade e com eleição de bons padrinhos. A terceira e última orientação destinava-se exclusivamente à figura materna que deveria, sempre que possível, criar os filhos os seus próprios peitos. Estas talvez fossem recomendações comuns e difundidas à época, capazes de servirem como modo de preparo para a eventual morte da criança.

Nas imagens abaixo,20 20 As obras do renomado artista alemão Daniel Nikolaus Chodowiecki (1726-1801) representam os detalhes da vida burguesa alemã do século 18, de modo que buscava demonstrar o espírito do desenvolvimento de sua época. As imagens que apresentamos são releituras do autor sobre as alegorias presentes em um famoso manual religioso do século 15, intitulado Dança da morte. O artista também ilustrou livros científicos de Basedow, Buffon, Lavater, Pestalozzi e outros importantes pensadores do século 18 europeu. Sobre a biografia de Chodowiecki e a relação de suas obras sugerimos consultar <http://malarze.com/artysta.php?id=55>. embora não do final do século 17 - período de publicação da obra de Gusmão - mas da centúria seguinte, percebemos uma interessante relação entre maternidade e morte filial. Na figura 2 percebe-se a angustia da mulher pela morte que vem lhe buscar - representada por uma caveira - querendo lhe arrancar dos seus filhos. Neste caso duas possibilidades se configuravam: primeiro a das crianças ficarem sem os cuidados da aparente zelosa mãe, e, segundo, das crianças também virem a ser assoladas pela morte, uma vez que estariam sem os cuidados maternos. Na figura 3, vemos a representação da morte alada levando silenciosamente a criança enquanto sua mãe, ou cuidadora, dorme, evidenciando assim, o descuido que possivelmente ocorria com os menores e a necessidade de constante vigilância e atenção que deveria se dar para com as crianças pequenas.

Figura 2
A morte da mãe

Figura 3
A morte da criança

No final do século 17 o padre jesuíta Alexandre de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) chamava a atenção dos pais para a proteção da saúde dos filhos e para os possíveis meios de preservação da vida infantil. Ainda que devessem se preocupar demasiadamente em extirpar doenças e evitar mortes prematuras, os pais deveriam, também, cumprir uma série de obrigações religiosas inerentes ao cuidado espiritual, introduzindo os filhos nos preceitos cristãos:

A primeira cousa pois a que devem attender os pays na creaçam dos filhos, em quanto sam infantes, he aos perigos, a que está exposta aquella tenra idade, enquanto nam recebem a agua do Bautismo, pelo grande perigo de perderem a felicidade eterna morrendo sem ele. (Gusmão, 1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685., p. 170)

Se por considerável período predominou na Europa ocidental as práticas de abandono de crianças enjeitadas e o infanticídio dos indesejáveis, no século 17 luso-brasileiro estas práticas, ainda que reprimidas pela Igreja, eram constantes. Nesta "sociedade atravessada pelo peso da piedade católica, marcada pela culpa e pelo medo dos castigos que a eternidade guardava aos pecadores, expulsar os inocentes era a saída para contornar o indesculpável infanticídio" (Figueiredo, 2014FIGUEIREDO, Luciano R. L. Apresentação: como era perverso o meu francês. In: FRANCO, Renato. A piedade dos outros: o abandono de recém-nascidos em uma vila colonial, século 18. Rio de Janeiro: FGV, 2014, p. 13-22., p. 17)22 22 O abandono dos filhos era uma preocupação católica constante no Brasil colonial (Venancio, 2010). Entre os motivos estavam as dificuldades das famílias para criar um novo agregado, nos casos do filho ser fruto de alguma relação indesejada, ou mesmo, proibida, do nascimento de filhas mulheres, de prole ilegítima e de crianças débeis ou aleijadas, somados aos casos de aversão infantil, quando a criança era tomada como estorvo para a família. Sobre o sentimento de aversão da mãe pelo filho e do entendimento da família de que a criança seria um estorvo, Badinter (1985) realizou interessante análise. .

Alexandre de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.), no XIII capítulo do seu tratado, Da crueldade dos pays, que matam os filhos, pelo nam crear, ou por outros respeitos humanos, buscou vigorosamente reprimir a desumanidade com que os pais abandonavam ou enjeitavam os filhos, e, ainda mais pungente, para os casos em que "a crueldade daquelles pays, que nam só os enjeitam, mas chegam a matar com suas proprias mãos os filhos, que geraram" (p. 99). De acordo com Sandra Corazza (2004CORAZZA, Sandra. História da infância sem fim. Ijuí: Unijuí, 2004.) os desejos relativos da morte e a morte efetiva das crianças concorriam concomitantes com a adoção de medidas que combatiam este tipo de prática. Ainda de acordo com um levantamento realizado pela autora as principais causas mortes praticadas nos infanticídios do século 16 europeu foram: queimaduras com ferros quentes, velas acesas, proximidades com lareiras, ou mesmo em fornos; banhos frios ou deixar propositalmente sem agasalhos; afogados em rios, mar, tinas de água, poços ou latrinas; estrangulamentos, sufocamento; excessivos castigos e severas surras, "abandonar em lugares desertos, para que os animais a comessem; asfixiar na cama; atirar ao solo ou contra a parede; deixá-las cair, enquanto enfaixadas, passando-as de uma janela a outra, ou jogando-as para o alto, como se fossem bolas; deixa-las morrer de fome" (Corazza, 2004CORAZZA, Sandra. História da infância sem fim. Ijuí: Unijuí, 2004., p. 164). Ainda que estas práticas de infanticídio também ocorressem na América portuguesa23 23 Sobre as práticas de infanticídio na América portuguesa a obra organizada por Venancio (2010) apre-senta várias ocorrências entre os séculos 18 e 20, tanto em Portugal, quanto no Brasil. seus motivos estão mais associados à reprovação moral dos nascimentos ilegítimos. Na historiografia brasileira sobre o período colonial não são raros os apontamentos de casos de infanticídios em que "senhores mandando queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das chamas" (Freyre, 1994FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1994., p. 47).

