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“CRUELDADE SEM EXEMPLO”: DIVULGAÇÃO DE UMA INÉDITA FONTE QUE TRATA DE UM PRODIGIOSO CASO DE INFANTICÍDIO PUBLICADO EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII

"CRUELDAD SIN EJEMPLO": DIVULGACION DE UNA FUENTE SIN PRECEDENTES QUE TRABAJA UN CASO PRODIGIOSO DE INFANTICIDIO PUBLICADO EN PORTUGAL EN EL SIGLO XVIII

“CRUELTY WITHOUT EXAMPLE:” DISCLOSING NEW SOURCES ON A PRODIGIOUS CASE OF INFANTICIDE THAT WAS PUBLISHED IN 18TH CENTURY PORTUGAL

“CRUAUTÉ SANS EXEMPLE”: DIVULGATION D'UNE SOURCE SANS PRÉCÉDENT QUI TRAITE UN EXTRAORDINAIRE CAS D'INFANTICIDE PUBLIÉ AU PORTUGAL AU XVIIIE SIÈCLE

Resumo

O documento que apresentamos trata da divulgação, por meio de um impresso de quatro páginas, de um relato de infanticídio ocorrido em um vilarejo no Reino Espanhol no ano de 1728. A fonte foi impressa em Lisboa no ano de 1732 na oficina tipográfica de Pedro Ferreira, possuía todas as licenças necessárias e reconhecimento real. O documento original se encontra salvaguardado na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) e está disponível para consulta local. Apresentamos também uma pequena reflexão sobre os potenciais usos e interesses pela fonte de pesquisa, bem como uma possibilidade analítica sobre as disposições simbólicas para perceber o sentimento social do adulto em relação à infância em um contexto moderno de transformação nos modos de viver no universo cristão do Antigo Regime ibérico.

Palavras-chave:
Infanticídio; fonte; impresso; história da Infância; século XVIII

resumen

El documento que presentamos trata de la difusión, a través de una impresión de cuatro páginas, de un relato de infanticidio ocurrido en una aldea del Reino de España en el año 1728. La fuente se imprimió en Lisboa en el año 1732 en el taller tipográfico de Pedro Ferreira, con todas las licencias necesarias y reconocimiento real. El documento original se conserva en la Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) y está disponible para consulta local. También presentamos una pequeña reflexión sobre los posibles usos e intereses de la fuente de investigación, así como una posibilidad analítica sobre las disposiciones simbólicas para percibir el sentimiento social del adulto en relación con la infancia en un contexto moderno de transformación en las formas de vivir en el universo cristiano del antiguo régimen ibérico.

Palabras clave:
Infanticidio; Fuente; Impreso; Historia de la Infancia; Siglo XVIII

Abstract

We present a document that made public a four-page printout reporting an infanticide in a Spanish Kingdom village in 1728. The source material was printed in Lisbon in 1732, at Pedro Ferreira’s typography, with all necessary licenses and royal acknowledgment. The original document is kept at the Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), and is available for local consult. We also reflect on possible uses and interests regarding the research source, and analyze the possible symbolic dispositions that perceive adult’s social feeling towards childhood, in a modern context of living changes in the Christian realm during the Old Iberian regime.

Keywords:
Infanticide; source material; printed; childhood history; 18th century

Résumé

Le document que nous présentons traite de la divulgation, au moyen d'une impression de quatre pages, d'un récit d'infanticide survenu dans un village du royaume espagnol en 1728. Une fonte foi impressiona à Lisbonne en 1732 dans l'imprimerie de Pedro Ferreira, J'ai toutes les licences nécessaires et une réelle reconnaissance. Le document original est conservé à la Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) et est disponible pour consultation locale. Nous présentons également une petite réflexion sur les usages et intérêts potentiels de la source de recherche, comme possibilité analytique sur les dispositions symboliques à percevoir ou le sentiment social de l'adulte par rapport à l'enfance dans un contexte moderne de transformation des modes de vie non dans l'univers du Christ dans l'ancien régime ibérique.

Mots-clés:
Infanticide; Source; Imprimés; Histoire de L'enfance; XVIIIe Siècle

No ano de 1732 foi publicado no Reino português a tradução de um impresso produzido em Madri sobre um infanticídio. Trata-se do relato intitulado Crueldade sem exemplo, executada em Affonso Roberto. Menino de tres annos, e nove mezes, natural da Villa de D. Gonçalo, no reyno de Cordova, com apenas quatro páginas. O folheto faz parte do gênero relações, uma tipologia tipográfica emergente nas publicações dos centros urbanos europeus nos séculos XVII e XVIII, que desenvolvia um sistema postal de impressão de notícias (BOTTA, 2013BOTTA, Mariana Giacomini. A imprensa pioneira em língua portuguesa e os gêneros jornalísticos no século XVIII. Revista Comunicação Midiática, v.8, n.2, pp.149-168, mai./ago. 2013.).

Essa tipologia editorial, também percebida como “literatura de cordel”, tinha, geralmente, o acesso econômico e linguístico facilitado. De acordo com Peter Burke (1989BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.) estas publicações com poucas páginas eram adquiridas, em várias partes da Europa, a um baixo custo, visto que comumente eram impressas em papéis de baixa qualidade, e, do mesmo, sua escrita apresentava vocabulário suficientemente simples, para que homens e mulheres com poucos rudimentos das letras pudessem compreender. Ainda que “a publicação de folhas informativas ocasionais, que narravam acontecimentos de grande importância, como guerras, festas religiosas e mortes de membros da realeza” (BOTTA, 2013BOTTA, Mariana Giacomini. A imprensa pioneira em língua portuguesa e os gêneros jornalísticos no século XVIII. Revista Comunicação Midiática, v.8, n.2, pp.149-168, mai./ago. 2013., p. 152), também estavam associadas nestes folhetos a de divulgação de curiosas notícias, de casos miraculosos, de anedotas, de acontecimentos burlescos e de assassinatos de crianças, como o da fonte aqui apresentada.1 1 Sobre a tipologia das relações sugere-se para leitura Diogo Curto (2003).

