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DE GRUMETES A KUNUMYS - ESTILOS DE INFÂNCIAS BRASILEIRAS

CABIN BOYS BECOME KUNUMYS - BRAZILIAN CHILDHOOD STYLES

DE GRUMETES A KUNUMYS - ESTILOS DE INFANCIAS BRASILEÑAS

DES GARÇONS DE CABINE DEVIENNENT KUNUMYS - STYLES DE ENFANCES BRÉSILIENS

Resumo

Abordamos aspectos sócio-históricos das infâncias brasileiras, compreendidas como resultado da hibridização de diferentes estilos de infância desde a colonização portuguesa. Argumentamos que o primeiro encontro de diferentes estilos se deu com a fuga de dois grumetes da esquadra de Pedro Álvares Cabral, quando aportada em Porto Seguro no primeiro dia de maio de 1500. Desde então se deu um processo de mútuo conhecimento e transformação entre as crianças/jovens que vieram de Portugal e as indígenas locais. Por meio de uma narrativa especulativa desse encontro, que se apoia em fontes sócio-históricas, destacamos os principais aspectos culturais e educacionais (antropocêntrico/ecocêntrico, adultocêntrico/dialógico) dos dois estilos de infância. A partir da perspectiva sócio-histórica refletimos acerca das infâncias atuais e de seus modelos de educação.

Palavras-chave:
infâncias; abordagem sócio-histórica; estudos pessoa-ambiente; educação indígena; antropocentrismo/ecocentrismo

Abstract

We focus on sociohistorical aspects of Brazilian childhoods, understood as the result of hybridization of different styles of childhood since the Portuguese colonization. It is argued that the first meeting of different childhood styles happened when two cabin boys from the Portuguese squad in the city of Porto Seguro on 1 May 1500. Since then, there was a process of mutual understanding and transformation among children/young people who came from Portugal and the local Indigenous. Through a speculative narrative of this meeting, which is based on socio-historical sources, we highlight the major cultural and educational aspects (anthropocentric/ecocentric, adult-centered/dialogic) of the two styles of childhood. From the socio-historical perspective we reflect on their childhoods and current models of education.

Keywords:
childhood; socio-historical approach; person-environment; indigenous education; anthropocentrism/ecocentrism

Resumen

Enfocamos los aspectos sociohistóricos de las infancias brasileñas, comprendidas como el resultado de la hibridación de diferentes estilos de infancia desde la colonización portuguesa. Se argumenta que el primer encuentro de diferentes estilos ocurrió con la huida de dos grumetes de la escuadra de Pedro Alvares Cabral, cuando aportada en la ciudad de Porto Seguro el 1º mayo 1500. Desde entonces, ocurrió un proceso de mutuo conocimiento y transformación entre los niños/jóvenes que vinieron de Portugal y los indígenas locales. A través de una narrativa especulativa de este encuentro, que se apoya en fuentes sociohistóricas, destacamos los principales aspectos culturales y educacionales (antropocéntrico/ecocéntrico, adultocéntrico/dialógico) de los dos estilos de infancia. A partir de la perspectiva sociohistórica reflexionamos sobre las infancias actuales y de sus modelos de educación.

Palabras clave:
infancia; enfoque sociohistórico; estudios persona-ambiente; educación indígena; antropocentrismo/ecocentrismo

Résumé

Cet article traite des aspects socio-historiques de l'enfance brésilienne, comprise comme un résultat de l'hybridation de différents styles d'enfance depuis de la colonisation portugaise. Nous soutenons que la première réunion de différents styles eu lieu à l'évasion de deux garçons de cabine de la flotte de Cabral arrivée a Porto Seguro le premier jour du mois de mai 1500. Depuis lors, il a commencé um processus de transformation mutuelle chez les enfants/jeunes gens qui sont venus du Portugal et les Indiens de la région. Grâce à un récit spéculatif de cette réunion, qui est basé sur des sources socio-historique, nous mettons en évidence les principaux aspects culturels et éducatifs (anthropocentrique/ecocentric, adultocêntrico/dialogiques) de deux styles d'enfance. Du point de vue socio-historique, nous réfléchissons sur l'actuel modèle éducatif.

Mots-clés:
enfance; approche socio-historique; études personne-environnement; anthropocentrisme/ écocentrisme

Introdução

Abordar o tema da infância no Brasil é sempre uma tarefa plural, são infâncias, construídas por meio de processos sócio-históricos que usam como matéria-prima os estilos de infância disponíveis, em um dado momento e em um dado lugar. Partimos da teoria sócio-histórica vigotskiana que defende a ideia de que não há um padrão de infância ou desenvolvimento universal que se adapte a qualquer contexto. Ao contrário, sem um contexto em que ela aconteça não existe infância, as crianças não são equipadas com um plano de desenvolvimento social, este projeto é dado pela sua cultura que lança mão de diferentes modos e meios de viabilizá-lo. Conforme Vigotski e Luria, “no processo do desenvolvimento histórico da humanidade foram modificados e desenvolvidos não somente as relações externas do homem, não só as relações entre humanidade e natureza, o próprio homem mudou e se desenvolveu, a sua própria natureza mudou” (VYGOTSKIJ; LURIJA, 1987VYGOTSKIJ, L. S.; LURIJA, A. L. La scimmia, l'uommo primitivo, il bambino. Studi sulla storia del comportamento. Firenze: Giunti Barbera, 1987. Publicado originalmente em 1930., p. 64). Assim, nos apoiamos da ideia de não é possível tratar da infância como algo abstrato e universal e por isso devemos nos referir a diferentes estilos de infância vivenciados por crianças conforme seu contexto sócio-histórico.

O estilo de infância vai ser definido a partir dos valores e funções sociais destinados às crianças em diferentes culturas, lugares e tempos, caracterizando tudo que lhes diz respeito, sua participação no coletivo, sua função na dinâmica familiar, as tarefas que lhe são atribuídas conforme sua idade e gênero, seu modo de se vestir e se comportar, sua alimentação, seu cotidiano, sua liberdade e seus interditos. No Brasil contemporâneo temos estilos de infância vivenciados por crianças urbanas e rurais, de interior e de litoral, pobres, ricas e de classe média, indígenas, quilombolas, caiçaras, itinerantes. Em nossa história, estilos de infância indígenas, europeus e africanos foram as matrizes das infâncias brasileiras atuais. Estas três matérias-primas das infâncias brasileiras também são em si muito diversificadas, crianças de vários povos se encontraram no Brasil e contribuíram para as infâncias atuais. Em uma visão retrospectiva dos processos sócio-históricos brasileiros vemos que os estilos de infância indígenas foram confrontados com estilos de infância europeus e logo em seguida incorporaram a influência dos estilos de infância africanos. Desde então se deu um processo de mútuo conhecimento e influência que hoje se apresenta por meio de estilos de infância híbridos e em contínua transformação.

Agora nos resta justificar a razão pela qual julgamos necessário conhecer e refletir acerca dos estilos de infância brasileiros. É que cada um deles imprime nas interações de produção e transmissão de conhecimentos, uma dinâmica mais ou menos antropocêntrica/ecocêntrica e mais ou menos adultocêntrica/dialógica. Cada sociedade vai, por meio da educação, formal ou informal, orientar suas crianças acerca da hierarquia entre os seres vivos, do valor da natureza e de sua participação no cotidiano. Em uma abordagem antropocêntrica os seres e recursos naturais são percebidos e valorizados em razão de sua serventia para os seres humanos que podem dominá-los e utiliza-los conforme suas necessidades e vontades. Já uma abordagem ecocêntrica reconhece que os seres, elementos e ambientes naturais podem suprir as necessidades humanas, mas a interação que as pessoas estabelecem com a natureza é baseada na reciprocidade e na ideia de que todos os seres, inclusive nós, fazem parte de uma só natureza cujos elementos dependem mutuamente uns dos outros. O modo como se educa também vai refletir uma postura mais ou menos adultocêntrica ou dialógica regulando seus níveis de tolerância e autoritarismo e a participação ativa ou passiva das crianças na produção do conhecimento. A educação, escolar ou não, vai, portanto, refletir as expectativas coletivas acerca das crianças e de sua participação na cultura, privilegiando seu bem-estar e senso de realização atual e/ou investindo na sua preparação para o mundo adulto. Desse modo, qualquer reflexão sobre as necessidades básicas das crianças, de sua saúde e educação, de sua participação nas decisões da sociedade, bem como a definição de suas vulnerabilidades e maturidades, devem estar atentas aos estilos de infância, em seus aspectos reais ou imaginários, passados ou atuais.