Entre alguns modelos exemplares que foram utilizados por Alexandre de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) destacamos um que narrou a história de um assassinato, seguido de um infanticídio e suicídio de uma irmã do santo e apostólico São Vicente Ferreira (1350-1419) que engravidara em uma relação não consentida com um escravo:

concebèo de hum escravo negro, que atrevida, & aleivosamente com um punhal no peito lhe avia feito força. Vendose daquella sorte a triste senhora, temendo a sua deshonra, & a justa indignaçam de seu marido, matou com peçonha o escravo culpado, & atrás delle a creança innocente. Confessou seu peccado, & arrependida morrèo; depois de morta aparecèo a seu santo irmam feita toda hua ascoa de fogo cõ hu negrinho nas mãos, ao qual comía, & vomitava de continuo com mostras de grande aflicçãm. Admirado o Santo lhe perguntou por sua sorte, & o segredo do negrinho: ao que respondèo a defunta, que ella estava condennada a penas do Purgatorio atè o dia do Juizo, pelos dous homicidios, que avia feito, de pay, & filho, & que em pena da morte do filho, que concebèra do negro escravo, ordenára a Divina Justiça, que na fórma daquelle negrinho o estivesse comendo, & vomitando até o fim do mundo. (Gusmão, 1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685., p. 108)

Após ter sido auxiliada espiritualmente pelo santo irmão, por meio de orações e de "muitas penitencias, & diste muitas Missas", sua alma fora salva dos possíveis tormentos a que "padecia" no Purgatório (Gusmão, 1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685., p. 109). O exemplo simbólico que garantiu a indulgência à irmã de São Vicente, que indesejadamente engravidou em uma violação "atrevida" e forçosa praticada por um escravo, demonstra o que Gusmão (1685) procurou evidenciar: a possibilidade de se enjeitar um filho em detrimento de um sacrifício cruel. Todavia cabe ressaltar a insistência que Gusmão (1685) fez sobre a "ideia de que receber, criar e educar os filhos alheios até à eleição do estado de vida é um ato de suma piedade e caridade cristã para com os infelizes e de sumo merecimento para com Deus" (Freitas, 2011FREITAS, César Augusto Martins Miranda de. Alexandre de Gusmão: da literatura jesuíta de intervenção social. Porto: Universidade do Porto, 2011. 517f. Tese (doutorado em Literaturas e Culturas Românicas). Faculdade de Letras da Universidade do Porto. , p.135).

Percebe-se, então, que preservar a infância, preservar a saúde e a vida da criança ganhava relevância fundamental para homens e mulheres cristãos, evidenciada na importância atribuída aos cuidados, à assistência, à caridade, à instrução dos pais e à realização de leituras espirituais pedagógicas e consoladoras. A vigilância dos pais sobre seus filhos foi expressa por Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) no discurso da acuidade com que as crianças deveriam ser batizadas, ficar próximas às mães e longe das influências de bruxas e de demônios. Evitar doença, abandono e morte das crianças era tão fundamental quanto conduzir a vida nos princípios da fé católica, mas quando a morte efetivamente chegava aos pequenos alguns cuidados por parte dos pais eram fundamentais, como veremos a seguir.

Assistência espiritual e os sufrágios necessários aos meninos defuntos

Ao problematizarmos a morte infantil na produção escrita de Alexandre de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) identificamos que entre as obrigações dos pais para com os filhos estava a incumbência de encaminhar adequadamente o corpo e as almas daqueles que morriam. Como afirmara Gusmão, "nam ha menos obrigação nos pays de procurar o bem eterno das almas dos filhos defuntos, do que há em procurar o bem temporal dos filhos vivos" (Gusmão, 1685, p. 127). Nesse sentido, as práticas que pretendiam assegurar a salvação das almas dos filhos defuntos constituíram-se por uma série de recomendações que deveriam ser atendidas desde a hora da morte da criança, com a oferta de sufrágios de missas, as incessantes orações e as ações pias direcionadas à melhor condução da alma, para que os "anjinhos innocentes logo em morrendo vam ver a face de Deos" (Gusmão, 1685, p. 128). Mas as instruções de Gusmão aos pais não se limitavam às atitudes a serem tomadas no momento da morte da criança ou depois do seu passamento, mas também ao tratamento dedicado à educação, moralização, doutrinação e prática religiosa em vida. No fundo o que faz Gusmão é um alerta sobre aquilo que considera como boa e como má criação, sendo a primeira não limitada ao cuidado com a manutenção sadia do corpo da criança, mas, sobretudo, com o cuidado de sua alma.

Ainda que se considerasse as crianças mais novas como merecedoras de se juntar a Deus tão logo morressem, Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) contraria este entendimento da época e condena a negligência dos pais que não prestassem os devidos cuidados espirituais com os defuntos, os quais não necessariamente teriam a sua salvação assegurada pelo simples fato de serem anjinhos. Fleck e Dillmann (2015FLECK, Eliane Cristina Deckmann; DILLMANN, Mauro. Se viveres como louco, sabes que hás de morrer sem juízo: as orientações para o bem morrer na literatura cristã portuguesa do século XVIII. Revista Brasileira de História, São Paulo, p.183-206, 2015.), ao analisarem as instruções para a boa morte na literatura religiosa portuguesa no período moderno, constataram que muitos fiéis "por não pensarem no momento derradeiro, morriam sem estar em dia com suas obrigações religiosas, sem poder contar com a purificação de sua alma e com sua consciência tranquila" (p. 191). Este estar em dia com as obrigações religiosas também valia para as crianças, mas nesse caso sob a responsabilidade dos pais. Sobre esse processo de displicência e inobservância frente à possibilidade da morte, Gusmão (1685) culpabilizava os pais

que na suposiçam de serem innocentes, lhes nam procuram na hora da morte os meyos espirituaes, q´ para aquella hora ordenou a misericordia de Deos, deixando-os passar desta vida sem confissam, & mais sacramentos, com que poem suas almas a risco nam só de se deterem muitos dias nas penas do Purgatorio, mas ainda a perigo de se condenarem. (Gusmão, 1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685., p. 128)

Verifica-se a incitação à culpa dos pais que, por engano ou por errada consideração, pensavam que os filhos que "passam desta vida" nos seus primeiros anos "não tem necessidade de suffragios" (Gusmão, 1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685., p. 132). Essa culpa era incitada a partir da invocação ao medo da possibilidade da criança defunta permanecer, ainda que por pouco tempo, no Purgatório. Portanto, não apenas os adultos podiam ser condenados, mas até mesmo os mais inocentes pueris. Aos pais que desejassem o bem eterno de seus filhos deveriam, quando o menino estivesse "a perigo de morrer", aplicar-lhe o "remedio da alma", ainda que este menino fosse da idade da inocência, ou da puerícia,24 24 Um interessante estudo sobre as distintas maneiras de representar as idades da vida pode ser encon-trado em Ferreira e Gondra (2007). ou, como em "nam poucas vezes succeder acharse maior innocencia na idade da adolescencia" (Gusmão, 1685, p. 132). Tanto a inocência, quanto os vícios, não eram restritos a uma idade específica, de modo que as crianças também adquiriam condições de ter sua alma destinada ao Purgatório ou ao inferno. Gusmão (1685) exemplificou essas culpabilizações por Gregório Magno,25 25 Gregório Magno (?-604), papa católico (590-604) nascido em Roma é considerado um dos pais da Igreja moderna. Reafirmou o papel da igreja como aglutinadora da sociedade cristã e marcou o seu pontificado pelo ensino do dogma do purgatório, adoção do ofício da missa, assim como o latim como sua língua oficial (600). Disponível em <http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/PPGregM1.html>. Acesso em 19 jan. 2016. que alertava que um menino de cinco anos teria sido condenado por seus pecados, pois "nam só nam vam todos os mininos depos que começam a fallar ao Ceo, mas que alguns vam ao inferno, sendo causas de suas condenaçoens seus proprios pays pela má creação, q´ lhes dão" (Gusmão, 1685, p. 129).

