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A PESQUISA SOBRE O ENSINO PRIMÁRIO NO BRASIL:UM MODO DE COMPREENDER O SIGNIFICADO SOCIAL DO ENSINO - ENTREVISTA COM ROSA FÁTIMA de souza CHALOBA

THE RESEARCH OF THE PRIMARY EDUCATION IN BRAZIL: A WAY TO UNDERSTAND THE SOCIAL MEANING OF TEACHING - INTERVIEW WITH ROSA FÁTIMA DE SOUZA CHALOBA

INVESTIGACIÓN SOBRE EDUCACIÓN PRIMARIA EN BRASIL: UNA FORMA DE ENTENDER EL SIGNIFICADO SOCIAL DE LA EDUCACIÓN - ENTREVISTA CON ROSA FÁTIMA DE SOUZA CHALOBA

RECHERCHE SUR L'ENSEIGNEMENT PRIMAIRE AU BRÉSIL: UN MOYEN DE COMPRENDRE LE SENS SOCIAL DE L'ÉDUCATION - ENTRETIEN AVEC ROSA FÁTIMA DE SOUZA CHALOBA

Considerações iniciais

Uma forma de analisar as relações entre o direito e as políticas do Estado com a sociedade tem sido a investigação dos processos, das práticas e da cultura pelo viés da escola. Rosa Fátima de Souza Chaloba1 1 Assina artigos e comunicações com o nome de Rosa Fátima de Souza. é uma pesquisadora que tem dedicado especial atenção ao ensino primário, àquele que figurou e ainda se constitui como um dos principais níveis da escolarização no Brasil. Nesse sentido, argumenta Souza (2011, p. 9):

A história do ensino primário no Brasil tem sido investigada da perspectiva da institucionalização da escola, processo inseparável das políticas educacionais implementadas pelos governos estaduais no decorrer do século XIX e XX.

O sentido político constitui um modo de traduzir as modalidades práticas e culturais de implantação e de acesso aos processos formais de ensino. Carlota Boto (2012) acrescenta que as práticas apresentam estreita relação com a escolarização desenvolvida no interior das instituições educativas. Ao analisar as práticas é possível conhecer e compreender as normas, os valores e as concepções pedagógicas empreendidas na escola. Nesse sentido, o mundo social das práticas é o mundo compartilhado na coletividade, no grupo social e pelo qual se constitui das representações tecidas pelos sujeitos em um espaço e tempo.

A história das instituições escolares se apresenta como um campo em projeção de múltiplas oportunidades de pesquisas considerando suas dimensões organizativas. Embora muitos trabalhos consagrem o campo com significativos estudos, nas últimas décadas cresce uma tendência em reunir e agregar investigações que evidenciem o mapeamento de oferta dos diferentes tipos de estruturas de atendimentos aos estudantes ao longo do tempo, tanto em espaços urbanos como rurais.

No final do século XIX, a educação era vista com um instrumento redentor, a valorização da ciência e de uma cultura letrada dominavam os pilares da República, dominada por grandes proprietárias de terra e que por sua vez tinha acesso à educação. Assim, a educação era instrumento fundamental para a execução deste projeto civilizador da nação, que se dava construindo uma identidade nacional assim, era preciso uma educação popular transformando toda a sociedade brasileira em sociedade moderna (NUNES, 2010NUNES, Clarice. (Des) Encantos da modernidade pedagógica. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes de; VEIGA, Cynthia Greive (Org.). 500 anos de educação no Brasil. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 371-398.).

No início do período republicano no Brasil, o país passava por uma profunda transformação política, uma vez que o governo da recém-criada república pretendia superar a Monarquia. Além disso, nascia uma grande massa de trabalhadores urbanos e rurais que por sua vez, mas nem sempre, possuíam acesso às mínimas condições de acesso a educação. Em São Paulo, mais especificamente no início da década de 1890, são implantados os Grupos Escolares, uma organização administrativa e pedagógica, que tinha como princípios a racionalidade cientifica e a divisão do trabalho, resultando em um ensino homogêneo, padronizado e uniforme. Assim, não demorou muito a este modelo de ensino primário ser adotado em todo o país (SOUZA, 1998SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de civilização: a implantação da escola primária graduada no Estado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: Unesp, 1998.).