O documento que por ora apresentamos, se enquadra, então, como uma relação, em que divulga o relato de um caso de infanticídio ocorrido na Vila da Ponte de Dom Gonçalo, no Reino Espanhol no ano de 1731. A fonte foi impressa em Lisboa poucos meses depois, no ano de 1732, na oficina tipográfica de Pedro Ferreira, apresentando todas as licenças necessárias e reconhecimento real.2 2 Até o momento foram identificados apenas dois exemplares, um na Biblioteca Nacional de Portugal e outro na Biblioteca Joanina em Coimbra. Ambos documentos estão salvaguardados nos acervos de miscelâneas, deixando-os, de certo modo, não tão facilmente localizáveis. De acordo com o catálogo de miscelâneas da Biblioteca Joanina o impresso em língua portuguesa foi produzido por José Freire Monterroio Mascarenhas (1670-1760), um importante redator da Gazeta de Lisboa que publicava notícias do Reino e do Estrangeiro. O documento original se encontra salvaguardado na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) e está disponível para consulta local.3 3 A transcrição da fonte foi fiel à grafia e a pontuação do documento impresso.

Trata-se de um impresso, inicialmente escrito e noticiado em Madri e que fora trazido ao público português por meio de “hum curioso”, atendendo assim, a opção pelo anonimato. A fonte traz uma descrição bastante detalhada do caso narrado: o desaparecimento da criança, a procura, o achado do corpo, os sujeitos envolvidos, prestando-se muito bem a uma abordagem indiciária, tal como o fez o historiador italiano Carlo Ginzburg (1987 GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.; 1989GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. de Frederico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.) ao comparar o trabalho investigativo com o de um detetive, amparado em indícios, sinais, detalhes, vestígios.

Sem pretensão de fazer uma análise do documento, é relevante dizer que o relato trata do homicídio de uma criança de “família popular” que inicialmente teria “desaparecido” dois dias após o natal do ano de 1731, deixando pais, vizinhos, amigos e autoridades políticas ansiosos. Uma vez encontrado o corpo morto do menino, é formada uma comissão médico-cirúrgica para avaliação da causa da morte da criança e o resultado teria sido a constatação de inúmeros sinais de agressões e “martírios”, confirmando o infanticídio. Assim, o relato se ampara na legitimidade científica dos procedimentos médicos para supor estados de milagres ou de martirização da criança, especialmente a partir da constatação de alguns “prodígios”, como o sangue líquido que corria diante de sangrias realizadas no corpo morto. Além disso, aparece claramente no relato, o uso do discurso religioso católico a apontar um lamento e uma tentativa de compensar ou justificar o infanticídio com a martirização da criança: o enterro, por exemplo, amparado por todo corpo político local, teria ocorrido com a melhor distinção da época e o corpo morto do menino teria sido vestido “à Nazarena” com uma “coroa de espinhos” na cabeça.

Nesse imaginário de exaltação da infância mística, do menino santo, o sentimento social em relação ao sofrimento do infantil martirizado é convertido na imagem da Criança-Cristo, de modo a exaltar “as virtudes daqueles cuja fé é o bastante forte para fazê-los supor os piores tormentos do corpo, que podem conduzi-los à morte prematura” (GÉLIS, 2009GÉLIS, Jacques. A individualização da criança. In: ARIÈS, Philippe.; CHARTIER, Roger. História da vida privada. v. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. pp. 305-320., p. 315). De acordo com Jacques Gélis (2009GÉLIS, Jacques. A individualização da criança. In: ARIÈS, Philippe.; CHARTIER, Roger. História da vida privada. v. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. pp. 305-320., p. 316) o modelo de santidade infantil divulgado pela Igreja moderna, por meio de suportes textuais e iconográficos, além de reforçar novas formas de devoção nos fiéis, alertavam para os cuidados elementares que o frágil corpo das crianças exigia.

O documento que apresentaremos também revela a lamentação e preocupação de “huma mulher chamada de Anna de Pinha, que havia dado o peito ao Menino, e lhe tinha particular amor”. Essa relação sentimental entre a ama de leite e a criança, coloca em discussão um debate acalorado entre os letrados setecentistas sobre a nutrição das crianças e a utilização do “leite mercenário” (GÉLIS, 2009GÉLIS, Jacques. A individualização da criança. In: ARIÈS, Philippe.; CHARTIER, Roger. História da vida privada. v. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. pp. 305-320.). Os direcionamentos relativos à nutrição infantil, propagados à época, estavam repletos de mitificações e explicações espirituais, ou ainda carregados de uma forte crença na transmissão de virtudes entre a mãe, ou ama de leite, e a criança.4 4 Não obstante, o imaginário social, compartilhado por médicos e moralistas do setecentos europeu, considerava que os alimentos eram as substâncias que levavam ao sangue todas as matérias e virtudes necessárias à conservação do corpo, infere-se que as doenças da infância poderiam ser as mais sobrecarregadas de prejuízos. A dependência única do leite materno, nos primeiros tempos de vida, pode indicar que certas doenças na infância fossem justificadas por meio de um universo de sortilégios e bruxedos. A recorrência à feitiços, aparições fantásticas, benzedeiras e maus olhados, davam conta de um regime social supersticioso. Sobre a prática do aleitamento no Antigo regime sugere-se: Ferreira (2000); Joaquim (1983); Ripe (2019).

A potencialidade historiográfica deste documento reside nos interesses que podem despertar aos campos da História da Infância, mas também da história da morte, da medicina e das religiosidades, sobretudo voltadas ao período moderno.5 5 Vale destacar as poucas abordagens historiográficas para o infanticídio, constituindo-se como uma importante lacuna a ser devidamente preenchida. Um interessante estudo sobre a morte de um recém-nascido no século XVIII é a obra de Adriano Prosperi, Dar a alma (2010). A partir de um caso particular de infanticídio, o autor aborda questões estruturais, especificamente as grandes polêmicas do pensamento científico e teológico, do mesmo modo que revela as complexas teias sociais da Itália do setecentos em torno da temática. Para Portugal vale destacar os trabalhos acerca da morte de infantis em Oliveira (2007), para o período Medieval e Araújo (1997) e Ripe; Dillmann (2017) para o período Moderno. Acreditamos que uma possível chave de leitura para o documento seja as disposições simbólicas que levam a perceber o sentimento social do adulto em relação à infância6 6 Aqui, estamos tratando especificamente da aproximação do documento com a tese de Philippe Ariès, A criança e a vida familiar no Antigo Regime, sobre a consciência de um sentimento adulto em relação aos sujeitos infantis. Por outro lado, estamos ampliando a ideia de Lawrence Stone, Family, sex and marriage in England (1500-1880), de que somente as crianças advindas de famílias dos altos estratos sociais - então, capazes de garantir o luxo no investimento de sepultamento - não se comoviam com a morte dos filhos. O documento, aqui apresentado, revela a mobilização de um grupo social em torno não somente da procura por um infantil desaparecido, como pela conformação de toda uma rede, despertada por um sentimento [de piedade religiosa], para salvar a alma da criança. em um contexto moderno de transformação nos modos de viver ainda pautado em valores cristãos.