Outro aspecto importante para o jesuíta Alexandre de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) na assistência espiritual das crianças era a atenção dos pais ao sacramento do batismo. De acordo com Pancino (2010PANCINO, Cláudia; SILVERIA, Lygia. Pequeno demais, pouco demais: a criança e a morte na idade moderna. Cadernos de História da Ciência, Instituto Butantan, v. 5, n. 1, 2010, p. 179-212.) ainda que o sacramento tenha sido definido pelo Concílio de Trento, a prática do batismo e sua cerimonialização se modificaram de acordo com os diferentes locais e momentos, bem como aos distintos níveis de interesses nas sociedades cristãs. No discurso de Gusmão (1685) sua ritualística teve por principal finalidade o auxílio e a proteção da criança recém-nascida, mas também assegurava a tranquilidade e o consolo para a família caso a criança morresse. Este aspecto consolador não garantia, contudo, a remissão de algum possível pecado do menino, condição recorrentemente apontada por Gusmão (1685):

Primeiramente he certo, & de Fé difinido no Concilio Tridentino, que os mininos innocentes, que morrem logo depois do Bautismo sem terem uso de razam, vam logo diretos ao Ceo sem passarem pelo Purgatorio, & he sonho de velhas dizer, que passam pelo fogo para mor do leite, que mamáram: porque como o mesmo Concilio diz, immaculados sem culpa, puros, & amados de Deos, como herdeiros de Deos nosso Senhor, & cohereo de Christo, nenhua cousa os detem para que nam vam logo ver a Deos. Porèm nam he certo, que todos os mininos depois que começam a fallar, & ter uso de razam, ainda q´ morrão em muy tenra idade, se salvam todos; ou ao menos entrem no Reyno dos Ceos sem passar pelas penas do Purgatorio; porque como idade de discriçam sejam já capazes de dolo, já sam capazes de peccado, & por conseguinte da pena do pecado. (Gusmão, 1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685., p.128)

Na incerteza da salvação mesmo mediante da pureza da infância, associada aos constantes perigos de eminente morte infantil, o sacramento do batismo tornou-se condição obrigatória, sobretudo, para as crianças que já começavam a falar. Diante das ameaças de permanência do menino defunto no purgatório, das penas e castigos no inferno e da possibilidade simbólica da criança morta vir a reclamar socorro, o batismo se tornou uma grande preocupação, sendo permitido que, até mesmo, leigos pudessem realizar o referido sacramento em caso de necessidade. Conforme destacou Pancino (2010PANCINO, Cláudia; SILVERIA, Lygia. Pequeno demais, pouco demais: a criança e a morte na idade moderna. Cadernos de História da Ciência, Instituto Butantan, v. 5, n. 1, 2010, p. 179-212.) em muitas tradições, marcadamente europeias, era comum o medo de que as almas vagantes dos pequenos mortos sem o batismo se tornassem inquietas e travessas, exibindo-se simbolicamente por meio de pequenos espíritos, fogos fátuos, duendes dos bosques ou das margens dos riachos.

Na concepção de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.), vale reforçar, nem "todos os mininos, que se salvam, vam logo direitos ao Ceo" (Gusmão, 1685, p. 128). Nesse sentido o padre procurava reforçar a ideia de que as almas condenadas poderiam ser socorridas por diferentes modos de intercessão. Sobre estes diferentes modos de intercessão destacamos a mediação divina. Neste caso Gusmão (1685) exemplificou com São Cirilo, ao dizer que um menino, chamado Esquillo, com cerca de doze anos, foi "arrebatado dos Demonios para os infernos" e que só "foi livre das mesmas penas pela intercessam da Virgem" (p. 129). O menino Esquillo "adoecèo gravemente, & chegou a pontos que foi por todos julgado por morto; neste tempo foi arrebatado em espirito, & levado a hua fornalha de fogo ardente para ser nella atormentado". Parecendo não lhe restar outra coisa para além das fornalhas de fogo do inferno, Esquillo encontrou um "postigo aberto, pelo qual se escapou, & deu em hum Palacio muito sumptuoso, no qual estava a Santissima Virgem nossa Senhora em hum Trono de grande magestade". Firmemente advertido e repreendido, bem como por emenda "prometèo de servir dali por diante com todo o affecto a sempre Virgem Maria sobre todoas as cousas abaixo de Deos", o menino Esquillo teve nova oportunidade para penitenciar seus pecados. Sendo salvo pela Virgem, ele se tornaria grande servo de Deus, vindo a ser "Bispo, & depois Monge de Cister" (Gusmão, 1685, p. 129), demonstrando o quanto a fé, o arrependimento e o compromisso virtuoso com a religião católica poderiam ser meios eficazes para garantir adiamento da chegada da morte e posterior salvação da alma.

Além das possíveis intercessões divinas, um segundo conjunto de intervenções foi exemplificado, tratando-se da mediação humana. Tais mediações, promovidas quase sempre familiares, estabeleciam uma "rede de solidariedade entre vivos e mortos" (Rodrigues, 2011RODRIGUES, Cláudia. O impacto das leis testamentárias sobre a economia da salvação no Rio de Janeiro colonial. SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26, 2011. Anais ... São Paulo: Anpuh, 2011, p. 1-7., p. 2). Alexandre de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) exemplificava, com as descrições do Cardeal Baronio,26 26 Cardeal César Baronio (1538-1607), religioso do Oratório, nomeado cardeal em 1596. Destacou-se como erudito e historiador, sem dúvida um dos mais importantes de sua época. Sua obra principal são os Annales ecclesiastici, uma his tória da Igreja em 12 volumes, que vai das ori gens até 1198. Disponível em <http://www.historiadaigreja.com/b/baronio-cesar-1538-1607->. Acesso em 19 jan. 2016. que um menino de sete anos chamado Dinocletes "foi condenado ás penas do Purgatorio, & foi livre dellas pela intercessam de sua irmã Santa Perpetua" (Gusmão, 1685, p. 131).

Portanto, por meio de sufrágios, orações constantes pedindo clemência, a criança poderia ser salva do Purgatório o mais brevemente possível. Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) relatou um caso contado por um irmão da Companhia de Jesus, o padre Francisco de Escalante,27 27 Francisco de Escalante era natural de Laredo, Diocese de Burgos. Entrou para a Companhia de Jesus, no Rio de Janeiro, em março de 1582, aos 19 anos, tendo sido recebido pelo provincial Anchieta, com quem estabeleceu amizade. Em 1583 seguiu com o provincial para a Bahia, onde concluiu seu noviciado. Exerceu seus ofícios na Bahia, vivendo com grande edificação e piedade. Ver Anchieta (1984). que afirmou ter uma criança ficado por cerca de três horas no Purgatório, mas graças aos sufrágios e indulgências sua alma teria sido salva. Ainda, apontou que "afogandose hum minino de dez annos, hum irmam a cujo cargo estava afligindosse pelo estado de sua alma por aver sido morto sem Sacramento, acodio ao irmam Escalante", o qual lhe expressou "que a alma daquelle minino avia estado tres horas no Purgatorio, & que pelos suffragios, & indulgencias, que por elle avia feito saíra do Purgatorio, & estava no Ceo" (Gusmão, 1685, p. 131).