A elite brasileira considerava necessária a educação para a população afim de que esta seria propulsora do progresso da nação e também um difusor dos ideais republicanos (SOUZA, 1998SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de civilização: a implantação da escola primária graduada no Estado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: Unesp, 1998.). Além disso, como já argumentado em outros estudos, Souza (2015SOUZA, Rosa Fátima; PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira; LOPES, Antonio de Pádua Carvalho (Orgs.). História da Escola Primária no Brasil: Investigação em perspectiva comparada em âmbito nacional. 1. ed. Aracaju: EDISE, 2015. ) e Souza e Duarte (2017) a passagem das aulas, ou escolas isoladas para os grupos escolares representa uma nítida noção de que a educação básica deveria atingir o máximo de pessoas com uma nova concepção de metodologia de ensino. Gil (2016GIL, Natália. Pequenos focos de luz: as escolas isoladas no período de implantação do modelo escolar seriado no Rio Grande do Sul. Revista Brasileira de História da Educação, v. 16, n. 2[41], p. 261 - 284, 31 maio 2016.), analisando relatórios da Diretoria da Instrução Pública e da legislação que nas primeiras décadas do século XX argumenta que a implantação dos grupos escolares foi morosa e que até a década de 1950, as escolas isoladas é que foram responsáveis, pelo menos no Rio Grande do Sul, por expressivo atendimento da escolarização primária. O desdobramento da implantação dos grupos escolares, como referência do ensino primário perdurou na história da educação brasileira até a reforma política do ensino de 1971.

A trajetória formativa de Rosa Fátima de Souza Chaloba evidencia a forma como a relação com seu objeto de investigação foi se constituindo. Ela possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal de Uberlândia (1985), mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1991), Estágio no Exterior na Universitat Autonoma de Barcelona (1994/1995), doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (1997). Realizou estudo de Pós-Doutorado na School of Education, University of Wisconsin - Madison/EUA (2001), Livre-Docência pela Universidade Estadual Paulista (2006) e estágio no exterior na Universidade de Santiago de Compostela (2009) e na Universidade de Lisboa (2012). Atualmente é professora Titular da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, no Departamento de Ciências da Educação e Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências /UNESP/Campus de Marília.

É autora de várias publicações, entre elas: “História da Escola Primária no Brasil: investigação em perspectiva comparada em âmbito nacional” (Souza; Pinheiro e Lopes, 2015SOUZA, Rosa Fátima; PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira; LOPES, Antonio de Pádua Carvalho (Orgs.). História da Escola Primária no Brasil: Investigação em perspectiva comparada em âmbito nacional. 1. ed. Aracaju: EDISE, 2015. ); “Imagens da Escola Primária no Brasil (1920-1960)” (Souza, Bencostta e Silva, 2018); “História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX (ensino primário e secundário no Brasil)”, pela editora Cortez, (Souza, 2008); “Alicerces da Pátria: história da escola primária no estado de São Paulo (1890 - 1976)” (Souza, 2009), resultado de seu concurso de livre docência; “Histórias da escola primária no Estado de São Paulo (1890-1976)”, publicado pela editora Mercado das Letras (Souza, 2009). Ainda, é uma das organizadoras da coleção: “O Legado Educacional do Século XIX e o Legado Educacional do Século XX no Brasil”, pela Editora Autores Associados, (Saviani et al, 2014aSAVIANI, Dermeval; ALMEIDA, Jane Soares;SOUZA, Rosa Fátima; VALDEMARIN, Vera Teresa . O Legado Educacional do Século XIX no Brasil. 3ª. ed. Campinas - SP: Autores Associados, 2014a.; 2014b). No que se refere à ampla produção de artigos e capítulos sobre a temática, destaca-se trabalhos de organização e participação em dossiê temático sobre o ensino primário, por exemplo: Souza (2013) cuja abordagem situa-se na cultura material escolar, bem como, artigos em periódicos nacionais e internacionais, por exemplo: Souza (2016) em que evidencia aspectos da organização do ensino no meio rural.