Nossa reflexão parte do evento que inaugurou o encontro entre dois diferentes estilos de infância quando os portugueses iniciaram sua empresa colonialista no Brasil. O primeiro estilo, local, nativo, indígena, se caracterizava principalmente pelo fato das crianças não trabalharem e passarem os seus dias ao ar livre com os demais seres da natureza que faziam parte de seu mundo em uma relação de reciprocidade, por meio de interações ecocêntricas. Na mesma direção, não havia uma disciplina autoritária dos mais velhos sobre as crianças, os adultos agiam de forma tolerante e respeitosa em relação à primeira fase de vida das pessoas. As crianças são seres que participam da produção dialógica do conhecimento, na qual todos ensinam e todos aprendem. Do outro lado temos o estilo de infância ocidental europeu marcado pela participação das crianças como mão de obra que contribuía para a economia familiar, seja na zona rural ou nos centros urbanos insalubres. As interações com a natureza adotavam a perspectiva do antropocentrismo, na qual os seres e recursos naturais deviam ser dominados e explorados para benefício humano sem ter em si um valor próprio. As crianças economicamente desfavorecidas, que eram a maioria, trabalhavam para seu sustento e estavam numa posição hierárquica inferior à dos adultos que não raramente empregavam a brutalidade e a violência no adestramento dos pequenos. Desse modo observamos um estilo de infância no qual a transmissão do conhecimento se dá de modo adultocêntrico e pouco dialógico, as crianças devem receber o conhecimento, por meios mais ou menos pedagógicos ou violentos. Como veremos este encontro entre diferentes estilos de infância se deu já no primeiro contato entre as embarcações portuguesas que chegaram à costa brasileira e as comunidades indígenas que aí viviam.

Nosso propósito aqui consiste em especular acerca dos desdobramentos da chegada ao Brasil de duas crianças que vieram como grumetes na frota de Cabral em 1500 e que fugiram dos navios para jamais serem mencionadas entre os cronistas da época. Pretendemos destacar as diferenças nos estilos de infância indígenas e europeus do século XVI, sobretudo no que concerne a interação das crianças com os seres e ambientes naturais, o modo de educação e a sua participação nas atividades coletivas. O uso de fontes bibliográficas de diferentes ramos disciplinares é o desafio e o meio pelo qual traçamos nossa narrativa, cientes de que um tema tão complexo e rico jamais poderia ser esgotado em um artigo. No Brasil, o campo de pesquisas sobre a infância e suas concepções é amplo, crítico e diversificado, dispomos de um rico panorama de estudos interdisciplinares que influenciaram nossa empreitada e que devem ser consultados para maior aprofundamento no tema (BUSS-SIMÃO; MEDEIROS; SILVA FILHO, 2010BUSS-SIMÃO, M.; MEDEIROS, F. E. D.; SILVA FILHO, J. J. D. Corpo e Infância: natureza e cultura em confronto. Educação em Revista, v. XXVI, n. 3, p. 151-168, 2010.; BUJES, 2002BUJES, M. I. E. A invenção do eu infantil: dispositivos pedagógicos em ação. Revista Brasileira de Educação, v. 21, p. 17-39, 2002.; LOPES, 2008LOPES, J. J. M. Geografia das Crianças, Geografia das Infâncias: a contribuição da Geografia para o estudo das crianças e de suas infâncias. Contexto & Educação, v. XXIII, n. 79, p. 65-82, 2008.; PRIORI, 2004PRIORI, M. D. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.). Portanto, explicações e ressalvas feitas, podemos iniciar nossa história e convidar o leitor a imaginar o que pode ter acontecido com os meninos que vieram de Portugal e decidiram por aqui ficar.

Os grumetes que chegaram de Portugal

As crianças europeias começaram a chegar ao Brasil no momento mesmo de seu descobrimento oficial em 1500. A maioria das fontes históricas que trata deste evento indica de que a costa americana, mesmo a do sul, já havia sido visitada por europeus, porém, para nosso escopo, é suficiente aceitar que a partir da descoberta oficial do território brasileiro por Portugal é que o contato entre europeus e ameríndios se deu de modo recorrente, intenso, na maioria das vezes violento e certamente irreversível. Foi esse o marco do encontro dos europeus com o que denominaram como uma “parcela esquecida da humanidade”. (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, L. M.; STARLING, M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 22).

Ao tratar da geografia da infância no Brasil, Lopes (2008LOPES, J. J. M. Geografia das Crianças, Geografia das Infâncias: a contribuição da Geografia para o estudo das crianças e de suas infâncias. Contexto & Educação, v. XXIII, n. 79, p. 65-82, 2008.) nos remete à famosa carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal D. Manoel, quando esta relata que quatro pessoas não voltaram a bordo após a parada da esquadra de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro no dia 1º de maio do ano de 1500, sendo dois degredados e dois grumetes, “creo Snõr que com estes dous degradados que aquy ficam ficam / mais dous grometes que esta noute se sairam desta naao no esquj fe em terra fogidos os quaaes nõ vierã majs e creemos que ficaram daquy nosa partida” (CAMINHA, 1500). Os degredados eram condenados em Portugal que comutavam sua pena em exílio nas colônias ultramarinas. Era um modo de esvaziar as prisões da metrópole de cidadãos indesejáveis e perigosos e uma oportunidade para os condenados que viam no exílio uma última alternativa de liberdade. Estes dois que ficaram no Brasil, ao que tudo indica a contragosto, foram incumbidos de conhecerem a terra e a língua (ABREU, 2000ABREU, C. D. Capítulos da História Colonial 1500/1800. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.). Estes homens, que foram posteriormente encontrados e embarcados de volta para Portugal, viveram aqui entre os Tupiniquins por 20 meses até serem recolhidos perto de Porto Seguro em dezembro de 1501, tendo sido um deles aproveitado como tradutor em expedições posteriores (PEREIRA, 2000_____. Índios Tupi-Guarani na pré-história - suas invasões do Brasil e do Paraguai, seu destino após o descobrimento. Maceió: EDUFAL, 2000.). Dos grumetes não se ouviu mais falar, o que já nos revela a pouca conta que as crianças tinham no contexto da época.

E quem eram os grumetes? Conforme os descreve Lopes (Ibidem, p. 66),

recrutados entre as famílias mais pobres de Portugal, aos grumetes cabia realizar diversos trabalhos nas naus. Muitas vezes alojados a céu aberto, com uma porção alimentar de baixa qualidade e escassa, castigadas constantemente por outros tripulantes, assolados por doenças, essas crianças eram as que mais sofriam no duro trabalho de seus cotidianos.

Sua idade variava entre nove e dezesseis anos de idade e muitas pereciam antes mesmo de colocar os pés nas praias americanas, a mortalidade dos embarcados foi calculada em 39% (RAMOS, 2004RAMOS, F. P. A história trágico marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI. In: PRIORI, M. D. História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 19-54.). De acordo com o mesmo autor,

as crianças subiam a bordo somente na condição de grumetes ou pajens, como órfãs do Rei enviadas ao Brasil para se casarem com os súditos da Coroa, ou como passageiros embarcados em companhia dos pais ou de algum parente. (Ibidem, p. 19).