Para reforçar o seu entendimento da importância da intervenção humana sobre o encaminhamento das almas das crianças mortas pelos sufrágios realizados pelos vivos, Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) destacou, como exemplo, a experiência mística da serva dona Marina Escobar que teria revelado, ela mesma, "por estas palavras":

Estando em oraçam me mostrou o Senhor muitas almas de mininos piqueninos como de sete annos para baixo, que me parecia amim padeciam grandes tormentos no Purgatorio; estavam como crucificadas com os bracinhos estendidos, & disseme sua Magestade; tem cuidado destas almas, & roga por ellas, aplicando as Communhões. Pois Senhor meu (disse eu] estes mininos como vam ao Purgatorio, & padecem tantos? Penas padecem (respondèo o Senhor) porèm nam tantas como a ti lastimada de os ver te parece. Sabe, que sam estas almas de mininos de bem pouca idade, que morreram com culpas veniaes, & bem leves, & he necessario, que as purguem; porque como vòs outros quando estes mininos morrem lhes chamais Anjinhos, & imaginais, que logo em morrendo vam direitos ao Ceo, & por essa causa nam offereceis por elles Missas, & oraçoens, vem a ficarse com as oraçoens, & suffragios communs da Igreja, & detemse nas penas, atè satisfazerem tudo por seus cabaes; por esetes, pois me roga tu, & por estes offerece tuas comunhoens: fiz o que o senhor me mandava fazendo oraçam pelas almas destes piqueninos, ficando astás ensinada para conhecer quam exacta he a divina justiça em purificar as almas, que o ham de gozar. Atèqui a Veneral Virgem Mariana de Escobar. (Gusmão, 1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685., p. 131)

A passagem acima é significativa porque sintetiza o pensamento de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) a respeito da passagem das almas dos anjinhos pelo Purgatório, ou seja, as crianças com menos de sete anos de idade, pela necessidade de purgarem os seus pecados, ainda que fossem veniais. Embora abrandasse o seu discurso, considerando que os sofrimentos das almas das crianças não eram de grandes proporções e reforçasse a necessidade de orações e sufrágios, o que Gusmão (1685) pretendia, de fato, era romper com a ideia de que após a morte todo e qualquer menino teria como consequência o encaminhamento da alma diretamente ao céu. E, assim, reforçar nos vivos, especialmente aos pais e familiares, a necessidade de manter a constância das orações, a realização de missas e de comunhões, a vida casta, religiosa e virtuosa.

Em outros termos também é possível aferir que Gusmão buscava realçar um amplo processo moralizador para a sociedade, principalmente para com a educação das crianças. A tendência era de combate à criança delinquente, desobediente aos pais que, por sua vez, também eram sutilmente acusados de negligenciarem a boa educação e a boa criação. A finalidade era a de se evitar comportamentos infantis desviantes e aversivos para minimizar a quantidade de crianças pecadoras em tão tenra idade. Nesse sentido a família, e mais especificamente os pais, tinham importante papel para a socialização e ordenamento moral na padronização de comportamentos, assumindo e responsabilizando-se pela educação, religiosidade e moralização das crianças, pois "á boa puerícia se segue boa mocidade, assim como á boa vida boa morte" (Gusmão, 1685, p. 21).

Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) defendia uma atenção maior à infância, especialmente dos pais para com os filhos. Para a França o historiador Ariès (1981ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.) identificou uma superficialidade do interesse sobre a criança, de modo que a indiferença em relação a ela tornava-se cada vez mais perceptível à medida que a criança crescia. De acordo com o autor, "se ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato" (Ariès, 1981ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981., p. 10).

Todavia, o jesuíta português Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) parece não ter tratado a infância com indiferença. Diante dos inúmeros casos comuns dos anjinhos mortos e talvez para consolar os bons pais educadores que estavam enlutados e que cumpriam rigorosamente todos os sufrágios possíveis, acentuou a importância da moderação na manifestação dos sentimentos pela morte dos filhos:

Há de ser alèm disto moderado o sentimento dos pays nas mortes dos filhos mininos, porque assegurando elles naquella idade a salvaçam, pede o amor bem ordenado, que antes se deviam alegrar, que entristecer. [...] Os pays, que amam os filhos com amor bem ordenado, mais razam tinham de se lembrar da vida eterna dos filhos, q´ de se entristecerem pela morte temporal. [...] E na verdade razam tem de se alegrar o pay na morte do innocente, por ter no Ceo mais hua Estrella, no jardim da Gloria mais hua flor; entre os Espiritos Celestiaes hum Anjinho, & entre os Santos da Gloria hum filho. (Gusmão, 1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685., p. 335)

Percebe-se que Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) apazigua o discurso do sofrimento das almas dos pequenos meninos no Purgatório, pois os pais e mães que bem educavam seus filhos na virtude e na moral cristã teriam meios eficazes para assegurar a eles a salvação da alma, motivo pelo qual deviam os progenitores se alegrarem.

Além disso, a contenção dos gestos demasiados e a moderação das paixões são orientações constantes de comportamentos sociais desejados à época. Nas prédicas de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) os pais deviam assumir a maior responsabilidade na assistência espiritual e na boa educação dos filhos, assim como a culpa pelas incorreções de comportamentos destes eram atribuídas incessantemente aos pais.

Por fim, destacamos que as principais faltas dos pais estavam no negligenciar da considerada boa educação visando ao bom comportamento das crianças, especialmente porque tornariam os filhos, mesmo na mais tenra idade, aptos a transgredirem as leis divinas. Uma vez pecadoras as crianças tinham sua possibilidade de salvação comprometida, tendo a necessidade de purgar seus pecados no Purgatório após a morte.

Considerações finais

Neste artigo analisamos a produção de determinados discursos sobre a infância, a recomendação de práticas sobre a preservação da vida da criança e os conselhos espirituais cristãos diante da morte de meninos.

A obra do jesuíta português Alexandre de Gusmão, intitulada Arte de crear bem os filhos na idade da puericia trazia - obviamente, a contar pelo título - instruções pedagógicas sobre a educação de crianças, fundamentalmente baseado nos princípios morais e doutrinários da Igreja Católica, inclusive aquelas que diziam respeito à morte. No período moderno, principalmente com a consolidação da imprensa entre o século 17 e a primeira metade do século 18, vigorou-se em Portugal "a difusão do discurso religioso sobre a boa morte associado à liturgia, à doutrina e à moral da Igreja Católica, herdeira dos princípios reformistas católicos do século XVI" (Fleck; Dillmann, 2015FLECK, Eliane Cristina Deckmann; DILLMANN, Mauro. Se viveres como louco, sabes que hás de morrer sem juízo: as orientações para o bem morrer na literatura cristã portuguesa do século XVIII. Revista Brasileira de História, São Paulo, p.183-206, 2015., p. 184). Preocupação constante neste período, a morte tornou-se tema frequente do imaginário da sociedade, pois, não obstante, eram elevadas suas taxas.