Então, se o conteúdo do documento demonstra diversos tipos de preocupações (morais, religiosas, médicas) de diferentes grupos sociais para com uma criança “popular” de um vilarejo, “cruelmente” assassinada, a publicação do próprio folheto evidencia que circulavam, entre a cultura escrita cristã portuguesa, as ideias relativas à necessária salvação das almas dos infantis que morriam sem a assistência religiosa tida como ideal para a hora da morte.

A publicação demonstra não somente a organização de um comportamento político e social, mas apresenta uma série de informações - sobre as estratégias sociais utilizadas frente a um caso de violência, por exemplo - que nem sempre são encontradas em outros tipos de fonte, uma vez que permite elucidar a existência da sistematização de um conjunto de saberes e poderes - o poder religioso, a polícia, a medicina - que foi empregado no caso de infanticídio. O documento enuncia disposições jurídicas, regras e preceitos médicos, notadamente àqueles de necropsia, bem como de discursos regulamentadores da vivência em sociedade.

Sobre os domínios da considerada assistência espiritual necessária, a cultura impressa portuguesa setecentista7 7 Nessa perspectiva, a cultura impressa pode ser percebida como uma importante estratégia para propagação de certos discursos, uma vez que pressupõe mudanças de subjetividades, um ‘antes e um depois’ do sujeito e, com efeito, de uma sociedade. Para o historiador Roger Chartier (2009, p. 35), as práticas de leitura não são desprovidas de interações e percepções, uma vez que “o processo pelo qual os leitores, os expectadores ou ouvintes dão sentido ao texto (ou às imagens dos quais se apropriam)” são fundamentais para a dinâmica do poder de transformação social. Este entendimento também foi partilhado pelo historiador Robert Darnton referente à tentativa de compreender os significados que o leitor apreende, uma vez que este parte de um “esforço infindável do homem em encontrar sentido no mundo em torno e dentro dele mesmo”. Nesse sentido, se entendêssemos como o sujeito leitor subjetivava tais discursos “poderíamos vir a compreender como ele entendia a vida, e, por essa via - a via histórica -, quem sabe chegaríamos a satisfazer uma parte de nosso próprio anseio por um sentido” (DARNTON, 1990, p. 172). se valeu de narrativas de casos extraordinários de infanticídios e/ou abusos sexuais, para despertar o interesse e a comoção social (RIPE, 2019RIPE, Fernando. A constituição do sujeito infantil moderno na cultura impressa portuguesa do século XVIII. 2019. 325 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Pelotas/UFPel, Pelotas, 2019.). Por isso, alguns fenômenos sociais como esses - infanticídios e abusos - foram motivos de atenção por parte do Tribunal de Inquisição e registrados em impressos que circulavam por todo o império luso.8 8 Por exemplo, Monteiro (2014).

A existência de “inimigos infernais” também poderia estar muito próxima dos ambientes familiares, às vezes sendo os próprios pais, que promoviam a morte e/ou os abusos das crianças (RIPE, 2019RIPE, Fernando. A constituição do sujeito infantil moderno na cultura impressa portuguesa do século XVIII. 2019. 325 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Pelotas/UFPel, Pelotas, 2019.). Ainda que no século XVIII a literatura médica tenha apresentada significativa transformação, em decorrência da aproximação entre médicos e cirurgiões,9 9 Sugere-se Jean Abreu (2007) para ampliar a abordagem sobre impressos de anatomia, bem como para relativizar a presença de alguns aspectos que marcaram a valorização do conhecimento cirúrgico e anatômico na medicina portuguesa no século dezoito. a publicação de tratados de anatomia - como forma de ampliar os saberes relativos ao corpo humano - nem sempre era suficiente para algumas explicações. Assim, quando médicos ou religiosos não encontravam justificativas nestes estatutos, recorriam às soluções míticas/sobrenaturais/supersticiosas (atuação de bruxas, demônios) sobre os efeitos do mal, que poderia estar na própria configuração familiar.

Na historiografia da infância ocidental europeia os estudos sobre as representatividades sociais em relação aos homicídios de recém-nascidos e de infantis são complexos e nem sempre são convergentes quanto aos motivos da sua ocorrência. Enquanto alguns pesquisadores tendem a generalizar a disposição desta prática desde a Baixa Idade Média no Ocidente cristão, como por exemplo os estudos de Sylvie Laurent que atestam, para a França, ser os infanticídios uma triste realidade nos distintos grupos sociais, cujas proporções foram crescendo desde o século XVI (LAURENT, 1989LAURENT, Sylvie. Naître au Moyen-Âge: de la conception à la naissance, la grossesse et l’accouchement (XIIe-XVe siècle). Paris: Cahiers du Léopard d’Or, 1989. , p. 164), outros como de Barbara Hanawalt, Growing up in Medieval London, the experience of childhood in historyHANAWALT, Barbara. Growing up in Medieval London: the experience of childhood in history. New York: Oxford University Press, 1993., tendem a negar a sua vulgarização.

Da antiguidade ao período moderno, a prática de homicídio dos infantis foi interpretada de diferentes maneiras nas sociedades ocidentais. Marion Trevisi (2003TREVISI, Marion. Marie Anne Lahaye: une jeune fille seule dan un process pour infanticide au XVIII e siècle. In: BARDET, Jean-Pierre (et. all.) . Lorsque l’enfant grandit entre dépendance et autoonimie. Paris: Presses de l’Université de Paris-Sorbone, 2003, p. 323-338., p. 323) apontou, de modo mais genérico, que entre o mundo antigo e o início da Idade Média o infanticídio não era considerado um crime, mas sim uma “técnica de controle da natalidade”, e no período moderno passou a ser “condenado com sendo uma violência”.