Nas embarcações o ambiente era de promiscuidade e abuso sexual por parte dos marujos e pedófilos. Caso a nave fosse sequestrada por corsários, as crianças eram escravizadas e prostituídas. Em caso de naufrágio eram as mais desprotegidas e abandonadas à própria sorte. Conforme Ramos, o que emerge da história das crianças vindas da Europa nos primeiros navios é uma “história de dor e conflito entre o mundo adulto e o universo infantil”. (Ibidem, p. 20).

Estima-se que os grumetes representassem algo em torno de 18% do total de tripulantes. Ainda conforme o autor, nos séculos que se seguiram ao descobrimento das Américas, a população portuguesa e de um modo geral, europeia, sofria enormes baixas devidas a epidemias, pestes, fome, insalubridade, “enquanto os ingleses procuraram suprir a falta da mão-de-obra adulta livre em seus navios por meio da utilização de escravos e negros alforriados, os portugueses optaram pela utilização de crianças” (Ibidem, p. 23). Conforme veremos adiante, a realidade das crianças europeias no século XVI era de fato muito dura, com uma alta taxa de mortalidade infantil. Ainda conforme o mesmo autor, a expectativa de vida das crianças na Europa entre os séculos XIV e XVIII girava em torno dos 14 anos, com uma elevada taxa de mortalidade até os sete anos de idade, o que contribuía sobremaneira para o sentimento de desvalorização da vida infantil. As crianças da zona rural constituíam importante mão-de-obra para a família, enquanto as das cidades trabalhavam para seu próprio sustento, fazendo com que muitas famílias os enviassem como grumetes. Quando eram órfãos, abandonados ou pedintes, também podiam ser recrutados como mão-de-obra para os navios. Contudo, o recrutamento de grumetes não se fazia apenas com o consentimento da família que, de pleno acordo, recebia seus proventos e se livrava de mais uma boca em um contexto alimentar de insuficiência. Existiu também a prática de rapto de crianças de famílias judias, como forma de manter sob controle o aumento do número crescente de judeus perseguidos que se abrigavam na metrópole portuguesa. (RAMOS, 2004RAMOS, F. P. A história trágico marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI. In: PRIORI, M. D. História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 19-54.).

Foi o domínio náutico e o consequente encontro com outros povos que colocou Portugal no caminho da modernidade, estendendo-a sobre os territórios que ia ocupando (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, L. M.; STARLING, M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.). Na Lisboa cosmopolita se encontravam além dos portugueses das mais distintas regiões, asiáticos, africanos, judeus, árabes e demais europeus. Contudo, como importante polo de navegação e comércio com o Mediterrâneo, o Oriente e a África, Lisboa recebia e irradiava doenças como a peste e o tifo, acrescentados aos problemas próprios de uma cidade que inchava sem saneamento em um contexto de escassez alimentar. Vale também destacar que apesar de Lisboa ser uma zona de convivências pluriétnicas, os governantes portugueses já se apoiavam em uma moral que postulava a superioridade racial e desde 1415 escravizavam negros africanos em Ceuta. (MONTEIRO, 2000MONTEIRO, E. Os Brasis de Uruçumirim. Uma prosa histórica sobre os nativos Tupinambás da Guanabara de Aimberê. Rio de Janeiro: Tauari, 2000.).

No ano de 1500 a população estimada de Portugal era de 1 milhão de pessoas. Lisboa, com 70 mil habitantes, era uma cidade com alta densidade populacional, sem saneamento e violenta (RODRIGUES, 2010RODRIGUES, T. A população portuguesa. Das longas permanências à conquista da modernidade. População e Sociedade, n. 18, p. 21-42, 2010.). A autora estima que no século XVI 63,9% da capital portuguesa tinha taxas de ocupação humana menores que 300 hab/km2, mas que 27,8% encontravam-se elevadamente acima dos 600 hab/km2. Nos séculos XVI e XVII os níveis da mortalidade infantil eram elevados, entre 30% a 40%. A esperança média de vida era baixa, oscilando entre os 25 e os 38 anos. A mortalidade infantil atingia um terço dos nascidos antes de completarem um ano de vida e apenas metade das crianças completava sete anos. Em razão do elevado índice de mortalidade infantil, era apenas a partir dos sete anos de idade que a pessoa era considerada um membro da família e da comunidade, sendo que esta existência de direito só se iniciava a partir dos 12 pela menina e dos 14 para os meninos (Ibidem). Os jovens saíam de casa entre os 13 e 18 anos de vida, significando um alívio das pressões econômicas sobre as famílias. Conforme a autora, a família era rigidamente hierarquizada e se apoiava na desigualdade de seus membros. De um modo geral, a grande parte da população portuguesa era muito pobre vivendo em uma sociedade violenta e aterrorizada pela Inquisição que se ingeria na vida das famílias, promovendo a expiação e a delação de comportamentos contrários aos preceitos morais da Igreja.

Nas embarcações que partiam de Lisboa, os grumetes estavam na posição mais baixa da hierarquia da marinha portuguesa, mesmo abaixo dos pajens que, apesar de também serem crianças e receberem menos por seus serviços, os exploravam como forma de dividir seu próprio trabalho. Enquanto um marinheiro recebia 10 cruzados mensais além de dez quintais de pimenta, os grumetes recebiam apenas a metade e o pajem recebia apenas um terço (MICELI, 1992). A viagem de Portugal ao Brasil poderia durar entre quatro semanas e três meses e as acomodações dos grumetes eram as piores possíveis, muitas vezes dormiam ao relento, esparramados sobre as mercadorias. As condições gerais dos navios eram realmente penosas, a depender do tempo de viagem se dava a inevitável escassez de alimentos em alto mar. Além da fome, toda a tripulação podia ser acometida com doenças como o escorbuto e infecções causadas pela péssima qualidade da água disponível e das condições precárias de higiene (SCHWARCZ; STARLING, 2015SCHWARCZ, L. M.; STARLING, M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.). Neste contexto, as crianças eram as primeiras vítimas de inanição e doenças, o que contribuía decisivamente para sua mortalidade. Em situação de escassez os grumetes podiam mesmo se alimentar de baratas e ratos ou ainda de aves que vinham beliscar cadáveres a bordo (RAMOS, 2004RAMOS, F. P. A história trágico marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI. In: PRIORI, M. D. História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 19-54.). Um grumete, caso sobrevivesse, poderia fazer carreira na Marinha, mas não iria jamais ascender ao posto de capitão, esses cargos eram destinados a pessoas da nobreza. A baixa mobilidade social era própria dos contextos europeus da época.

Como assinalamos acima, outras crianças vieram nas embarcações europeias que passaram pelo Brasil na época como os pajens aos quais cabiam as tarefas mais domésticas e pessoais de um determinado oficial. Apesar de sofrerem menos castigos físicos também eram submetidos a estupros e pedofilias. Pode-se dizer que tinham uma alimentação melhor que a dos grumetes, visto que estavam sempre entre oficiais onde a comida era decerto melhor e mais farta. Há também relatos de crianças passageiras com suas famílias, ou ainda aprendizes junto a um oficial (RAMOS, 2004RAMOS, F. P. A história trágico marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI. In: PRIORI, M. D. História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 19-54.). De um modo geral, todas as crianças embarcadas sem suas famílias passavam por uma maior ou menor privação, exploração e maus-tratos de toda ordem e não raramente caíam ao mar e morriam afogadas. Quase nenhuma também sobrevivia ao naufrágio ou as difíceis condições que encontravam em terra. Foi este estilo de infância europeia, exportada como mão de obra desqualificada e de baixo custo que entrou em contato com outro estilo de infância, próprio das comunidades indígenas presentes no litoral brasileiro.

