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A INFLUÊNCIA DA ESCOLA NOVA NO ENSINO DA LÍNGUA MATERNA NA EDUCAÇÃO PRIMÁRIA EM PORTUGAL: ANÁLISE DE UM MANUSCRITO INÉDITO DE UMA PROFESSORA (DÉCADA DE 30, SÉCULO XX)1 1 Este trabalho foi financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto UID/CED/00194/2013 e também do projeto UID/MAT/00013/2013.

THE INFLUENCE OF THE NEW SCHOOL IN THE TEACHING OF MOTHER LANGUAGE IN PRIMARY EDUCATION IN PORTUGAL: ANALYSIS OF AN UNPUBLISHED MANUSCRIPT OF A TEACHER (30’S, 20TH CENTURY)

LA INFLUENCIA DE LA ESCUELA NUEVA EN LA ENSEÑANZA DE LA LENGUA MATERNA EN EDUCACIÓN PRIMARIA EN PORTUGAL: ANÁLISIS DE UN MANUSCRITO INÉDITO DE UNA MAESTRA (DÉCADA DE LOS 30, SIGLO XX)

L’INFLUENCE DE L’ÉCOLE NOUVELLE DANS L’ENSEIGNEMENT DE LA LANGUE MATERNELLE AUX ENSEIGNEMENT PRIMAIRE AUX: ANALISE D’UN MANUSCRIT INEDITE DE UNE ENSEIGNANT PORTUGAL (ANNÉS TRENTE, SIÈCLE XX)

Resumo

Neste artigo, pretende-se analisar um manuscrito original, redigido em 1935 por uma professora de uma escola primária de Portugal, com o propósito de investigar a problemática em torno do uso do ditado e da redação no ensino da Língua Materna, as suas estratégias e práticas de ensino e, ainda, os meios e recursos utilizados no processo de ensino e de aprendizagem. Atendendo à metodologia escolhida (histórica e hermenêutica), identificamos as seguintes categorias de análise: composição, ditado, metodologias, estratégias, meios e recursos de ensino. As principais conclusões deste estudo mostram que a prática de ensino era suportada por uma visão inovadora e muito atual da pedagogia, revelando uma proximidade considerável aos autores e correntes ligadas à Escola Nova.

Palavras-chave:
Escola Nova; ensino primário; língua materna; estratégias; meios e recursos de ensino

Abstract

This article intends to analyze a part of an original manuscript, written in 1935 by a teacher from a Portuguese primary school, with the purpose of investigating the problems regarding the use of dictation and writing in the teaching of Mother Language, its methodologies and practices, as well as the means and resources used in the teaching and learning process. According the chosen methodology (historical and hermeneutical) in this research we have identified the following set of categories which we wanted to be the support of the analysis that we perform: composition, dictation, methodologies, strategies, tools and educational resources. The main conclusions of this study show that teaching practice was supported by an innovative vision and current pedagogy, revealing a considerable proximity to the authors and currents linked to the New School.

Keywords:
New School; primary education; mother language; strategies; tools and teaching resources

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar un manuscrito original, escrito en 1935 por una maestra de una escuela primaria en Portugal, con el fin de investigar los problemas relacionados con el uso de lo dictado y de la escritura en la enseñanza de la lengua materna, sus metodologías y prácticas de la educación y los medios y recursos utilizados en el proceso de enseñanza y aprendizaje. Dada la metodología elegida (histórica y hermenéutica) identificaron las siguientes categorías de análisis que orientaron esta investigación: composición, dictado, metodologías, estrategias, herramientas y recursos educativos. Los principales resultados de este estudio muestran que la enseñanza se apoya en una visión innovadora y muy actual de la pedagogía revelando una proximidad considerable con los autores y corrientes vinculados a la Escuela Nueva.

Palabras clave:
Escuela Nueva; educación primaria; lengua materna; estrategias; medios y recursos educativos

Résumé

Cet article vise à analyser le manuscrit original, écrit en 1935 par un enseignant dans une école primaire au Portugal, afin d'étudier les questions relatives à l'utilisation de le dicton et de l'écriture dans l'enseignement de la langue maternelle, leurs méthodes et pratiques de l'éducation, et les moyens et les ressources utilisées dans le processus d'enseignement et d'apprentissage. Compte tenu de la méthode choisie (historique et herméneutique) a identifié les catégories suivantes d'analyse qui ont guidé cette recherche: la composition, la dictée, méthodologies, stratégies, outils et ressources pédagogiques. Les principales conclusions de cette étude montrent que l'enseignement pratique a été soutenu par une vision innovatrice de la pédagogie actuelle, révélant une proximité considérable aux auteurs et les courants liés à L’école Nouvelle.

Mots-clés:
L’école Nouvelle; l'enseignement primaire; la langue maternelle; des stratégies; des médias et des ressources pédagogiques

Introdução

A educação exige uma permanente reflexão, não só dos intervenientes educativos, mas também da sociedade em geral. Tal como foi feito em Catarino; Escola; Aires (2016CATARINO, Paula; ESCOLA, Joaquim; AIRES, Ana Paula. Redação versus ditado: estratégias para um ensino integrador e inovador. In: MESQUITA, C; PIRES, M. V.; LOPES, R. (Eds.), Livro de atas do 1º encontro internacional de formação na docência, INCTE 2016. Bragança, Portugal: Instituto Politécnico de Bragança, 2016. p. 420-428.), este trabalho pretende refletir sobre

[…] uma das problemáticas pedagógicas que ocupou de forma tão intensa alguns dos espíritos mais elevados da história do pensamento educacional, quer em Portugal, quer na Europa, tendo como pano de fundo um manuscrito inédito intitulado “Importância da redacção na vida social - como eu a ensino na minha Escola. (CATARINO; ESCOLA; AIRES, 2016CATARINO, Paula; ESCOLA, Joaquim; AIRES, Ana Paula. Redação versus ditado: estratégias para um ensino integrador e inovador. In: MESQUITA, C; PIRES, M. V.; LOPES, R. (Eds.), Livro de atas do 1º encontro internacional de formação na docência, INCTE 2016. Bragança, Portugal: Instituto Politécnico de Bragança, 2016. p. 420-428., p. 420).

O documento manuscrito (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935.), produzido pela professora Sara Glória Catarino Noura, com cerca de 30 páginas, constitui um importante contributo para a compreensão do ensino da Língua Materna, na década de trinta, no Ensino Primário em Portugal. A autora discute a importância da redação como fator de agregação e articulação entre os vários conteúdos programáticos. De referir que este manuscrito foi elaborado com o propósito de servir de apoio a uma conferência dirigida, à época, a colegas, ao diretor e ao inspetor orientador.

O manuscrito em análise constitui-se como um documento de elevado valor para a história do Ensino Primário em Portugal e tinha por missão apresentar o que, presentemente, designamos por boas práticas. Nele identificamos vários elementos presentes nas práticas de ensino desta professora, confrontá-los-emos com as melhores práticas que estavam a acontecer em vários países que se encontravam em processo de renovação, evidenciando a atualidade dessas práticas. Assim, dividimos este trabalho em três partes. Na primeira, debatemos os movimentos, os autores, as ideias que marcaram o pensamento e a história da educação europeia e que se refletiram em Portugal. Na segunda, refletimos sobre a metodologia que escorou a análise deste documento. Por fim, partindo de uma metodologia histórica e hermenêutica, levámos a cabo uma análise do documento, tendo por base: os programas do Ensino Primário Elementar; as orientações programáticas em vigor; os programas das disciplinas de cariz pedagógico que integravam os planos de estudos para a formação de professores primários das Escolas Normais Primárias, extintas em 1930 (Decreto nº 18.646 de 19 de Julho de 1930) e das Escolas do Magistério Primário, que vieram substituir as Escolas Normais Primárias. (GOMES, 2001GOMES, Joaquim Ferreira. Novos Estudos de História da Educação. Coimbra: Quarteto, 2001., p. 127). Refletimos, ainda, sobre algumas das passagens que mais contribuem para a compreensão do debate sobre a utilização do ditado e da redação (composição) no ensino da Língua Materna, o papel dos meios e recursos no ensino e finalizamos a investigação com a apresentação de algumas conclusões.