Entre os séculos XVII e XVIII, tanto em Portugal como no seu principal domínio ultramarino, a crescente organização do cotidiano familiar, em especial nos centros urbanos, colocou em evidência a problemática da presença de mães solteiras, bem como as ineficientes condições de habitabilidade e de subsistência material para criarem-se as crianças.10 10 Ainda que se trate de uma abordagem historiográfica sobre aborto, infanticídio e abandono de crianças em Portugal para o século XIX, a obra de Alexandra Esteves (2015) oferece-nos um interessante estudo que estabelece a correlação existente entre o contexto econômico, social, cultural e político com a violência e a criminalidade. Já para os finais do século XIX e princípios do XX, destacamos a pesquisa de Julieta Di Corleto (2018), Malas madres: aborto e infanticidio en perspectiva histórica. A abordagem da autora mostra uma relação entre a criminologia e a imprensa moderna, revelando que, historicamente o discurso sobre o fenômeno do infanticídio foi convertido para uma prática de delinquência feminina. Desse modo, não raro, recorria-se ao homicídio dos infantis indesejáveis como forma de resolver tais dificuldades geradas a partir de diversas ordens, seja econômica ou social. O nascimento de filhos inoportunos, débeis ou aleijados, assim como aqueles indesejáveis por bastardia, casos de adultérios ou violações, frutos de relações com religiosas ou de religiosos, mães solteiras ou viúvas, poderiam conduzir diferentes razões para o infanticídio ou abandono.

A potencialização do medo acionado pelos discursos religiosos cristãos e pelas instâncias jurídicas, promulgadas a partir de ordenações como as Afonsinas, Manuelinas e Filipinas,11 11 Sobre os mecanismos jurídicos em torno dos casos de infanticídio sugere-se Ribeiro (2015). contribuíram para a afirmação social de sentimentos como culpa, pecado e vergonha de crimes contra os infantis. De acordo com Sandra Corazza, os homicídios de infantis, no período moderno, em grande parte estavam associados às causas acidentais. Todavia, o desejo de morte sobre as crianças revela formas diversas de matar, como por exemplo

[...] queimar com ferro quente, com vela acesa, ou deixar pendurado na beira da lareira por vários dias; congelar com banhos frios ou deixar sem agasalho; afogar nos rios, no mar, em tinas de água, nos poços, ou em latrinas; abandonar em lugares desertos, para que os animais as comessem; asfixiar na cama; atirar ao solo ou contra a parede; deixa-las cair, enquanto enfaixadas, passando-as de uma janela a outra, ou jogando-as para o alto, como se fossem bolas, deixa-las morrer de fome (CORAZZA, 2004CORAZZA, Sandra Mara. História da infância sem fim. 2ª ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2004., p. 164).