As crianças Tupis que aqui viviam

Os índios encontrados pela frota de Cabral no litoral de Porto Seguro eram de matriz tupi, cujos ancestrais amazônicos haviam conquistado a costa da Bahia por volta de 1400, no que ficou conhecido como a “Guerra dos Tupinambás”, processo que impeliu outros povos indígenas para o interior (PEREIRA, 1984PEREIRA, M. S. A navegação de 1501 ao Brasil e Américo Vespúcio. Rio de Janeiro: ASA, 1984.). Estes que se fixaram no litoral sul da Bahia foram denominados de Tupiniquins e permaneceram em confronto com as outras nações indígenas. De um modo geral, as tribos tupis do litoral apresentavam uma uniformidade de costumes, falavam a mesma língua e compartilhavam uma cultura comum. Portanto, neste trabalho ressaltaremos estes traços das comunidades tupis em relação à infância sem colocar relevo a singularidades de cada grupo que certamente existiram.

De acordo com Fernandes (FERNANDES, 1948FERNANDES, F. A organização social dos Tupinambá. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948.), antropólogo que sistematizou as informações de diferentes cronistas da época, a primeira categoria de idade entre os Tupinambás vale para meninos e meninas e é denominada Peitan, designando os recém-nascidos até o início da marcha. Meninas até sete anos são Kugnatin-miry, entre os sete e os quinze são Kugnatin, entre 15 e 25 são Kugnammuçu, entre os 25 e os 40 são Kugnam e finalmente são Uainuy após os 40. Os meninos são Kunumy-miry até 7/8 anos, Kunumy entre oito e quinze anos, Kunumy-uaçu entre 15 e 25, Aua entre 25 e 40 e Thuyuae após os 40. Desde que nascem as crianças acompanham os mais velhos em suas atividades cotidianas, enquanto Peitan se deslocam junto ao corpo da mãe envoltas em um tipo e faixa ou rede, mamando quando sentem vontade.

Desde que caminham, Kunumy-miry e Kugnatin-miry ainda permanecem na dependência da mãe até os sete ou oito anos de idade, mas já circulam entre outros adultos e crianças que colaboram nos seus cuidados. Conforme crescem, participam de grupos de pares multietários com maior autonomia de deslocamento nos arredores das ocas, mergulhando nos rios e coletando frutas na floresta. A brincadeira é livre e respeitada pelos adultos como atividade importante ao bom desenvolvimento da criança. Entre os meninos se dá a formação de grupos infantis para brincadeiras e jogos, danças e cantos do mundo adulto que são executados sem treino ou compromisso (Ibidem). As meninas também constituem grupos infantis, brincam com o algodão e com ele fazem pequenas redes, assim como se divertem com o manuseio e a modelagem do barro. A observação e participação nas atividades dos mais velhos são livres e experimentais, não sendo direcionada nem limitada. Ao contrário, “os adultos limitavam bastante as interferências diretas na educação dos Kunumys e das Kugnatins (...) meninos e meninas viviam antecipadamente, em seus grupos infantis, situações existenciais da comunidade” (Ibidem, p. 247). É somente a partir dos quinze anos que os jovens participam ativamente das atividades do sustento familiar como o trabalho nas roças para as moças e as caçadas para os rapazes.

Jean de Léry, francês que participou de uma expedição francesa em 1557 (a publicação de seu relato é de 1578) já assinalava as diferenças no modo de cuidar e educar os filhos entre os Tupinambás,

Embora por cá se pense vulgarmente que as crianças ficam deformadas e com as pernas tortas se na primeira infância não forem bem apertadas e enfaixadas, eu digo que, embora não seja isso que os Americanos fazem às suas crianças (que, como já disse, desde a nascença são agarradas e deitadas sem qualquer invólucro), é impossível ver crianças que caminhem ou se mantenham mais direitas que elas. (LÉRY, 2003LÉRY, J. D. Os Índios do Brasil. Lisboa: Teorema, 2003. Publicado originalmente em 1578., p. 124).

Aqui nos deparamos com dois modos muito diferentes de cuidado e disciplina do corpo infantil, enquanto que na Europa se enfaixavam as crianças objetivando um maior tônus muscular e postura, entre os índios os bebés tinham o corpo mais exposto e livre para o movimento.

Hans Staden, alemão que em 1554 passou nove meses refém dos Tupinambás no litoral paulista, descreve que a nomeação das crianças nascidas era feita coletivamente, geralmente um nome de pássaro, animal ou fruta (STADEN, 2011STADEN, H. Duas Viagens ao Brasil. Porto Alegre: R&PM, 2011. Publicado originalmente em 1526.). As crianças eram produtivas e contribuíam para a alimentação da família na medida de suas possibilidades, conforme relatou, “Os filhos que eles têm, quando crescem e ficam rapazes, vão para a caça. Toda criança entrega tudo o que tem para a mãe. Ela então cozinha a caça e divide com os outros” (Ibidem, p. 152). Outro trecho curioso relatado por Hans Staden nos permite conhecer uma estratégia de educação que incutia a obediência entre os pequenos:

um chefe ia de manhãzinha de uma cabana para outra e arranhava as crianças nas pernas para torna-las férteis, de modo que os pais pudessem ameaçá-las quando estivessem mal-educadas; ‘Ele vem de novo! ’. Assim pretendiam fazer as crianças ficarem quietas. (STADEN, 2011STADEN, H. Duas Viagens ao Brasil. Porto Alegre: R&PM, 2011. Publicado originalmente em 1526., p. 152).

De todo modo, como a tantos europeus, surpreendeu o estilo de infância destes povos, no qual as crianças participavam das atividades da tribo mas sem a imposição de qualquer disciplina rígida ou contrariedade, permitindo-lhes cotidianos livres ao ar-livre junto de seus parentes. Segue a descrição do estilo de infância tupi que surpreendeu Staden,

Todos criam seus filhos viciosamente sem nenhuma maneira de castigo, e mamam até idade de sete, oito anos, se as mães até então não acertam de parir outros que os tirem das vezes. Não há entre eles nenhumas boas artes a que se dêem, nem se ocupam noutro exercício, senão em granjear com seus pais o que hão de comer, debaixo de cujo amparo estão agasalhados até que cada um por si é capaz de buscar sua vida sem mais esperarem heranças deles, nem legítimas de que enriqueçam, somente lhe pagam com aquela criação em que a natureza foi universal a todos os outros animais que não participam da razão”. (STADEN, 2011STADEN, H. Duas Viagens ao Brasil. Porto Alegre: R&PM, 2011. Publicado originalmente em 1526., p. 127).

Os kunumys e kugnatins de Porto Seguro, desde a chegada dos barcos de Cabral na praia, observavam as crianças que com eles vieram, e tudo nelas era surpresa e novidade. Tinham uma pele branca e muitos tinham olhos claros, azuis ou verdes, como certas pedras que recolhiam nos rios. Tinham também tantos pelos no corpo e ainda assim se cobriam, mesmo quando fazia muito calor. As crianças eram visivelmente malnutridas e doentes, os mais velhos lhes gritavam e batiam, coibindo-as a tarefas pouco indicadas para seu tamanho, carregavam muito peso e baldes e estavam sempre com medo. Acompanharam com distância a fuga dos dois grumetes que corriam como desesperados floresta adentro, sem compreender bem porque eles fugiam do seu próprio povo. Seriam eles prisioneiros? Onde estavam suas mães e parentes?