É ainda coordenadora do Núcleo de Documentação e Memória do Centro Cultural Professor Waldemar Saffioti (Unesp, Campus de Araraquara) e corresponsável pela coordenação Grupo de Estudos e Pesquisas Sobre Cultura e Instituições Educacionais (GEPCIE), e é Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 1B.

Trata-se de uma importante pesquisadora no campo da História da Educação, das instituições e culturas escolares, sobretudo, na temática do ensino primário. Como coordenadora de diferentes projetos de pesquisa sobre o ensino primário, agrega pesquisadores das mais distintas regiões do país. O resultado desta rede constituída por Rosa Fátima de Souza evidencia-se na organização de mesas, painéis e simpósios temáticos, além de importantes obras (livros, coletâneas, prefácios, etc). Nesse sentido, destaca-se o projeto: “Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870 - 1950)” - 2008/2010, que reuniu pesquisadores das cinco regiões administrativas do Brasil2 2 Além desses, podemos indicar: “Projeto Temático: História da Escola Primária no Brasil: investigação em perspectiva comparada em âmbito nacional (1930 - 1961)”, desenvolvido entre 2011-2015; atualmente coordena projeto: “Formação e Trabalho de Professoras e Professores Rurais no Brasil: PR, SP, MG, RJ, MS, MT, PE, PI, SE, PB, RO (décadas de 40 a 70 do século XX)”. . Tem experiência na área de Educação, atuando ainda nos seguintes temas: história do ensino secundário, história do currículo, cultura material escolar, centros de documentação e patrimônio histórico escolar. Atualmente, ocupa o cargo de presidente da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE), gestão 2019-20213 3 Cabe destacar que posteriormente a realização desta entrevista, Rosa Fátima de Souza foi eleita Presidente da Sociedade Brasileira da Educação (SBHE), na ocasião da Assembleia do X Congresso Brasileiro de História da Educação, realizada no dia 04 de setembro, na Universidade Federal do Pará, na cidade de Belém do Pará. .

1)Quais temas de pesquisa inicialmente tiveram a sua atenção? Quais estudiosos influenciaram sua formação historiográfica?

Iniciei a minha trajetória de pesquisa no campo da história da educação no mestrado na Faculdade de Educação na Unicamp, realizado no final da década de 1987. Naquela época, o tempo de duração do mestrado era maior e, assim, pude cursar um grande número de disciplinas na Faculdade de Educação e no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas o que me possibilitou o contato com uma ampla bibliografia envolvendo diferentes abordagens, incluindo o marxismo, a escola de Frankfurt, além de autores como Weber, Foucault e outros vinculados à teoria dos movimentos sociais: Alain Touraine, Manuel Castell, Castoriadis, José Álvaro Moisés, Eder Sader, Maria da Glória Marcondes Gohn, entre outros.

A dissertação de mestrado defendida em 1991 constituiu-se em um estudo sobre o processo de escolarização das classes populares em Campinas- SP, nos anos 20 do século XX, ancorada na história social, especialmente nos estudos de Edward Palmer Thompson e na teoria dos movimentos sociais. No desenvolvimento dessa pesquisa deparei-me com a centralidade da escola primária nas demandas, pressões e reivindicações populares pela educação no início do século XX.