De acordo com Araújo (1997ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa: atitudes e representações (1700-1830). Lisboa: Notícias, 1997.) o crescimento demográfico das cidades lusitanas, desde os meados do século 17 aos finais do século 18, evidencia um relativo encobrimento da morte infantil, de tal modo que a "percepção da morte infantil é substancialmente distinta da dos adultos" (p. 57), existindo certa resignação ao inevitável. Essa indiferença afetiva pode ser percebida, tanto pela ausência de luto, quanto pela permuta por um novo filho:

A ausência de luto em relação às crianças bem como a compulsão para um tipo de procriação reparadora são duas atitudes intimamente relacionadas e que implicam uma mesma ordem de valores. Só uma morte personalizada supõe um processo de luto, de perda. Ora é duvidoso que o desaparecimento de uma criança fosse sentido como uma perda irreparável. A morte de uma criança, [...] tende a ser compensada, em regra, por outro nascimento, [...] A reparação que se processa no domínio da natureza gera um complexo mecanismo de compensação que, do ponto de vista simbólico, assenta na tendência generalizada de atribuir o nome do filho prematuramente falecido ao nascituro seguinte. (Araújo, 1997ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa: atitudes e representações (1700-1830). Lisboa: Notícias, 1997., p. 57)

Embora houvesse certo sentimento de resignação à morte infantil, o discurso presente na obra de Alexandre de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) indicou a existência de uma constante preocupação com a sobrevivência das crianças. Associado ao projeto cristão da Companhia de Jesus e das convicções da Reforma Católica, Alexandre de Gusmão (1685) buscava na América portuguesa expandir espiritualmente a fé cristã por meio de um modelo educativo para as crianças. A obra é marcadamente retórica e de cunho edificante, de modo que ao valorizar a tradição clássica. Gusmão (1685) procurava convencer aos pais de que pelas práticas de obediência e disciplina poderiam despertar os sentimentos de fé, humildade e renúncia nas crianças. A partir deste modelo, que propunha determinados comportamentos sociais nas crianças, especialmente de caráter religioso, avançamos nossa análise para outras propostas do padre, como a de valorizar a preservação da infância, até mesmo, no momento da sua morte. Nesse sentido, nossa análise centrou-se em dois momentos distintos.

O primeiro buscou relativizar a concepção de que, na Europa Ocidental, a busca da preservação da vida infantil se desenvolveu apenas no período moderno. Desse modo problematizamos a preocupação com a saúde infantil e com a assistência caritativa, bem como os discursos - sobre batismo e sobre o afastamento das crianças dos espíritos maléficos, como as bruxas - e imagens - sobre a morte infantil e materna que alertavam para a necessidade da vida pautada na fé católica.

O segundo compõe as práticas e representações cristãs no cuidado com o menino defunto por um conjunto de prescrições ou sanções espirituais presentes na obra do jesuíta Alexandre de Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.). Destacamos a responsabilidades dos pais e das necessidades de missas, sufrágios, incessantes orações e ações pias como medidas para a salvação das almas pueris. Alertamos, ainda, para a declaração de Gusmão (1685) de que as crianças não seriam totalmente inocentes e não isentas de pecados - principalmente após começarem a falar - e, portanto, poderiam ir para o purgatório ou inferno a fim de pagar suas penas. Nesse sentido outra prédica foi descrita, a possibilidade de intervenção divina e dos pais e familiares, para minimizar as culpas dos danos e pecados das almas infantis que ocupavam o purgatório. Por último, identificamos as culpas, destacadas por Gusmão (1685), dos pais negligentes na boa educação dos filhos em vida - a educação pautada na moral e na doutrina católica - bem como as possíveis omissões nos sufrágios fúnebres.

O modelo enunciado por Gusmão pretendia preservar a saúde, estabelecer padrões morais e religiosos para os comportamentos sociais e oferecer assistência espiritual à infância. Já no século 18, mas ainda em um contexto marcado pelo mesmo pensamento cristão em relação à morte e à salvação da alma, a ideia de se "alcançar a boa morte implicava um aprendizado para o qual o católico deveria estar motivado e empenhado a adquirir e aplicar, considerando que se morria conforme se vivia" (Fleck; Dillmann, 2015FLECK, Eliane Cristina Deckmann; DILLMANN, Mauro. Se viveres como louco, sabes que hás de morrer sem juízo: as orientações para o bem morrer na literatura cristã portuguesa do século XVIII. Revista Brasileira de História, São Paulo, p.183-206, 2015., p. 197). Assim, a responsabilidade sobre a condição de vida e de morte da criança estava com os pais.

As orientações do padre Gusmão (1685GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.) alcançaram as consciências de homens e mulheres católicos que, naquele período, perdiam seus filhos com certa frequência. Ao alertar e culpar os pais pela omissão com os sacramentos, pelo não atendimento aos sufrágios e pela ausência de orações aos meninos defuntos, o que Gusmão (1685) parecia propor era a vivência mais intensa da fé cristã e o comprometimento com a doutrina católica. Na opinião do autor, felizes deveriam ser os pais - responsáveis cristãos - cujos filhos, mesmo mortos, se encontrassem nas formas de estrela no céu ou de anjo no jardim da glória.