A fuga dos grumetes

Partimos da plausível estimativa de que os dois grumetes da frota de Cabral chegaram com 14 anos de idade em Porto Seguro no ano de 1500. O que aconteceu aos meninos que desembarcaram? Ao contrário dos degredados que foram compelidos a permanecer entre os indígenas, os meninos fugiram após a nave ter se detido por uma semana em Porto Seguro. Teriam eles perecido como a maioria das crianças náufragas diante um meio ambiente completamente desconhecido? Ou, como supomos, foram acolhidos pelos mesmos Tupiniquins entre os quais viveram por 20 meses os degredados?

Durante a semana em que a embarcação permaneceu em Porto Seguro os dois grumetes conheceram um Novo Mundo. Ao observarem a vida que levavam as crianças daquela terra, em completa liberdade e falta de qualquer constrangimento, sem ter medo dos adultos que lhe cercavam, eles resolveram ficar e deixar para trás um estilo de infância de sofrimento e exploração. Na opinião de Dean (DEAN, 1996DEAN, W. A ferro e fogo. A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.), os dois meninos decidiram ficar, “evidentemente acalentando expectativas mais favoráveis neste paraíso reconquistado, ou apenas receando mais o percurso seguinte até o Oriente, fugiram do navio e não foram resgatados”. (Ibidem, p. 62).

Quando os dois grumetes perceberam a movimentação de partida da esquadra, se tornaram mais invisíveis do que nunca e se esconderam na Mata Atlântica, tipo de floresta por eles completamente desconhecido. Correndo foram se adentrando pela mata, através das trilhas que encontravam, buscando se afastar do litoral até terem, por sinais sonoros, a confirmação de que a frota já havia partido. Em uma clareira já bem afastada da praia pararam para descansar na margem de um córrego. Sentaram e beberam sedentos de sua água fresca e cristalina que em nada tinha a ver com o líquido turvo e fétido que bebiam na embarcação. Lavaram-se também a face com a água limpa e pura que saía de dentro da imensidão verde da floresta. Contudo, sabiam que a qualquer momento poderiam ser descobertos por seus patrícios degredados e serem severamente castigados. Também temiam ser encontrados pelos negros da terra que podiam escraviza-los, assim como fazem os portugueses com os negros vindos da África para Lisboa. De todo modo, qualquer coisa fora da nave e distante de seus superiores algozes seria melhor do que o pesadelo que viveram nestes tantos dias de travessia ultramarina. Sabiam também que ficar naquela terra desconhecida significava talvez nunca mais voltar para Lisboa, onde se criaram no cais e nas ruas do entorno do porto e conseguiam se arranjar dia a dia.

Quando ainda se refrescavam no córrego os dois grumetes foram surpreendidos por um grupo de crianças e jovens que surgiram em torno deles de modo tão silencioso que não se aperceberam. Trocaram olhares, cada um querendo ler nos olhos dos outros as suas intenções. Os pequenos indígenas estavam em casa, faziam parte deste mundo verde que os alimentava e protegia, olhavam curiosos para os grumetes paralisados em seus corpos famintos e maltratados. Estes, por sua vez, esperavam qualquer sinal hostil para empreenderem uma escapada. Os kunumys e kugnatins curiosos achavam graça daquelas crianças, de seu modo de trajar e de cobrir os pés, o riso de uns contagiou todo o grupo, mesmo os grumetes já não estavam mais tão tensos e não buscavam mais uma rota de fuga. Os meninos e meninas, todos nus, se aproximavam e lhes tocavam o cabelo e as roupas, sentiam admiração e compaixão, falavam entre si discutindo o que fazer enquanto lhes puxavam pelas mãos por uma trilha da floresta que ia dar nas ocas.

Seres e povos da Mata Atlântica das Américas

A população nativa do Brasil de 1500 não pode ser calculada com exatidão, podendo alcançar até mesmo 8 milhões dos quais entre 25% e 95% foram dizimados (CUNHA, 1992CUNHA, M. C. D. História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.). Estima-se que na época da chegada dos portugueses, um milhão de índios vivia na Mata Atlântica (CABRAL, 2014CABRAL, D. D. C. Na presença da Floresta. Mata Atlântica e história colonial. Rio de Janeiro: Garamond, 2014.). Cada aldeia Tupinambá comportava até mil pessoas (CLASTRES, 2012CLASTRES, P. A Sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2012.). Conforme a carta de Caminha, a tribo encontrada por Cabral na Bahia reunia cerca de quatrocentos indígenas. O modo de vida aqui nos trópicos em nada se aproximava do sofrimento das populações rurais europeias que, em regime de servidão, trabalhavam exaustivamente não apenas para seu sustento mas, sobretudo, para a manutenção da nobreza e do clero e de suas redes de poder e guerras. Aqui na Mata Atlântica, a relação com o trabalho estava vinculada ao atendimento das necessidades de cada comunidade e dependia diretamente da floresta. Conforme relato de Gabriel Soares de Sousa datado de 1587,

quando os Tupinambás vão às suas roças, não trabalham senão das sete horas da manhã até ao meio-dia, e os muito diligentes até horas de véspera; e não comem neste tempo senão depois destas horas, que se vêm para suas casas; os machos costumam a roçar os matos, e os queimam e alimpam a terra deles; e as fêmeas plantam o mantimento e o alimpam; os machos vão buscar a lenha com que se aquentam e se servem, porque não dormem sem fogo, ao longo das redes, que é a sua cama; as fêmeas vão buscar a água à fonte e fazem de comer; e os machos costumam ir lavar as redes aos rios, quando estão sujas. (SOUSA, 1587, p. 311).

Os observadores europeus foram sensíveis a esta participação por imersão dos indígenas no mundo natural que, conforme Gabriel Soares de Sousa, para eles não podia ser externalizado de sua própria natureza.

“São os Tupinambás grandes nadadores e mergulhadores, e quando lhes releva, nadam três e quatro léguas; e são tais que, se de noite não têm com que pescar, se deitam na água e como sentem o peixe consigo, o tomam às mãos de mergulho; e da mesma maneira tiram polvos e lagostins das concavidades do fundo do mar, ao longo da costa.” (SOUSA, 1587, p. 314).

De fato, conforme Clastres (2012CLASTRES, P. A Sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2012.), pesquisas com distintas sociedades de economia de subsistência indicam que suas comunidades não trabalham mais que quatro horas por dia. Para Dean (1996DEAN, W. A ferro e fogo. A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.), a história da Mata Atlântica é sempre a história da interação entre a natureza e as pessoas que nela podiam encontrar plantas para sua alimentação, mas também com propriedades alucinógenas, estimulantes, afrodisíacas, sendo seu uso empregado em cultos, na tintura da pele e na realização de abortos. Ainda que os indígenas manejassem a floresta conforme suas necessidades, valendo-se de fogo no sistema de coivara para instalar suas roças, as florestas ombrófilas densas sul-baianas atingiram um alto grau de biodiversidade em seus vinte e um mil anos de desenvolvimento e foi apenas a partir do século XX que sua devastação foi maciça. (CABRAL, 2014CABRAL, D. D. C. Na presença da Floresta. Mata Atlântica e história colonial. Rio de Janeiro: Garamond, 2014.).

Nos arredores da aldeia era possível encontrar roças com milho, mandioca, amendoim, abóbora e batatas doces, bem como pimentas e demais ervas medicinais, manipuladas e transportadas pelas comunidades indígenas que ocupavam o território. Isso sem falar na sorte de frutas como goiaba, jabuticaba, mamão, caju, araçá, apenas para citar algumas (DEAN, 1996DEAN, W. A ferro e fogo. A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.). As proteínas advinham da pesca e da caça abundantes,

Caçavam veados, saguis, tartarugas, crocodilos, macacos, preguiças, caititus, cutias, tatus, capivaras, antas, pacas e lontras - entre animais maiores -, enquanto suas crianças atacavam ninhos de pássaros, caçavam ratos, lagartos, caranguejos da terra, caramujos e passarinhos e esquadrinhavam a mata em busca de larvas de inseto e mel. (DEAN, 1996DEAN, W. A ferro e fogo. A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 49).