No doutoramento realizado na Faculdade de Educação da USP-SP busquei compreender a configuração dessa escola primária e o seu significado cultural na sociedade. No início dos anos 1990, pude acompanhar na USP o efervescente debate sobre a crise dos paradigmas nas ciências humanas e sociais. Tomando a cultura e a noção de prática como questões importantes de problematização tive oportunidade de ler autores que marcaram profundamente minha formação como Walter Benjamin, Nestor Canclini, Maffesoli, Agnes Heller, Ginsburg, Azanha e Marta Carvalho. Mas sem dúvida, o doutorado sanduíche realizado na Universitat Autónoma de Barcelona - Espanha (1994-1995) foi determinante no meu entendimento das novas potencialidades de compreensão da escola primária a partir da renovação da história da educação com base na Nova História Cultural. A leitura de obras de Roger Chartier, Norbert Elias, Dominique Juliá, Antonio Nóvoa, Agustin Escolano e Antonio Viñao Frago possibilitou-me redefinir a interpretação sobre a modernização representada pela criação dos grupos escolares no Brasil e a direcionar a pesquisa para a perspectiva do estudo da história da escola com base na cultura escolar.

2)Você tem dedicado especial atenção à temática do ensino primário, sobretudo no meio rural. Como foi seu encontro e seu interesse com relação a esta temática?

Um dos traços mais marcantes da história da educação brasileira é a desigualdade que perpassa diversificados âmbitos de análise: diferenças sociais de acesso aos diversos níveis/ graus de escolarização, diferenças regionais, diversidade de propostas e projetos formativos e de entidades mantenedoras (escolas públicas federais, estaduais, municipais e escolas particulares confessionais ou não). Portanto, para uma compreensão abrangente e aprofundada da história da escola primária em âmbito regional e nacional no século XX, é indispensável levar em conta os diferentes tipos e modalidades de instituições que configuraram ao longo do tempo a escolarização da infância. No estado de São Paulo, por exemplo, tivemos na transição do século XIX para o século XX, as escolas preliminares, as provisórias, as ambulantes, as isoladas, as reunidas, as escolas estrangeiras, as escolas anarquistas, os grupos escolares, as escolas isoladas rurais, entre outras. Em meados do século XX, surgiram novas modalidades como as escolas típicas rurais e as escolas de emergência. Especialmente a diferenciação entre as escolas públicas deve ser observada, pois, diferentes tipos de escolas atenderam diferentes grupos sociais tendo em vista localização, tempo de duração do curso primário e programas de ensino.

Meu encontro com a temática do ensino primário no meio rural foi decorrência, em parte, dos estudos realizados sobre a história dos grupos escolares no estado de São Paulo (tipo de escola predominante, porém não exclusivamente urbana), mas fundamentalmente, uma consequência das duas edições do projeto integrado de história comparada da escola primária (ambas financiadas pelo CNPq) que tive a satisfação de coordenar no período de 2008 a 2014. A primeira etapa dessa pesquisa foi o projeto intitulado Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870 - 1950), cujo foco foi a história dos grupos escolares envolvendo 15 estados brasileiros e uma equipe integrada por 27 pesquisadores. Essa pesquisa pôs em relevo a lenta expansão dos grupos escolares em diversos estados brasileiros, a centralidade de outras modalidades de escolas no ensino primário e a necessidade de investimento da pesquisa histórica sobre a educação rural. A segunda edição do projeto, intitulado História da escola primária no Brasil: investigações em perspectiva comparada em âmbito nacional (1930-1961) envolveu 13 estados e 43 pesquisadores e teve como uma das finalidades analisar a institucionalização da escola elementar para a população infantil envolvendo a atuação dos Poderes Públicos, por meio de programas, reformas educacionais e expansão do ensino considerando as diferentes modalidades de escolas primárias existentes nas zonas urbanas e rurais. Vinculado a esse projeto desenvolvi com alguns orientandos e uma equipe de pesquisadores uma investigação sobre a história da educação rural no estado de São Paulo problematizando as políticas dos governos do estado para o ensino primário rural e aspectos da cultura escolar. Em síntese, posso dizer que, o encontro com a temática tem sido muito instigante, mas também um desafio compensador.

3)Em um balanço de sua trajetória de pesquisa, que contribuições você destacaria?