Referências

  • ANCHIETA, José de S. J. Cartas: correspondência ativa e passiva - v. 6. São Paulo: Loyola, 1984.
  • ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa: atitudes e representações (1700-1830). Lisboa: Notícias, 1997.
  • ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.
  • ARNAUT DE TOLEDO, Cezar de Alencar; ARAÚJO, Vanessa Freitag de. Educação e religião na obra Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia, de Alexandre de Gusmão, de 1685. SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS, 8, 2009 . Anais ... Campinas: Unicamp, 2009.
  • ARNAUT DE TOLEDO, Cezar de Alencar; BARBOZA, Marcos A. Fundamentos da educação cristã no Brasil colonial no século 17. In: TOLEDO, Cézar de Alencar Arnaut de; RIBAS, Maria Aparecida de Araújo Barreto; SKALINSKI JUNIOR, Oriomar (org.). Origens da educação escolar no Brasil colonial Maringá: UEM, 2015, v. 3, p. 13-40.
  • BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
  • BARBOSA, Maria Hermínia Vieira. Crises de mortalidade em Portugal desde meados do século XVI até ao início do século XX. Guimarães: Núcleo de Estudos de População e Sociedade Universidade do Minho, 2001.
  • BRAUDEL, Fernand. Civilização material e capitalismo, séculos XV-XVIII Lisboa: Cosmos, 1970.
  • CALAINHO, Daniela Buono. Houve queimas de bruxas e autos de fé por aqui? Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2001, p. 23.
  • CORAZZA, Sandra. História da infância sem fim Ijuí: Unijuí, 2004.
  • COSME, João. A consciência sanitária em Portugal nos séculos XVIII-XIX. CEM Cultura, Espaço & Memória: revista do Citcem, n. 5, 2014, p. 45-62.
  • FERNANDES, Rogério; KUHLMANN JÚNIOR, Moysés. Sobre a história da infância. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes (org.). A infância e sua educação: materiais, práticas e representações. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 15-34.
  • FERREIRA, António; GONDRA, José. Idades da vida, infância e a racionalidade médico: higiénica em Portugal e no Brasil (séculos XVII-XIX). In: LOPES, Alberto; FARIA FILHO, Luciano Mendes de; FERNADES, Rogério (orgs.). Para a compreensão histórica da infância Belo Horizonte: Autêntica , 2007, p. 127-146.
  • FIGUEIREDO, Luciano R. L. Apresentação: como era perverso o meu francês. In: FRANCO, Renato. A piedade dos outros: o abandono de recém-nascidos em uma vila colonial, século 18. Rio de Janeiro: FGV, 2014, p. 13-22.
  • FLECK, Eliane Cristina Deckmann; DILLMANN, Mauro. Se viveres como louco, sabes que hás de morrer sem juízo: as orientações para o bem morrer na literatura cristã portuguesa do século XVIII. Revista Brasileira de História, São Paulo, p.183-206, 2015.
  • FRANCO, Renato. A piedade dos outros: o abandono de recém-nascidos em uma vila colonial, século 18. Rio de Janeiro: FGV , 2014.
  • FREITAS, César Augusto Martins Miranda de. Alexandre de Gusmão: da literatura jesuíta de intervenção social. Porto: Universidade do Porto, 2011. 517f. Tese (doutorado em Literaturas e Culturas Românicas). Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
  • FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1994.
  • GARCÍA, Arturo Morgado. Demonios, magos y brujas em la España moderna Cádiz: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cádiz, 1999.
  • GÉLIS, Jacques. A individualização da criança. In: ARIÈS, Philippe; CHARTIER, Roger. História da vida privada São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 305-320.
  • GONDRA, José Gonçalves; SCHUELER, Alessandra. Educação, poder e sociedade no Império brasileiro São Paulo: Cortez, 2008.
  • GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, dedicada ao Minino de Belém, JESU Nazareno. Lisboa: Officina de Miguel Deslandes, 1685.
  • GUSMÃO, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos na idade da puericia, Dedicada ao Menino de Belém Iesu Nazareno. In: GHIGGI, Gomercindo; TAMBARA, Elomar (org.). Séries clássicos de história e filosofia da educação Pelotas: Seiva, 2000.
  • GUSMÃO, Alexandre de. Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia - dedicada ao Menino de Belém Iesu Nazareno. Edição, apresentação e notas Renato Pinto Venâncio, Jânia Martins Ramos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • KULLMANN JR., Moysés. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 2015.
  • LEITE, Miriam L. Moreira. A infância no século XIX segundo memórias e livros de viagem. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org.). História social da infância no Brasil . São Paulo: Cortez , 2011, p. 19-52.
  • LEITE, Serafim. A história da Companhia de Jesus no Brasil São Paulo: Loyola , 2004.
  • O'NEILL, Charles E; DOMÍNGUEZ, Joaquim María. Diccionnario histórico de la Compañía de Jesús: bibliográfico-temático, v. II. Roma: Institutum Historicum; Madrid: Universidad Pontifícia Comillas, 2001.
  • PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas 1600-1774 Lisboa: Notícias , 1997.
  • PANCINO, Cláudia; SILVERIA, Lygia. Pequeno demais, pouco demais: a criança e a morte na idade moderna. Cadernos de História da Ciência, Instituto Butantan, v. 5, n. 1, 2010, p. 179-212.
  • PRIORE, Mary del (org.). História da criança no Brasil São Paulo: Contexto, 1999.
  • PRIORE, Mary del (org.). História das crianças no Brasil São Paulo: Contexto , 2007.
  • QVORTRUP, Jens. A infância enquanto categoria estrutural. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n. 2, 2010, p. 631-643.
  • REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras , 1999.
  • RODRIGUES, Cláudia. O impacto das leis testamentárias sobre a economia da salvação no Rio de Janeiro colonial. SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26, 2011. Anais ... São Paulo: Anpuh, 2011, p. 1-7.
  • SANTOS, Cândido. Nota sobre a mortalidade infantil nos séculos 18 e 19. Humanidades: Revista Trimestral da Aeflup, n. 2, p. 47-75, 1982.
  • SANTOS, Zulmira C. Emblemática, memória e esquecimento: a geografia da salvação e da condenação nos caminhos do prodesse ac delectare na História do Predestinado peregrino e seu irmão Precito (1682) de Alexandre de Gustmão SJ [1629-1724], 2004. Disponível em <Disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3785.pdf >. Acesso em 4 out. 2015.
    » http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3785.pdf
  • SANTOS, Zulmira C. Entre a doutrina e a retórica: os tratados sobre os quatro novíssimos (1622) de frei António Rosado O. P. Revista Faculdade de Letras, Porto, p. 161-172, 1997.
  • VAILATI, Luiz Lima. A morte menina: infância e morte infantil no Brasil dos oitocentos. São Paulo: Alameda, 2010.
  • VAILATI, Luiz Lima. A última morada da infância: representações e transformações dos lugares de sepultamento infantis nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, v. 1, p. 291-306, 2014.
  • VAILATI, Luiz Lima. As fotografias de anjos no Brasil do século XIX. Anais do Museu Paulista, v. 14, 2007, p. 51-71.
  • VAILATI, Luiz Lima. Representações da morte infantil durante o século XIX no Rio de Janeiro e na Inglaterra: um esboço comparativo preliminar. Revista de História (USP), v. 1, 2012, p. 261-294.
  • VENANCIO, Renato Pinto (org.). Uma história social do abandono de crianças: de Portugal ao Brasil: séculos XVIII-XX. São Paulo: Alameda , 2010.