Estes caminhos criados pelos indígenas nas matas para visitarem suas roças, pescar, caçar e se comunicar com outras tribos eram chamados de peabiru.

As florestas garantiam para os povos nativos do Brasil recursos em abundância que não eram desperdiçados nem monopolizados, mas compartilhados entre a comunidade e, de forma mais ou menos violenta, entre as diferentes tribos que se distribuíam pelo território. De acordo com Dean (1996DEAN, W. A ferro e fogo. A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.), a competição entre os próprios tupis era regulada por mecanismos de deslocamento e guerra. Fernão de Magalhães, em sua passagem pela costa brasileira em 1519, descreve como a fartura era onipresente, onde parecia não haver egoísmo,

as gentes desse lugar davam cinco ou seis galinhas para ter uma faca ou um anzol para apanhar peixe; e por um pente ofereciam dois gansos; e por um espelho pequeno ou por uma tesoura tantos peixes que dez homem podiam alimentar-se por eles. (PEILLARD, s/d).

Gandavo, que teve seu relato publicado em 1576, descreve o estilo de moradia e convivência comunitária:

Em cada casa destas vivem todos mui conformes, sem haver nunca entre eles nenhumas diferenças. Antes são tão amigos uns dos outros, que o que é de um é de todos, e sempre de qualquer coisa que um coma por pequena que seja todos os circunstantes hão de participar dela. (GANDAVO, 2008GANDAVO, P. M. D. História da Província de Santa Cruz. São Paulo: Hedra, 2008. Publicado originalmente em 1576., p. 124).

Alguns hábitos alimentares foram descritos por Thévet que esteve na ocupação francesa do Rio de Janeiro e teve seu relato publicado em 1557 (THEVET, 1983THEVET, A. Les singularités de la France Antartique. Les Brésil des Cannibales au XVI siècle. Paris: La Decouverte/Maspero, 1983. Publicado originalmente em 1557.). Segundo o francês, os locais não eram rígidos para os horários das refeições, que eram sempre compartilhadas, sempre recusando o uso do sal de modo a prevenir problemas de saúde futuros. Ainda conforme a descrição do cronista, os tupis não portavam pelos porque se depilavam com cera de abelha, sua pele era limpa, lisa e muitas vezes pintada de jenipapo e outras tinturas e argilas mais ou menos duradouras. Estas eram suas vestes e adereços. Suas joias eram feitas de conchas e penas, bem como de demais materiais que encontravam na floresta. Também traziam rabos de tatus nas perfurações que faziam em suas orelhas, pedras e ossos em furos nos lábios e bochechas. As crianças recolhiam pequenos coquinhos e mariscos contribuindo com o aporte de comida para o grupo conforme suas possibilidades físicas. Desde pequenos os meninos são educados para guerrear e aprendem logo a manejar o arco e a flecha, tanto para caça como que para guerra.

Diante da disponibilidade contínua dos recursos naturais pouco se estocava, apenas peixe seco e farinha para suprir as guerras e as festanças. Estima-se que cada aldeia tupi comportava em média cerca de 600 pessoas com densidade de nove pessoas por km2 (DEAN, 1996DEAN, W. A ferro e fogo. A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.). Como vimos, em Lisboa a densidade podia alcançar até 600 hab/km2 (RODRIGUES, 2010RODRIGUES, T. A população portuguesa. Das longas permanências à conquista da modernidade. População e Sociedade, n. 18, p. 21-42, 2010.), revelando a escassez de recursos que motivaram as pessoas na busca ultramarina, mas, sobretudo, a nefasta desconsideração dos limites da natureza. Nos anos que se seguiram ao contato de 1500, portugueses e demais europeus vinham ao Brasil retirar recursos sem qualquer preocupação com sua finitude, para Dean, “a conservação de recursos naturais iria mostrar-se irrelevante em uma sociedade na qual a conservação da vida humana era irrelevante” (Ibidem, p. 75). As informações acerca da Mata Atlântica acumuladas por milênios foram dizimadas junto com seus povos, tornando aquele ambiente natural desprovido de sentido e, portanto, desprovido de um valor em si. Como bem ressaltam Schwarcz e Starling (2015SCHWARCZ, L. M.; STARLING, M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.), houve um olhar exterior sobre a natureza completamente inverso ao que havia se desenvolvido entre os nativos. De uma maneira geral, na cosmologia dos ameríndios os animais haviam sido em seu passado pessoas e desse modo humanos e não humanos eram todos seres da natureza. Os europeus, imbuídos de seu pensamento judaico-cristão viam os demais seres da natureza como inferiores às pessoas e, portanto, passíveis de subordinação e dominação. E assim foi feito.

De grumetes a kunumys

Os dois grumetes acompanharam as crianças indígenas até a aldeia, onde se sentiram acolhidos e responderam com gratidão e confiança, sentimento impossível diante dos adultos de seu povo. Foi neste momento que eles perceberam que ao saírem da mata de mãos dadas com os meninos e meninas daquela terra eles deixaram de serem grumetes e se tornaram kunumys. Aqui os kunumys brancos se deparam com um mundo sem rei, mas com lei e com fé. Sua lei era a de que todos os seres vivos compartilhavam da mesma existência e sua fé a de que as forças da natureza comandavam todas as formas de vida. Na verdade, a sua fé estava em todos os lugares, circulava pelo meio da mata e se estendia por mares e colinas. Os seres com quem compartilhavam a vida, os animais, as plantas e os rios, o sol, as estrelas e o vento, eram eles os testemunhos de sua fé que os incluía também entre eles, aliás, nunca os havia separado. A lei era aquela que regia todos os seres vivos, respeitados em sua natureza e em sua plenitude. As crianças, seres vivos da sua própria cultura não deviam em modo algum sofrer constrangimento ou contrariedade, quanto mais trabalhos e esforços além de sua capacidade. As crianças devem ser livres na natureza, elas devem aprender com a observação de seus movimentos e quietudes, de seus sons e odores, de suas texturas e cores.

Será que os kunumys brancos adotaram novos nomes, de animais ou demais seres da floresta? Será que também ganharam arcos e flechas e foram treinados para ser guerreiros? Será que ouviram de seus pais adotivos as mesmas palavras que ouviram todos os kunumys? “Meu filho, quando fores da minha idade, sê destro em armas, forte valente e aguerrido, pois só assim te vingarás dos teus inimigos” (CABRAL, op. cit., p. 77, apud GANDAVO; STADEN). Podemos apenas especular sobre os desdobramentos da integração dos kunumys brancos mas o que parece explícito é que eles deixaram uma vida de insalubridade e risco para serem acolhidos respeitosamente entre pessoas que jamais viram, adultos e crianças, curiosos pela sua diferença de corpo e de língua. Os meninos vinham de uma Europa que iniciava a identificar a cidade com a civilização em oposição ao selvagem e bárbaro. Nas terras do Mediterrâneo, após sete mil anos de exploração agrícola e pecuária, o ambiente natural se assemelhava a um deserto e, entre os abastados, o desconhecimento sobre a natureza era um sinal de civilidade (DEAN, 1996DEAN, W. A ferro e fogo. A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.). Mas os dois meninos não eram de classes abastadas, provavelmente vinham do meio agrário e suas famílias dependiam de seus conhecimentos tradicionais na interação direta com o meio natural para garantir sua subsistência e a manutenção das classes ricas que não trabalhavam na terra. Ao contrário, aqui na Mata Atlântica o trabalho é compartilhado por todos, em acordo com suas capacidades cognitivas e físicas, não há a exploração da mão-de-obra servil ou infantil, as crianças são livres sem distinção de castas ou grupos. Isto porque não existem inequidades sociais nem diferenças de classes, mesmo que a autoridade dos mais velhos seja importante, o que garante o poder não é nem a propriedade nem a força, mas o conhecimento e a experiência. Ainda que reconhecidas suas singularidades, “suas diferenças de idade e do tipo de responsabilidade junto à tribo não lhes deslustravam o caráter de iguais” (MONTEIRO, op. cit., p. 3).