No que diz respeito à história da escola primária, a atenção dada à criação dos grupos escolares no estado de São Paulo reiterou a importância dessa instituição para a modernização da instrução pública no início do período republicano, na transição do século XIX para o século XX. A análise dos elementos configuradores do grupo escolar como escola graduada tornou-se uma perspectiva importante à medida que possibilitou interrogar as culturas escolares e a configuração da escola básica no presente. Ao operar com a noção de cultura escolar, considero que minhas pesquisas e a de meus orientandos vieram a se somar a tantas outras realizadas em diferentes regiões do país nas últimas décadas que buscaram descortinar os meandros das práticas e da vida escolar. Especialmente a noção de cultura escolar desempenhou um papel fundamental na historiografia da educação brasileira nos últimos 20 anos não apenas pela fertilidade interpretativa, mas também pelo fato de dar visibilidade a novos objetos de pesquisa como o espaço e a arquitetura escolar, a cultura material, as fotografias e as práticas simbólicas.

Os projetos integrados de história comparada da escola primária no Brasil possibilitaram aprofundar o conhecimento sobre a história da educação em diferentes estados do país, reunir fontes de pesquisa, matizar interpretações instituídas, propor formas diferenciadas de compreender a escolarização da infância, consolidar temas de investigação e apontar deslocamentos temáticos relevantes, como o estudo da escola primária rural. Além desses resultados, considero que foi muito valioso para o campo da historia da educação o diálogo fértil que se estabeleceu entre um grande número de pesquisadores resultando em um intercâmbio acadêmico muito promissor e de longa duração.

Em relação às pesquisas sobre o ensino secundário, reputo a problematização da passagem do currículo humanista para o científico nas décadas de 1960 e 1970 uma interpretação, senão valiosa, provocativa para o entendimento de parte das mudanças ocorridas nessa etapa da escolarização dos adolescentes e jovens no país. Mais recentemente, a incursão pela história política da expansão dos ginásios e colégios oficiais nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro tem suscitado questões interessantes que põem em discussão as relações entre o campo político e o campo educacional e sobre o papel dos atores políticos (deputados, governadores, prefeitos e vereadores) e dos atores sociais na ampliação das oportunidades educacionais de nível médio.

4)Em 2018 você publicou o livro: Imagens da escola primária no Brasil (1920-1960). Nesse sentindo, compor uma história da escola primária, guardadas as suas particularidades na dimensão continental do nosso país apresenta alguns desafios. Comente como foi o desenvolvimento desta produção.

A ideia de produção desse livro surgiu há alguns anos durante o desenvolvimento do projeto História da escola primária no Brasil: investigações em perspectiva comparada em âmbito nacional (1930-1961). Entre as atividades do projeto, foram realizadas duas exposições fotográficas coordenadas por Marcus Levy Bencostta: Cenas e retratos da Escola Primária Brasileira (1930-1960) na 35ª Reunião Anual da ANPEd (outubro de 2012, em Porto de Galinhas - PE) e Memórias e Imagens da Escola Primária Rural no Brasil (1930 - 1960) no VII Congresso Brasileiro de História da Educação (em maio 2013, em Cuiabá - MT).

O trabalho de reunir, selecionar e analisar fotografias de diferentes estados para essas duas exposições, levou Vera Lúcia Gaspar da Silva, Marcus Levy Albino Bencostta e eu a acalentarmos a possibilidade de organizar um livro de fotografias sobre a escola primária no país. A oportunidade de concretizar essa proposta ocorreu em 2017 quando pudemos nos dedicar ao livro. Além de fotografias reunidas durante o desenvolvimento do projeto de investigação comparada, pedimos a colaboração de historiadores da educação de outros estados que não haviam participado do projeto original. Foi uma experiência muito gratificante trabalhar nesse livro. Evidentemente, ele reúne fragmentos de uma história da escola primária no Brasil contada a partir da imagem fotográfica; mas se algo aprendi com a experiência dos estudos em história comparada da escola primária foi justamente compreender o país em suas diferenças e pluralidades. Nossa intenção inicial era reunir fotografias escolares de todo o território nacional e trabalhamos muito nesse sentido. Porém, conseguimos imagens de apenas 18 estados e isso se deve a vários fatores, entre eles, o próprio estágio de desenvolvimento da pesquisa histórica em educação em determinadas regiões e também à precariedade dos arquivos públicos no que diz respeito a acervos fotográficos referentes às escolas primárias.

