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EFEMÉRIDES DE 2022 E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, AS NOSSAS ‘CAUSAS’

2022. Iniciamos um novo ano em meio à pandemia de Covid-19 que, desde 2020, permanece globalmente provocando a perda de muitas vidas, mesmo com a esperança da vacinação em massa. Mais do que uma crise sanitária, vivemos um presente que agudiza problemáticas planetárias que envolvem as questões ecológicas, as contradições das tecnologias, a acentuação das desigualdades nacionais e globais de acesso às condições básicas e mínimas de sobrevivência, o acirramento de tensões geopolíticas e outros acontecimentos, como disseminação de fake news, negação da ciência e de muitos preconceitos. São tempos de muitos saberes, conhecimentos, tecnologias e paradigmaticamente, de negacionismos que nos fazem pensar em como é fundamental reafirmar a urgência da Educação como bem comum e público.

Neste ano, o Brasil celebra o Bicentenário de sua Independência, o centenário da Semana de Arte Moderna e, também, o centenário de nascimento de dois brasileiros que foram figuras emblemáticas na luta pela educação pública brasileira, Darcy Ribeiro e Leonel de Moura Brizola . Com o slogan “Nenhuma criança sem escola no Rio Grande do Sul”, Brizola enquanto governador do Rio Grande do Sul (1959-1963), implantou em sua gestão o Plano de Emergência de Expansão do Ensino Primário, projeto educacional pelo qual foram criadas as escolas conhecidas popularmente como “brizoletas”, sendo várias na zona rural, o que repercutiu em um expressivo aumento na quantidade de escolas no Estado (QUADROS, 2001QUADROS, Claudemir de. As brizoletas cobrindo o Rio Grande: a educação pública no Rio Grande do Sul durante o governo de Leonel Brizola (1959-1963). Santa Maria: Editora da UFSM, 2002. ;QUADROS, Claudemir de. Brizoletas: ação do governo de Leonel Brizola na educação pública do Rio Grande do Sul (1959-1963). Teias, Rio de Janeiro, ano 2, n. 3, p. 01-12, jan./jun. 2001. 2002QUADROS, Claudemir de. Reforma, ciência e profissionalização da educação: o Centro de Pesquisas e Orientação Educacionais do Rio Grande do Sul. 2006. 429 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, Porto Alegre, 2006. ; 2006RIBEIRO, Darcy. “Fala aos moços” - Prólogo. Carta: falas, reflexões, memórias. Brasília: Gabinete do Senador Darcy Ribeiro. Nº 12, p. 7 - 10, 1994). Já entre as décadas de 1980 e 1990, em seus dois mandatos como governador do estado do Rio de Janeiro, junto com o antropólogo Darcy Ribeiro, implantou os Centros Integrados de Educação Pública - CIEPs, popularmente chamados de “brizolões”, com o objetivo de oferecer aos alunos da rede estadual um ensino público em período integral (MIGNOT, 2001MIGNOT, Ana Crystina Venancio. Escolas na vitrine: Centros Integrados de Educação Pública (1983 - 1987). Estudos Avançados. v. 15, n. 42, p. 153 - 168, 2001. https://doi.org/10.1590/S0103-40142001000200005
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).

Ao referir as efemérides de 2022, não intentamos propor uma ‘onda comemorativa’. O tempo de rememorar e de lembrá-las pode esvaziar o sentido da narrativa que desejamos produzir para “as fendas do presente” como escreve Hartog (2013HARTOG, François. Regimes de Historicidade. Presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.). Esse presente que “reina aparentemente absoluto, “dilatado”, suficiente, evidente, mostra-se inquieto. Ele queria ser seu próprio ponto de vista sobre si mesmo e descobre a impossibilidade de se fiar nisso” (HARTOG, 2013HARTOG, François. Regimes de Historicidade. Presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013., p. 156). É no presente inquieto que relembramos Darcy Ribeiro, Brizola, a Semana de Arte Moderna, não pelo sentido que pessoas ou movimentos produziram, mas pelas possíveis significações que no hoje nos trazem. É na condição de exercício de historiador, tendo em conta o passado dessas comemorações e cientes do dever de memória que incitam, que nos colocamos a pensar nos sentidos sociais, políticos e culturais de tais celebrações. Reconhecemos que “a comemoração, como um ritual, constitui uma narrativa, é atravessada e constituída por um enredo, é uma forma de fazer ver e de dizer o passado” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O Tecelão dos Tempos (Novos Ensaios de Teoria da História). São Paulo: Intermeios, 2019., p. 187). Entretanto, esse passado nos permite perceber signos, modos de interpretar e significar, abrindo a “possibilidade da divergência e da disputa”, para refletir sobre os ruídos, pois que “o modo de ser do passado é do seu surgimento no presente, mas sob o controle do historiador” (HARTOG, 2013, p. 160). Sob o controle do historiador da educação, queremos convidar a pensar as efemérides, colocando-as sob suspeita, tensionando-as, desdobrando-as, mapeando convergências e divergências, modos como foram representadas e significadas nas escolas, em especial, por exemplo, a própria Independência do Brasil, tão plural e múltipla.