A partir destas considerações, segue a transcrição do documento Documento Crueldade sem exemplo, executada em Affonso Roberto. Menino de tres annos, e nove mezes, natural da Villa de D. Gonçalo, no reyno de Cordova. Lisboa Occidental: Na Officina de Pedro Ferreira, Impressor da Serenissima Rainha nossa Senhora. Com todas as licenças necessárias, e Privilegio Real, 1732. Em 28 de Dezembro de 1731. Escrita em huma Relaçam impressa em Madrid, e referida por hum curioso. Na Villa da Ponte de D. Gonçalo, situada no Reyno de Cordova, nas margens do Rio Xenil, e huma dos Estados dos Marquezes de Priego, que hoje pessuem os Duques de Madinaceli, nasceu de família popular, na tarde de Sabbado Santo 27 de Março no anno de 1728 hum Menino, a que vivem actualmente na dita Villa. Cumpria tres annos, e nove mezes no dia 27 de Dezembro do anno passado de 1731. E nesse dia, que era a Vespera da festa dos Santos Innocentes desapareceu da Povoaçam. Anciosos o buscaram seus pays, sem ser possível descobrillo, nem noticia que os puzesse na esperança de achallo. Passàram cuidadosos às Villas de Espejo, e Castro del Rio, que são as mais vizinhas. Discorreram pelos lugares dos seus entornos. Mandàram apregoar a sua perda na Cidade de Montilha: que fica doas léguas distante, e em nenhuma destas partes puderam descobrir o menor indicio de haver estado em ellas. No dia 4 de janeiro do presente anno de 1732 achando-se com as suas éguas no sitio de Malconado, meya légua distante da Ponte de D. Gonçali, mas ainda pertencente ao seu termo, Sebastiam Leon, Eguariço, e primo irmão do pay do perdido Menino; reparou que no alto da serra que ha naquele districto, estavam duas das suas éguas paradas; e fazendo diligencia por incorporalas no rebanho com as outras o não pode conseguir. Isto obrigou a pedir a Joam Garrido, Pastor de Luis de Quero, que subisse assim a recolhellas. Subio este: chegou ao sitio em que estavam aquelles animaes; e olhando para a parte para onde estavam inclinados, e suspensis, vio cinco rafeiros, que cercavam hum Menino morto; como que pertendiam guardallo da devoraçam dos lobos, ou de outras feras de que aquella paraje he muy frequentada. Deu parte a Sebastiam Leon, que immediatamente disse: será sem duvida meu sobrinho. Para se certificar chegou acima, Achou hum Menino, lançado no cham de brussos, morto, e muy unido com a terra. Voltou-o, e vendo-lhe o rosto conheceu, que era o sobrinho que lhe faltava. Sem o apartar do lugar que jazia, mandou no mesmo instante avizar o pay, que a toda pressa cheyo de alvoroço, e de pena partio para Malconado, seguido de huma mulher chamada de Anna de Pinha, que havia dado o peito ao Menino, e lhe tinha particular amor. Chegou à terra, pelas dez horas da manhã, o lastimoso pay; e reconhecendo o filho no seu cadáver, o condusio em huma ceira para a Villa. Levou-o a caza de seu Avó paterno, chamado tambem Diogo del Rio, onde entrou (seriam tres quartos depois do meyo dia) e despindo-o o expoz à vista de todo o Povo, que concorriam a informarse do sucesso; fazendo os enternecidos clamores da mãy, e as diferentes lamentaçoens de parentes, e conhecidos, mais sensível este deplorável espetáculo. No dia seguinte 5 de Janeyro se deu parte do caso aio Vigario da Vara, ao Comissario do Santo Officio, e ao Alcaide mòr da Villa que ajuntando-se, ordenaram, que fosse o defunto corpo visto, e examinado por Medicos, e Cirurgioens na presença de Escrivaens, e Notarios, que dessem fé, e fizessem actos de tudo o que nelles se observasse. Assim se executou; e depois de examinados exatamente todos os sinaes do martírio que viram no corpo desta innocente criatura, declararam: Que tinha as plantas, e os dedos dos pès queimados com fogo lento: que as coxas das pernas pela parte exterior haviam sido cruelmente açoutadas atè fazerem as chagas que nelas se viam: Que havia sido queimado em diferentes partes com ferro feito em braza: Que os joelhos estavam pizados de pancadas: Que as mãos haviam sido queimadas nas palmas: Que os vergoens de que estavam rodeados os pulsos, eram sinaes de haverem sido tiranamente atadas: Que na face direita tinha queimaduras, e hum grande sinal de pancada: Que hum grande vergam que tinha por todo o comprimento da testa, junto à raiz do cabelo, de dedo e meyo de largura, indicava haver sido feito com fogo pelas empolas que levantava: Que havia tido huma ligadura sorte pelos olhos e tinha esquerdo furado pela menina. Achàram o corpo todo tam flexível, que se lhe maneavão as meninas juntas como se fosse vivo; e sem embargo de ser muy rigoroso o frio, viram o mesmo por experiencia própria todos os moradores daquela Villa, em todo o tempo, que esteve exposto. No referido dia de Sabbado pelas nove horas da manhã mandaram os Juizes que o sangrassem no braço direito, o que fez o Cirurgiam Diogo Nogueira, e correu sangue fluido com todas as circunstancias de vivente. Para que parasse, se lhe aplicou atadura; a qual lhe mandaram tirar pelas tres horas e meya da tarde, e immediatamente tornou a correr sangue. Com o intento de guardar para si algum, quis repetir a mesma diligencia o Cirurgiam pelas onze horas e meya da noite; porèm por mais que a retirou, o nam pode conseguir; notando estar como cicatrizada a fizura. Desde entam se foram mostrando rubicundos todos os vergoens; especialmente os da nadega direita, o da virilha esquerda, o da face, e o da testa; e subiram depois tanto de cor, que pareciam fabricados de escarlata. Meya hora depois do meyo dia de 6. de Janeiro tornàram os Juizes a mandallo picar no mesmo braço; dous dedodps mais abaixo da primeira sangria, na presença de D. Pedro Furtado Doutor em Medicina, e assim como deu a picada o Cirugiam, sem embargo de nam rasgar veya, sahio o sangue tam liquido, e em tanta copia, que se ensoparam nelle alguns lenços. A vista de tantos prodígios se começou a converter em jubilo o sentimento; a Villa a gloriarse de haver produsido tal filho; e o Magistrado a entender que nam só convinha, mas era da sua obrigação pôr este corpo, a quem chamavam Angelical, em depozito, e com decencia; porque segundo o que os syntomas indicavam havia sido laureado com a coroa do martirio. Deputou para este efeito a D. Joam Fernando Casano Alcade (ou Vereador) ordinario, e a D. Joam de Cuenca Alferes mòr da Villa; os quaes mandáram logo ordenando que lhe assistissem dous Ecclesiasticos e dous Capitulares da Camara, que iriam revesando com outros de duas em duas horas; e entre tanto fizeram preparar hum caixam forrado de Persiana encarnada, e guarnecido de galão de seda branca com tres fechaduras e outras tantas chaves, cada huma de diferentes guardas; huma zimizinha de Hollanda, e huma túnica do mesmo com entremeyos finos, e outra exterior de tafetá roxo guarnecido tambem de galam de seda branca. Bem quizera o Magistrado fazer mais preciozos estes adornos, mas nam pode deixar de observar a nova Pragmatica universalmente obedecida por gosto e por conveniência em todos os Estado da Cora de Castella, que nam permite estofos, nem guarniçoens mais ricas. Acabado tudo o que se tinha determinado, vestiram o menino à Nazarena, cingindolhe a cintura com hum cordam de seda roxa, torcida com fio de ouro. Puzeramlhe nos braços huma cruz de pao de nogueira marchetada de marfim, e na cabeça huma coroa de espinhos. Com estas insígnias foy metido no cofre, ou caixam, que se lhe havia preparado. Feitas estas dispoziçoens se cuidou em formar huma procissam para o conduzirem à Igreja. Convidàram os dous Deputados ao Clero, aos Prelados dos dous Conventos, que ha naquela Villa, e ao Commandante de quatro Companhias de Cavallaria que nella se achavam aquartelladas: e concorrendo todos com as suas Communidades e Soldados a caza de Diogo del Rio, conduziram pelas ruas mais publicas o caixam do martirizado corpo do Menino Affonso Roberto; levando-o sobre os seus hombros os dous Prelados, e dous Sacerdotes, da mayor distinçam da Villa: fazendo mais numerozo este acompanhamento hum grande concurso de naturaes, forasteiros, e pessoas de outras Naçoens. Foi depozitado na Tribuna da Capella das Angustias, a que chamam a dourada, da Igreja Parroquial, onde permanecia com luzes ao tempo que se mandàram estas noticias. Fechouse o cofre, e depozitàram-se as chaves no archivo da Camara. Em quanto durou a procissam, e se fez a collocação do cofre, não cessarão os festivos repiques dos sinos de todas as Igrejas, e se deu fim à funçam com huma salva geral das caravinas das quatro Companhias de Soldados. Entende-se que foy martirizado no mesmo dia da festa dos Santos Innocentes; e averiguou-se, que na noite antecedente ao dia em que foy achado, se ouviram ganir continuamente os caens que o guardavam, como de sentimento do lastimoso objeto que descobriram. Espera-se que manifeste o tempo os autores de crueldade tam inaudita, que parece exceder todas as de que as historias nos produzem exemplos. que além de revelar um caso de infanticídio, indica os modos como um grupo cristão da sociedade espanhola se organizou para amenizar o sentimento de perda com o fenômeno tido como violento, bem como a mistificação dada ao defunto infantil como parte de um processo que revelava o sentimento social partilhado em torno da inocência e pureza dos infantis frente à morte.