De todo modo, esse retrato multifacetado, ainda que lacunar, é muito significativo sobre a trajetória da escola elementar no país. Sem dúvida, ele expressa um esforço de articulação da história regional/ local com a história nacional/ estatal, um empreendimento certamente limitado e complexo, mas que vale a pena ser explorado.

5)Atualmente você é vice coordenadora do Centro De Memória e Documentação da Educação Brasileira, bem como é vice-líder do GEPCIE: Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Cultura e Instituições Educacionais, que contribuições destacaria?

O Centro de Memória e Documentação da Educação Brasileira (CEMDEB) está diretamente vinculado aos meus interesses e atividades no tocante à preservação do patrimônio educativo. Ele nasceu de uma proposta do Grupo de Pesquisa História da Educação e do Ensino de Língua e Literatura no Brasil (GPHELLB) liderado por Maria do Rosário Longo Mortatti e do qual participo como vice-líder. O CEMDEB foi institucionalizado em 2015 junto à Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, campus de Marília tendo como objetivo reunir, organizar, conservar e disponibilizar acervos documentais relacionados à educação no Brasil, referente ao período republicano pós-1930. Além da especificidade do período histórico delimitado, esse Centro de Documentação se caracteriza pelas linhas de acervo estabelecidas: 1) História da alfabetização; 2) História das disciplinas; 3) História da formação de professores; 4) História da institucionalização da escola básica (Ensino Fundamental e Médio) e, 5) História comparada da educação no Brasil. Trata-se de mais uma iniciativa nascida no sei da universidade de preservação da memória e da história da educação articulando ensino, pesquisa e extensão.

O Grupo de Estudos e Pesquisa em Cultura e Instituições Educacionais (GEPCIE) sediado na Faculdade de Ciências e Letras do campus da Unesp de Araraquara iniciou suas atividades no ano 2000 reunindo alunos de cursos de graduação e de pós-graduação e interessados em discutir e aprofundar questões teóricas e metodológicas no âmbito da pesquisa em história da educação. Coordenado pela Professora Vera Teresa Valdemarin, as pesquisas desse grupo estão relacionadas aos seguintes eixos de investigação: a) História das instituições educativas; b) História da cultura material escolar; c) História das ideias pedagógicas articuladas à divulgação de práticas e saberes. Além da produção da pesquisa, uma das grandes contribuições desse grupo é a formação de novos pesquisadores.

6)Durante as últimas décadas, as pesquisas, sob o ponto de vista historiográfico, têm sido submetidas a uma significativa mudança de paradigma. Como essas mudanças se refletiram em seus caminhos e temas de investigação?

A renovação da história da educação pela Nova História Cultural impactou minha trajetória de pesquisa no investimento na história da escola e no estudo da cultura escolar. Essas duas perspectivas direcionaram meu olhar para diversas fontes de pesquisa incluindo os relatórios de diretores e inspetores da Instrução Pública, relatórios de professores, os documentos dos arquivos escolares e a atenção para a cultura material escolar. Essa ampliação temática e documental permitiu a incursão exploratória de temas que me são particularmente caros, como o estudo das práticas simbólicas, das fotografias escolares, da cultura material e da preservação do patrimônio educativo.

7)Os estudos do ensino primário tem se desdobrado em outras perspectivas investigativas, suas pesquisas tem abordado o curso secundário, a formação de professores, como estas novas dimensões de pesquisa se relacionam com a temática do ensino primário?