O papel da Escola Nova no contexto do Ensino Primário em Portugal

A Europa foi o chão fértil que viu despontar alguns dos pensadores e alguns dos movimentos mais inovadores e que maior responsabilidade tiveram na profunda transformação dos ideários pedagógicos e educacionais, que mais marcaram a história da educação. As últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX assinalaram o frenesim com que as ideias inovadoras no campo educacional iam emergindo e, ao mesmo tempo, com que alguns dos mais eminentes educadores questionavam e discutiam o sentido e a missão da educação.

No sul da Europa, em solo italiano, começava a brilhar a médica e educadora Maria Montessori (1870-1952). Os seus mestres Itard e Séguin, médicos de formação, influenciam-na, permitindo-lhe trazer para a educação esta importante fonte de inspiração e orientação. Montessori procurou alicerçar a sua pedagogia em princípios científicos, como atesta a sua vasta obra, nomeadamente, de forma clara nos dois volumes da Pedagogie Scientifique. A sua pedagogia colheu no universo médico em que se formou, bem como da influência dos seus mestres, a atenção à especificidade da infância e à relevância que este período tem no desenvolvimento do ser humano. A criança é, nas palavras da pedagoga e a que uma das suas melhores interpretes alude, um “embrião espiritual”. (MÉDICI, 1976MÉDICI, Angéla. A Educação Nova. Porto: Rés, 1976., p. 54). Uma problemática que mereceu um destaque muito especial no pensamento desta pedagoga italiana, secundada por muitos outros autores (FERRIÈRE, 1928FERRIÈRE, Adolphe. A Escola por medida, pelo molde do Professor. Porto: Editora Educação Nacional, 1928.; CLAPARÈDE, 1940), é a atenção concedida aos exames. De referir que esta questão foi duramente criticada pela excessiva importância que lhe foi concedida nos vários sistemas de ensino e pelas implicações e consequências nefastas no equilíbrio e na saúde das crianças e jovens. A problemática do “surmenage”, isto é, da fadiga escolar, ocupa um lugar importante na discussão educacional, convocando ao debate, médicos e educadores.

Em torno do Instituto Jean-Jacques Rousseau, em Genebra, na Suíça, forma-se um círculo de destacados educadores, figuras que marcarão, definitivamente, o destino da educação na Europa e no mundo. Édouard Claparède (1873-1940), Adolphe Ferrière (1879-1960) e Pierre Bouvet (1878-1965), trazem para o centro do debate os princípios, as orientações, os métodos que deveriam regular e guiar a modificação da educação e, desta forma, garantir a mudança de uma sociedade que ameaçava embarcar numa viagem que a conduziria ao primeiro grande conflito mundial, à catástrofe que ensombrou a Europa na 1.ª Grande Guerra.

Fundado por Claparède e dirigido por Pierre Bouvet, (1932), o instituto colocar-se-á sob a égide do filósofo Jean-Jacques Rousseau, em quem encontram uma fonte inspiradora, identificando um novo ideário pedagógico, crítico e contestatário, escorado numa abordagem científica da educação, legitimado pela psicologia experimental, caminho que permitia que se buscassem novas vias para a educação. No seu seio são objeto de acesa discussão as mais recentes experiências pedagógicas de que se tinha notícia, bem como das ideias que se iam disseminando em vários continentes e vários países. Os arautos desta revolução reconheciam que a mudança que se pretendia empreender na escola estava, necessariamente, dependente do reconhecimento do caráter ativo da criança, da atenção ao interesse e à motivação desta na aprendizagem, da preparação criteriosa das atividades e da seleção rigorosa de recursos de ensino por parte dos professores. Como sublinhava um dos últimos diretores do Instituto Jean-Jacques Rousseau, a propósito de Claparède, “a escola deve ser ativa, laboratório e não auditório”. (HAMELINE, 2010HAMELINE, Daniel. Edouard Claparède. Recife: MEC, Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010., p. 24).

As ideias que animaram o movimento da Escola Nova e assolaram a Europa, tiveram um importante impacto na educação em Portugal. António e Luísa Sérgio, Faria de Vasconcelos, Álvaro Viana de Lemos, José Azevedo Coelho, Manuel Ferreira Deusdado, entre outros, destacaram-se, entre nós, no combate pela transformação da escola, pugnando pela alteração da visão tradicional da educação. (FERNANDES, 1978_____. O Pensamento Pedagógico em Portugal. Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1978., 1979; GOMES, 2001GOMES, Joaquim Ferreira. Novos Estudos de História da Educação. Coimbra: Quarteto, 2001.). Estes educadores tiveram o talento de pôr em debate, em solo pátrio, o que, em termos de movimentos e práticas mais inovadoras, se destacavam na Europa. Não se pode olvidar a batalha travada por estas tão proeminentes figuras que ousaram restituir à educação o seu caráter emancipatório, conferir à liberdade uma nova centralidade e reclamar o reconhecimento da infância como período único e decisivo no desenvolvimento da criança e do jovem. Vai-se tornando evidente o confronto entre uma conceção tradicional da Educação e da Educação Nova que se vai consolidando nos países mais desenvolvidos.

Lamentavelmente, o período da vigência do Estado Novo (de 1933 a 1974), assinalou uma profunda rotura na orientação em matéria educativa em que o país seguia, atingindo, mortalmente, os ideais republicanos, os mesmos que haviam promovido um avanço importante na valorização da educação, no combate ao analfabetismo, no alargamento da escolaridade, numa palavra, na democratização do sistema educativo. Este é o contexto em que podemos apreciar o manuscrito inédito.

Numa primeira abordagem, destacamos no manuscrito uma prática, razoavelmente, enraizada no período em que fora escrito. Era praxis recorrente os responsáveis dirigirem um convite aos professores que mais se destacassem para comunicarem as suas orientações pedagógicas, isto é, trazerem e colocarem em discussão, inter pares, essa mesma prática.

Esta conferência inédita destaca, antes de mais, um momento fundamental do desenvolvimento profissional desta professora primária. O documento em análise regista, não só a disponibilidade da professora para participar como palestrante na apresentação da sua prática, mas ao mesmo tempo, a humildade de a partilhar e discutir, deixando um vivo testemunho de um tempo, antecipando o que Donald Schön (1983SCHÖN, Donald. The Reflective Practitioner: How professionals think in action. London: Temple Smith, 1983.), posteriormente, designaria por professor reflexivo. Importa evidenciar, no texto, a visão crítica da docente em relação a fragilidades de que enferma a organização dos programas do Ensino Primário, discutindo e apresentando propostas para as ultrapassar. Torna-se evidente a confrontação e oposição entre uma prática educativa, subordinada ao exame e uma outra que procura relativizar o caráter pernicioso do mesmo. É, pois, com o mesmo sentido que transcrevemos a passagem de Ferrière (1928FERRIÈRE, Adolphe. A Escola por medida, pelo molde do Professor. Porto: Editora Educação Nacional, 1928.) na obra “Transformemos a Escola”. Trata-se de um apelo aos Pais e às Autoridades, onde se percebe o aceso debate que faz em torno dos exames:

O actual sistema dos exames dá origem a abusos universalmente reconhecidos. O excesso de fadiga entre os bons estudantes, o apelo quási exclusivo à memorização, a iniciação ao emprego de subterfúgios entre os alunos pouco escrupulosos, a grande função que o acaso e a sorte desempenham, etc., tudo seria mais que suficiente para condenar os exames tais como são geralmente compreendidos e praticados. O fim que se tinha em vista instituindo os exames - a seleção dos elementos de mais valor, - é mal atingido ou não chega até ser atingido. (FERRIÈRE, 1928FERRIÈRE, Adolphe. A Escola por medida, pelo molde do Professor. Porto: Editora Educação Nacional, 1928., p. 188-189).