Referências

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  • CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
  • CORAZZA, Sandra Mara. História da infância sem fim. 2ª ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2004.
  • CURTO, Diogo Ramada (Org.). Bibliografia da História do livro em Portugal: séculos XV a XIX. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2003.
  • DARNTON, R. O Beijo de Lamourette: Mídia, Cultura e Revolução. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
  • DI CORLETO, Julieta. Malas madres: aborto e infanticidio en perspectiva histórica. Buenos Aires: Didot, 2018.
  • ESTEVES, Alexandra. Crimes e Criminosos no norte de Portugal. O caso do Alto Minho oitocentista. Lisboa: Editorial Cáritas, 2015.
  • FERREIRA, António Gomes. Gerar Criar Educar: A criança no Portugal do Antigo Regime. Coimbra: Quarteto, 2000.
  • GÉLIS, Jacques. A individualização da criança. In: ARIÈS, Philippe.; CHARTIER, Roger. História da vida privada. v. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. pp. 305-320.
  • GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. de Frederico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
  • GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
  • HANAWALT, Barbara. Growing up in Medieval London: the experience of childhood in history. New York: Oxford University Press, 1993.
  • JOAQUIM, Teresa. Dar à luz: ensaio sobre as práticas e crenças da gravidez, parto e pós-parto em Portugal. Lisboa: Dom Quixote, 1983.
  • LAURENT, Sylvie. Naître au Moyen-Âge: de la conception à la naissance, la grossesse et l’accouchement (XIIe-XVe siècle). Paris: Cahiers du Léopard d’Or, 1989.
  • MONTEIRO, Alex Silva. Anjos ou Hereges? Infância e Inquisição Portuguesa na Época Moderna. Curitiba: Editora Prismas, 2014.
  • OLIVEIRA, Ana Rodrigues. A Criança na sociedade medieval portuguesa. Lisboa: Teorema, 2007.
  • PROSPERI, Adriano. Dar a alma: história de um infanticídio. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • RIBEIRO, Fernando José Martins Barbosa. O crime de infanticídio: análise forense sobre a influência perturbadora do parto. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais). Mestrado em Direito. Universidade Autónoma de Lisboa, Lisboa, 2015, 216 f.
  • RIPE, Fernando. A constituição do sujeito infantil moderno na cultura impressa portuguesa do século XVIII. 2019. 325 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Pelotas/UFPel, Pelotas, 2019.
  • RIPE, Fernando; DILLMANN, Mauro. Do cuidado, que devem ter os pays dos mininos defuntos: preservação da infância e conselhos espirituais do padre jesuíta Alexandre de Gusmão, século 17. História da Educação, v. 21, 2017, p. 271-295.
  • STONE, Lawrence. Family, sex and marriage in England, 1500-1880. Londres: Weidenfeld; Nicolson, 1977.
  • TREVISI, Marion. Marie Anne Lahaye: une jeune fille seule dan un process pour infanticide au XVIII e siècle. In: BARDET, Jean-Pierre (et. all.) . Lorsque l’enfant grandit entre dépendance et autoonimie. Paris: Presses de l’Université de Paris-Sorbone, 2003, p. 323-338.
  • 1
    Sobre a tipologia das relações sugere-se para leitura Diogo Curto (2003CURTO, Diogo Ramada (Org.). Bibliografia da História do livro em Portugal: séculos XV a XIX. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2003.).
  • 2
    Até o momento foram identificados apenas dois exemplares, um na Biblioteca Nacional de Portugal e outro na Biblioteca Joanina em Coimbra. Ambos documentos estão salvaguardados nos acervos de miscelâneas, deixando-os, de certo modo, não tão facilmente localizáveis. De acordo com o catálogo de miscelâneas da Biblioteca Joanina o impresso em língua portuguesa foi produzido por José Freire Monterroio Mascarenhas (1670-1760), um importante redator da Gazeta de Lisboa que publicava notícias do Reino e do Estrangeiro.
  • 3
    A transcrição da fonte foi fiel à grafia e a pontuação do documento impresso.
  • 4
    Não obstante, o imaginário social, compartilhado por médicos e moralistas do setecentos europeu, considerava que os alimentos eram as substâncias que levavam ao sangue todas as matérias e virtudes necessárias à conservação do corpo, infere-se que as doenças da infância poderiam ser as mais sobrecarregadas de prejuízos. A dependência única do leite materno, nos primeiros tempos de vida, pode indicar que certas doenças na infância fossem justificadas por meio de um universo de sortilégios e bruxedos. A recorrência à feitiços, aparições fantásticas, benzedeiras e maus olhados, davam conta de um regime social supersticioso. Sobre a prática do aleitamento no Antigo regime sugere-se: Ferreira (2000FERREIRA, António Gomes. Gerar Criar Educar: A criança no Portugal do Antigo Regime. Coimbra: Quarteto, 2000.); Joaquim (1983JOAQUIM, Teresa. Dar à luz: ensaio sobre as práticas e crenças da gravidez, parto e pós-parto em Portugal. Lisboa: Dom Quixote, 1983.); Ripe (2019RIPE, Fernando. A constituição do sujeito infantil moderno na cultura impressa portuguesa do século XVIII. 2019. 325 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Pelotas/UFPel, Pelotas, 2019.).
  • 5
    Vale destacar as poucas abordagens historiográficas para o infanticídio, constituindo-se como uma importante lacuna a ser devidamente preenchida. Um interessante estudo sobre a morte de um recém-nascido no século XVIII é a obra de Adriano Prosperi, Dar a alma (2010PROSPERI, Adriano. Dar a alma: história de um infanticídio. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.). A partir de um caso particular de infanticídio, o autor aborda questões estruturais, especificamente as grandes polêmicas do pensamento científico e teológico, do mesmo modo que revela as complexas teias sociais da Itália do setecentos em torno da temática. Para Portugal vale destacar os trabalhos acerca da morte de infantis em Oliveira (2007OLIVEIRA, Ana Rodrigues. A Criança na sociedade medieval portuguesa. Lisboa: Teorema, 2007.), para o período Medieval e Araújo (1997ARAÚJO, Ana Cristina. A morte em Lisboa: atitudes e representações, 1700-1830. Lisboa: Editorial Notícias, 1997.) e Ripe; Dillmann (2017RIPE, Fernando; DILLMANN, Mauro. Do cuidado, que devem ter os pays dos mininos defuntos: preservação da infância e conselhos espirituais do padre jesuíta Alexandre de Gusmão, século 17. História da Educação, v. 21, 2017, p. 271-295.) para o período Moderno.
  • 6
    Aqui, estamos tratando especificamente da aproximação do documento com a tese de Philippe ArièsARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. , A criança e a vida familiar no Antigo Regime, sobre a consciência de um sentimento adulto em relação aos sujeitos infantis. Por outro lado, estamos ampliando a ideia de Lawrence StoneSTONE, Lawrence. Family, sex and marriage in England, 1500-1880. Londres: Weidenfeld; Nicolson, 1977., Family, sex and marriage in England (1500-1880), de que somente as crianças advindas de famílias dos altos estratos sociais - então, capazes de garantir o luxo no investimento de sepultamento - não se comoviam com a morte dos filhos. O documento, aqui apresentado, revela a mobilização de um grupo social em torno não somente da procura por um infantil desaparecido, como pela conformação de toda uma rede, despertada por um sentimento [de piedade religiosa], para salvar a alma da criança.
  • 7
    Nessa perspectiva, a cultura impressa pode ser percebida como uma importante estratégia para propagação de certos discursos, uma vez que pressupõe mudanças de subjetividades, um ‘antes e um depois’ do sujeito e, com efeito, de uma sociedade. Para o historiador Roger Chartier (2009CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009., p. 35), as práticas de leitura não são desprovidas de interações e percepções, uma vez que “o processo pelo qual os leitores, os expectadores ou ouvintes dão sentido ao texto (ou às imagens dos quais se apropriam)” são fundamentais para a dinâmica do poder de transformação social. Este entendimento também foi partilhado pelo historiador Robert Darnton referente à tentativa de compreender os significados que o leitor apreende, uma vez que este parte de um “esforço infindável do homem em encontrar sentido no mundo em torno e dentro dele mesmo”. Nesse sentido, se entendêssemos como o sujeito leitor subjetivava tais discursos “poderíamos vir a compreender como ele entendia a vida, e, por essa via - a via histórica -, quem sabe chegaríamos a satisfazer uma parte de nosso próprio anseio por um sentido” (DARNTON, 1990DARNTON, R. O Beijo de Lamourette: Mídia, Cultura e Revolução. São Paulo: Cia. das Letras, 1990., p. 172).
  • 8
    Por exemplo, Monteiro (2014MONTEIRO, Alex Silva. Anjos ou Hereges? Infância e Inquisição Portuguesa na Época Moderna. Curitiba: Editora Prismas, 2014.).
  • 9
    Sugere-se Jean Abreu (2007ABREU, Jean Luiz Neves. Os estudos anatômicos e cirúrgicos na medicina portuguesa do século XVIII. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, v. 5, p. 149-158, 2007. ) para ampliar a abordagem sobre impressos de anatomia, bem como para relativizar a presença de alguns aspectos que marcaram a valorização do conhecimento cirúrgico e anatômico na medicina portuguesa no século dezoito.
  • 10
    Ainda que se trate de uma abordagem historiográfica sobre aborto, infanticídio e abandono de crianças em Portugal para o século XIX, a obra de Alexandra Esteves (2015ESTEVES, Alexandra. Crimes e Criminosos no norte de Portugal. O caso do Alto Minho oitocentista. Lisboa: Editorial Cáritas, 2015.) oferece-nos um interessante estudo que estabelece a correlação existente entre o contexto econômico, social, cultural e político com a violência e a criminalidade. Já para os finais do século XIX e princípios do XX, destacamos a pesquisa de Julieta Di Corleto (2018DI CORLETO, Julieta. Malas madres: aborto e infanticidio en perspectiva histórica. Buenos Aires: Didot, 2018.), Malas madres: aborto e infanticidio en perspectiva histórica. A abordagem da autora mostra uma relação entre a criminologia e a imprensa moderna, revelando que, historicamente o discurso sobre o fenômeno do infanticídio foi convertido para uma prática de delinquência feminina.
  • 11
    Sobre os mecanismos jurídicos em torno dos casos de infanticídio sugere-se Ribeiro (2015RIBEIRO, Fernando José Martins Barbosa. O crime de infanticídio: análise forense sobre a influência perturbadora do parto. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais). Mestrado em Direito. Universidade Autónoma de Lisboa, Lisboa, 2015, 216 f.).