Os kunumys brancos vinham embarcados de um mundo urbano, altamente dependente e inter-relacionado com o mundo agrícola, tanto de Portugal como dos lugares com quem comercializava. A natureza a muito já havia sido incorporada no ideário racionalista e judaico-cristão que estabelece uma hierarquia de poder clara entre seres humanos e não-humanos, adotando uma perspectiva radicalmente antropocêntrica. Nesta visão a natureza é vista como matéria a disposição dos homens que podem manipulá-la ao seu bel prazer, derrubando-a, transformando-a em produtos e energia como no caso do consumo de madeira para queima. Já as comunidades indígenas adotam uma abordagem ecocêntrica que dá vida, vontade e poder aos demais seres e elementos naturais. Como descreve Cabral,

Em oposição ao “naturalismo” ocidental - em que os humanos se diferenciam de uma naturalidade biofísica universal a partir de seu pensamento ou espírito -, esse “animismo” ameríndio engendra uma humanidade (espiritualidade) comum no seio da qual os seres se particularizam por seus atributos corporais (op. cit., p. 68).

Assim, para os nativos, os demais seres da floresta são também legítimos outros que são culturalmente incorporados. Quase todos os cronistas destacam o contraste entre os estilos de infância europeu e indígena. Para os europeus da época fazia espanto o fato de não haverem, ao menos entre os tupis, castigos físicos, punições ou repreensões às crianças e, ainda assim, elas serem obedientes e respeitosas com os mais velhos. Porém, para os europeus, os adultos eram por demasiado tolerantes com as crianças e desse modo cultivavam espíritos e corpos indolentes, resistentes à disciplina. Os tupis, de seu lado, percebiam a infância como uma importante fase da vida que devia ser protegida, mas sem lhe tolher sua liberdade de movimentos e sua intuição curiosa. Na educação indígena não é necessário gritar com as crianças nem lhes repreender, elas aprendem fazendo a seu modo, observando e tentando fazer, tudo a seu tempo. Ao se tornarem kunumys brancos nossos grumetes foram os primeiros a incorporarem o processo de hibridização cultural e biológica que se criou a partir do contato em 1500 (CABRAL, Ibidem), desde então os corpos humanos e naturais de culturas distintas se misturaram junto com suas crenças e suas palavras.

Quase dois anos mais tarde após a fuga dos grumetes na esquadra de Cabral, uma nave aportou na praia de Porto Seguro e recolheu os degredados que haviam ficado entre os indígenas e que aceitaram por razões de força maior a transformação dos grumetes em kunumys e jamais os importunaram. Todas as crianças se esconderam na mata, lembrando das histórias que os kunumys brancos lhes contaram acerca de sua vida em Lisboa e dos horríveis dias que passaram no navio. Estes tinham ainda vivos na memória todo o tipo de privação e de falta de liberdade que conheceram nas embarcações e portos pelos quais passaram, lembranças dos homens maus que tanto os fizeram sofrer. Do idioma português que não mais praticavam, nem mesmo entre si, retiveram o nome daquela terra que agora era deles também, o Porto Seguro. Mesmo com visitas pontuais ao litoral brasileiro, foi só a parir de 1530 que Portugal resolveu ocupar o território americano por meio do sistema de capitanias hereditárias. Os kunumys brancos, estimando que viveram por cinquenta anos, o que é bastante se comparada com a estimativa de vida entre 25 e 38 anos em Lisboa na mesma época, viveram até 1536, presenciando a morte maciça de indígenas por doenças trazidas pelos europeus. Imunes às doenças ultramarinhas os kunumys brancos sobreviveram ainda para presenciar a ocupação das terras cada vez mais sistemática e violenta da parte dos pelos portugueses, que, como haviam feito na África, impunham pela força sua autoridade ilegítima, lhes lembrando dos constrangimentos da dominação que tinham bem gravados em suas memórias de infância.

Considerações finais

Vimos neste artigo como no século XVI dois estilos de infância, o indígena e o europeu se encontraram, revelando diferenças que passaram a fazer parte dos estilos de infâncias brasileiros, posteriormente influenciados por de estilos de infância africanos não contemplados aqui em função do pontual momento histórico abordado. Buscamos ilustrar como crianças podem assumir diferentes valores e papéis sociais conforme seus contextos sócio-históricos. Retomando o pressuposto vigotskiano de que o desenvolvimento psicológico das pessoas é configurado conforme sua cultura, ressaltamos as diferenças entre os estilos de infância descritos e seus desdobramentos nas vidas das crianças (VYGOTSKIJ; LURIJA, 1987VYGOTSKIJ, L. S.; LURIJA, A. L. La scimmia, l'uommo primitivo, il bambino. Studi sulla storia del comportamento. Firenze: Giunti Barbera, 1987. Publicado originalmente em 1930.). Destacamos que enquanto a mentalidade ocidental europeia adotava uma perspectiva antropocêntrica na qual os seres humanos se retiravam da natureza para dominá-la, a perspectiva indígena era claramente ecocêntrica, nela as pessoas faziam parte da natureza e, portanto, deviam respeitar a alteridade de seus seres e modular sua existência em conformidade com suas forças. Foi o esgotamento de recursos naturais e humanos na Europa e a dificuldade em obtê-los por rotas mais curtas ao Oriente que impulsionaram a era dos descobrimentos na direção da América, sempre com o objetivo de suprir a colônia com produtos de outras terras e mão-de-obra escrava de outros povos. A inequidade entre as pessoas característica do pensamento ocidental da época também se manifestava na assimetria de poder adultocêntrica sobre as crianças que eram largamente exploradas como força de trabalho e vítimas de maus-tratos. Ao contrário, sob o mesmo princípio de equidade entre os seres naturais, as crianças indígenas não eram subjugadas ou exploradas, seu desenvolvimento se dava de forma livre de constrangimentos e castigos, sua diferença infantil respeitada e protegida.

Este contraste dos estilos de infância analisados nos serve como referência para pensar na educação das crianças brasileiras de hoje. Enquanto permanecemos na perspectiva antropocêntrica que reforça a supremacia dos humanos em relação à natureza, valorizamos estilos de infâncias emparedadas em apartamentos, escolas e shoppings, proporcionando cotidianos desprovidos de interações recorrentes e significativas com os seres e ambientes naturais (TIRIBA et al., 2014TIRIBA, L.; PROFICE, C. C. O direito humano de interação com a natureza. In: TIRIBA, L.; MONTEIRO, A. M. M. Direito ao ambiente como direito à vida: desafios para a Educação em Direitos Humanos. São Paulo: Cortez, 2014. p. 44-77.). Nossas escolas, salvo raras exceções alternativas, privilegiam as dimensões humanas racionais, excluindo a produção do conhecimento do domínio da corporalidade e da natureza. Cada vez mais os espaços verdes e ao ar-livre vão sendo reduzidos nos ambientes escolares e comunitários, o que proporciona para as crianças, sobretudo as mais desfavorecidas, um cotidiano de confinamento, com temperatura e luz continuamente moduladas e com cerceamento do movimento e da ampla circulação. Nos espaços cotidianos de desenvolvimento a natureza é ausente e pouco conhecida pelas crianças e, portanto, pouco valorizada, o que gera desapego ao mundo natural, uma das principais causas dos problemas ambientais contemporâneos. Decorrem deste cotidiano sedentário e dependente de aparatos e dispositivos eletrônicos problemas de saúde física e mental, sendo as crianças as mais vulneráveis a distúrbios como obesidade, diabetes, hipertensão, dificuldade de aprendizagem e déficit de atenção, apenas para citar os mais comuns.