Percebe-se, assim, em várias passagens do manuscrito, o modo como toda a organização educativa era turvada e assombrada pelo lugar excessivo que a escola primária concedia aos exames e ao valor sinistro de uma educação subjugada ao exame. A meditação com que esta professora nos brinda, confirma novas possibilidades e argumentos para a compreensão deste debate e confronto. A sua reflexão incide, essencialmente, na discussão de uma questão problemática que era a avaliação do interesse pedagógico da composição, ou do ditado, no domínio da Língua Materna, da relevância funcional da primeira para a vida presente e futura da criança e do desinteresse pedagógico do segundo. A conferência permite-nos, não só aceder a uma leitura inovadora das possibilidades educativas da composição, da redação, das práticas de ensino que melhor respondem ao interesse e motivação das crianças, mas também de estratégia e recursos de ensino facilitadores de uma melhor aprendizagem das crianças.

Em sintonia com Claparède, a professora assume a centralidade da composição. Em oposição ao que se encontrava estatuído no programa do Ensino Primário à época, a autora defende que a composição deve ser introduzida o mais cedo possível, fazendo com que através dela se desenvolvessem todas as outras áreas.

A posição que a professora assume enraíza-se, claramente, na linha e esforço de renovação da pedagogia que o movimento da Escola Nova, tão claramente defendia. (COUSINET, 1975COUSINET, Roger. A Educação Nova. Lisboa: Moraes Editora, 1975.). Nessa medida, toda a preparação da ação educativa deveria ter como foco a criança, estar centrada nesta, respondendo à exigência de Rousseau que preconizava que a criança devia ser pensada como criança e não como homúnculo, adulto em miniatura, ou, na caricatural expressão de Gabriel Marcel, um “pequeno velho”.

A ação educativa não se confunde com o gesto do oleiro, isto é, não é moldar, não é manipular um pedaço de barro absolutamente disponível e conformá-lo, ajustá-lo num molde pré-concebido, aguardando uma matéria inerte a preencher. Ainda que no texto não encontremos nenhuma referência explícita a estas metáforas, poder-se-á sustentar que todo ele é muito mais construído no espírito da metáfora do jardineiro do que do oleiro, e que era, nesta última, que deveria inspirar a ação do professor. Assim, e, numa linha de proximidade a António Sérgio (1974SÉRGIO, António. Ensaios. v. VII. Lisboa: Sá da Costa Editores, 1974.), percebemos a atenção e o cuidado com o ambiente em que se desenvolve a planta e o cuidado em não violentar as possibilidades de um adequado desenvolvimento da criança. Perguntava Sérgio:

Em que consiste, em última análise, o papel característico do jardineiro? Na faina de eliminar toda a sorte de obstáculos ao livre crescimento da sua plantinha; em modificar as condições do ambiente em que brota, da maneira favorável ao vegetal, dando-lhe água, luz, adubação, calor, e o mais que souber, para que ela tome, de todo o contorno, os elementos da vida que lhe estão a conto. Onde o jardineiro sobretudo opera, não é na roseira, mas no ambiente dela: cria um condicionamento favorável à planta, de onde esta absorve o que mais lhe quadra para mais bem se conservar e para mais bem crescer. Se não estou em erro, é essa a função do educador moderno: preparar para a criança um ambiente benéfico e rodeá-la do necessário para que suba ao Espírito, educando-se a si pela força própria, pela autodisciplina da atividade espontânea, em comunidades fraternas. Por outras palavras dispor o ambiente de maneira tal que ela ajude a criança a educar-se a si mesma. (SÉRGIO, 1974SÉRGIO, António. Ensaios. v. VII. Lisboa: Sá da Costa Editores, 1974., p. 217-218).

Ainda, mais adiante, continua:

Não é a educação - repito - uma coisa que damos aos educandos: é o desenvolvimento de tudo que de bom já tragam, e a que somente cumpre desembaraçar a estrada, - provocando-os, em suma, a que se levantem de dentro. Não temos nós que lhe colar as asas: são eles os que marcham, são eles os que avançam, são eles os que sobem, são eles os que voam, são eles os que se formam e que se educam a si, por nós observados e ajudados por nós. (SÉRGIO, 1974SÉRGIO, António. Ensaios. v. VII. Lisboa: Sá da Costa Editores, 1974., p. 218).

Num sentido próximo ao de António Sérgio, Ferrière (1934_____. Transformemos a Escola. Paris: Livraria Francesa e Estrangeira Truchy-Leroy, 1934.) defende “que o motor da vida espiritual é interno: o educador não é ‘oleiro’; é ‘jardineiro’; deve facultar condições materiais, sugestões, estimulantes que façam desabrochar os instintos elevados”. (FERRIÈRE, 1934_____. Transformemos a Escola. Paris: Livraria Francesa e Estrangeira Truchy-Leroy, 1934., p. 80).

Exatamente com este mesmo espírito é que, ao longo do manuscrito, se constrói o sentido da educação, defendendo de forma convicta que a ação educativa tem, por isso mesmo, como ponto de chegada e como ponto de partida, a criança, organizando-lhe através da planificação das aulas e da preparação cuidadosa de todas as atividades, as condições que mais, facilmente, promovem o seu conhecimento, que é crescimento, devendo o professor conformar-se sistematicamente àquela.

Metodologia

Nas últimas décadas, o desenvolvimento da investigação no domínio educativo concedeu uma importância às investigações conduzidas por paradigmas de cariz essencialmente quantitativo, relegando para um lugar de menor importância a investigação de inspiração qualitativa. No entanto, tal posição não rasurou a incontornável importância que a investigação histórica ocupou e continua a ocupar na compreensão dos fenómenos educativos. Nessa medida, a compreensão quer sincrónica, quer diacrónica de determinados fenómenos educativos, exige uma revalorização da metodologia histórica.

As opções metodológicas feitas neste trabalho seguem a perspetiva de Ruiz Berrio (1976, p. 449-450) sobre a metodologia histórica. Esta envolve a heurística, a crítica, a hermenêutica e, por fim, a exposição. No que diz respeito à primeira dimensão, a heurística, Ruiz Berrio (1976, p. 449-50) institui como missão a localização e classificação de documentos. Nesta etapa buscámos levar a cabo a identificação de fontes, quer primárias, quer secundárias, com o intuito de que as mesmas concorressem para o estabelecimento da informação que melhor promovesse a compreensão do que se pretendia investigar. No que respeita às fontes primárias, claramente valorizadas como origem privilegiada de informação na construção do conhecimento histórico (HILL; KERBER, 1967HILL, Joseph; KERBER, August. Models, Methods, and Analytical Procedures in Educational Books. Detroit : Waine Stat University Press, 1967.), “sangue vivificador da investigação histórica”, nas palavras de Cohen e Manion (2002COHEN, Louis; MANION, Lawrence. Métodos de Investigación Educativa. Madrid: Editorial La Muralla, 2002., p. 84), selecionámos duas fontes primárias: um manuscrito inédito e a legislação sobre o ensino primário em Portugal nas primeiras décadas do século XX. Concedemos uma centralidade ao manuscrito inédito, datado de 1935, elaborado pela professora do ensino primário, Sara Noura, com vista à intervenção daquela no quadro de uma comunicação dirigida a outros colegas. Elegemos, ainda, como fonte primária a legislação em vigor, o quadro legal que regulava o ensino primário na década de 30. As fontes secundárias foram essencialmente de dois tipos: obras de historiadores da educação quer em Portugal, quer no mundo e os autores que marcaram mais, decisivamente, a renovação da pedagogia e da educação no início do século XX. Assim, as obras dos autores ligados ao Instituto Jean-Jacques Rousseau, em Genebra, bem como de outros pedagogos que mais se evidenciaram nesse período, mereceram uma atenção especial, nesta investigação.