A história da escola primária é indissociável da história da profissão docente e da formação do magistério primário. Nas pesquisas que realizei sobre a escola primária procurei estabelecer sempre, ainda que de modo indireto, uma problematização do trabalho docente. A própria noção de cultura escolar exige isso ao colocar no centro da discussão as práticas educativas dos professores, seja no âmbito da normatização, da configuração do campo pedagógico ou da prática, ou seja, da atividade empírica. O avanço do conhecimento no campo da história da educação tem apontado para a necessidade de as pesquisas levarem em conta a complexidade da escola enquanto organização e instituição cultural. O trabalho do professor é componente fundamental nessa problemática.

O projeto que estou coordenando no momento intitulado “Formação e Trabalho de Professoras e Professores Rurais no Brasil: RS, PR, SP, MG, RJ, MS, MT, MA, PE, PI, SE, PB, RO (décadas de 40 a 70 do século XX)”, financiado pelo CNPq, tem como finalidade analisar a profissionalização docente no Brasil buscando compreender as políticas públicas empreendidas em âmbito nacional e estadual para a formação do magistério rural e as formas de recrutamento, carreira, salários e condições de trabalho dos professores do campo, abarcando três dimensões: os referenciais externos e circulação de modelos sobre educação rural; a formação dos professores rurais (em cursos normais, cursos de férias e especialização, entre outros); a memória e as representações sobre a docência nas escolas primárias rurais. Ainda que o foco dessa investigação seja o trabalho docente, certamente ela também contribuirá para o avanço do conhecimento sobre a história do ensino primário no Brasil.

A relação entre o ensino primário e secundário é de certa forma inevitável para o historiador da educação que investiga o século XX, especialmente a segunda metade desse século, dada a reorganização dessas duas etapas de escolarização no Ensino Fundamental e Médio. A integração do primário com o secundário foi uma temática recorrente no campo educacional brasileiro no século XX, basta lembra, por exemplo, as proposições dos pioneiros da educação Nova no Manifesto de 1932. Em meados do século XX, a questão voltou à tona com a discussão sobre a ampliação da escolarização obrigatória e a concepção de escola básica e, também, com o debate efervescente acerca da modernização do secundário. A LDB de 1961 previu a ampliação da escolaridade primária para 6 anos e o estado de São Paulo, no final da década de 1960, foi pioneiro na adoção do ensino de 1° grau de 8 anos eliminado o exame de admissão para curso ginasial e instituindo os grupos escolares-ginásios. Tudo isso indica que as transformações do ensino primário e secundário ocorridas na segunda metade do século XX são processos interdependentes do ponto de vista político, pedagógico e administrativo. É, portanto, nessa dupla dimensão que tenho investigado o ensino primário e secundário, isto é, buscando compreender a configuração e disseminação da escola pública e o processo seletivo de cultura distribuído às crianças e aos jovens.

8)Falando em termos mais gerais, no contexto atual das investigações no campo da História da Educação, como você avalia o desenvolvimento das pesquisas que têm como foco a temática as instituições e a formação para atuação no ensino primário? Que projeções para o campo de pesquisa se pode tecer diante deste contexto em que vive a pesquisa em Ciências Humanas no Brasil?

É inegável a importância da história das instituições no campo da história da educação na última década. Grande parte dessa produção é constituída por dissertações de mestrado e tem contribuído de modo muito especial para a preservação da memória da escola como para a reconstituição da história local. Não obstante, é perceptível nessa produção tanto o sincretismo teórico quanto as dificuldades de articulação do referencial enunciado com os dados levantados nas fontes de pesquisa; fato esse que atualiza o debate necessário acerca do que consiste a história de uma instituição e como ela deve ser construída e apresentada. Nesse movimento salutar de balanço e auto avaliação do campo, algumas tendências têm emergido nos últimos anos como estudos focados na análise conjunta das diversas instituições escolares de uma localidade e investigações mais verticalizadas e de maior abrangência espacial e temporal sobre as transformações do ensino primário ao longo do tempo.