  • Numa perspectiva demográfica, Maria Hermínia Vieira Barbosa (2001), em obra intitulada Crises de morta-lidade em Portugal desde meados do século XVI até ao início do século XX, apresentou um interessante estudo do estado da arte acerca da evolução da mortalidade em Portugal.
  • 2
    O padre jesuíta Alexandre de Gusmão foi considerado em algumas pesquisas - O'Neill; Domínguez (2001), Arnaut Toledo; Araújo (2008, 2009) e Arnaut Toledo (2015) - como sendo o primeiro pedagogo do Brasil. A cargo desse precedente título de primeiro pedagogo não se refere apenas ao fato de ser o primeiro autor a escrever obras de cunho educativo para crianças, ainda no período colonial, mas por sua atuação no projeto evangelizador instaurado pela Companhia de Jesus por grande parte do território ocupado na principal colônia, bem como por ter desempenhado importante papel na fundação do Seminário de Belém da Cachoeira, na Bahia. Este Seminário foi descrito nas palavras de Serafim Leite (2004, p. 241) como sendo uma instituição de características marcadamente popular, pois "nele se criarem os filhos dos moradores, sobretudo dos pobres, que viviam no sertão, e poderem estudar não só os primeiros elementos de ler e escrever, mas também latim e música". Contando com a contrapartida da Coroa portuguesa e com a colaboração privada, o Seminário de Belém teve importante papel na formação de missionários da Companhia de Jesus e no processo educativo dos sujeitos letrados no Recôncavo Baiano. Considerando este cenário de práticas educativas e de modelos de sujeito cristão, acreditamos que a publicação da obra de Alexandre de Gusmão, em Lisboa no ano de 1685, tem alguns aspectos peculiares para o contexto editorial e social da época, que merecem ser destacados. Primeiro, por se tratar de um tratado católico escrito no território da principal colônia ultramarina de Portugal, portanto distante da sede do Reino, que pode evidenciar além da existência de uma rota comercial de livros e livreiros, também o interesse na leitura de obras que demonstravam o modelo de educação que era implantado na Corte e que vislumbrava sua formação na Colônia; segundo por apresentar um discurso cristão-católico que atendia aos anseios oficiais da Igreja, de difundir a sua fé e a sua moral e aos desejos dos leigos por instrução e elevação espiritual através da leitura de obras religiosas.
  • 3
    Alexandre de Gusmão escreveu entre textos catequéticos, sermões e tratados para a educação e com-portamento moral, o total de treze obras: Escola de Belém, Jesus nascido no presépio (Évora, 1678); Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia (Lisboa, 1685); História do predestinado peregrino e seu irmão Precito (Lisboa, 1682); Sermão na catedral da Bahia de Todos os Santos (Lisboa, 1686); Meditação para todos os dias da semana (Lisboa, 1689); Meditationes digestae per annum e Menino Cristão, ambos publicados em 1695; Rosa de Nasareth, nas montanhas de Hebron (Lisboa, 1709); Eleição entre o bem & mal eterno (1717) e as publicações póstumas O corvo e a pomba da Arca de Noé e Árvore da vida, ambos publicados em Lisboa, 1734, Compendium perfectionis religiosea (Veneza, 1783) e Preces recitandae statis temporibus ab alumnis Seminarii Bethlemici (s.d., possivelmente em 1783).
  • 4
    A versão aqui utilizada foi digitalizada pela Biblioteca Nacional de Portugal e está disponível online em http://purl.pt/6369. No entanto, a mesma edição foi editada no ano 2000 em versão fac-símile pelos historiadores da educação Elomar Tambara e Gomercindo Ghiggi.
  • 5
    Conforme Venâncio; Ramos (2004).
  • 6
    Ao longo das 387 páginas de toda obra Gusmão (1685) desenvolveu ensinamentos que são retomados várias vezes, seja pela demonstração de modelos edificantes de vidas virtuosas e exemplares, seja pela incitação à punição e ao castigo como modo corretivo e disciplinador da boa criação.
  • 7
    Sobre a cultura escolar implantada pelos jesuítas na América-portuguesa sugere-se: HANSEN, João Adolfo. Ratio studiorum e política católica ibérica no século 18. In: VIDAL, Diana Gonçalves; HILSDORF, Maria Lúcia Spedo (orgs.). Brasil 500 anos: tópicas em história da educação. São Paulo: USP, 2001, p. 13-42.
  • 8
    Importante referir que neste período - séculos 17 e 18 - a literatura religiosa-pedagógica culpabilizava com veemência pais negligentes e crianças de comportamentos desviantes e aversivos à ordem social, essencialmente burguesa, que se instaurava.
  • 9
    Entre outros veja-se LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude. História dos jovens. V. 1 e 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
  • 10
    Nas duas últimas décadas houve uma intensa publicação de estudos relativos à história da infância. Des-tacamos alguns autores brasileiros que recorrentemente são referências de análise: Mary Del Priore (1999PRIORE, Mary del (org.). História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999., 2007PRIORE, Mary del (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto , 2007.), Luciano Mendes de Faria Filho (2007)FERREIRA, António; GONDRA, José. Idades da vida, infância e a racionalidade médico: higiénica em Portugal e no Brasil (séculos XVII-XIX). In: LOPES, Alberto; FARIA FILHO, Luciano Mendes de; FERNADES, Rogério (orgs.). Para a compreensão histórica da infância. Belo Horizonte: Autêntica , 2007, p. 127-146., Moysés Kuhlmann Jr. (2015)KULLMANN JR., Moysés. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 2015. , Marcos Cezar de Freitas (2011)FREITAS, César Augusto Martins Miranda de. Alexandre de Gusmão: da literatura jesuíta de intervenção social. Porto: Universidade do Porto, 2011. 517f. Tese (doutorado em Literaturas e Culturas Românicas). Faculdade de Letras da Universidade do Porto. e Sandra Corazza (2004)CORAZZA, Sandra. História da infância sem fim. Ijuí: Unijuí, 2004..
  • 11
    O significado da categoria infância, atualmente, é genérico, pois além de permitir inúmeras definições, também decorre do sentido social e cultural que lhe é atribuído. De acordo com Kullmann Jr (2015)KULLMANN JR., Moysés. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 2015. as definições dicionarísticas, em língua portuguesa, consideram-na como período de crescimento, que vai desde o nascimento até a puberdade. Para além do período cronológico e biológico, o autor destaca sua acepção legislativa no Brasil que considera a criança até os 12 anos de idade incompletos e adolescente entre os 12 e os 18 anos. Sobre a infância como categoria veja-se Qvortrup (2010)QVORTRUP, Jens. A infância enquanto categoria estrutural. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n. 2, 2010, p. 631-643..
  • 12
    Philippe Ariès (1981)ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981., em História social da criança e da família discorre sobre a compreensão acerca do fenômeno da infância. Ao discutir as idades da vida, Ariès (1981) mostra que a consolidação de um significado moderno para o termo infância ocorreu apenas em meados do século 17, entre a burguesia francesa. A infância estava ligada à ideia de dependência, segundo o vocabulário utilizado nas relações entre os senhores e seus serviçais. Por volta do século 18, o termo infância passou a ter sentido generalizado, abrangendo todas as classes sociais. Etimologicamente o termo infância - do latim infans - designa aquele que ainda não fala, ou seja, refere-se às crianças muito pequenas. Posteriormente, o termo tornou-se mais abrangente, incluindo crianças maiores.