Ainda que hoje as relações entre adultos e crianças estejam mediadas por princípios éticos universais e a exploração e os maus tratos sejam passíveis de punição ainda vivemos em um paradigma adultocêntrico e pouco dialógico, que não considera seriamente a opinião e os desejos infantis tanto no plano educacional como nas decisões políticas. Continuamos a ver as crianças como seres vulneráveis e passivos diante das decisões adultas. Conforme Lopes,

Se a infância é um território no qual se embatem diferentes perspectivas e concepções, onde diferentes agentes atuam na sua constituição, construção e reconstrução, as crianças não vivenciam essas ações que lhe são direcionadas de forma passiva”. (LOPES, 2008LOPES, J. J. M. Geografia das Crianças, Geografia das Infâncias: a contribuição da Geografia para o estudo das crianças e de suas infâncias. Contexto & Educação, v. XXIII, n. 79, p. 65-82, 2008., p. 76).

Assim devemos constatar que há ainda um longo caminho na direção de uma educação de fato centrada na criança e não no que imaginamos que lhe seja fundamental. Devemos melhor observar as preferências infantis em relação aos espaços de escolares, às dinâmicas de produção de conhecimento, aos conteúdos e temas relevantes. O mesmo pode ser dito em relação à participação das crianças na formulação e decisão de políticas públicas e do planejamento comunitário, como por exemplo, na escolha da prevalência de parques e praças em detrimento de lojas e estacionamentos.

Em nossa análise percebemos que diferentes estilos de infância permitem maior ou menor grau maior de autonomia e liberdade, sempre considerando o papel ativo das crianças na construção da história e na significação dos lugares. Sem dúvida, precisamos reaprender sobre a educação indígena e sobre tantas outras educações de comunidades tradicionais que ainda resistem, apesar de tudo que foi feito para sua dissolução. É necessário atualizar nos estilos de infância brasileiros de hoje o forte vínculo das pessoas com os seres naturais e a partir dele orientar nossas práticas cotidianas, com atenção ao equilíbrio entre a flora, a fauna e os processos de vida que lhes dão suporte. Precisamos conhecer a natureza para protegê-la e assim nos proteger enquanto parte dela. Acreditamos ser possível reaprender com as comunidades tradicionais a valorização de conhecimentos não apenas científicos e acadêmicos, mas também míticos, artísticos e corporais. Cada forma de saber, com suas linguagens, amplia nossa própria capacidade de produção de conhecimento. A supremacia do aprendizado coletivo sobre o individual também é uma direção que pode ser adotada a partir do reconhecimento de que a cooperação deve prevalecer sobre a competição, buscando reduzir a desigualdade entre seres vivos, pessoas e povos.

Estes princípios de integração à natureza e protagonismo infantil no processo de produção de conhecimento são norteadores das diretrizes de educação básica escolar e de direitos humanos, sobretudo entre comunidades indígenas, quilombolas e do campo, no modelo de uma educação diferenciada (MEC, 2012a). Neste sentido, a educação escolar diferenciada pode ser considerada como uma dessas rupturas que trazem à tona outros estilos de infância e educação, mais sintonizadas com a grave crise ambiental que enfrentamos neste século XXI. A nosso ver, a educação diferenciada, dirigida a princípio para as comunidades tradicionais, deve ser buscada para todas as crianças brasileiras (PROFICE et al., 2016PROFICE, C. C.; MOREIRA, G. H.; ALMEIDA, M. N. Children and nature in Tukum Village: indigenous education and biophilia. Child and Adolescent Behavior, n. 3, p. 1-6, 2016.). Se atualmente as políticas públicas de educação diferenciada buscam superar nossa dívida histórica com as comunidades invadidas e trazidas a pulso para o Brasil precisamos pensa-la também como dívida ambiental, com os seres e sistemas naturais que foram dizimados e substituídos por outras paisagens no processo de colonização. Assim como as pessoas das comunidades tradicionais envolvidas na construção do Brasil, os seres da natureza também foram radicalmente transformados. Parece-nos claro que considerar culturas como legítimas outras significa também considerar os seres e processos do mundo natural como legítimos outros, apontando para uma bioética sócio-histórica, tarefa assumida pelo que amplamente definimos como educação ambiental. Esta última também tem seu próprio rol de diretrizes e em tese deveria ser praticada em todos os níveis e modalidades de educação (MEC, 2012b). A educação ambiental moderna nasceu junto com a ecologia a partir da percepção de que os seres humanos, com seu desenvolvimento social e tecnológico, haviam alterado de forma radical o equilíbrio entre os seres e processos da natureza. Desse modo, ficou claro que foi a racionalidade humana moderna, materializada via educação na produção do conhecimento científico e tecnológico, a grande responsável pelos graves problemas ambientais que vivemos atualmente. Daí também ficou evidente que precisaríamos de uma nova educação, uma educação explicitamente ambiental, para consertar a racionalidade e refazer as pazes com a natureza, tarefa impossível sem a redução das desigualdades sociais. Para tal missão, a educação ambiental nos orienta para a valorização de saberes sobre a natureza, não apenas aqueles científicos, mas também aqueles próprios das comunidades tradicionais.

Nosso objetivo neste artigo foi o de provocar inquietações acerca dos estilos de infância brasileiros e de suas repercussões no campo da educação, por meio da narrativa de um encontro que confrontou crianças com diferentes modos de viver a infância. O que a abordagem sócio-histórica nos revela é que o Brasil é mesmo um país misturado e híbrido, portador de estilos de infância plurais e em contínua transformação. Concordamos com Schwarcz e Starling quando destacam que “no país, o tradicional convive com o cosmopolita; o urbano com o rural; o exótico com o civilizado - e o mais arcaico e o mais moderno coincidem, um persistindo no outro, como uma interrogação” (2015, p. 19). Ao invés de nos paralisarmos nesta estranheza devemos fazer dialogar seus elementos para a produção de algo novo que reestabeleça o diálogo entre pessoas e natureza, entre crianças e adultos.

Não poderíamos finalizar este texto sem alertar que os kunumys brasileiros de hoje são os mais vulneráveis aos riscos que atingem as crianças brasileiras, têm duas vezes mais risco de morrer antes de completar um ano, são também os mais atingidos pela exclusão escolar que resiste entre os mais desfavorecidos economicamente, os afrodescendentes e as comunidades tradicionais (Unicef, 2015). Conforme o censo demográfico de 2010, 31 % da população indígena atual é composto por quase 250 mil meninas e meninos que, muito frequentemente, abandonam as escolas para trabalhar ou simplesmente por falta de acesso e ainda por tantos outros que não chegam nem mesmo a ser registrados e, portanto, são invisíveis ao Estado e completamente desassistidos por qualquer política pública (IBGE, 2013). Nem todas as crianças indígenas vivem em reservas protegidas e muitas se encontram espalhadas no meio rural e nas comunidades periféricas dos centros urbanos. Como vimos, o Brasil foi inventado por meio da exploração intensiva dos seres e recursos naturais, da subjugação de povos e de culturas. Mas esta história não acabou e ainda é possível dar voz aos kunumys que resistem em cada criança brasileira e reconectá-los com a natureza por meio de modos de produção de conhecimentos ecocêntricos apoiados em princípios de equidade social.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2015
  • Aceito
    18 Mar 2016
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