No que respeita à crítica, externa e interna, tínhamos a preocupação de verificar a veracidade, a autenticidade do documento em análise, isto é, o manuscrito conservado no espólio da família Noura. Quisemos ainda, no âmbito do trabalho da crítica, e tendo por base a hermenêutica (GADAMER, 1984GADAMER, Hans Georg. Verdad y Metodo. Salamanca: Ediciones Siguème, 1984.; RICOUER, 1988; 1989), estabelecer uma base que orientasse a interpretação dos documentos, dos textos identificados e selecionados para apoiar a investigação. A apresentação desta investigação, designada por Ruiz Berrio (1976, p. 472) de exposição, constitui a última etapa.

As hipóteses que nortearam a nossa investigação foram as seguintes:

  1. O manuscrito “Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola” constitui um contributo decisivo para a compreensão do ensino da língua materna no ensino primário, na década de trinta, em Portugal;

  2. O manuscrito inédito permite-nos defender a existência de uma relação entre as posições da autora com as dos principais representantes do movimento da Escola Nova.

Tal como em Catarino, Escola e Aires (2016CATARINO, Paula; ESCOLA, Joaquim; AIRES, Ana Paula. Redação versus ditado: estratégias para um ensino integrador e inovador. In: MESQUITA, C; PIRES, M. V.; LOPES, R. (Eds.), Livro de atas do 1º encontro internacional de formação na docência, INCTE 2016. Bragança, Portugal: Instituto Politécnico de Bragança, 2016. p. 420-428.), confrontaremos essa dimensão inovadora

[…] com os movimentos e conceções educativos da época, numa comunhão de sentido e proximidade entre as posições da autora e as obras de pedagogos mais destacados do movimento da Educação Nova, bem como dos autores portugueses mais relevantes nas primeiras décadas do século XX. (CATARINO; ESCOLA; AIRES, 2016CATARINO, Paula; ESCOLA, Joaquim; AIRES, Ana Paula. Redação versus ditado: estratégias para um ensino integrador e inovador. In: MESQUITA, C; PIRES, M. V.; LOPES, R. (Eds.), Livro de atas do 1º encontro internacional de formação na docência, INCTE 2016. Bragança, Portugal: Instituto Politécnico de Bragança, 2016. p. 420-428., p. 423).

O percurso escolhido para a análise deste documento teve por base a identificação das seguintes categorias: composição, ditado, metodologias, estratégias, meios e recursos de ensino. Através da análise histórica foi possível incluir a articulação entre as posições da professora e dos autores de referência que citamos anteriormente. Mais à frente, identificaremos as orientações oficiais nos programas para o ensino da Língua Materna, Geografia, História e Ciências Naturais e o confronto dos mesmos com o manuscrito.

Orientações programáticas e curriculares para a aprendizagem da Língua Materna: Redação versus ditado

Na época da redação deste manuscrito, o programa em vigor das várias disciplinas, que constituíam o Ensino Primário, fazia parte de um documento oficial designado de “Programas” de 1929. (DECRETO n.º 16:730, Diário de Governo 83, de 13 de abril de 1929).

É curioso notar que os autores, aqui designados de “Comissão organizadora dos programas”, deste normativo legal, não se limitaram, apenas, a elencar os conteúdos referentes a cada uma das disciplinas que faziam parte das quatro classes do Ensino Primário. De facto, lembrando as indicações metodológicas presentes nos programas oficiais atuais, no final do documento disponibilizam um conjunto riquíssimo de Instruções pedagógicas referentes aos vários temas presentes no programa das distintas disciplinas, desde a Língua Materna, à Aritmética, passando pela História e Desenho, até à disciplina de Moral e a Educação Cívica, a que, o então Ministro da Instrução Pública, Gustavo Cordeiro Ramos, faz alusão, referindo que este cumpre o objetivo da “completa elucidação dos programas”. (DECRETO n.º 16:730, Diário de Governo 83, de 13 de abril de 1929, p. 896).

Elegemos o ensino da Língua Materna e, dentro desta, a problemática da redação/composição como núcleo central da nossa análise pela importância que a mesma conquista no próprio manuscrito, aliás, como atesta o título que é dado ao mesmo: “Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha escola”. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 1). Assim, de entre os vários conteúdos que podemos ver elencados no programa da Língua Materna, encontramos a redação/composição e o ditado. Apresentamos, de seguida, na Fig. 01, um excerto do Programa que diz respeito apenas a estes dois tópicos.

Figura 1
Excerto do Programa de Língua Materna. (DECRETO n.º 16:730, Diário de Governo 83, de 13 de abril de 1929, p. 896-897).

De salientar que neste programa era recomendada a composição escrita como objeto de ensino para todas as classes, com exceção da 1.ª classe. No entanto, a professora Sara era apologista da sua utilização também na 1.ª classe. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 16).

No que concerne à composição, parte integrante do programa da Língua Materna a partir da 2.ª classe, é já notória a preocupação dos autores em prepararem os alunos para essa tarefa na 1.ª classe, concretamente, na aquisição de vocabulário que consideram, nesta fase, ser muito simples e limitado. A este respeito, podemos ler nas Instruções referentes a esta classe, que

[...] a aquisição do vocabulário, em geral muito restrito nas crianças, convém que comece cedo o se desenvolva gradualmente, acompanhando as faculdades de observação e memória da criança. (DECRETO n.º 16:730, Diário de Governo 83, de 13 de abril de 1929, p. 899).

Esta preocupação com o desenvolvimento do vocabulário, por parte dos alunos, mantém-se na 2.ª classe, pois é recomendado que se continue com “o enriquecimento do vocabulário sob a direção do professor, que forcejará por que os seus alunos adquiram o material preciso para os exercícios da composição”. (DECRETO n.º 16:730, Diário de Governo 83, de 13 de abril de 1929, p. 899). Ainda, nas Instruções para a Língua Materna da 4.ª classe, salienta-se a continuação do enriquecimento do vocabulário, sugerindo-se o recurso ao dicionário como estratégia de apoio à aprendizagem. Constitui uma recomendação muito relevante a indicação de que não se estigmatize o vocabulário regional.

Os exercícios simples de redação devem continuar na 3.ª classe e dá-se a indicação que estes devem consistir em “sínteses das lições quando a isso se prestem”, sendo exigido aos alunos o “emprego judicioso da pontuação e da acentuação”. (DECRETO n.º 16:730, Diário de Governo 83, de 13 de abril de 1929, p. 899).

É ao longo da 4.ª classe que as composições escritas adquirem um estatuto mais importante, devendo ir-se “intensificando e graduando em dificuldades”, iniciando-se com temas sugeridos pelo professor e depois versando tema livre”. (DECRETO n.º 16:730, Diário de Governo 83, de 13 de abril de 1929, p. 899). Aqui é posto em destaque que “a escola primária não deve pretender fazer estilistas” (DECRETO n.º 16:730, Diário de Governo 83, de 13 de abril de 1929, p. 899), mas antes, ter como objetivo principal desenvolver nos alunos a capacidade de se exprimirem oralmente com correção e com destreza por escrito, por forma a saberem redigir documentos como cartas, telegramas, recibos, declarações, requerimentos e exposições, tão necessárias ao dia-a-dia. A este respeito importa destacar o caráter pragmático e propedêutico que, na época, era conferido ao Ensino Primário. Assim, nas três primeiras classes devia-se preocupar com o ensino elementar, isto é, os alunos deviam saber ler, escrever e contar corretamente, e na 4.ª classe oferecer um ensino, dito complementar, que proporcionasse “os conhecimentos indispensáveis a todos aqueles que não possam continuar os seus estudos”. (DECRETO n.º 16:730, Diário de Governo 83, de 13 de abril de 1929, p. 896). Desta forma, os alunos eram preparados para a vida ativa com as ferramentas necessárias para superar os problemas do quotidiano. Esta ideia é corroborada pela professora Sara, pois no que concerne a esta questão, afirma que

[...] o ensino da redacção tem grande importância na vida social, quando prepara o indivíduo devidamente para viver na sociedade. Ela ensina-o a pensar, a reflectir, leva-o a expressar corretamente as suas ideias, a comunicar com o seu semelhante no tempo e no espaço e prepara-o para entrar na sociedade com probabilidade de triunfo. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 3).