Documento

Crueldade sem exemplo, executada em Affonso Roberto. Menino de tres annos, e nove mezes, natural da Villa de D. Gonçalo, no reyno de Cordova. Lisboa Occidental: Na Officina de Pedro Ferreira, Impressor da Serenissima Rainha nossa Senhora. Com todas as licenças necessárias, e Privilegio Real, 1732.

Em 28 de Dezembro de 1731.

Escrita em huma Relaçam impressa em Madrid, e referida por hum curioso.

Na Villa da Ponte de D. Gonçalo, situada no Reyno de Cordova, nas margens do Rio Xenil, e huma dos Estados dos Marquezes de Priego, que hoje pessuem os Duques de Madinaceli, nasceu de família popular, na tarde de Sabbado Santo 27 de Março no anno de 1728 hum Menino, a que vivem actualmente na dita Villa. Cumpria tres annos, e nove mezes no dia 27 de Dezembro do anno passado de 1731. E nesse dia, que era a Vespera da festa dos Santos Innocentes desapareceu da Povoaçam. Anciosos o buscaram seus pays, sem ser possível descobrillo, nem noticia que os puzesse na esperança de achallo. Passàram cuidadosos às Villas de Espejo, e Castro del Rio, que são as mais vizinhas. Discorreram pelos lugares dos seus entornos. Mandàram apregoar a sua perda na Cidade de Montilha: que fica doas léguas distante, e em nenhuma destas partes puderam descobrir o menor indicio de haver estado em ellas.

No dia 4 de janeiro do presente anno de 1732 achando-se com as suas éguas no sitio de Malconado, meya légua distante da Ponte de D. Gonçali, mas ainda pertencente ao seu termo, Sebastiam Leon, Eguariço, e primo irmão do pay do perdido Menino; reparou que no alto da serra que ha naquele districto, estavam duas das suas éguas paradas; e fazendo diligencia por incorporalas no rebanho com as outras o não pode conseguir. Isto obrigou a pedir a Joam Garrido, Pastor de Luis de Quero, que subisse assim a recolhellas. Subio este: chegou ao sitio em que estavam aquelles animaes; e olhando para a parte para onde estavam inclinados, e suspensis, vio cinco rafeiros, que cercavam hum Menino morto; como que pertendiam guardallo da devoraçam dos lobos, ou de outras feras de que aquella paraje he muy frequentada. Deu parte a Sebastiam Leon, que immediatamente disse: será sem duvida meu sobrinho. Para se certificar chegou acima, Achou hum Menino, lançado no cham de brussos, morto, e muy unido com a terra. Voltou-o, e vendo-lhe o rosto conheceu, que era o sobrinho que lhe faltava. Sem o apartar do lugar que jazia, mandou no mesmo instante avizar o pay, que a toda pressa cheyo de alvoroço, e de pena partio para Malconado, seguido de huma mulher chamada de Anna de Pinha, que havia dado o peito ao Menino, e lhe tinha particular amor.