Pensar no Bicentenário de Independência do Brasil mobiliza memórias, patrimônio, pertencimento ou identidade a uma nação. Mas também nos convoca a pensar na historicidade e, em especial, na cidadania. Se, de um lado, a ação do Estado foi central para a difusão da escola pública, de outro, muitas lutas sociais foram importantes para a construção da concepção de educação como direito para todos e todas. Da mesma forma, a construção da cidadania e do seu exercício se constitui historicamente a partir das lutas e movimentos sociais. A cidadania se liga ao Estado-Nação, mas está para além dele. Não podemos esquecer que muitos direitos são construções obtidas por meio de movimentos sociais e que é por meio de regimes democráticos, nos domínios e espaços de convivência em sociedade - sejam públicos ou privados - que vamos ampliando o conceito de cidadania.

Novamente, 2022, ano importante para o Brasil e os brasileiros, tempo de lutas e de intensa mobilização dos movimentos sociais. Ano eleitoral, com múltiplos cargos políticos em disputa. E a História da Educação, como campo de pesquisa, também pode contribuir na perspectiva de tecer o presente, por meio da reflexão, do esclarecimento, da contextualização de quem somos e como chegamos ao que estamos vivendo. Segundo Nóvoa (2020), a crise global promovida pela Covid-19 nos convida a refletir a história da educação desde uma perspectiva de longa duração. Nesse sentido, o autor nos incita a pensar em uma via que nos conduz a reforçar a educação e, especialmente, a escola como um bem público e comum, “reconhecendo a importância das famílias, mas sem nunca fechar a educação em “círculos de proximidade”, reconhecendo a importância das tecnologias, mas sem nunca ceder a uma educação que vem “de fora”, antes valorizando a produção autónoma, “de dentro”, de professores e alunos ((NÓVOA, 2020, p. 17NÓVOA, Antonio; ALVIM, Yara Cristina. Covid-19 e o fim da educação. 1870-1920-1970-2020. História da Educação, v. 25, p. 1-19, 2021. http://dx.doi.org/10.1590/2236-3459/110616
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Como historiadores da educação, somos instados a pensar na historicidade das comemorações, vinculando-as ao ato educativo. O tempo de celebrar nos convida a olhar para trás para melhor perceber o percurso percorrido, pensar nos ruídos, divergências, disputas, mas também nos convida a meditar acerca do momento presente e, quiçá, projetar outros horizontes para o Brasil. Retomando as palavras de Darcy Ribeiro (1994RIBEIRO, Darcy. “Fala aos moços” - Prólogo. Carta: falas, reflexões, memórias. Brasília: Gabinete do Senador Darcy Ribeiro. Nº 12, p. 7 - 10, 1994), o cenário atual nos convida a pensar e seguir lutando por muitas “causas”, cientes dos lugares e papéis sociais que assumimos. Dentre elas, urge a consolidação de uma jovem nação, que carece de muitas necessidades básicas, assim como também de usufruir do direito pleno à cidadania e à educação. Se pensarmos nessa direção, 2022 é oportunidade para sermos sujeitos de ‘causas’, mas também, como editoras de um periódico científico, a permanecer firmes no desejo de promover, por meio da disseminação de conhecimento qualificado, saberes cientificamente relevantes que incitem a afirmar a educação como bem público e bem comum.

Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando e lutando, como um cruzado, pelas causas que me comovem. Elas são muitas, demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade, somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isto não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos venceram nessas batalhas (RIBEIRO, 1994RIBEIRO, Darcy. “Fala aos moços” - Prólogo. Carta: falas, reflexões, memórias. Brasília: Gabinete do Senador Darcy Ribeiro. Nº 12, p. 7 - 10, 1994, p. 10).

Editoras da Revista História da Educação

Referências

  • ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O Tecelão dos Tempos (Novos Ensaios de Teoria da História). São Paulo: Intermeios, 2019.
  • HARTOG, François. Regimes de Historicidade. Presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
  • MIGNOT, Ana Crystina Venancio. Escolas na vitrine: Centros Integrados de Educação Pública (1983 - 1987). Estudos Avançados. v. 15, n. 42, p. 153 - 168, 2001. https://doi.org/10.1590/S0103-40142001000200005
    » https://doi.org/10.1590/S0103-40142001000200005
  • NÓVOA, Antonio; ALVIM, Yara Cristina. Covid-19 e o fim da educação. 1870-1920-1970-2020. História da Educação, v. 25, p. 1-19, 2021. http://dx.doi.org/10.1590/2236-3459/110616
    » http://dx.doi.org/10.1590/2236-3459/110616
  • QUADROS, Claudemir de. As brizoletas cobrindo o Rio Grande: a educação pública no Rio Grande do Sul durante o governo de Leonel Brizola (1959-1963). Santa Maria: Editora da UFSM, 2002.
  • QUADROS, Claudemir de. Brizoletas: ação do governo de Leonel Brizola na educação pública do Rio Grande do Sul (1959-1963). Teias, Rio de Janeiro, ano 2, n. 3, p. 01-12, jan./jun. 2001.
  • QUADROS, Claudemir de. Reforma, ciência e profissionalização da educação: o Centro de Pesquisas e Orientação Educacionais do Rio Grande do Sul. 2006. 429 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, Porto Alegre, 2006.
  • RIBEIRO, Darcy. “Fala aos moços” - Prólogo. Carta: falas, reflexões, memórias. Brasília: Gabinete do Senador Darcy Ribeiro. Nº 12, p. 7 - 10, 1994

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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