Relativamente ao outro tópico aqui analisado - o ditado - é interessante notar que não aparece explicitamente no programa da Língua Materna em nenhuma das quatro classes. Contudo, nas Instruções, recomenda-se que este seja introduzido na 3.ª classe, solicitando aos professores a sua conveniente preparação, devendo ser clarificada, previamente, a grafia das palavras desconhecidas pelos alunos, para não serem “obrigados a adivinhar ou inventar a forma de as escrever”. (DECRETO n.º 16:730, Diário de Governo 83, de 13 de abril de 1929, p. 899). Sobre este assunto a professora Sara, ainda que sendo contra o “clássico ditado como é usado em muitas escolas” (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 12), e que, por mais que procurasse, não conseguia atribuir-lhe nenhuma finalidade nem identificar qualquer vantagem pedagógica, dá-nos, claramente, uma orientação didática para este instrumento, quando devidamente preparado: um meio de verificação do progresso dos alunos. É então patente a importância que esta professora confere à preparação do ditado, em particular, e da aula em geral, ao afirmar que “todo o professor deve ter com antecedência um plano estudado e organizado do seu dia de trabalho antes de entrar na aula”. (NOURA, 1935, p. 15).

Orientações metodológicas para a aprendizagem da Língua Materna

Para além das orientações programáticas e curriculares para a aprendizagem da Língua Materna, em particular da redação e do ditado, o programa acomoda também importantes orientações em relação às estratégias e práticas de ensino, introduzindo referências e recomendações aos meios e recursos de ensino que devem ser utilizados no processo de ensino e de aprendizagem nas várias disciplinas consagradas no Ensino Primário nos quatro anos. A Língua Materna, que ocupa, como dissemos anteriormente, um lugar destacado em todo o programa oficial, não disponibiliza grandes indicações, sobretudo se comparadas com as indicações da prática, inscritas no manuscrito. Concretamente, no que diz respeito à aquisição da escrita, é recomendado o uso dos seguintes materiais: “[...] convém que a criança execute repetidamente exercícios com lápis de lousa, lápis de papel, ou caneta, na ardósia ou em papel, sempre sob a vigilância do professor”. (DECRETO n.º 16:730, Diário de Governo 83, de 13 de abril de 1929, p. 899).

A crítica à pobreza das indicações metodológicas e de meios e recursos de ensino é tanto mais evidente, quanto mais as compararmos com as outras disciplinas. O programa destinado ao estudo da Geografia e História de Portugal, para além da manifesta preocupação em sublinhar a excecionalidade e grandiosidade dos feitos da gesta lusitana, apela de modo continuado, ao nacionalismo e ao patriotismo. Percebe-se na intenção do legislador garantir que os professores promovam uma estreita articulação entre ambas disciplinas. Neste programa do Ensino Primário faz-se, à imagem do que acontecia na Língua Materna, não só, um apelo à integração de meios e recursos de ensino que hoje consideramos mais tradicionais, mas também, vemos emergirem os dispositivos de ensino mais modernos: “Os bons álbuns históricos, as projeções, o cinematógrafo, as excursões, será auxiliares excelentes, e também os quadros com os monumentos nacionais que se referem a vários factos e figuras ilustres da nossa História”. (DECRETO n.º 16:730, Diário de Governo 83, de 13 de abril de 1929, p. 903).

Certamente que, na maior parte das escolas sediadas nos meios rurais, as projeções e o cinematógrafo não constituiriam dispositivos efetivamente disponíveis e a existirem na sede dos concelhos ou das capitais de distrito, seriam, naturalmente, de difícil acesso. Ora, não se encontrando livres para o acesso dos professores, estes ver-se-iam forçados a buscar alternativas, sendo que a tentação do recurso à descrição e ao verbalismo apresentam-se como opções mais simples.

Esta constatação é evidente quando, na secção do programa referido às Ciências Naturais, se escreve que “é certo que a quási totalidade das escolas são desprovidas de material didático, mas uma pequena parcela de boa vontade poderá suprir quási sempre a deficiência do material”. (DECRETO n.º 16:730, Diário de Governo 83, de 13 de abril de 1929, p. 903).

Registe-se, no entanto, a atenção que é dada à exploração do património arquitetónico ou às obras de pintura que retratavam episódios históricos e ou figuras que se destacaram na nossa História. No âmbito da disciplina de Moral e Educação Cívica deve o professor recorrer à Literatura, às Ciências, à História, isto é, aos heróis que se oferecem como exemplo nos vários domínios dos valores que se pretende explorar e inculcar.

Compreende-se portanto a importância primacial do ensino da Moral na escola primária. Assim, embora o programa deste ensino seja estabelecido de uma forma sucinta, deve o professor não limitar o estudo da Moral às horas reservadas para êsse fim, mas principalmente aproveitar todos os ensejos (lições de leitura, história, sciências) para dar exemplos e conselhos aos alunos sobre a prática do bem e sôbre o cumprimento do dever. (DECRETO nº 16:730, Diário de Governo 83, de 13 de abril de 1929, p. 903).

No domínio das Sciencias Naturais, o programa sublinha o caráter prático da disciplina, as famosas “lições das cousas” (DECRETO n.º 16:730, Diário de Governo 83, de 13 de abril de 1929, p. 903) e, nessa medida, aponta, preferencialmente, para a utilização da observação e da experiência, relegando para um lugar subalterno o manual escolar. A própria formação dos professores contempla, desde 1916, referência explícita a esta questão. No programa da disciplina de Pedagogia Geral e História da Educação, para ser ministrado nos cursos de formação de professores primários, aprovados pelo Decreto n.º 2.213, de 10 de fevereiro de 1916, é concedido espaço importante à lição das coisas:

Classificação das aptidões.

A lição das coisas como ponto de partida da Educação Intelectual.

Origem das lições das coisas. Diversas formas das lições das coisas. Requisitos a que devem obedecer. Necessidade de um plano e da sua preparação graduada, concêntrica e consequente. A metodologia das lições das coisas.

A lição das coisas matemáticas, cosmográficas, fisicoquímicas, naturais, geográficas e sociais.

(GOMES, 2001GOMES, Joaquim Ferreira. Novos Estudos de História da Educação. Coimbra: Quarteto, 2001., p. 101).

O programa do Ensino Primário na área das Sciencias Naturais, apresenta também as excursões como meio de grande relevância pedagógica para a aprendizagem dos alunos, de forma muito específica, no domínio da botânica. No campo da geologia há uma indicação explícita de que os professores não podem referir-se a nenhum dos exemplares sem que os alunos possam, diretamente, examiná-los. A preocupação em proporcionar aos alunos a experiência de observação direta é evidente.

A formação de professores primários das Escolas Normais Primárias

Apreciar com rigor a importância das propostas metodológicas, das estratégias de ensino ou dos meios e recursos de que os professores se serviam no processo de ensino e aprendizagem, e a que se faz alusão no manuscrito, exige que se reflita sobre a formação dos professores primários. Nesse sentido quisemos identificar nos programas de formação de professores das Escolas Normais, as disciplinas que integravam a estrutura curricular e os conteúdos aí estudados. Neste ponto considerámos, sobretudo, os programas das disciplinas de cariz pedagógico, que compunham o quadro de formação dos professores primários entre o fim do século XIX, uma vez que estes programas permaneceram em vigor durante a primeira década do século XX, sendo reformulados no período republicano, em 1914, e o período da vigência do Estado Novo, com atenção apenas aos programas no ano de 1936. Tudo indica que a professora recebeu a sua formação no início do século XX, e em 1935, ano em que faz a conferência, não tinham sido publicados os novos programas que, apesar de tudo, são muito mais interessantes em matéria de renovação das orientações pedagógicas. Nos programas de 1936 são incluídos todos os grandes pedagogos e movimentos de renovação da Pedagogia de que encontramos eco no manuscrito, embora não haja qualquer referência a nenhum dos grandes pedagogos que estiveram associados ao Movimento da Escola Nova.