Chegou à terra, pelas dez horas da manhã, o lastimoso pay; e reconhecendo o filho no seu cadáver, o condusio em huma ceira para a Villa. Levou-o a caza de seu Avó paterno, chamado tambem Diogo del Rio, onde entrou (seriam tres quartos depois do meyo dia) e despindo-o o expoz à vista de todo o Povo, que concorriam a informarse do sucesso; fazendo os enternecidos clamores da mãy, e as diferentes lamentaçoens de parentes, e conhecidos, mais sensível este deplorável espetáculo.

No dia seguinte 5 de Janeyro se deu parte do caso aio Vigario da Vara, ao Comissario do Santo Officio, e ao Alcaide mòr da Villa que ajuntando-se, ordenaram, que fosse o defunto corpo visto, e examinado por Medicos, e Cirurgioens na presença de Escrivaens, e Notarios, que dessem fé, e fizessem actos de tudo o que nelles se observasse. Assim se executou; e depois de examinados exatamente todos os sinaes do martírio que viram no corpo desta innocente criatura, declararam: Que tinha as plantas, e os dedos dos pès queimados com fogo lento: que as coxas das pernas pela parte exterior haviam sido cruelmente açoutadas atè fazerem as chagas que nelas se viam: Que havia sido queimado em diferentes partes com ferro feito em braza: Que os joelhos estavam pizados de pancadas: Que as mãos haviam sido queimadas nas palmas: Que os vergoens de que estavam rodeados os pulsos, eram sinaes de haverem sido tiranamente atadas: Que na face direita tinha queimaduras, e hum grande sinal de pancada: Que hum grande vergam que tinha por todo o comprimento da testa, junto à raiz do cabelo, de dedo e meyo de largura, indicava haver sido feito com fogo pelas empolas que levantava: Que havia tido huma ligadura sorte pelos olhos e tinha esquerdo furado pela menina. Achàram o corpo todo tam flexível, que se lhe maneavão as meninas juntas como se fosse vivo; e sem embargo de ser muy rigoroso o frio, viram o mesmo por experiencia própria todos os moradores daquela Villa, em todo o tempo, que esteve exposto.

No referido dia de Sabbado pelas nove horas da manhã mandaram os Juizes que o sangrassem no braço direito, o que fez o Cirurgiam Diogo Nogueira, e correu sangue fluido com todas as circunstancias de vivente. Para que parasse, se lhe aplicou atadura; a qual lhe mandaram tirar pelas tres horas e meya da tarde, e immediatamente tornou a correr sangue. Com o intento de guardar para si algum, quis repetir a mesma diligencia o Cirurgiam pelas onze horas e meya da noite; porèm por mais que a retirou, o nam pode conseguir; notando estar como cicatrizada a fizura. Desde entam se foram mostrando rubicundos todos os vergoens; especialmente os da nadega direita, o da virilha esquerda, o da face, e o da testa; e subiram depois tanto de cor, que pareciam fabricados de escarlata.

Meya hora depois do meyo dia de 6. de Janeiro tornàram os Juizes a mandallo picar no mesmo braço; dous dedodps mais abaixo da primeira sangria, na presença de D. Pedro Furtado Doutor em Medicina, e assim como deu a picada o Cirugiam, sem embargo de nam rasgar veya, sahio o sangue tam liquido, e em tanta copia, que se ensoparam nelle alguns lenços.

A vista de tantos prodígios se começou a converter em jubilo o sentimento; a Villa a gloriarse de haver produsido tal filho; e o Magistrado a entender que nam só convinha, mas era da sua obrigação pôr este corpo, a quem chamavam Angelical, em depozito, e com decencia; porque segundo o que os syntomas indicavam havia sido laureado com a coroa do martirio. Deputou para este efeito a D. Joam Fernando Casano Alcade (ou Vereador) ordinario, e a D. Joam de Cuenca Alferes mòr da Villa; os quaes mandáram logo ordenando que lhe assistissem dous Ecclesiasticos e dous Capitulares da Camara, que iriam revesando com outros de duas em duas horas; e entre tanto fizeram preparar hum caixam forrado de Persiana encarnada, e guarnecido de galão de seda branca com tres fechaduras e outras tantas chaves, cada huma de diferentes guardas; huma zimizinha de Hollanda, e huma túnica do mesmo com entremeyos finos, e outra exterior de tafetá roxo guarnecido tambem de galam de seda branca. Bem quizera o Magistrado fazer mais preciozos estes adornos, mas nam pode deixar de observar a nova Pragmatica universalmente obedecida por gosto e por conveniência em todos os Estado da Cora de Castella, que nam permite estofos, nem guarniçoens mais ricas. Acabado tudo o que se tinha determinado, vestiram o menino à Nazarena, cingindolhe a cintura com hum cordam de seda roxa, torcida com fio de ouro. Puzeramlhe nos braços huma cruz de pao de nogueira marchetada de marfim, e na cabeça huma coroa de espinhos. Com estas insígnias foy metido no cofre, ou caixam, que se lhe havia preparado.

Feitas estas dispoziçoens se cuidou em formar huma procissam para o conduzirem à Igreja. Convidàram os dous Deputados ao Clero, aos Prelados dos dous Conventos, que ha naquela Villa, e ao Commandante de quatro Companhias de Cavallaria que nella se achavam aquartelladas: e concorrendo todos com as suas Communidades e Soldados a caza de Diogo del Rio, conduziram pelas ruas mais publicas o caixam do martirizado corpo do Menino Affonso Roberto; levando-o sobre os seus hombros os dous Prelados, e dous Sacerdotes, da mayor distinçam da Villa: fazendo mais numerozo este acompanhamento hum grande concurso de naturaes, forasteiros, e pessoas de outras Naçoens. Foi depozitado na Tribuna da Capella das Angustias, a que chamam a dourada, da Igreja Parroquial, onde permanecia com luzes ao tempo que se mandàram estas noticias. Fechouse o cofre, e depozitàram-se as chaves no archivo da Camara.

Em quanto durou a procissam, e se fez a collocação do cofre, não cessarão os festivos repiques dos sinos de todas as Igrejas, e se deu fim à funçam com huma salva geral das caravinas das quatro Companhias de Soldados. Entende-se que foy martirizado no mesmo dia da festa dos Santos Innocentes; e averiguou-se, que na noite antecedente ao dia em que foy achado, se ouviram ganir continuamente os caens que o guardavam, como de sentimento do lastimoso objeto que descobriram. Espera-se que manifeste o tempo os autores de crueldade tam inaudita, que parece exceder todas as de que as historias nos produzem exemplos.

Editado por

Editora responsável: Terciane Luchese

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    26 Maio 2020
  • Aceito
    22 Out 2020
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