O período posterior à Primeira República vale ser escrutinado, especialmente as mudanças educacionais ocorridas no país na década de 1970 com a instituição do Ensino de 1° e 2° Graus. Esse período merece ser revisitado tanto da perspectiva da história política quanto da perspectiva da problematização político-pedagógica da cultura escolar.

Quanto à formação de professores para a atuação no ensino primário, embora tenhamos avançado muito no estudo das Escolas Normais nos últimos anos, particularmente do ponto de vista da história das instituições, o campo da história da educação ressente de pesquisas sobre a profissão docente - carreira, salários, condições de trabalho, associativismo, profissionalização -, em todos os níveis de ensino (da educação infantil ao ensino superior). Em se tratando do magistério das séries iniciais do ensino fundamental, faz-se ainda necessário um conhecimento histórico mais sistemático sobre os Institutos de Educação, as escolas normais regionais, as Habilitações Específicas para o Magistério nas escolas de 2° Grau, os Centros Específicos de Formação e aperfeiçoamento do Magistério (CEFAM), os programas de formação como Logos I e II, e, tantos outros programas de formação de professores levados a termo em diferentes regiões dos pais na segunda metade do século XX. Também é importante levar em conta o fato de que a formação de professores para o ensino primário esteve sempre articulada com a formação do professor pré-primário e para a educação infantil.

O campo da história da educação cresceu e se consolidou nesse início do século XXI. Nesse momento de ataque indicioso e equivocado às Ciências Humanas cabe-nos resistir e lutar coletivamente para a garantia dos direitos à educação, à ciência e à democracia. Não podemos esquecer que a educação pública em todos os seus níveis e modalidades está no centro das lutas e conquistas sociais pela cidadania. O cenário atual exige reflexão crítica, comprometimento e mobilização. É preciso qualificar cada vez mais as pesquisas em história da educação no que diz respeito ao rigor teórico-metodológico e no esclarecimento público acerca da relevância social do conhecimento que produzimos. A história da educação tem um papel relevante na luta em defesa da educação pública. Nesse sentido, ela tem uma contribuição enorme para a formação de profissionais da educação básica, uma vez que é imprescindível que as novas gerações de professores compreendam a constituição histórica da escola e as razões pelas quais a educação encontra-se na sociedade brasileira no centro de disputas políticas e ideológicas. Enfim, nosso desafio permanente é aproximar a pesquisa do ensino e do debate público sobre as políticas e sobre os rumos da educação brasileira.

Referências

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  • SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de civilização: a implantação da escola primária graduada no Estado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: Unesp, 1998.
  • SAVIANI, Dermeval; ALMEIDA, Jane Soares;SOUZA, Rosa Fátima; VALDEMARIN, Vera Teresa . O Legado Educacional do Século XIX no Brasil. 3ª. ed. Campinas - SP: Autores Associados, 2014a.
  • SAVIANI, Dermeval; ALMEIDA, Jane Soares;SOUZA, Rosa Fátima; VALDEMARIN, Vera Teresa . O Legado Educacional do Século XX no Brasil. 3ª. ed. Campinas - SP: Autores Associados, 2014b.
  • 1
    Assina artigos e comunicações com o nome de Rosa Fátima de Souza.
  • 2
    Além desses, podemos indicar: “Projeto Temático: História da Escola Primária no Brasil: investigação em perspectiva comparada em âmbito nacional (1930 - 1961)”, desenvolvido entre 2011-2015; atualmente coordena projeto: “Formação e Trabalho de Professoras e Professores Rurais no Brasil: PR, SP, MG, RJ, MS, MT, PE, PI, SE, PB, RO (décadas de 40 a 70 do século XX)”.
  • 3
    Cabe destacar que posteriormente a realização desta entrevista, Rosa Fátima de Souza foi eleita Presidente da Sociedade Brasileira da Educação (SBHE), na ocasião da Assembleia do X Congresso Brasileiro de História da Educação, realizada no dia 04 de setembro, na Universidade Federal do Pará, na cidade de Belém do Pará.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2019
  • Aceito
    15 Out 2019
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