Quisemos apreciar nos programas das disciplinas lecionados nas Escolas de Formação dos professores primários, mais concretamente as questões das estratégias, meios e recursos de ensino. Importaria não perder de vista que as escolas do magistério não facultavam qualquer tipo de formação sobre estes meios e recursos de ensino no quadro da formação dos professores primários no fim do século XIX e início do século XX. Da análise dos programas das disciplinas, de caráter pedagógico, ministradas nas Escolas Normais, e que compunham a formação dos professores primários, quer nos do período da Monarquia de fim do século XIX, quer nos do período da vigência da República, não encontramos referências aos recursos mais modernos e inovadores.

No período da Monarquia, os programas dos cursos ministrados nas Escolas Normais de 1.ª classe e de 2.ª classe, criadas, respetivamente, em 16 de outubro de 1882 e 22 de dezembro de 1894, são muito pobres na matéria em apreciação. O Decreto de 18 de julho de 1896, aprova, quer os programas do ensino complementar, quer os programas dos cursos de habilitação para o magistério. O programa de Pedagogia disponibiliza-nos brevíssimas referências aos métodos de ensino (“Processos, formas e modos gerais de ensino” (GOMES, 2001GOMES, Joaquim Ferreira. Novos Estudos de História da Educação. Coimbra: Quarteto, 2001., p. 73)) e aos meios e recursos de ensino, apenas uma referência no programa de terceiro ano de Pedagogia às “Bibliotecas e Museus escolares”. (GOMES, 2001, p. 75).

No período da República, nas três Escolas Normais, criadas através da lei n.º 233 em 7 de julho de 1914, encontramos informação relevante no programa de Pedagogia Geral e História da Educação concebidos para aí serem lecionados. Nesse programa, no apartado referente aos “meios e instrumentos da pedagogia”, identificamos uma brevíssima referência genérica aos métodos e ao material didático na 1.ª classe. A abordagem é significativamente reforçada na 3.ª classe no apartado a que os autores do programa intitulam de “os meios e instrumentos da pedagogia”, conteúdos complementados no programa de Metodologia. São dadas indicações sobre o material de ensino (“material didático clássico e o material didático moderno de demonstrações e experiências” (GOMES, 2001GOMES, Joaquim Ferreira. Novos Estudos de História da Educação. Coimbra: Quarteto, 2001., p. 104)), sobre o livro, que merece uma ampla atenção, como se pode ver nos conteúdos a si associados que são objeto de uma minuciosa discriminação (Livro de leitura, ensino, tratados, compêndios, livros de literatura infantil, de ciências, de arte e literatura, de teatro para crianças, entre outros (GOMES, 2001, p. 106)), os museus, os laboratórios, a biblioteca e, por fim, as excursões.

Coincidente com o ano em que foi produzido o manuscrito, é publicado o Decreto n.º 25.311, de 10 de maio, onde são aprovados os novos programas das disciplinas dos cursos do Magistério Elementar e do Magistério Infantil. Na disciplina de Didáctica, para além das questões ligadas ao ensino e aos métodos, são feitas alusões muito genéricas ao “livro de texto”, ao “material escolar”, “aos passeios escolares e excursões, como auxiliares da processologia dos métodos ativos.” Além disso, alude-se ao “documentário organizado como subsidiário do museu escolar”. (GOMES, 2001GOMES, Joaquim Ferreira. Novos Estudos de História da Educação. Coimbra: Quarteto, 2001., p. 138). Na Didáctica Geral é conferida uma especial atenção aos métodos de aprendizagem e à problemática da motivação. Aí mesmo são feitas alusões breves à necessidade de abordar como conteúdo de ensino as questões do livro escolar, do material escolar e didático, dos “passeios escolares excursões e recreações”. (GOMES, 2001, p. 145). Decorre daqui algo que merece a nossa reflexão: os programas das disciplinas que integram os planos de formação dos professores primários e que se situam mais no âmbito da pedagogia não concedem significativa atenção aos meios e recursos de ensino, o que nos leva a concluir que as indicações metodológicas e recursos dos programas do Ensino Primário, criam as exigências de integrar os mesmos na prática dos professores, sem que a formação inicial dos professores primários lhes tivesse concedido qualquer atenção. Assim, a análise da prática da professora Sara ganha maior relevância na medida em que identificamos, no seu manuscrito, não só, uma mais vasta e integradora forma de usar os meios e recursos, mas também as opções metodológicas e estratégias de ensino em que os mesmos são integrados de forma inovadora.

O manuscrito

Este documento inédito foi analisado tendo em conta as Estratégias e os Meios e recursos para o ensino da Língua Materna.

Estratégias para o ensino da Língua Materna

O manuscrito estrutura-se, maioritariamente, sobre o ensino da língua materna no ensino primário, discutindo de forma aprofundada as temáticas da redação e do ditado. Apresenta duas grandes linhas de rumo: o destaque permanente da importância e vantagens da utilização da redação no Ensino Primário, identificando alguns dos seus benefícios, sobretudo no que concerne à formação para a vida, e a segunda linha marcada pelo manifesto repúdio pessoal e profissional relativamente ao modo abusivo de como o ditado era usado neste nível de ensino naquela época. A posição da professora confirma o debate sobre o momento em que a composição deveria ser ensinada, em consonância com alguns dos mais distintos pedagogos da Escola Nova. Para alguns, o ensino da composição deveria ocorrer, apenas, após o domínio da gramática. No início do século XX, no ano de 1910, discutindo a questão do ensino da composição, a Sociedade Pedagógica de Genebra acedeu ao relatório de uma educadora que defendia exatamente esta posição, relegando para um momento ulterior o seu ensino. Dottrens, num capítulo dedicado ao grande pedagogo Claparède, transcreve o testemunho de uma professora suíça que declarava de forma convicta que

[…] só se exigirá à criança que formule o seu pensamento por escrito quando se lhe tiver fornecido as noções de gramática e de sintaxe ao seu alcance e o meio de o fazer da forma mais correta possível. Até ao 4.º ano não se pedirá ao principiante qualquer manifestação de personalidade ou de originalidade, que não passaria de verborreia e papagueado. (DOTTRENS, 1956, p. 311).

A posição de Claparède aparece em completa oposição a esta professora, ao considerar que, se a criança consegue aprender uma língua sem o conhecimento das regras, não haveria qualquer impedimento que algo de semelhante pudesse acontecer em relação à escrita, evidentemente considerando as dificuldades emergentes da questão específica da ortografia. Numa longa passagem, mas instrutiva sobre a posição, Dottrens transcreve as palavras de Claparède afirmando que:

O método funcional, apresenta a língua como uma função, quer dizer como instrumento útil ao comportamento humano e social, útil à vida. Não pretende que a língua seja estudada para lá do papel que é chamada a desempenhar quotidianamente na realidade das coisas. Ora, precisamente, os métodos habituais baseados no estudo da gramática...encaram a língua por ela mesmo... o culto da ortografia substituiu da língua...afastaram artificialmente a língua da sua função útil para se perder em definições puramente verbais... Antes de mais é necessário saber quais as necessidades de expressão a que as palavras e formas verbais podem ser úteis. Há, portanto, toda a vantagem em que os meios de expressão sejam agrupados no espírito do acordo com as necessidades de expressão e não com categorias puramente formais e sem qualquer valor prático. (DOTTRENS,1956, p. 311).