  • 13
    Sobre o tema da história da morte infantil identificamos a ocorrência de poucos estudos, entre os quais destacamos Pancino; Silveria (2010)PANCINO, Cláudia; SILVERIA, Lygia. Pequeno demais, pouco demais: a criança e a morte na idade moderna. Cadernos de História da Ciência, Instituto Butantan, v. 5, n. 1, 2010, p. 179-212..
  • 14
    Disponível em: https://www.pinterest.com/pin/481885228852673378. Acesso em 10 set. 2015.
  • 15
    De acordo com as análises apresentadas por Santos (1986), apesar da ausência de dados estatísticos para a mortalidade infantil em Portugal até o século 18, sabemos que na França, na segunda metade do século 17 e princípios do século 18, a proporção de crianças que morriam antes de completar o primeiro ano de vida estaria compreendida entre 25% e 33%. Na segunda metade do século 18 esta taxa decairia para 18% a 26%.
  • 16
    De acordo com dados levantados por Santos (1986) os exíguos registros eclesiásticos indicavam o pre-domínio das febres como principal causadora da morte de crianças. Tais febres eram distinguidas por maligna, catarral, febre vermelha, febre tísica e febre podre. Também havia mortes derivadas de diarreia (disenteria), bexigas (varíola), sarampo e o sarampão, outras possíveis causas frequentes. Na América portuguesa, ao que tudo indica, as taxas de mortalidade infantil se assemelhavam com as europeias, todavia, considera-se, conforme estudo de Leite (2011)LEITE, Miriam L. Moreira. A infância no século XIX segundo memórias e livros de viagem. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org.). História social da infância no Brasil . São Paulo: Cortez , 2011, p. 19-52. para o caso do Rio de Janeiro, que as taxas de natalidade eram relativamente inferiores "devido à fraqueza de constituição" (p. 30).
  • 17
    Para uma reflexão mais apurada sobre os processos de higienização em Portugal, neste período, suge-rimos a consulta de Cosme (2014)COSME, João. A consciência sanitária em Portugal nos séculos XVIII-XIX. CEM Cultura, Espaço & Memória: revista do Citcem, n. 5, 2014, p. 45-62..
  • 18
    De acordo com Daniela Buono Calainho (2011) nenhuma mulher considerada bruxa foi queimada no Brasil. Uma possível justificativa seria que todos os casos de réus acusados pelo Santo Ofício eram enviados para Portugal e lá eram julgados. Sobre os processos de bruxaria e inquisição em Portugal sugerimos consultar Paiva (1997)PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas 1600-1774. Lisboa: Notícias , 1997..
  • 19
    Alexandre de Gusmão se referia ao padre jesuíta Martín del Rio (1551-1608), nascido em Amberes, Antuérpia, autor de Disquisitionum magicum e considerado como um importante tratado na literatura demonológica. Sobre o tema ver García (1999)GARCÍA, Arturo Morgado. Demonios, magos y brujas em la España moderna. Cádiz: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cádiz, 1999. .
  • 20
    As obras do renomado artista alemão Daniel Nikolaus Chodowiecki (1726-1801) representam os detalhes da vida burguesa alemã do século 18, de modo que buscava demonstrar o espírito do desenvolvimento de sua época. As imagens que apresentamos são releituras do autor sobre as alegorias presentes em um famoso manual religioso do século 15, intitulado Dança da morte. O artista também ilustrou livros científicos de Basedow, Buffon, Lavater, Pestalozzi e outros importantes pensadores do século 18 europeu. Sobre a biografia de Chodowiecki e a relação de suas obras sugerimos consultar <http://malarze.com/artysta.php?id=55>.
  • 21
    Disponível em <http://mortisia.tumblr.com/post/48004701453/daniel-nikolaus-chodowiecki-1791-an-unusual>. Acesso em 14 set. 2015.
  • 22
    O abandono dos filhos era uma preocupação católica constante no Brasil colonial (Venancio, 2010VENANCIO, Renato Pinto (org.). Uma história social do abandono de crianças: de Portugal ao Brasil: séculos XVIII-XX. São Paulo: Alameda , 2010.). Entre os motivos estavam as dificuldades das famílias para criar um novo agregado, nos casos do filho ser fruto de alguma relação indesejada, ou mesmo, proibida, do nascimento de filhas mulheres, de prole ilegítima e de crianças débeis ou aleijadas, somados aos casos de aversão infantil, quando a criança era tomada como estorvo para a família. Sobre o sentimento de aversão da mãe pelo filho e do entendimento da família de que a criança seria um estorvo, Badinter (1985)BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. realizou interessante análise.
  • 23
    Sobre as práticas de infanticídio na América portuguesa a obra organizada por Venancio (2010)VENANCIO, Renato Pinto (org.). Uma história social do abandono de crianças: de Portugal ao Brasil: séculos XVIII-XX. São Paulo: Alameda , 2010. apre-senta várias ocorrências entre os séculos 18 e 20, tanto em Portugal, quanto no Brasil.
  • 24
    Um interessante estudo sobre as distintas maneiras de representar as idades da vida pode ser encon-trado em Ferreira e Gondra (2007)FERREIRA, António; GONDRA, José. Idades da vida, infância e a racionalidade médico: higiénica em Portugal e no Brasil (séculos XVII-XIX). In: LOPES, Alberto; FARIA FILHO, Luciano Mendes de; FERNADES, Rogério (orgs.). Para a compreensão histórica da infância. Belo Horizonte: Autêntica , 2007, p. 127-146..
  • 25
    Gregório Magno (?-604), papa católico (590-604) nascido em Roma é considerado um dos pais da Igreja moderna. Reafirmou o papel da igreja como aglutinadora da sociedade cristã e marcou o seu pontificado pelo ensino do dogma do purgatório, adoção do ofício da missa, assim como o latim como sua língua oficial (600). Disponível em <http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/PPGregM1.html>. Acesso em 19 jan. 2016.
  • 26
    Cardeal César Baronio (1538-1607), religioso do Oratório, nomeado cardeal em 1596. Destacou-se como erudito e historiador, sem dúvida um dos mais importantes de sua época. Sua obra principal são os Annales ecclesiastici, uma his tória da Igreja em 12 volumes, que vai das ori gens até 1198. Disponível em <http://www.historiadaigreja.com/b/baronio-cesar-1538-1607->. Acesso em 19 jan. 2016.
  • 27
    Francisco de Escalante era natural de Laredo, Diocese de Burgos. Entrou para a Companhia de Jesus, no Rio de Janeiro, em março de 1582, aos 19 anos, tendo sido recebido pelo provincial Anchieta, com quem estabeleceu amizade. Em 1583 seguiu com o provincial para a Bahia, onde concluiu seu noviciado. Exerceu seus ofícios na Bahia, vivendo com grande edificação e piedade. Ver Anchieta (1984)ANCHIETA, José de S. J. Cartas: correspondência ativa e passiva - v. 6. São Paulo: Loyola, 1984..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2016
  • Aceito
    04 Nov 2016
Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação UFRGS - Faculdade de Educação, Av. Paulo Gama, n. 110 | Sala 610, CEP: 90040-060 - Porto Alegre/RS, Tel.: (51) 33084160 - Santa Maria - RS - Brazil
E-mail: rhe.asphe@gmail.com