A professora portuguesa, neste apartado, mantém, claramente, uma posição contrária à colega suíça, na medida em que defende que o ensino da composição deve começar o mais cedo possível. Se os programas oficiais e vigentes em Portugal, no período em que foi redigido o manuscrito, a colocavam apenas no 2.º ano, postulando o aumento gradual ao longo dos anos subsequentes, conferindo-lhe um grande destaque no 4.º ano, a autora do manuscrito defende que “[…] enquanto que os programas dizem que se devem começar os exercícios de redação na 2.ª classe (inicio de composição escrita): “frases simples e de fácil ligação” sou de opinião que estes exercícios devem principiar na 1.ª classe”. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 16).

Sendo o foco principal deste texto a importância da redação na vida social, são apontados ao longo do manuscrito alguns aspetos pedagógicos vantajosos em relação à utilização da redação neste nível de ensino e o seu contributo no desenvolvimento da criança em outras áreas para além da Língua Materna. No manuscrito é também realçada a redação como um fator de desenvolvimento moral. Regressando de novo às suas palavras, a Professora defende que a redação é um “[…] poderoso factor moral da formação e aperfeiçoamento do carácter”. (ibidem, p. 19).

Considera que a redação é um recurso pedagógico importante e transversal a todos os tempos e civilizações, como se depreende das suas palavras ao escrever que “[…] é de todos os tempos e continuará a ser uma verdade indiscutível: A redacção ocupou e ocupará sempre um lugar preponderante na história, na civilização e na vida social da humanidade”. (ibidem, p. 5).

O seu objetivo fulcral, ao longo do manuscrito, foi o de discutir, de forma fundamentada, algumas das vantagens da utilização da redação no Ensino Primário, estabelecendo um contínuo confronto com o ditado. É referido no texto que o uso do ditado era abusivo, contrariamente à utilização da redação que era

[…] infelizmente muito descurada. Mas o professor primário há-de convencer-se dentro em pouco de que tem de a usar com mais frequência, porque ela é o mais poderoso auxiliar no desenvolvimento e compreensão da língua e de toda e qualquer disciplina. (ibidem, p. 6).

Das muitas passagens destacadas acerca do ditado e sua utilização no Ensino Primário, salientamos, na figura seguinte (Fig. 2), uma que evidencia, de forma clara, a opinião manifestada por esta professora em relação a esta temática.

Figura 2
Citação no manuscrito. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 12).

Uma das razões apresentadas para uma maior utilização do ditado em detrimento da redação prendia-se com o facto de o ditado se revestir de caráter eliminatório no instrumento de avaliação - o exame. Tal aspeto pode ser constatado na Fig. 03, onde apresentamos um excerto do manuscrito com a opinião da professora a este propósito.

Figura 03
Citação no manuscrito. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 13).

No manuscrito são elencadas mais as vantagens da utilização da redação para o Ensino Primário e formação dos alunos para a vida do dia-a-dia do que aquelas que a utilização do ditado poderia garantir. A conferência proferida por esta professora teve como principal objetivo chamar a atenção da comunidade educativa à época acerca

[…] da importância e vantagens da utilização da redação no ensino primário, identificando alguns dos seus benefícios, sobretudo no que concerne à formação para a vida, e […] pelo manifesto repúdio pessoal e profissional relativamente ao modo abusivo de como o ditado era usado neste nível de ensino naquela época. (CATARINO; ESCOLA; AIRES, 2016CATARINO, Paula; ESCOLA, Joaquim; AIRES, Ana Paula. Redação versus ditado: estratégias para um ensino integrador e inovador. In: MESQUITA, C; PIRES, M. V.; LOPES, R. (Eds.), Livro de atas do 1º encontro internacional de formação na docência, INCTE 2016. Bragança, Portugal: Instituto Politécnico de Bragança, 2016. p. 420-428., p. 425).

No entanto, muitos outros aspetos são focados no seu manuscrito, “[…] desde a temática da educação, à da motivação, à da preocupação da formação do aluno para a vida ativa e à da infância e suas vivências, entre outros”. (CATARINO; ESCOLA; AIRES, 2016CATARINO, Paula; ESCOLA, Joaquim; AIRES, Ana Paula. Redação versus ditado: estratégias para um ensino integrador e inovador. In: MESQUITA, C; PIRES, M. V.; LOPES, R. (Eds.), Livro de atas do 1º encontro internacional de formação na docência, INCTE 2016. Bragança, Portugal: Instituto Politécnico de Bragança, 2016. p. 420-428., p. 425).

Ao longo do manuscrito, conseguimos reter as preocupações desta professora com o Ensino Primário daquela época, apontando variados aspetos pedagógicos, institucionais e pessoais que vivenciou, tanto em ambiente de sala de aula, como em ambiente exterior à mesma. As suas conceções de educação e de infância assomam ao longo do texto em estreita ligação com a problemática central a composição. Destacamos a afirmação da professora que discutindo a educação da infância, mostrava estar bastante mais preocupada em sublinhar as dificuldades de concretizar a complexa arte de educar os mais jovens. Desta feita fica claro que a sua intervenção não visava tanto discutir a problemática científica que envolve a infância mas mais a apresentação de uma prática onde a complexidade e desafios do ensino se pudessem compreender. Assim, pretendia deixar claro que, da sua parte, “[…] não vão ouvir afirmações dogmáticas, nem tampouco científicas, mas sim farei uma simples exposição de factos e ideias que visam principalmente esclarecer o nosso espírito acerca da arte dificílima e complicada: Educar a infância”. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 2).

Na linha da Escola Nova a sua preocupação com a preparação dos alunos para a vida é uma constante, como se atesta em inúmeras passagens do seu texto. Embora hoje em dia, em nossa opinião, esta preocupação deve manter-se atual, atendendo à distância temporal a que se reporta este manuscrito, ela era, ainda, mais relevante e pertinente, uma vez que a esmagadora maioria dos alunos, ao contrário do que hodiernamente acontece, não prosseguiam os seus estudos e estava condenada, muito cedo, a ingressar no mercado de trabalho. A muito poucos era conferida a possibilidade de prosseguir estudos. Apesar disso, a escola deveria continuar a conservar a responsabilidade de preparar os alunos para uma integração social. Consciente desse constrangimento, a professora afirma a este respeito que: “[…] a par do ensino intelectual, o professor não se deve esquecer de que a maior parte dos seus alunos não prosseguirão nos seus estudos, precisam de sair da escola preparados para a luta pela vida”. (ibidem, p. 3). Importa compreender que a reflexão que a professora Sara desenvolve em torno das virtualidades da redação, não se desvinculam de uma visão da infância, não se encontram desligadas da problemática do abandono precoce de estudos ou da consciência de que este período de escolarização deve ser usado como oportunidade para dotar os alunos de ferramentas que lhes permitam uma mais fácil integração social e uma resposta mais adequada às suas necessidades quotidianas. A visão integrada e interdisciplinar do ensino da língua materna traz ao debate a importância das estratégias de ensino e os meios e recursos de ensino, que em sua opinião, mais facilmente concorrem para a concretização deste propósito.

Meios e recursos para o ensino da Língua Materna

Sendo um dos focos principais deste trabalho a importância dos meios e recursos no ensino, são apontados ao longo do manuscrito alguns aspetos pedagógicos vantajosos em relação à utilização de variados meios e recursos neste nível de ensino e o seu contributo no desenvolvimento da criança em várias áreas do saber. No documento em apreço são também realçadas algumas passagens que mais contribuem para a compreensão do debate sobre o papel dos meios e recursos no ensino. Por exemplo, o recurso a excursões (Fig. 04) é importante para a explicação e introdução de temas e assuntos para ajuda no desenvolvimento dos alunos e preparação para a vida.

Figura 4
Citação no manuscrito. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 8).

Considera que os passeios escolares são um recurso pedagógico importante e transversal a todos os tempos e civilizações, como se depreende das suas palavras ao escrever que

[…] durante os passeios escolares, a criança observa melhor o assunto que desejamos dar, grava na sua memória, compreende-o, porque o vê natural, junta-o por associação de conjunto, e de tal forma toma posse desses conhecimentos que êles só dificilmente serão esquecidos. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 8).

Uma outra passagem relacionada com as visitas escolares (a uma fábrica, a um museu, monumentos, ao campo - ver Fig. 5) e a sua importância no ensino e na educação de uma criança, é patente na opinião desta professora primária que afirma serem um meio para as crianças adquirirem conhecimentos, de um modo fácil, “[…] sem aborrecimento ou tédio, porque a distracção é substituída pelo interêsse e prazer que lhe dá a variedade do assunto”. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 8).

Figura 05
Citação no manuscrito. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 8).

O desenho é outro dos meios e recursos de ensino referidos neste manuscrito, sendo considerado como tendo muitas vantagens no Ensino Primário, estabelecendo grande ligação com o enriquecimento do vocabulário da criança e a expressão das suas ideias. É referido no texto que o uso do desenho, que, muitas vezes, “[…] o professor olha para ele e ri porque não sabe que nome deve dar à figura desenhada” (ibidem, p. 11), não deve ser desprezado, devendo dar muita atenção a este recurso e efetuar um questionamento adequado ao autor (Fig. 06).

Figura 06
Citação no manuscrito. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 11).

Interessante é a passagem do texto que distingue as visitas que as crianças devem fazer consoante vivem na cidade, ou à beira do mar, ou no campo. Às primeiras aconselha a visita à estação dos caminhos-de-ferro, monumentos, fábricas, museus da região onde habitam. Posteriormente, na opinião desta professora, deve ser exigida a descrição da estação dos caminhos-de-ferro, da chegada dos comboios, dos monumentos, das fábricas e dos museus visitados. Quanto às outras crianças (da beira mar e do campo), a seguinte imagem (Fig. 07) descreve, muito bem, a ideia desta professora quanto ao uso das visitas escolares como meio e recurso a ser integrado no Ensino Primário, promovendo através daquelas o enriquecimento do vocabulário, ao ser-lhes solicitada uma descrição do que observaram no decurso das mesmas.

Figura 7
Citação no manuscrito. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 12).

O uso das imagens (gravuras) e dos contos são outros meios e recursos abordados neste manuscrito. É referido o uso destes recursos para elaboração de redações - “[…] Exercícios de redacção pela imagem”. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 22). Esta abordagem constitui uma inovadora proposta para a exploração das imagens como suporte ao ensino e, no caso particular, no desenvolvimento das competências dos alunos no domínio da redação. Das muitas passagens destacadas acerca do uso dos contos e da sua utilização no Ensino Primário, salientamos, na Fig. 08, uma que evidencia, de forma clara, a opinião manifestada por esta professora em relação a esta temática.

Figura 8
Citação no manuscrito. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 12).

Em jeito de conclusão, da análise hermenêutica do manuscrito são elencadas vantagens da utilização do recurso a passeios escolares (visitas a variados locais de interesse), a exploração das gravuras, o recurso a desenhos, as imagens como fonte de inspiração para o desenvolvimento das composições é de grande relevância e anuncia a atenção que os suportes visuais virão a ter, posteriormente, não só no Ensino Primário mas em todos os níveis de ensino.

Considerações finais

O manuscrito em análise revela uma grande riqueza, descortinando um vasto campo de possibilidades de abordagem, no entanto, consideramos que o mesmo se encontra grandemente centrado na questão da reflexão sobre as práticas de ensino na escola primária, e de forma particular sobre as vantagens da redação por oposição ao ditado. Não são esquecidas no texto as estratégias e os recursos de ensino, o sentido e reconhecimento da infância ou mesmo a discussão sobre a própria missão da educação. O eterno e inacabado debate sobre o lugar dos exames, encontrava à época, aliás como hoje, uma intensa discussão. Todas as questões levantadas no manuscrito encontram eco nas discussões mais acesas e de que dão conta as obras dos mais distintos pensadores da educação na época em contexto internacional.

No que concerne à problemática central, o confronto entre a redação e o ditado, a conferência da professora Sara atesta essa preocupação quando confronta as vantagens da redação em relação ao ditado. A dificuldade que encerra o debate está materializada na posição que assume quando a esse respeito escreve que: “o ditado é executado pelas crianças automaticamente, e, sendo assim, está em sentido oposto com a redacção que as leva a concentrar-se e a raciocinar sobre o sentido do que escrever [...]”. (NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 12). É notória a preocupação e pertinência da reflexão sobre a sua prática pedagógica, ao conferir especial relevo e importância ao uso da redação como um instrumento fundamental para a formação das crianças.

Os meios e recursos de ensino revestem-se de particular importância para a autora, na medida em que ela conserva a consciência nítida de que estes potenciam uma mais adequada intervenção dos professores, pois através de um leque variado de possibilidades, com destaque para as viagens de estudo, explorando o contato não mediado com os contextos diferenciados de aprendizagem, a observação direta de fenómenos naturais e outros, a exploração dos recursos visuais como suporte às aprendizagens, assegurando através dos mesmos uma maior ligação ao concreto e, naturalmente, um menor abuso do verbalismo tão caros ao ensino tradicional, potenciam uma melhor aprendizagem das crianças.

A centralidade que oferece à Língua Materna, e dentro desta à redação, está em grande parte legitimada pela importância que a mesma pode ter como instrumento privilegiado para acesso a todos os outros saberes. Esta convicção permite-lhe dar do ensino e aprendizagem da mesma uma imagem de ponto de confluência e, ao mesmo tempo, de eixo de articulação com os outros saberes ou mesmo difusão de conhecimentos, impondo uma verdadeira interdisciplinaridade dirigida pela língua portuguesa. Em simultâneo, todas as opções metodológicas permitem compreender que se reconhece a infância como momento decisivo na construção da humanidade do homem, na manutenção do interesse da criança, na participação ativa na construção do saber.

Considerando a relevância do que foi explanado ao longo das trinta páginas que compõem o manuscrito encerramos com as reflexões que a própria autora, de forma muito pedagógica sistematiza como sendo as principais vantagens da redação:

  • 1.ª - A redacção tem em vista aperfeiçoar e enriquecer o vocabulário infantil.

  • 2.ª - Levar a criança a observar, pensar e refectir para bem redigir.

  • 3.ª - Auxiliar a fixação da ortografia.

  • 4.ª - Servir de meio de verificação e fixação das várias matérias de ensino.

  • 5.ª - Desenvolver e aperfeiçoar a educação moral das crianças.

  • 6.ª- Preparar a criança com probabilidades de exito para enfrentar serena e ousadamente as dificuldades que a vida lhes proporciona.

(NOURA, 1935NOURA, Sara da Glória Catarino. Importância da redacção na vida social. Como eu a ensino na minha Escola. Manuscrito (30 páginas), 1935., p. 30)

A ação educativa, considerada como uma difícil arte, deve lograr de todos os educadores a maior atenção e cuidado no seu exercício, exigindo de cada um empenho, dedicação e espírito crítico. O trabalho desenvolvido neste âmbito não será desperdiçado, pois de forma imediata e ao longo do tempo beneficiaremos da recompensa desse esforço. Confirmando esta vivência, transcrevemos o pensamento da professora Sara, que recuperando a imagem da ação educativa como um trajeto, viagem, escreve: “No Caminho da Instrução caminha-se pouco e pouco, mas caminha-se sempre”. (ibidem, p. 14).

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    Este trabalho foi financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto UID/CED/00194/2013 e também do projeto UID/MAT/00013/2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2018

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2017
  • Aceito
    28 Mar 2017
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